POR UMA IGREJA SINODAL

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A PORTUGAL
POR OCASIÃO DA
XXXVII JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
[2 - 6 DE AGOSTO DE 2023]
VÉSPERAS COM OS BISPOS, OS SACERDOTES, OS DIÁCONOS,
OS CONSAGRADOS, AS CONSAGRADAS, OS SEMINARISTAS E OS AGENTES DA PASTORAL
HOMILIA DO SANTO PADRE
Mosteiro dos Jerônimos, Lisboa
Quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Prezados Irmãos Bispos,
Amados sacerdotes, diáconos, consagradas, consagrados, seminaristas,
Queridos agentes pastorais, irmãos e irmãs, boa tarde!
Estou feliz por me encontrar no meio de vós não só para viver, juntamente com muitos jovens, a Jornada Mundial da Juventude, mas também para partilhar o vosso caminho eclesial com as suas canseiras e esperanças. Agradeço a D. José Ornelas as palavras que me dirigiu; desejo rezar convosco, para – como disse – nos tornarmos, junto com os jovens, ousados em abraçar «o sonho de Deus e encontrar caminhos para uma participação alegre, generosa e transformadora a bem da Igreja e da humanidade». Não se trata duma piada; é um programa.
Mergulhei na beleza do vosso país, terra de passagem entre o passado e o futuro, local de antigas tradições e de grandes mudanças, embelezado por vales viçosos, praias douradas debruçadas sobre o imenso e fascinante oceano, que banha Portugal. Tudo isto me sugere o ambiente da vocação dos primeiros discípulos, que Jesus chamou nas margens do Mar da Galileia. Quero deter-me sobre esta chamada, que põe em evidência o que acabámos de ouvir na Lectio brevis das Vésperas: o Senhor salvou-nos, chamou-nos não em atenção às nossas obras, mas segundo a sua graça (cf. 2 Tm 1, 9). O mesmo aconteceu na vida dos primeiros discípulos, quando Jesus, ao passar, «viu dois barcos que se encontravam junto do lago. Os pescadores tinham descido deles e lavavam as redes» (Lc 5, 2). Então Jesus subiu para o barco de Simão e, depois de ter falado às multidões, mudou a vida daqueles pescadores, convidando-os a fazerem-se ao largo e lançarem as redes. Salta aos olhos o contraste: por um lado, os pescadores descem do barco para lavar as redes, ou seja, limpá-las, guardá-las e voltar para casa e, por outro, Jesus sobe para o barco e convida a lançar novamente as redes para a pesca. Sobressaem as diferenças: os discípulos descem, Jesus sobe; os primeiros querem guardar as redes, o Mestre quer que saiam de novo para o mar a fim de pescar.
Em primeiro lugar, temos os pescadores que descem do barco para lavar as redes. Esta é a cena que se apresenta aos olhos de Jesus, e Ele pára ali mesmo. Pouco antes quisera começar a sua pregação na sinagoga de Nazaré, mas os seus conterrâneos expulsaram-No da cidade e tentaram até matá-Lo (cf. Lc 4, 28-30). Então Jesus sai do lugar sagrado e começa a pregar a Palavra no meio da gente, pelas estradas onde labutam dia a dia as mulheres e os homens do seu tempo. Cristo está interessado em fazer sentir a proximidade de Deus, precisamente nos lugares e situações onde as pessoas vivem, lutam, esperam, às vezes colecionando nas suas mãos fracassos e insucessos, precisamente como aqueles pescadores que não tinham pescado nada durante a noite. Jesus olha com ternura para Simão e seus companheiros que, cansados e angustiados, lavam as suas redes, realizando um gesto repetitivo, automático, mas também cansado e resignado: não havia mais nada a fazer senão voltar para casa de mãos vazias.
Às vezes podemos sentir um cansaço semelhante no nosso caminho eclesial. Cansaço. Alguém dizia: «temo o cansaço dos bons». Cansaço sentido quando nos parece que nada mais temos nas mãos além das redes vazias. Trata-se dum sentimento bastante difundido nos países de antiga tradição cristã, atravessados por muitas mudanças sociais e culturais e cada vez mais marcados pelo secularismo, pela indiferença para com Deus, por um progressivo afastamento da prática da fé. O perigo aqui é que entre o mundanismo. Aliás isto vê-se, com frequência, acentuado pela desilusão ou a aversão que alguns nutrem face à Igreja, devido às vezes ao nosso mau testemunho e aos escândalos que desfiguraram o seu rosto e que nos chamam a uma purificação humilde, constante, partindo do grito de sofrimento das vítimas que sempre se devem acolher e escutar. O risco, porém, quando nos sentimos desanimados (cada um de vós pense em que momento sentiu o desânimo), o risco é descer do barco, acabando presos nas redes da resignação e do pessimismo. Ao contrário, confiemos que Jesus continua a tomar pela mão e a levantar a sua Esposa amada. Levemos ao Senhor as nossas canseiras e as nossas lágrimas, para poder enfrentar as situações pastorais e espirituais, dialogando entre nós com abertura de coração para experimentar novos caminhos a seguir. Quando estamos desanimados, mais ou menos conscientemente «aposentamo-nos», «aposentamo-nos» do zelo apostólico, perdemo-lo pouco a pouco e tornamo-nos «funcionários do sagrado». É muito triste quando uma pessoa que consagrou a sua vida a Deus se torna «funcionário», mero administrador das coisas. É muito triste.
De facto, logo que os apóstolos descem para lavar as ferramentas usadas, Jesus sobe para o barco e depois convida a lançar de novo as redes. No momento do desânimo, momento da «aposentação», deixemos Jesus subir novamente para o barco, com o entusiasmo da primeira vez, aquele entusiasmo que deve ser revivido, reconquistado, reeditado. Ele vem procurar-nos nas nossas solidões, nas nossas crises, para nos ajudar a recomeçar. A espiritualidade do recomeço. Não tenhais medo. A vida é assim: cair e recomeçar, aborrecer-se e recobrar a alegria. Aceitar esta mão que nos dá Jesus. Hoje continua a passar pelas margens da existência para despertar a esperança e dizer, também a nós, como a Simão e aos outros: «Faz-te ao largo; e vós lançai as redes para a pesca» (Lc 5, 4). E quando se perde o entusiasmo, assaltam-nos mil justificações para não lançarmos as redes, mas sobretudo apodera-se de nós uma resignação amarga, que é como um verme que corrói a alma. Irmãos e irmãs, vivemos certamente um tempo difícil – bem o sabemos! –, mas a interpelação que o Senhor dirige hoje à Igreja é esta: «Queres descer do barco e afundar na desilusão, ou fazer-Me subir permitindo que seja mais uma vez a novidade da minha Palavra a tomar na mão o leme? Digo a ti sacerdote, consagrado, consagrada, bispo: Queres apenas conservar o passado que ficou para trás ou lançar de novo e com entusiasmo as redes para a pesca?». Eis o que nos pede o Senhor: despertar a ânsia pelo Evangelho.
Quando alguém se acostuma, se sente aborrecido e a missão torna-se uma espécie de «emprego», é hora de dar lugar a esta segunda chamada de Jesus, que sempre nos chama de novo. Chama-nos para nos fazer caminhar, chama-nos para nos refazer. Não tenhais medo desta segunda chamada de Jesus. Não se trata duma ilusão, mas é Ele mesmo que volta a bater à porta. E podemos dizer que esta é a ânsia «boa» quando nos deixamos seduzir pela segunda chamada de Jesus. É a ânsia «boa» que vos comunica, a vós portugueses, a imensidão do oceano: fazer-se ao largo, não para conquistar o mundo, nem para ir à pesca do bacalhau, mas para alegrar o mundo com a consolação e a alegria do Evangelho. Sob este ponto de vista, podemos ler as palavras dum vosso grande missionário, o Padre António Vieira, chamado «Paiaçu – pai grande». Segundo ele, para nascer, Deus ter-vos-ia dado uma pequena terra, mas, ao fazer-vos debruçar sobre o oceano, deu-vos o mundo inteiro para morrer: «Para nascer, pequena terra; para morrer, toda a terra: para nascer, Portugal; para morrer, o mundo» (A. Vieira, “Sermão de Santo António”, Roma 1670, § IV, in: Homilias, vol. III, tomo VII, Porto 1959, p. 69). Somos chamados a lançar de novo as redes e a abraçar o mundo com a esperança do Evangelho. Não é momento de parar, não é momento de desistir, não é momento de atracar o barco à margem nem de olhar para trás; não temos que escapar deste tempo, só porque nos mete medo, para nos refugiarmos em formas e estilos do passado. Não! Este é o tempo da graça que o Senhor nos concede para nos aventurarmos no mar da evangelização e da missão.
Mas, para o conseguir, precisamos também de fazer opções. Quero indicar três opões, inspiradas no Evangelho.
A primeira opção: fazer-se ao largo. Cultivai a magnanimidade. Não sejais pusilânimes! Fazei-vos ao largo, para lançar novamente as redes ao mar, é preciso sair da margem das desilusões e do imobilismo, afastar-se daquela tristeza melosa e daquele cinismo irónico que muitas vezes nos assaltam à vista das dificuldades. Tristeza melosa, cinismo irónico: examinemos a consciência sobre isto. Recuperar o entusiasmo, mas numa segunda edição desse entusiasmo, o entusiasmo já maduro, o entusiasmo que se segue ao fracasso ou ao tédio. Não é fácil recuperar o entusiasmo adulto. Temos de o fazer para passar do derrotismo à fé, como Simão que, apesar de ter trabalhado em vão toda a noite, conclui: «Porque Tu o dizes, lançarei as redes» (Lc 5, 5). Mas, para nos fiarmos dia a dia no Senhor e na sua Palavra, não bastam palavras, é necessária muita oração. Gostaria de fazer aqui uma pergunta, mas cada qual responde no seu íntimo: Como rezo eu? Como um papagaio, blá, blá, blá, ou adormentando-me diante do Sacrário, porque não sei como falar com o Senhor? Rezo? Como rezo? Apenas na adoração, só diante do Senhor, é que recuperamos o gosto e a paixão pela evangelização. E, curiosamente, perdemos a oração de adoração; e todos, sacerdotes, bispos, consagradas, consagrados têm que a recuperar: recuperar aquele permanecer em silêncio diante do Senhor. A Madre Teresa, envolvida em tantas coisas da vida, nunca deixou a adoração, mesmo nos momentos em que a sua fé vacilava questionando-se se tudo aquilo era verdade ou não. Momento de escuridão, que também teve Teresinha do Menino Jesus. Então, na oração, vencemos a tentação de continuar com uma «pastoral nostálgica feita de lamentações». Num convento havia uma freira (isto aconteceu!) que se lamentava de tudo, e não sei qual era o nome dela, mas as irmãs mudaram-lhe o nome chamando-a a «Irmã Lamúrias». Quantas vezes transformamos em lamúrias as nossas impotências, as nossas desilusões! E, deixando estas lamúrias, ganhemos de novo forças para nos fazermos ao largo, sem ideologias nem mundanismos. Aquele mundanismo espiritual que se insinua em nós e do qual nasce o clericalismo. Clericalismo não só dos padres: os leigos clericalizados são piores do que os padres. Esse clericalismo que nos arruína. E, como dizia um grande mestre espiritual, esse mundanismo espiritual — provocado pelo clericalismo — é um dos males mais graves que podem acontecer à Igreja. Procuremos superar estas dificuldades sem ideologias nem mundanismos, animados por um único desejo: que chegue a todos o Evangelho. Neste caminho, não vos faltam exemplos! E, dado que nos encontramos no meio dos jovens, apraz-me recordar um jovem lisboeta, São João de Brito: era um jovem daqui que há séculos, no meio de muitas dificuldades, foi para a Índia e lá não desdenhava falar e vestir-se à maneira das pessoas locais contanto que lhes pudesse anunciar Jesus. Também nós somos chamados a mergulhar as nossas redes no tempo em que vivemos, a dialogar com todos, a tornar compreensível o Evangelho, mesmo que para isso tenhamos de correr o risco dalguma tempestade. Como os jovens que aqui vêm de todo o mundo para desafiar as ondas gigantes, façamo-nos ao largo também nós sem medo. Sim! Não temamos enfrentar o mar alto, porque no meio da tempestade e dos ventos contrários, Jesus vem ao nosso encontro e diz: «Coragem, sou Eu, não temais!» (Mt 14, 27). Quantas vezes já tivemos esta experiência? Cada qual se interpele dentro de si mesmo. E se não a tivemos é porque algo falhou durante a tempestade.
Como segunda opção, levar juntos por diante a pastoral, todos juntos. No texto, Jesus confia a Pedro a tarefa de fazer-se ao largo, mas depois fala no plural, dizendo «e vós lançai as redes» (Lc 5, 4): Pedro guia o barco, mas todos estão no barco e todos são chamados a fazer descer as redes. Todos. E, quando apanham uma grande quantidade de peixes, não pensam que conseguiriam arranjar-se sozinhos, nem gerem a dádiva como posse e propriedade privada, mas «fizeram sinal – diz o Evangelho – aos companheiros que estavam no outro barco, para que os viessem ajudar» (Lc 5, 7). E assim encheram de peixe, não um, mas dois barcos: um significa solidão, fechamento, pretensão de autossuficiência; dois significa relação. A Igreja é sinodal, é comunhão, ajuda mútua, caminho comum. E a isto tende o Sínodo em curso, que terá o seu primeiro período de assembleia geral no próximo mês de outubro. Na barca da Igreja, deve haver lugar para todos: todos os batizados são chamados a subir para ela e lançar as redes, empenhando-se pessoalmente no anúncio do Evangelho. E não vos esqueçais desta palavra: todos, todos, todos. Quando tenho de falar sobre o modo como abrir perspetivas apostólicas, toca-me muito aquela passagem do Evangelho em que os convidados se recusam a ir à festa de núpcias do filho quando já está tudo preparado. Que diz então o senhor, o senhor que preparou a festa? «Saiam pelas periferias e tragam todos, todos, todos, todos: sãos, doentes, crianças e adultos, bons e pecadores. Todos». Que a Igreja não seja uma alfândega para selecionar quem entra e quem não entra. Todos, cada um com a sua vida às costas, com os seus pecados, assim como é diante de Deus, como é diante da vida... Todos. Todos. Não levantemos alfândegas na Igreja. Todos. E é um grande desafio, especialmente em contextos onde os sacerdotes e os consagrados estão cansados porque, enquanto as necessidades pastorais vão aumentando sempre mais, eles são cada vez menos. Mas podemos olhar para esta situação como uma ocasião para, com fraterno entusiasmo e sã criatividade pastoral, envolver os leigos. Assim as redes dos primeiros discípulos tornam-se uma imagem da Igreja, que é uma «rede de relações» humanas, espirituais e pastorais. Se não houver diálogo, se não houver corresponsabilidade, se não houver participação, a Igreja envelhece. Permiti que o exprima assim: nunca um Bispo sem o próprio presbitério e o Povo de Deus; nunca um padre sem os seus irmãos sacerdotes; e todos juntos – sacerdotes, religiosas, religiosos e fiéis leigos – como Igreja, nunca sem os outros, nunca sem o mundo (sem mundanismo – isso sim! –, mas não sem o mundo). Na Igreja, ajudamo-nos, apoiamo-nos reciprocamente e somos chamados a difundir, também fora dela, um clima de fraternidade construtiva. Aliás, como escreve São Pedro, nós somos as pedras vivas usadas para a construção dum edifício espiritual (cf. 1 Ped 2, 5). E poderia acrescentar numa linguagem que vos é familiar: vós, fiéis portugueses, formais uma «calçada», sois os ladrilhos preciosos que compõem um tal pavimento acolhedor e brilhante que o Evangelho há de pisar; e não pode faltar uma pedrinha sequer, senão imediatamente se dá conta. Tal é a Igreja que, com a ajuda de Deus, somos chamados a construir!
Enfim a terceira opção: tornar-se pescadores de homens. Não tenhais medo. Isto não é fazer proselitismo, é anunciar o Evangelho que nos desafia. Nesta imagem tão bela de Jesus – ser pescadores de homens –, Jesus confia aos discípulos a missão de se fazerem ao largo no mar do mundo. Muitas vezes, na Sagrada Escritura, o mar simboliza o lugar do mal e das forças adversas que os homens não conseguem dominar. Por isso pescar as pessoas e tirá-las para fora da água significa ajudá-las a voltar a subir de onde afundaram, salvá-las do mal que ameaça afogá-las, ressuscitá-las de todas as formas de morte. Isto, porém, sem proselitismo, mas com amor. E um dos sinais de alguns movimentos eclesiais que vão por caminho errado é o proselitismo. Quando um movimento eclesial ou uma diocese, ou um bispo, ou um pároco, ou uma freira, ou um leigo faz proselitismo, isso não é cristão; cristão é convidar, acolher, ajudar, mas sem proselitismo. Com efeito, o Evangelho é um anúncio de vida no mar da morte, de liberdade nas voragens da escravidão, de luz no abismo das trevas. Como afirma Santo Ambrósio, «os instrumentos da pesca apostólica são como as redes: de facto, as redes não fazem morrer quem fica preso nelas, mas conserva-o em vida, arrasta-o dos abismos para a luz» (Exp. Luc. IV, 68-79). Não faltam trevas na sociedade atual, inclusive aqui em Portugal... por toda a parte! Fica-se com a sensação de que tenha diminuído o entusiasmo, a coragem de sonhar, a força para enfrentar os desafios, a confiança no futuro; entretanto, vamos navegando nas incertezas, na precariedade sobretudo económica, na pobreza de amizade social, na falta de esperança. A nós, como Igreja, cabe a tarefa de nos fazermos ao largo nas águas deste mar, lançando a rede do Evangelho, sem apontar, sem acusar ninguém, mas levando às pessoas do nosso tempo uma proposta de vida, a de Jesus: levar o acolhimento do Evangelho, convidar para a festa uma sociedade multicultural; levar a proximidade do Pai às situações de precariedade, de pobreza, que crescem sobretudo entre os jovens; levar o amor de Cristo onde é frágil a família e se encontram feridas as relações; transmitir a alegria do Espírito onde reinam o desânimo e o fatalismo. Assim se exprime um escritor vosso: «Para se chegar ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e partir dali para Indefinido» (F. Pessoa, Livro do Desassossego, Lisboa 1998, 247). Queremos sonhar a Igreja Portuguesa como um «porto seguro» para quem enfrenta as travessias, os naufrágios e as tempestades da vida.
Queridos irmãos e irmãs, digo a todos, leigos, religiosos, religiosas, sacerdotes, bispos, a todos, a todos: não tenhais medo, lançai as redes. Não vivais acusando «isto é pecado, isso aí não é pecado». Vinde todos… depois falamos. Mas, primeiro, sintam o convite de Jesus, depois virá o arrependimento e enfim a proximidade de Jesus. Por favor, não transformem a Igreja numa alfândega: aqui entram os justos, os que estão em ordem, os que estão bem casados… todos os outros lá fora. Não. A Igreja não é isto. Justos e pecadores, bons e maus, todos, todos, todos. Será depois o Senhor a ajudar-nos a resolver este assunto. Mas todos. De coração vos agradeço, irmãos e irmãs, a atenção prestada, apesar de aqui ou ali vos ter aborrecido; agradeço-vos tudo o que fazeis, o exemplo, sobretudo o exemplo sem alarde, e a constância: esse levantar-se todos os dias para começar de novo ou para continuar o que se começou. Como costumais dizer: Muito obrigado… pelo que fazeis! E confio-vos a Nossa Senhora de Fátima, à guarda do Anjo de Portugal e à proteção dos vossos grandes Santos e, aqui em Lisboa, de modo especial a Santo António (vo-lo roubam os de Pádua), apóstolo incansável, pregador inspirado, discípulo do Evangelho atento aos males da sociedade e cheio de compaixão pelos pobres. Que Santo António interceda por vós e vos dê a alegria duma nova pesca milagrosa. Depois contais-me, sim? E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Obrigado!


POR UMA IGREJA SINODAL

Do diaconado à ordenação
Mulheres diáconos? – O processo sinodal e a ordenação de mulheres (um texto de Phyllis Zagano)

Phyllis Zagano | 27 Jul 2023 | in 7 Margens

Ministério diaconal e sinodalidade
Durante a alta Idade Média, o diaconato tornou-se cada vez mais cerimonial e, no século XII, era principalmente um passo no caminho para o presbiterado. Ao mesmo tempo, as obras caritativas da Igreja iam desaparecendo, mesmo quando eram mais precisas.
Com diferentes graus de formalidade, mulheres e homens respondiam a essas necessidades, como monges, monjas, eremitas, beguinas, terciários ou anacoretas. Durante os séculos seguintes surgiram mais algumas respostas, mas os apelos para a restauração do diaconado como vocação permanente não conseguiram apoio no Concílio de Trento. Entretanto, começou a desenvolver-se a vida religiosa apostólica (em oposição à monástica ou de clausura). Religiosos e religiosas assumiam as tarefas necessárias para proporcionar os ministérios diaconais da liturgia, da palavra e da caridade, especialmente às pessoas que se encontravam nas margens.
Hoje, muito poucos dos 1,3 bilhão de católicos do mundo sabem o que significa “sinodalidade”. No entanto, a criação de ordens e institutos de vida religiosa apostólica pode dar-nos a explicação mais clara do que é a «sinodalidade». Como resposta às necessidades da Igreja, o fundador reunia-se com um pequeno grupo de homens ou mulheres a fim de auscultarem quais as necessidades locais dos católicos da região, tais como a educação, a catequese, as necessidades sociais, ou todas estas. Juntos rezavam, discutiam e discerniam a melhor maneira de concretizar a mensagem evangélica no seu próprio tempo e lugar.
É precisamente este o processo que, no dia 17 de outubro de 2021, o Papa Francisco convidou toda a Igreja a iniciar. Em agosto de 2022, 112 (de 114) conferências episcopais nacionais enviaram para Roma os resultados das discussões sinodais realizadas. No final de setembro, um grupo de redação multilingue composto por vinte e seis membros examinou-os, juntamente com relatórios das cúrias, da USG e da UISG (organizações de superiores maiores de ordens e institutos religiosos masculinos e femininos), das associações de leigos reunidas pelo Dicastério para os Leigos e do “Sínodo Digital”, para criar o Documento para a Etapa Continental. Publicado em inglês, francês, italiano, português e espanhol no final de outubro de 2022, o Documento para a Etapa Continental pedia as respostas das sete assembleias continentais. O Instrumentum Laboris sintetiza estas respostas.
O que apresenta este enorme projeto? Desde o início, tornou-se evidente que o povo de Deus encontra no clericalismo um grande obstáculo à comunhão, à missão e à participação na vida e nas obras da Igreja. Os relatórios diocesanos, regionais, nacionais e continentais mencionam o clericalismo, de uma forma ou de outra, citando frequentemente o flagelo dos abusos sexuais por parte do clero e as respostas eclesiais inadequadas a todos os níveis como motivo de desânimo geral e descrença no processo sinodal e na própria Igreja.
Outros tópicos incluem a transparência em todos os assuntos da Igreja, a formação do clero e os ministérios laicais. A inclusão de mulheres em todos os níveis de liderança da Igreja, particularmente naqueles que requerem ordenação, foi e é um ponto de discussão. Em resposta, o Documento para a Etapa Continental faz referência a mulheres no diaconato, mas não à ordenação de mulheres como presbíteros.

Etapa continental: “Alarga o espaço da tua tenda”
Intitulado “Alarga o espaço da tua tenda”, o Documento para a Etapa Continental foi o foco de sete assembleias sinodais continentais realizadas entre janeiro e março de 2023. Cada uma delas, convocada pelas respetivas conferências episcopais: América do Norte (USCCB & CCCB), América Latina e Caribe (CELAM), Oceânia (FCBCO), Europa (CCEE), Ásia (FABC), África e Madagascar (SECAM) e Médio Oriente (Assembleia Sinodal para o Médio Oriente) produziu uma resposta. O Documento para a Etapa Continental colocava questões não muito diferentes daquelas consideradas pelos fundadores de institutos e ordens religiosas nos séculos passados. Por exemplo: «Como é que este ‘caminhar juntos’, que hoje se realiza a diferentes níveis (do nível local ao universal), permite à Igreja anunciar o Evangelho segundo a missão que lhe foi confiada; e que passos o Espírito nos convida a dar para crescer como Igreja sinodal?” (Documento preparatório, n.º 2). Ou seja, quais são as necessidades da Igreja hoje e como podemos juntos dar-lhes resposta?
As respostas dos continentes apresentaram abertamente questões sobre as mulheres na Igreja, muitas vezes nomeando a misoginia e o sexismo como problemas subjacentes. Com estes males em pano de fundo, eram urgentes os apelos por mulheres nas lideranças e nos ministérios. O primeiro – a misoginia e o sexismo – apresentava a necessidade do segundo – mulheres na liderança e no ministério – e explicava a resistência contínua e óbvia. Os problemas fizeram surgir as suas próprias soluções.
A ordenação de mulheres como presbíteras não é uma dessas soluções. O secretário-geral do Sínodo, cardeal Mario Grech, disse que as questões “quentes” estariam em “segundo plano” e que outras necessidades prementes da Igreja seriam discutidas na reunião de outubro. Ordenar mulheres como presbíteras, embora tenha sido solicitado em muitos países e mencionado ou implícito nas respostas dos continentes, é claramente uma questão “posta em segundo plano”, e é considerada por muitos como doutrinariamente encerrada. Mas, dado que nunca houve um abandono formal da prática de ordenar mulheres diáconos, essa questão será abordada e talvez encontre resposta.
Dito isto, a questão das mulheres diáconos aparece apenas no Documento para a Etapa Continental, que parecia tomar partido no debate em curso ao mencionar – de forma um tanto ambígua – “a possibilidade de… um diaconato feminino”. Os opositores à perspetiva de ordenar mulheres diáconos afirmam que as mulheres diáconos durante os primeiros anos da Igreja não foram sacramentalmente ordenadas, mas apenas abençoadas para uma desconectada “quarta ordem” ou “um diaconato feminino”. Os defensores da restauração das mulheres ao diaconato fazem notar que as cerimónias litúrgicas eram idênticas ou quase idênticas na ordenação de homens e mulheres como diáconos.

Respostas claras
As respostas das assembleias dos continentes foram claras: a questão não era sobre mulheres não ordenadas chamadas diaconisas. Se fossem ordenadas, as mulheres diáconos, pertenceriam ao clero e, como tal, teriam acesso a papéis de maior relevo na liderança e no ministério, incluindo e, talvez de modo especial, a pregação.
É importante notar que, embora o processo sinodal seja cada vez mais controlado por clérigos – os delegados às várias reuniões continentais foram escolhidos pelos bispos diocesanos – cada continente apresentou a questão inevitável do lugar da mulher na Igreja.
O relatório norte-americano, resultado de doze sessões zoom para delegados dos Estados Unidos e do Canadá, 56% dos quais eram funcionários diocesanos, pedia que as mulheres “assumissem realmente funções de liderança” e propunha uma análise da “ordenação”.
Em cada uma das quatro reuniões regionais presenciais realizadas pelo CELAM para a América do Sul, que incluíram delegados do México, muitos deles apresentaram a necessidade urgente da instituição de um diaconato de mulheres, reconhecendo que esses ministérios já existem em várias comunidades. Criticaram também duramente o facto de as mulheres serem usadas como “mão de obra barata” pela Igreja.
Na sequência da reunião presencial nas ilhas Fiji, o relatório da Oceânia denunciou a situação das mulheres que recebem salários precários e sofrem violência física e emocional. O relatório da Oceânia incluiu, embora tentando minimizá-los, os pedidos de ordenação de mulheres, vindos especialmente da Austrália e da Nova Zelândia.
Reunidos em Praga, os delegados europeus repetiram os apelos ao “reconhecimento da dignidade e da vocação de todos os batizados”, nomeando a ordenação de mulheres para o diaconado como uma “preocupação”. Talvez porque o seu grupo de trabalho fosse em língua inglesa, considerando o diaconato e o sacerdócio como um único assunto, as opiniões resultaram “divididas”.
A reunião da assembleia da Ásia, em Banguecoque, fez eco das preocupações mundiais sobre o lugar e o estatuto das mulheres, que consideraram não estarem suficientemente incluídas, ou mesmo ser afastadas, nas tomadas de decisões. Pediram de forma direta “um repensar a participação das mulheres na vida da Igreja, dado que as mulheres desempenharam um papel importante na Bíblia”.
Os delegados africanos, reunidos na Etiópia, apresentaram o seu apelo sinodal por “mais oportunidades e estruturas para as mulheres” e a promoção da “inclusão” e da “participação”. Embora apelasse ao reforço da subsidiariedade a todos os níveis da vida da Igreja, não fazia qualquer referência direta às mulheres diáconos.
Em Beirute, a assembleia do Médio Oriente apontou para a necessidade de “coragem profética” em relação à participação das mulheres: “As nossas respetivas Igrejas devem começar a refletir seriamente sobre o restabelecimento do diaconato para as mulheres”. A assembleia incluiu a Igreja Maronita, que determinou no Sínodo do Monte Líbano de 1736 que os bispos poderiam ordenar mulheres diáconos. Em 1746, os seus cânones foram aprovados in forma specifica pelo Papa Bento XIV.
Em resumo, as sete respostas continentais ao Documento para a Etapa Continental foram claras ao afirmar que as mulheres são maltratadas, ou mesmo ignoradas, pela “Igreja”. Todos fizeram notar que o clericalismo, em todas as suas formas, contribuiu ou de facto foi a causa direta de tantas dificuldades. No topo da lista dos antídotos está a melhoria da formação nos seminários. E, tanto direta como indiretamente, as respostas apontaram para a restauração das mulheres ao diaconato.

“Instrumentum Laboris” e reuniões sinodais
Estas respostas ao Documento para a Etapa Continental, enviadas aos gabinetes sinodais em março e abril de 2023, resultaram no Instrumentum Laboris ou Documento de Trabalho publicado no dia 20 de junho 2023. Produzido por uma equipa de vinte e duas pessoas, o Instrumentum Laboris é o texto base para a primeira das duas assembleias sinodais a realizar em Roma, de 4 a 29 de outubro de 2023.
As próprias reuniões sinodais são inovadoras na medida em que, pela primeira vez, incluirão muitos leigos como membros votantes. A maioria dos membros serão bispos, representantes das dioceses e das cúrias. Além disso, as sete assembleias continentais foram convidadas a nomear vinte não-bispos (padres, diáconos, religiosos não ordenados, leigos) com a condição de metade dos nomeados serem mulheres e de pessoas mais jovens serem também incluídas. Setenta dos 140 nomeados foram escolhidos como membros votantes do sínodo. Haverá também dez religiosos com votos: a União Internacional dos Superiores Gerais (UISG) feminina e a União dos Superiores Gerais (USG) masculina enviarão cinco representantes cada. Anteriormente, o grupo de homens nomeou dez representantes votantes e, mais recentemente, dois irmãos religiosos votaram no Sínodo da Amazónia. Os membros do Sínodo reunirão na Sala Paulo VI, em Roma, durante as reuniões de outubro de 2023 e outubro de 2024
O que mais chama a atenção no Instrumentum Laboris é que se assemelha mais a um roteiro para o processo do que a um documento com declarações a serem consideradas. Não muito diferente dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, o Documento de Trabalho traça um caminho e ensina um método de discernimento da vontade de Deus. As várias questões são o resultado da oração, discussão e discernimento que aconteceram previamente em todo o mundo. O Instrumentum laboris pede aos membros do Sínodo que considerem todos os documentos anteriores, especialmente o Documento para a Etapa Continental, os Documentos finais das Assembleias Continentais e o relatório do “Sínodo Digital”, como meios para “continuar o caminho já em curso”. O Instrumentum Laboris não dá respostas. Faz perguntas.
Uma questão que está no centro da atenção das mulheres em todo o mundo é a retomada da prática de ordenar mulheres diáconos, sobre a qual não há nenhum ensinamento do magistério. O Instrumentum Laboris refere: “A maioria das assembleias continentais e as sínteses de várias conferências episcopais pedem que se considere a questão da inclusão das mulheres no diaconato.” Em seguida, pergunta: “É possível considerar esta questão e como fazê-lo?”
A possível ambiguidade intencional no Documento para a Etapa Continental está refletida no Instrumentum Laboris. O Documento para a Etapa Continental falava de “um diaconato feminino”, que pode significar mulheres ordenadas como diáconos. Ou pode significar mulheres num ministério leigo não ordenado. Devemos perguntar-nos se a frase “inclusão da mulher no diaconato” no Instrumentum Laboris é igualmente ambígua.

Conclusões
O presente caminho sinodal recupera uma tradição da Igreja antiga e faz eco do modo como os cristãos se uniram em comunhão para levar a cabo a sua missão. Hoje, há uma grande diferença resultante de uma maior presença das mulheres.
E uma das questões relativa à sua participação é o diaconato feminino. O terem sido ordenadas mulheres diáconos é um facto histórico, mas esse facto diz respeito a um momento e a um lugar particular da história cristã. A história por si só, não é determinante. Se a Igreja de hoje concluir que mulheres diáconos são necessárias, isto pode ser parcialmente resolvido pelo Sínodo, sendo depois formalmente aprovado pelo Papa. Caberia às conferências episcopais solicitar mulheres diáconos, e cada bispo diocesano tomaria as suas próprias determinações sobre a concretização local.
Haverá argumentos significativos contra a ordenação de mulheres diáconos, mas dizer que as mulheres não podem ser ordenadas, apenas com acesso a um ministério quase-diaconal, insulta a sua igualdade batismal. O falso argumento contra a restauração das mulheres ao diaconado ordenado que afirma que as mulheres não podem ser imagem de Cristo é a causa implícita, se não direta, da difamação e do desrespeito pelas mulheres em todos os continentes. Como assinala o Instrumentum laboris, «uma Igreja sinodal deve abordar estas questões em conjunto, procurando respostas que ofereçam um maior reconhecimento da dignidade batismal da mulher e a rejeição de todas as formas de discriminação e exclusão enfrentadas pelas mulheres na Igreja e na sociedade».

Phyllis Zagano é autora de várias obras sobre mulheres no diaconato e, mais recentemente, co-autora de Mulheres Diáconos: Passado, Presente e Futuro [Paulinas Editora]. É também investigadora na Universidade de Hofstra. Este texto é publicado pelo 7MARGENS com a autorização da autora e da Commonweal, onde foi inicialmente publicado.


POR UMA IGREJA SINODAL

No coração da selva
Amazónia, uma Igreja de canoa à procura de remadores

Tony Neves, na Amazónia (Brasil) | 23 Jul 2023 | in 7 Margens

Levantei voo em Manaus rumo a Tefé, seguindo o Rio Solimões na direção da nascente, entrando no coração da Amazónia. Lá de cima, vê-se bem que é tempo de chuvas, pois as florestas estão alagadas e só se vê água e árvores. Aterrei no Tefé, uma cidade ribeirinha, com um calor abafado e difícil de suportar. A capital da castanha do Pará (como provam as estátuas), construída há 168 anos (como dizem os cartazes), junto ao lago com o mesmo nome, é uma espécie de baía do grande Solimões.
Bom Jesus é um dos bairros periféricos pobres da cidade do Tefé, cuja paróquia foi fundada pelos Missionários Espiritanos e continua animada por eles. As casas são muito pobres, as ruas fracas, sempre a abarrotar de gente, motas, cães e, lá por cima, bandos de urubus (espécie de abutres) cuja missão – contou-me a gozar uma líder da comunidade – é assegurar a limpeza dos lixos no bairro! Segundo se percebe, são os funcionários mais eficazes e baratos da Prefeitura, pois trabalham de graça 24 sobre 24 horas! Tive direito a entrar em diversas casas onde sempre oferecem algo de típico para comer (como o ingá, tapioca de mandioca…) ou de beber (sumo de camucamu). Mas passemos adiante: há sempre música no ar e as pessoas saúdam ao passar, dando aquele feliz ar de aldeia.
A área da paróquia tem uma extensão que parece não acabar mais. Assim, primeiro de jipe, depois de mota, acompanhei o padre Emmanuel Chuwa, tanzaniano, nas visitas a algumas comunidades da floresta, para a celebração das missas. Vivi a festa de S. João, na comunidade de Boa Vista. Nada de sardinhas, manjericos, marchas ou martelos! Mas havia foguetes (muito artesanais), um mastro que ostentava uma bandeira de São João e estava cheio de cocos, pacotes de batatas fritas, biscoitos ou rebuçados, que fizeram as delícias das muitas crianças quando, no fim da missa, foi deitado abaixo a golpes de machado. Também se acendeu a fogueira e se distribuiu comida e bebida pelo povo. Tive de provar o tacácá, uma espécie de sopa, muito quente e muito agressiva pelo picante que nos deixa a boca a arder e fumegar!
A missa de domingo à tarde foi na Igreja Matriz do Bom Jesus, com o padre Flávio Gonzaga, novamente de regresso ao coração do bairro. Após a solene e viva eucaristia, participei na festa joanina da paróquia, no grande adro da igreja. Jantar, bingo, quadrilha (uma espécie de rancho folclórico) e karimbó (dança de mulheres adultas com vestidos compridos e muito coloridos). Festa da rija, até às tantas.

A fascinante Missão da Boca do Tefé
1897 é o ano da chegada dos primeiros missionários espiritanos à Amazónia. Para um feliz e sábio encontro com a História, nada melhor que ouvir Claudemir Queiroz, autor de várias obras sobre Tefé. Em conversas à mesa de almoço, explicou-me como foi formado pelos Espiritanos, no seminário, e depois estudaria direito, estando sempre ao serviço da Igreja. Falou-me da coragem enorme dos primeiros missionários que gastavam meses e meses rio acima e abaixo, sendo vítimas das febres (o “paludão” era terrível!). Muitos deles morreram jovens, como me mostrou, no Cemitério, o padre Firmino Cachada, superior da missão da Boca do Tefé, instituição histórica, o lugar escolhido para a realização do capítulo com a presença de todos os Espiritanos que trabalham na Amazónia.
É tempo de enchentes e o barco pára junto às escadarias da missão. Feita a ginástica necessária com as cautelas para não cair á água, há 89 escadas a subir, quase a pique e encontramos o edifício da missão e, mais à esquerda, o cemitério e a igreja. Tive direito a visita guiada. Começamos pela missão, continuamos na igreja (dedicada ao Espírito Santo), fomos até duas das comunidades indígenas e terminamos no cemitério. O padre Firmino chamou-me a atenção para a parte ocupada pelos missionários: são 23, muitos deles falecidos com 20, 30, 40 e tais anos de vida, na flor da idade, derrubados por febres malárias, pestes diversas, acidentes de barco ou vítimas de animais ferozes. Foram duros os primeiros tempos aqui, como o foram em toda a África, bastando ver os cemitérios da Huíla (Angola) ou Bagamoyo (Tanzânia), como exemplos de muitos outros.

Vibrar com a beleza – e os medos também…
De Tefé a Fonte Boa, o barco leva umas 18h. Foi em 1679 que o padre Samuel Fritz fundou Fonte Boa, nas margens do Rio Solimões, numa terra de dez grupos indígenas diferentes. A cidade seria erigida em 1938 e a paróquia, dedicada à Senhora de Guadalupe, em 1892. Os Espiritanos ali aportaram em 1898.
O momento mais emocionante vivi-o na visita missionária à Comunidade de Santa Maria – Água Branca, Rio Panauã. Foi toda a equipa missionária, uma trintena de pessoas. A viagem de barco durou duas horas de cortar a respiração. Começamos no grande Solimões e entramos por “furos” (ou seja, atalhos) no meio de uma luxuriante floresta, onde o barco parava porque havia árvores enormes atravessadas, ou porque se duvidava da profundidade das águas, uma vez que a estação das chuvas acabou e a floresta, completamente alagada (cheia de gapós – áreas submersas), começa a ter terra firme. Os olhos ficam a vibrar com tanta beleza, mas os medos também imperam: vêem-se jacarés nas margens ou a mergulhar à nossa beira, cobras, macacos e preguiças nas árvores e todo o tipo de aves, desde garças a mergulhões.
Chegamos extasiados a um rio mais largo onde está construída, flutuante, uma comunidade com 18 famílias. Fomos recebidos com foguetes, bandeirinhas e muitas canções e danças, pois esta vintena de missionários vinham ali passar dois dias e participar na inauguração da nova capela, obra de complexa engenharia, pois está construída sobre águas que sobem e descem vários metros durante o ano. A larga mesa, sempre com águas à vista, mostrava os pratos mais típicos, sobretudo de peixes locais. Mas o que espantava era o facto de pessoas muito idosas e crianças de tenra idade andarem à vontade em cima de pranchas e mergulharem sem medo naquelas águas profundas. Quando perguntei pelos jacarés, cobras e piranhas, tão numerosas na área, disseram logo que só havia perigo quando as águas descessem. Eu, pelo sim pelo não, tomei as minhas medidas cautelares. A missa foi festiva com alguns batismos e a noite foi de forró. Voltámos a Fonte Boa de olhos e coração cheios.
O melhor do mundo são as pessoas. Encontramos gente com fé, de braços abertos, mas a viver as consequências da distância e do abandono a que as populações ribeirinhas sempre foram votadas. Ali quase ninguém vai, o povo vive da pesca e da floresta, com um grande respeito pelos rios e lagos que os sustentam. Quem ali vai, como eu, percebe melhor o grito do Papa Francisco: “Tudo está interligado! É necessário proteger a Mãe-Terra, a nossa Casa Comum!”

Tony Neves é padre católico e trabalha em Roma como assistente geral dos Missionários do Espírito Santo (CSSp, Espiritanos), congregação de que é membro.


POR UMA IGREJA SINODAL

A urgência de uma nova evangelização

Nuno Miguel Rodrigues | 15 Jul 2023 | in 7 Margens

Sim, esta é a maior urgência para a nossa Igreja Católica de hoje. Não tenhamos ilusões! Andamos já há alguns anos em serviços mínimos e apenas em cuidados paliativos. Ainda não tivemos a coragem de acordar para a vida e para o que é urgente. Estamos fartos de reuniões e mais reuniões; de encontros; de sínodos; de diagnósticos; de análises e estudos.

Quando é que teremos a ousadia de passar para uma verdadeira terapia?

E isto já não passa com uma mera medicação. É preciso ir ao fundo da questão e fazer uma reforma de fundo. Esta reforma chama-se nova evangelização. Novos conteúdos e novos meios e métodos. Deixarmos de ser uma Igreja assistencialista e passarmos a uma Igreja missionária. Deixarmos uma Igreja meramente conservadora da sua tradição e passar a uma Igreja de futuro, construindo uma nova esperança para os homens de hoje. O Evangelho será sempre o mesmo, mas o tempo muda, os contextos mudam e as sociedades modificam-se.

A Igreja, como comunidade de crentes e de discípulos missionários têm de enveredar por outros caminhos.

Deixarmos a concepção duma Igreja meramente hierárquica, de bispos e padres, para uma Igreja de cristãos baptizados e todos consagrados a Deus e comprometidos com a acção evangelizadora da Igreja. Deixarmos a ideia duma Igreja de supermercado onde só vou quando preciso dum determinado serviço: um baptismo; um casamento; um funeral. Uma Igreja de consumo consoante os meus apetites e necessidades.

Quando é que iremos ter a coragem de suspender por uns tempos a administração de alguns sacramentos e fortalecermos o que já somos enquanto baptizados, casados, sacerdotes ou religiosos? Uma nova evangelização não é uma cruzada, muito menos uma ação de arrebatar o maior número de cristãos para a Igreja Católica. É uma missão de cuidar dos que já fazem parte desta família. De re-evangelizar os que já são cristãos ou como muitos dizem, católicos não praticantes.

Quando é que vamos ter a coragem, e sobretudo as dioceses, seus bispos, as paróquias e seus párocos de não se preocuparem, apenas e só, com as estatísticas para enviar anualmente ao Vaticano? Quando é que vamos ter a ousadia de percebermos que já não nos interessa uma Igreja de massas, de multidões, de números? Mas sermos uma Igreja como o resto de Israel? De sermos uma igreja de catacumbas e não uma igreja de regalias e mordomias? De abandonarmos uma igreja de militância e de majestosos templos e catedrais para passarmos a uma igreja de rua, de praça e do mundo dos homens de carne e osso? De deixarmos os nossos ritualismos litúrgicos, estéreis e vazios de conteúdo para celebrações mais simples e com ritos mais concretos e alegres que digam alguma coisa ao comum dos mortais? De deixarmos de ser apenas uma Igreja de anjos e santos para uma Igreja pecadora, enlameada que grita por perdão e misericórdia? De termos a determinação de deixarmos esquemas de catequese baforentos e arcaicos e passarmos a um tipo de formação mais abrangente e crítica? Repensarmos todo o percurso catequético e as festas da catequese e seguirmos o caminho duma mistagogia mais apropriada abrangendo várias áreas do saber? De termos a coragem de refazermos todo o Catecismo da Igreja Católica que tem uma linguagem demasiadamente tradicionalista e conservadora para uma linguagem mais contextualizada à realidade social de hoje? De conseguirmos incrementar novas metodologias pastorais e evangelizadoras como por exemplo os encontros nos lares familiares; nos prédios habitacionais; nas ruas e praças públicas; nas universidades; nas escolas e em tantos outros lugares e espaços que não seja a igreja paroquial? Quando é que vamos ter a coragem de fecharmos os cartórios paroquiais e sermos nós, padres, a ir ao encontro das pessoas e das famílias? Preciso de falar com o pároco? Em vez de ir à paróquia, vou convidá-lo a vir ao nosso lar familiar para falarmos, convivermos e rezar.

Enfim, ou queremos ou não queremos incrementar esta urgência de re-evangelização.

Para isso basta coragem e ousadia de percorrermos caminhos novos, sem medo, sem reservas, sem apegos ao passado, sem calculismos, mas com muita confiança na ação do Espírito Santo que faz novas todas as coisas e a todos nos renova.

Nuno Miguel Rodrigues é padre católico, da Congregação dos Missionários do Espírito Santo (Espiritanos)


POR UMA IGREJA SINODAL

“Ad Gentes”, a todas as gentes

João Valério | 9 Jul 2023 | in 7 Margens

Caminhamos em tempos desafiantes para a Igreja Católica. É uma Igreja que parece não conseguir responder às inquietações humanas, a julgar pelas igrejas vazias sobre as quais Tomáš Halík já nos escreveu e pela perda progressiva de referências cristãs na sociedade em geral. O “adulto 4.0” contemporâneo, descrito por Armando Matteo (Converter Peter Pan, Paulinas, 2022) como adulto sem transcendências, sem verdades, sem limites, sem moral e sem política, parece ser uma das causas desta crise – dentro e fora da Igreja. A sensação de auto-suficiência carrega em si uma expectativa de total liberdade e realização plena (e, por isso, será tão apelativa), descartando Deus como algo desnecessário ou, para alguns, enganador e que impede a realização do indivíduo.

Líamos também recentemente sobre a perda de meio milhão de fiéis católicos na Alemanha no ano passado. É preocupante. Não por se tratar de uma questão de “número de sócios” – pois esse não é de todo o ponto principal – mas por estes números serem reveladores de realidades de crise, de situações a resolver.

O afastamento que alguém pode experimentar em relação à Igreja, como reacção à imperfeição do corpo que a compõe é, por um lado, compreensível – já que se abrem brechas que põem em causa a autoridade moral da instituição e revelam problemas complexos e enraizados. Mas é, ao mesmo tempo, expressão de uma imaturidade de fé que confunde situações específicas com um todo mais abrangente.

Se deveria existir uma unidade e complementaridade perfeitas entre a composição multifacetada daquilo a que chamamos Igreja (enquanto instituição formal e hierárquica, enquanto corpo formado por pessoas com qualidades e com fragilidades, e ainda enquanto imagem e corpo de Deus), a verdade é que essa perfeição é altamente improvável. Há que assumir que, pelas fragilidades humanas, surgem erros que mancham o que deveria ser imaculado e trabalhar para fazer o melhor possível a partir das situações de crise. Só assim se conseguirá uma imagem da Igreja consentânea com a mensagem que quer transmitir; não por precisarmos de uma perfeita e apelativa fachada publicitária, mas para sermos verdadeira expressão de uma vida que nos é oferecida e que gostaríamos de partilhar com todos. Diz Timothy Radcliffe que “quando a Igreja parece estar a ensinar do alto, longe das dificuldades das pessoas comuns, não está a ensinar nada”. (Ser Cristão Para Quê?, Paulinas, 2011)

Há uma série de ideias associadas à Igreja que revelam o desfasamento entre a imagem e a realidade. Se é desinteressante quando acontece do ponto de vista do observador externo, pior é quando essas ideias são aceites e reforçadas como verdadeiras pelas próprias comunidades cristãs. Nuns casos será por má intenção, mas acreditamos que na maioria das situações não será mais que um extremo zelo e boa vontade, embora com ferramentas desadequadas. Por exemplo, apenas para ilustrar com um caso simples, num aspecto tão essencial como a catequese, onde as crianças tantas vezes se vão afastando por não encontrarem aí uma mensagem que lhes faça sentido – a mensagem é sempre a mesma, mas há que encontrar a maneira correcta de comunicar com cada pessoa, com cada grupo, nos contextos de vida de cada um. A ausência de cuidado nestes aspectos resulta em equívocos que afastam e que fazem da Igreja um espaço muito diferente do que deveria ser e transmitir.

Confunde-se – para percorrer alguns destes desfasamentos que referíamos acima – a Igreja Católica com uma ideia de comunidade perfeita, gerando uma inevitável desilusão, porque todos somos imperfeitos. Se por um lado não faz sentido aceitar estritamente a imperfeição como expectável e imutável (desvalorizando um caminho constante de conversão), por outro lado também não fará sentido o contrário: ver essa imperfeição como algo tão inesperado que corrompe uma imagem utópica à primeira oportunidade. Porque a Igreja não é perfeita, mas tenta caminhar nesse sentido.

Perde-se também a linguagem com que se deveria falar de fé – perde-se a capacidade de ler as imagens, esculturas, pinturas, textos e o que representam; é uma perda de cultura geral para toda a sociedade, mas é sobretudo uma perda adicional para os crentes, que aí deixam de ter oportunidade de ler testemunhos de fé gravados por outros na Arte e na Palavra em épocas passadas.

Misturam-se questões disciplinares – como quem deve ser aceite, com que regras e em que moldes (questões que poderíamos enquadrar num campo formal) – com conteúdos essenciais e dogmas que definem a nossa experiência religiosa, erguendo barreiras a uma Igreja que verdadeiramente poderia ser para todos. As regras são importantes enquanto funcionam como guia, ao serviço do florescimento de cada um, dos seus dons, da sua capacidade de ser parte da comunidade. Quando excessivas, transformam-se num portão que impede as ovelhas tresmalhadas de entrar.

Lê-se ocasionalmente a Igreja Católica como espaço da experiência humana dominado pelo sentimento de culpa e pelo cumprimento de obrigações e rituais quando o cerne da fé está no pólo oposto, como experiência de liberdade em que somos convidados a um caminho que pode tomar inúmeras formas e que integra a criatividade humana, um caminho que, em última instância, podemos recusar. Os rituais e a consciência de si mesmo face a um conjunto de valores são um apoio tangível de que precisamos para ir navegando na compreensão do incompreensível. Tudo isto é, portanto, algo essencial, mas não como fim em si mesmo, pois aí certamente seria um peso e não uma semente de onde pode germinar uma vida mais plena.

Apelida-se a Igreja de retrógrada, focando os pontos em que de facto existiu (ou existe) insistência em caminhos menos apropriados. Assim se esquecem aspectos de grande inovação, desde logo começando pela própria radicalidade da Boa Nova de Jesus, mas passando depois por campos tão distintos como os avanços científicos ou a defesa social dos mais desprotegidos.

Precisamos de cuidar da Igreja, primeiro por dentro, sendo missionários para nós próprios. E, depois, cuidar por fora, sendo missionários a “todas as pessoas de boa vontade” para mostrar aquilo que a Igreja realmente é para nós. Enquanto não soubermos aliar estas duas missões, as notícias que se hão-de salientar serão seguramente as que menos interessam.

Temos a JMJ Lisboa 2023 à porta. Entre tantos afazeres e acontecimentos, não deixemos escapar aquilo que é realmente importante. Recordando a passagem bíblica: «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada.» (Lc 10,41-42).

Saibamos também nós trabalhar para tornar este encontro mundial numa festa magnífica, não esquecendo o seu propósito mais central.

João Valério é arquiteto e organista.


POR UMA IGREJA SINODAL

Nota Episcopal - Ministérios Instituídos Na Igreja Do Porto

Nota Pastoral

Ministérios Instituídos na Igreja do Porto

1. Sacerdócio ministerial e comum chamados ao encontro

Guiada pelo Espírito Santo, a Igreja, reunida em Concílio apresentou-se a si mesma e ao mundo como um mistério de comunhão, adornada com inúmeros carismas e ministérios para crescer na história como Corpo de Cristo e Sacramento de unidade e para prosseguir a obra da Redenção, segundo o mandato missionário do seu Senhor e Mestre.

Nos seus vários documentos, o II Concílio do Vaticano elucidou, de maneira bela e feliz, o modo como o sacerdócio ministerial ou hierárquico e o sacerdócio comum de todos os fiéis, sendo essencialmente distintos, estão em íntima e fraterna relação de acolhimento e serviço, ambos encontrando a sua realização culminante na celebração do mistério eucarístico. Memorial da Páscoa redentora, sacramento da comunhão e da missão, na Eucaristia convergem e encontram-se a ação do ministro ordenado, que atua in persona Christi (RS 146), e a participação ativa do Povo Sacerdotal dos batizados que nela e por ela se alimenta e cresce como Corpo de Cristo eclesial, até à plenitude do reino em que Cristo será tudo em todos.

2. O Corpo de Cristo eclesial

A formação e renovação do sacerdócio ministerial, conferido pelo sacramento da Ordem, foi e continua a ser uma preocupação constante e absorvente porque o corpo de Cristo sacramental, que requer absolutamente o seu ministério, é pressuposto do Corpo de Cristo eclesial.

Mas a realidade sacerdotal e ministerial da Igreja, a partir dos sacramentos da iniciação cristã, é muito mais ampla. E é também indispensável prestar atenção a esse campo imenso e cultivá-lo. Quando pedimos ao Senhor da Messe que lhe envie trabalhadores, pensamos nas vocações ao ministério hierárquico, mas igualmente em todos quantos, homens e mulheres, em virtude da graça recebida no Batismo, prestam a sua preciosa e indispensável cooperação nos vários âmbitos da vida e da missão da Igreja: evangelização e catequese, liturgia e espiritualidade, acolhimento e dedicação aos que sofrem pelos mais diversos motivos, promoção e animação da convivialidade e da festa…

3. Uma Igreja rica de ministérios

Dou graças a Deus porque não cessa de chamar homens generosos para servir a Igreja do Porto como padres e diáconos. Sendo crescente a desproporção entre a extensão do campo e a exiguidade dos efetivos, peço a todos especial empenho na oração para que o Senhor da Messe faça crescer em número e mérito os ministros ordenados ao serviço da nossa Diocese.

Mas, ao mesmo tempo, dou graças ao Senhor Jesus porque, com a escondida mas irresistível ação do Espírito Santo, tem adornado a Igreja do Porto com abundantes carismas e ministérios em todos os setores da vida da Igreja e da sua missão. São pessoas de ambos os sexos e de todas as idades: catequistas, leitores, acólitos ministrantes, músicos, salmistas e coralistas, sacristães, voluntários do acolhimento, ministros extraordinários da comunhão, visitadores dos doentes, promotores sociais da Cáritas, membros das conferências vicentinas e voluntários da pastoral social, direções dos nossos Centros Sociais Paroquiais, mesários das Misericórdias e Ordens Terceiras, inumeráveis irmãos e irmãs com dedicação desmedida e inesgotável ao serviço dos que sofrem enfermidades e carências de toda a ordem, colaboradores entusiásticos da convivialidade e da festa, que são também fator de comunhão e comunidade, etc.

4. A vitalidade carismática gera ministérios

Nesta hora, correspondendo ao impulso renovador do Concílio, de São Paulo VI e do Papa Francisco, com os meus irmãos Bispos da Conferência Episcopal que preconizam «ministérios laicais para uma Igreja ministerial» (Instr. de 22 de junho de 2022), a partir da base maravilhosa desta imensa e difusa ministerialidade de facto, quero convidar a Igreja diocesana a dar um passo determinado na implementação efetiva dos ministérios laicais instituídos de leitores, acólitos e catequistas. As modificações recentemente introduzidas no Código de Direito Canónico, permitem chamar a este serviço eclesial, a exercer estavelmente e com verdadeira responsabilidade, pessoas de ambos os sexos, tal como acontece, de facto, na vida das nossas comunidades.

Nem todos os acólitos ministrantes, nem todos os leitores em exercício, nem todos os prestimosos catequistas e colaboradores nas atividades evangelizadoras poderão ou deverão ver a sua dedicação a Deus e o seu serviço eclesial reconhecido pelo ato público da instituição. Cada comunidade conhece e deve manifestar, pela apresentação e testemunho dos seus legítimos pastores, aqueles que de forma dedicada, competente, perseverante e responsável se devotam à missão da Igreja desempenhando tarefas e assumindo encargos no âmbito dos diferentes ministérios a instituir. Há de ser a partir da vitalidade carismática e ministerial das comunidades que hão-de emergir naturalmente os animadores leigos que, de forma mais institucional, em comunhão cooperante com os ministros ordenados, serão o rosto do leitorado, acolitado e serviço catequético.

5. Orientações práticas

Antevejo que cada paróquia ou igreja/reitoria, no futuro, venha a ter um(a) acólito(a), um(a) leitor(a) e um(a) catequista devidamente instituídos. Esse número poderá crescer nas comunidade mais populosas ou pluricêntricas à medida que se for consolidando esta reconfiguração ministerial. Respeitando a lei da gradualidade, poderá começar-se a nível vicarial, por aqueles que já vão desempenhando tarefas de coordenação e são referência reconhecida nas respetivas áreas.

Como concretizar esse caminho? Sem considerar, neste momento, a situação peculiar dos candidatos às ordens sagradas, seguiremos os procedimentos previstos no n. 17 da referida Instrução da CEP:

a) requerimento, livremente escrito e assinado pelo(a) aspirante, que há de ser apresentado ao Bispo Diocesano, a quem compete a aceitação;

b) apresentação feita pelo Pároco ou Reitor da Igreja. Numa Igreja sinodal, será de toda a conveniência que a apresentação do pároco seja corroborada pelo parecer favorável dos órgãos de corresponsabilidade e participação existentes na paróquia, mormente o Conselho Pastoral;

c) idade conveniente e os dotes peculiares, conforme estabelecido pela Conferência Episcopal. Para além da idade mínima de 25 anos, os candidatos deverão ter já a sua situação académica, profissional e familiar definida e, na medida do possível, estabilizada. Entre os dotes peculiares deverá constar a formação nos termos da referida instrução da Conferência Episcopal Portuguesa e o exercício profícuo, por um tempo razoável, de atribuições correspondentes ao ministério a que se voluntariam;

d) vontade firme de servir fielmente a Deus e ao povo cristão.

6. A formação

A colação dos ministérios instituídos pressupõe uma indispensável e conveniente formação dos candidatos, conforme as orientações gerais da Conferência Episcopal Portuguesa. Os programas da Escola Diocesana de Ministérios Litúrgicos e do Curso Básico de Teologia do nosso Centro de Cultura Católica (CCC) cumprem essas orientações. Confio, pois, a esse Centro a formação doutrinal, pastoral e prática dos candidatos à instituição. Para uma efetiva convergência, o CCC deverá articular a sua programação com o Secretariado Diocesano da Educação Cristã (para a Instituição de Catequistas) e com o Secretariado Diocesano de Liturgia (para os ministérios do Leitorado e do Acolitado). Será a cada um destes Secretariados que se entregará o requerimento referido na alínea a) do número anterior.

Aos candidatos que já tenham concluído, com aproveitamento, os referidos cursos ou outros equivalentes, serão feitas propostas complementares de formação, adequadas às diferentes situações. Nomeio os responsáveis desses Secretariados Diocesanos para o acompanhamento dos candidatos durante o processo de formação.

7. Para um futuro mais ministerial

A atual desproporção entre os efetivos do clero diocesano e as necessidades das comunidades cristãs leva-nos a perspetivar uma progressiva reformulação pastoral em que o princípio tradicional de um pároco por paróquia – já impossível de satisfazer – venha a ser substituído pela vigência de equipas pastorais dinâmicas e plurais em que a missão da Igreja, em territórios cada vez amplos, seja assumida de forma sinodal e corresponsável por um número variável de padres, diáconos, religiosos/as onde os houver, com os seus carismas, e uma estável equipa ministerial de leigos instituídos, com capacidades efetivas de coordenação e dinamização nos âmbitos respetivos. Teremos cada vez menos paróquias autárquicas e cada vez mais células vivas de uma Igreja viva que experimenta e faz crescer a comunhão corresponsável de todos os fiéis de forma desclericalizada e crescentemente sinodal.

Que Santa Maria, Mãe da Igreja, nos ensine com o seu exemplo a acolher os impulsos do Espírito de Pentecostes e que a barca da nossa Diocese possa navegar, de velas pandas, para o mar alto onde o Mestre nos convida a lançar as redes.

Porto, 29 de maio de 2023, memória de Santa Maria, Mãe da Igreja
+ Manuel, Bispo do Porto


POR UMA IGREJA SINODAL

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
AOS PARTICIPANTES NA ASSEMBLEIA PLENÁRIA
DO DICASTÉRIO PARA OS LEIGOS, A FAMÍLIA E A VIDA

Sala Clementina
Sábado, 22 de abril de 2023

Queridos irmãos e irmãs!

Dou as boas-vindas a todos vós, que participais nesta segunda Assembleia Plenária do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, e agradeço ao Cardeal Farrell as suas amáveis palavras.

Agradeço-vos pelo trabalho realizado ao longo destes anos e pelo esforço com que trabalhais em todas as áreas da vossa competência. Elas dizem respeito à vida diária de muitas pessoas: famílias, jovens, idosos, grupos associados de fiéis e, mais em geral, leigos que vivem no mundo com as suas alegrias e dificuldades. Sois um Dicastério “popular”, diria, e isto é lindo! Recomendo-vos: nunca percais este caráter de proximidade às mulheres e aos homens do nosso tempo. Proximidade , sublinho isto.

Nos últimos dias, reunistes-vos para refletir sobre o tema: Os leigos e a ministerialidade na Igreja sinodal.

Quando se fala de ministérios, pensa-se em geral imediatamente nos ministérios “instituídos” — leitor, acólito, catequista — que são bem conhecidos e sobre os quais já se refletiu muito. Estes ministérios caraterizam-se por uma intervenção pública da Igreja — um ato específico de instituição — e por uma certa visibilidade. Eles estão ligados ao ministério ordenado, pois comportam várias formas de participação na tarefa que lhe é própria, embora não exijam o sacramento da Ordem.

No entanto, os ministérios instituídos não esgotam a ministerialidade da Igreja, que é mais ampla e que desde as primeiras comunidades cristãs diz respeito a todos os fiéis (cf. Carta Apostólica m.p. Antiquum ministerium , 2). Infelizmente, reflete-se pouco sobre ela, mas vós, oportunamente, dedicastes-lhe a vossa Plenária.

Em primeiro lugar, podemos perguntar-nos: qual é a origem da ministerialidade na Igreja? Poderíamos identificar duas respostas fundamentais.

A primeira é: o Batismo. Com efeito, é nele que tem a sua raiz o sacerdócio comum de todos os fiéis, que por sua vez se exprime nos ministérios. A ministerialidade laica não se fundamenta no sacramento da Ordem, mas no Batismo, dado que todos os batizados — leigos, celibatários, casados, sacerdotes, religiosos — são christifideles, crentes em Cristo, seus discípulos, e portanto são chamados a participar na missão que Ele confia à Igreja, também através da assunção de determinados ministérios.

A segunda resposta é: os dons do Espírito Santo. A ministerialidade dos fiéis, e dos leigos em particular, nasce dos carismas que o Espírito Santo distribui no seio do Povo de Deus para a sua edificação (cf. ibid.): primeiro aparece um carisma, suscitado pelo Espírito; depois, a Igreja reconhece este carisma como serviço útil para a comunidade; no final, num terceiro momento, introduz-se e propaga-se um ministério específico.

Então, é ainda mais claro por que a ministerialidade da Igreja não se pode reduzir apenas aos ministérios instituídos, mas abrange um campo muito mais vasto. De resto, ainda hoje, como nas comunidades das origens, diante das particulares necessidades pastorais, sem recorrer à instituição dos ministérios, os pastores podem confiar aos leigos determinadas funções de suplência, ou seja, de serviços temporários, como acontece por exemplo no caso da proclamação da Palavra ou da distribuição da Eucaristia.

Para além dos ministérios instituídos, dos serviços de suplência e de outros cargos confiados de maneira estável, os leigos podem desempenhar uma multiplicidade de tarefas, que exprimem a sua participação na função sacerdotal, profética e real de Cristo, não somente no seio da Igreja, mas também nos ambientes nos quais estão inseridos. Alguns são de suplência, mas há outros que derivam da originalidade batismal dos leigos.

Penso sobretudo nas exigências ligadas às antigas e novas formas de pobreza, assim como aos migrantes, que exigem urgentemente ações de acolhimento e de solidariedade. Nestes âmbitos de caridade podem surgir muitos serviços que se configuram como verdadeiros ministérios. Trata-se de um grande espaço de compromisso para quem deseja viver concretamente, em relação aos outros, a proximidade de Jesus, que muitas vezes experimentou pessoalmente. Assim o ministério torna-se, além de um simples compromisso social, uma bonita experiência pessoal e um grande testemunho, um verdadeiro testemunho cristão.

Depois penso na família, sobre a qual sei que também refletistes juntos, durante esta Plenária, examinando alguns desafios da pastoral familiar, entre os quais as situações de crise matrimonial, os problemas dos separados e divorciados, e de quantos vivem numa nova união ou que recasaram. Na Christifideles laici afirma-se que existem ministérios que têm o seu fundamento sacramental no Matrimónio, não apenas no Batismo e na Confirmação (cf. n. 23). Na Familiaris consortio fala-se da missão educativa da família como de um ministério de evangelização, que faz dela um lugar de verdadeira iniciação cristã (cf. n. 39). E já na Evangelii nuntiandi recorda-se que a missionariedade intrínseca à vocação conjugal se exprime também fora da própria família, quando ela se torna «evangelizadora de muitas outras famílias e do ambiente onde está inserida» (cf. n. 71). Detenho-me um minuto aqui, porque citei a Evangelii nuntiandi. Esta exortação de São Paulo vi ainda está em vigor: está em vigor hoje, é atual! Por favor, retomai-a, relede-a, é de grande atualidade! Há muitas coisas, que quando as encontramos de novo, dizemos: “Ah, como era clarividente Montini!”. Vê-se ali aquela clarividência do grande santo que guiou a Igreja!

Estes que citei são alguns exemplos de ministérios laicais, aos quais se poderiam acrescentar muitos outros, reconhecidos de várias maneiras pelas autoridades eclesiais como expressões da ministerialidade da Igreja em sentido amplo.

Contudo, devemos lembrar algo: eles — ministérios, serviços, ofícios — nunca devem tornar-se autorreferenciais. Fico zangado quando vejo ministros leigos que — perdoai-me a expressão — se “incham” ao desempenhar este ministério. Isto é ministerial, mas não é cristão; são ministros pagãos, cheios de si próprios. Prestai atenção a isto: nunca devem tornar-se autorreferenciais! Quando o serviço é unidirecional, não é “de ida e volta”, não funciona. O seu propósito transcende-os, e consiste em levar os «valores cristãos ao mundo social, político e económico» do nosso tempo (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 102). Esta é a missão confiada sobretudo aos leigos, cujo agir não pode limitar-se «a tarefas intraeclesiais, sem um compromisso real na aplicação do Evangelho à transformação da sociedade» (ibid. ). Às vezes vemos leigos que se parecem com sacerdotes falhados. Por favor, resolvei este problema!

Portanto, olhando para os vários tipos de ministerialidade que enumeramos, é útil fazer-nos uma última pergunta: o que une?

Duas coisas: a missão e o serviço. Com efeito, todos os ministérios são expressão da única missão da Igreja e todos são formas de serviço ao próximo. Em particular, apraz-me salientar que na raiz do termo ministério está a palavra minus, que significa “menor”. Jesus disse-o: que quem comanda se torne o mais pequenino, caso contrário não saberá comandar. Trata-se de um pequeno detalhe, mas de grande importância. Quem segue Jesus não tem medo de se fazer “inferior”, “menor”, e de se pôr ao serviço dos outros. Com efeito, foi o próprio Jesus que nos ensinou: «Quem quiser tornar-se grande entre vós seja o vosso servo, e quem quiser ser o primeiro, seja servo de todos» (Mc 10, 43-44). É aqui que reside a verdadeira motivação que deve animar cada crente a assumir qualquer tarefa eclesial, qualquer compromisso de testemunho cristão na realidade em que vive: a vontade de servir os irmãos e, neles, servir Cristo. Só assim cada batizado poderá descobrir o sentido da própria vida, experimentando com alegria que é «uma missão nesta terra» (ibid ., 273), ou seja, chamado de vários modos e formas a «iluminar, abençoar, vivificar, aliviar, curar, libertar» (ibid. ) e deixar-se acompanhar!

Amados irmãos e irmãs, agradeço-vos mais uma vez o trabalho que desempenhais ao serviço do santo Povo fiel de Deus. Que Nossa Senhora vos acompanhe e vos obtenha os dons do Espírito Santo! Abençoo-vos de coração e peço-vos, por favor, que rezeis por mim. Obrigado!


POR UMA IGREJA SINODAL

Papa prefacia livro sobre transição ecológica

“Os jovens ensinam os adultos: criticam, mas também mudam o estilo de vida”

Manuel Pinto | 23 Mai 2023 | in 7 Margens

“Sejamos realistas: o desenvolvimento económico irresponsável a que nos entregámos está a provocar desequilíbrios climáticos que pesam sobre os ombros dos mais pobres, sobretudo na África subsaariana”. Assim se expressa o Papa Francisco, no prefácio a um livro que está a ser apresentado por estes dias em Itália, o qual constitui um apelo à mudança de estilos de vida e à afirmação de que a transição ecológica é “um caminho para a felicidade”, como o subtítulo do livro enuncia.

O livro intitula-se “Il gusto di cambiare” [o gosto de mudar] e é o resultado de um diálogo improvável entre o fundador de Slow Food Italia, gastrónomo e ativista ecológico Carlo Petrini e o jesuíta especialista em economia e questões climáticas Gaël Giraud. A editora apresenta a obra como uma justificação, com muitos exemplos, da insustentabilidade do atual modelo económico-alimentar e da necessidade da ação da sociedade civil no sentido de “tomar as rédeas para dar vida a um novo paradigma”. O prefácio de Francisco – que já tem um livro de diálogos com Petrini – foi publicado em acesso aberto pelo Osservatore Romano.

Para o Papa, neste livro, os autores “elaboram uma análise fundamentada e convincente do modelo económico-alimentar em que estamos imersos, que, para usar a famosa definição de um escritor, ‘sabe o preço de tudo e o valor de nada’. Enfatiza, por outro lado, o facto de, ao longo das cerca de 170 páginas, serem proporcionados “vários exemplos construtivos, experiências estabelecidas, histórias singulares de cuidado com o bem comum e os bens comuns que abrem ao leitor um olhar de bondade e confiança sobre o nosso tempo”.

Um primeiro aspeto a que Francisco dá realce, no seu prefácio, é à valorização que tanto Giraud como Petrini dão ao papel dos jovens nas mudanças climáticas. Isto apesar de os dois andarem, respetivamente, pelos 50 e 70 anos e ser comum o discurso adulto de desvalorização das gerações mais jovens.

“Em vez disso – escreve o Papa – temos de admitir com sinceridade que são os jovens (…) que nos pedem, em várias partes do mundo, para mudar. Mudar o nosso estilo de vida, tão predatório em relação ao ambiente. Mudar a nossa relação com os recursos da Terra, que não são infinitos. Mudar a nossa atitude para com elas, as novas gerações, a quem estamos a roubar o futuro”.

“E [os jovens] – acrescenta – não se limitam a pedir-nos, estão já a fazê-lo: saem à rua, manifestam a sua discordância em relação a um sistema económico injusto para os pobres e inimigo do ambiente, procurando novos caminhos. E fazem-no a partir da sua vida quotidiana: fazem escolhas responsáveis em matéria de alimentação, de transportes, de consumo”.

O Pontífice realça o facto de os autores do livro citarem movimentos de várias partes do planeta, em que se procura avançar conjuntamente com dois aspetos que o Papa entende deverem andar unidos: as exigências quer da justiça climática quer da justiça social. “Os jovens estão a educar-nos neste sentido!”, remata o Papa. “Optam por consumir menos e viver mais as relações interpessoais; têm o cuidado de comprar objetos produzidos de acordo com normas estritas de respeito ambiental e social; são imaginativos na utilização de meios de transporte coletivos ou menos poluentes”.

Noutro ponto do seu texto, Francisco alude à “urgência de nos libertarmos desta perspetiva economicista, que parece desprezar o lado humano da economia, sacrificando-o no altar do lucro como bitola absoluta”. Ela está visível no conceito de prosperidade “que está em voga atualmente”, segundo o qual o “PIB é um ídolo ao qual são sacrificados todos os aspetos da vida em comum: respeito pelo ambiente, respeito pelos direitos, respeito pela dignidade humana”.

O prefácio sublinha ainda dois aspetos que caraterizam o livro: o facto de ter sido construído sob a forma de um diálogo, já que “é o confronto que nos enriquece, não a manutenção das nossas posições” ou “o fundamentalismo que barra o caminho à novidade” ou ainda “a certeza hermética de que estamos sempre “com a razão”.

Por outro lado, valoriza também o facto de os dois autores serem interlocutores com pontos de vista e origens culturais diferentes, um crente e um agnóstico. O que – faz notar o Papa –“não os impede de manter uma conversa intensa e construtiva que se torna o manifesto de um futuro plausível para a nossa sociedade e para o nosso planeta, tão ameaçados pelas consequências nefastas de uma abordagem destrutiva, colonialista e dominadora da criação”.


POR UMA IGREJA SINODAL

Mulheres: as primeiras testemunhas

Guilherme d’Oliveira Martins | 16 Abr 2023 | in 7 Margens

Muitas vezes esquecemo-nos de que as primeiras testemunhas da Ressurreição de Jesus Cristo foram as mulheres. Compreende-se bem que o Papa Francisco afirme: “Eu sofro quando vejo na Igreja que o papel de serviço da mulher desliza para um papel de servidão”. De facto, “quando se deseja que uma mulher consagrada faça um trabalho de servidão desvaloriza-se a vida e a dignidade humana e em especial da mulher como pessoa. Sua vocação é o serviço: serviço à Igreja, onde quer que esteja. Mas nunca a servidão!” É necessário, deste modo, que a mulher “não seja, por exigências económicas, forçada a um trabalho pesado” e devendo considerar-se, até pelas qualidades de atenção e cuidado, que “os compromissos da mulher, em todos os níveis da vida familiar, são um contributo incomparável à vida e ao futuro da sociedade”.

As graves lacunas que ainda existem são uma injustiça intolerável, como tem afirmado o Papa, salientando o inaceitável preconceito que permite as desigualdades, as discriminações, o fenómeno da violência e a falta de acesso à educação por parte das mulheres: “Infelizmente, ainda hoje, cerca de 130 milhões de jovens mulheres no mundo não vão à escola. E o certo é que não há liberdade, justiça, desenvolvimento integral, democracia e paz sem educação.” Só com plena igualdade de oportunidades as mulheres poderão contribuir para um mundo melhor de paz, de inclusão, de solidariedade e de sustentabilidade integral. Mas persistem as resistências, que, apesar de tudo, não impediram o Papa de nomear 17 mulheres para várias funções na reforma da Cúria Romana. É um começo. Contudo, como afirmou Nathalie Becquart, religiosa, especialista em Eclesiologia, subsecretária-geral do Sínodo 2021-2024: “Não basta que as mulheres ocupem posições de primeira linha na Santa Sé. É o próprio mundo em crise que precisa realmente de liderança feminina”.

Como lembrou há pouco António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas: “Em todo o mundo, o progresso dos direitos das mulheres está a desaparecer diante dos nossos olhos. Segundo as previsões mais recentes, ao ritmo atual, serão necessários mais 300 anos para alcançar a plena igualdade de género. Atualmente, a sucessão de várias crises, desde a Guerra na Ucrânia à emergência climática, afeta em primeiro lugar e de forma mais dura as mulheres e as jovens. E como resultado do retrocesso mundial da democracia, os direitos das mulheres sobre os seus corpos e sobre a autonomia das suas vidas estão a ser questionados e negados. Duas estatísticas evidenciam claramente o nosso fracasso: a cada dez minutos, uma mulher ou jovem é assassinada por um membro da família ou por um parceiro íntimo. E a cada dois minutos, uma mulher morre durante a gravidez ou o parto. A maioria destas mortes é perfeitamente evitável.” E assim temos de nos comprometer a fazer melhor. “Precisamos de reverter estas tendências alarmantes e apoiar as vidas e os direitos das mulheres e das jovens em todos os lugares.”

É altura de as mulheres deixarem de ser apenas hóspedes da vida cristã ou da vida em sociedade, para passarem a ser participantes ativas nos diversos domínios da vida social e eclesial. E o papel das mulheres na teologia tem de ser mais valorizado, para que todos compreendam melhor os fundamentos da igualdade e da diferença. Assim entenderemos os limites e os mistérios. É um caminho gradual, mas corajoso, que tem de ser posto em prática. Urge compreender-se em plenitude a noção de Povo de Deus, como realidade plural em caminho, com espírito de aperfeiçoamento e de mudança. “A cada qual se concede a manifestação do Espírito em ordem ao bem comum” (I Cor. 12,7). E falamos de todos os seres humanos. A palavra todos é essencial, não como massa indistinta, mas como reunião de todos e de cada um, como seres irrepetíveis e singulares. Todos “são chamados ao novo Povo de Deus. É por isso que este Povo, permanecendo uno e único, deve dilatar-se até aos confins do mundo inteiro e em todos os tempos, para se dar cumprimento ao desígnio de Deus” (Concílio Vaticano II, Lumen Gentium, 13). E assim este Povo de Deus “estende-se a todos os povos da terra”. A liberdade de consciência e a liberdade religiosa permite, assim, fortalecer o respeito mútuo a partir das bem-aventuranças no seio deste povo messiânico que tem por cabeça Cristo e “tem por condição a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, em cujos corações habita o Espírito Santo como em seu templo” e “tem por lei o mandamento novo: amar como Cristo nos amou (Jo. 13,34). Começado na terra pelo próprio Deus, visa a redenção universal, e é enviado a todo o mundo e a todos, qual luz desse mundo e sal da terra (Mt. 5, 13-16). Entendamos, assim, as primeiras testemunhas como sinal de exigência e responsabilidade.

Guilherme d’Oliveira Martins é administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian.


POR UMA IGREJA SINODAL

O sonho de uma Igreja missionária

Nelson Vale, Diocese de Bragança-Miranda | in Ecllesia | 6 Maio, 2023

Qual deverá ser a postura da Igreja (refiro-me a todos e a todas, dos/as consagrados/as aos/às leigos/as) face aos desafios das mudanças da sociedade contemporânea? Afinal, a ideia de que a Igreja está desatualizada e que não está a conseguir acompanhar as mudanças antropológicas-culturais está muito presente na mentalidade da sociedade atual. Mas temos de nos questionar se realmente a Igreja é incapaz de dar uma resposta aos desafios colocados pelas mudanças sociais.

Efetivamente, a Igreja não vive tempos fáceis. A humanidade atravessa uma profunda transformação, há uma grande difusão do ateísmo, existe um enfraquecimento da fé, assistimos a uma grande crise da prática religiosa institucional e temos uma Igreja sem grande credibilidade e vitalidade. Os tempos que vivemos são extremamente desafiantes e não podemos continuar a agir como se os valores de referência fossem os mesmos das gerações passadas, ignorando as grandes mudanças da atualidade. Por isso, é urgente assimilar todas estas complexas mudanças para assim, a partir delas, encontrarmos novos caminhos para a Igreja.

Para o efeito, o Papa Francisco, na exortação apostólica Evangelii Gaudium, aponta para o paradigma de uma Igreja missionária e convida-a a sair da comodidade das suas estruturas tradicionais, para anunciar o Evangelho a todos, já que Deus não deseja uma Igreja de elite, mas sim missionária, na qual cada membro se torne discípulo missionário. Portanto, o espírito de comunhão e de amor vivido entre os cristãos, a partir do Evangelho, não pode ficar retido nas estruturas eclesiais, mas tem de fluir e contagiar outros, especialmente os mais afastados. Assim, todo o cristão tem por missão levar o Evangelho o mais longe possível. (Cf. EG 113) No entanto, para que a missão seja eficaz, o anunciador deve antes trabalhar na sua conversão interior, abrindo-se ao Espírito Santo, e procurar uma boa formação, a fim de aprofundar o seu amor e dar um bom testemunho, comunicando aos outros, em todo o tempo e lugar, a alegria que é viver segundo o Evangelho. (Cf. EG 121) Seguindo o exemplo dos primeiros cristãos, que anunciaram Jesus Cristo, com alegria, coragem e perseverança. (Cf. EG 263)

Porém, para que esta comunicação seja performativa, não se pode resumir só e apenas a palavras, mas também a ações: «Jesus quer evangelizadores que anunciem a Boa Nova, não só com palavras mas sobretudo com uma vida transfigurada pela presença de Deus». (EG 259) Precisam-se anunciadores com espírito, nos quais arda o fogo do Espírito Santo. Evangelizadores que «rezam e trabalham» (EG 262), isto é, que põem os valores do Evangelho em prática, no dia-a-dia, nas várias funções que assumem na sociedade, tal como na família, no trabalho, na política, nas relações sociais e nas atividades culturais, entre outras. (Cf. EG 262)

Além de tudo isto, segundo a Evangelii Gaudium, uma paróquia verdadeiramente missionária tem de ser entendida, igualmente, como uma mãe de coração aberto, (Cf. EG 46) onde todos os seres humanos possam ser bem acolhidos e possam encontrar misericórdia, perdão, amor e ânimo para viverem a vida segundo o Evangelho. (Cf. EG 114) A paróquia deve ter as portas abertas para todos e estar ao serviço de todos, tal como afirma João Paulo II: a comunidade cristã deve ser a «casa que se abre para todos e que está ao serviço de todos, ou como gostava de dizer o Papa João XXIII, o fontanário da aldeia a que todos acorrem na sua sede».[1]

No entanto, esta deve-se prevenir, para que todos aqueles que recorram ao fontanário não o encontrem vazio. Desde logo, necessita de ter alguma coisa para oferecer aos que lhe entram pelas portas a adentro. Assim, urge a necessidade de criar espaços e propostas de descoberta da fé. Por exemplo: cursos, nos quais se trate os princípios fundamentais da fé cristã, sem exigir qualquer compromisso àqueles que vêm à procura; cursos para os «reiniciantes», dirigidos àqueles que se afastaram da Igreja e desejam novamente estabelecer diálogo. Estes têm essencialmente a finalidade de restaurar a relação com Deus, restabelecer a confiança e proporcionar um acompanhamento personalizado àqueles que regressam. Nota-se nestes sujeitos uma sede de Deus, contudo têm fracas noções de fé;[2] grupos bíblicos, onde as pessoas possam saborear a palavra de Deus, deixando-se iluminar pela mesma; cursos de preparação para o matrimónio, tendo em vista a importância da família na sociedade e na Igreja; catequese para adultos; e formação dos agentes pastorais.[3]

É considerável, ainda, o número de pessoas que ocorrem à paróquia, com desejo de receber um sacramento, sem perceberem o seu verdadeiro sentido. Perante esta situação é necessário ter atenção para não cair em extremos. Ou seja, por um lado, satisfazer o pedido, sem estabelecer qualquer condição, entrando na lógica da sociedade de consumo. Por outro lado, adotar uma atitude demasiado exigente, impondo certos critérios rigorosos no momento da preparação para o sacramento. Dessa forma, é importante encontrar um meio termo que atenda a cada pessoa em específico, uma vez que cada ser humano tem uma história e uma forma de experimentar a fé diferente. Portanto, à imagem de Jesus Cristo, compete à paróquia missionária acolher todos aqueles que vêm ao seu encontro, amá-los tal como são e caminhar ao lado deles, respeitando o seu ritmo. Por isso, é fundamental trabalhar o acolhimento de todos aqueles que vêm à procura.[4]

A hospitalidade é uma marca importante da paróquia missionária. Assim, é convidada a promover atitudes de hospitalidade em vários momentos. Desde logo, no acolhimento daqueles que se distanciaram da fé e regressam por algum motivo, tal como para batizar um filho ou então para serem padrinhos.[5] É necessário, da mesma forma, ter uma atenção especial para com as famílias enlutadas. Deste modo, a paróquia para atender a estas famílias, pode criar equipas destinadas ao acompanhamento das pessoas que estão a passar por um processo de luto, a fim de lhes proporcionar o calor da compaixão e a esperança na ressurreição.[6]

Além do mais, é essencial acompanhar os divorciados e os divorciados recasados, já que, cada vez mais, as pessoas estão a sofrer devido aos numerosos casos de separação. Desta forma, proibir estes indivíduos de participarem em alguns sacramentos talvez não seja a melhor solução, uma vez que gera sofrimento neles ao serem rejeitados pela Igreja. Além de que, esta é uma ótima oportunidade para testemunhar que a instituição eclesial os quer apoiar e fazer caminho com eles.[7]

Todos têm o direito de serem bem acolhidos na Igreja. Aliás, todos estão chamados a participar na vida da comunidade e a contribuírem para o crescimento da mesma, independentemente dos seus estados de vida, uma vez que na Igreja existe uma diversidade de missões. Por isso, o leque das responsabilidades dentro das comunidades cristãs deve ser alargado ao maior número de cristãos e não estar apenas reservado para alguns, visto que existe muito a tendência de confiar sempre as mesmas tarefas aos mesmos.[8]

Destaca-se, inclusive, a necessidade de escolher bons líderes e não centralizar todas as atividades no pároco. Cada líder deve desenvolver uma equipa e assumir a responsabilidade de uma das vertentes da pastoral, mantendo-se sempre em comunhão com as restantes pastorais. Assim sendo, deve haver um encarregado da liturgia, da administração, da catequese, da diaconia e da comunhão.[9] Outro aspeto revelante é a criação de pequenas comunidades evangelizadoras, apoiadas na oração, no serviço, no encontro e na partilha da fé.

A paróquia missionária deve procurar ser casa para os pobres, na qual se sintam como em sua própria casa. Tal como refere João Paulo II: «devemos procurar que os pobres se sintam, em cada comunidade cristã, como “em sua casa”».[10] Ela deve ser o lugar, por excelência, onde os excluídos e os esquecidos da sociedade veem reconhecida a sua dignidade como filhos de Deus.[11] Esta tem de se esforçar por ter gestos de solidariedade para com eles, à imagem de Jesus Cristo que sempre mostrou a sua preferência pelos mais desfavorecidos.

Por fim, é o momento oportuno para nos perguntarmos o que se passa na vida das nossas paróquias ou das nossas unidades pastorais: O que é que temos para oferecer aos não-crentes e às pessoas que que andam à procura de Deus? Como é que acompanhamos as pessoas? Como é que acolhemos as pessoas que nos entram pelas portas adentro? Temos o cuidado de formar as pessoas que estão empenhadas na comunidade? Como é que funcionam as nossas equipas pastorais? Como é que acolhemos e vamos ao encontro dos pobres?[12]

Siglário
EG Francisco, Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (24 de Novembro de 2013)


[1] João Paulo II, «Exortação apostólica pós-sinodal Christifideles Laici de sua santidade o Papa João Paulo II sobre a vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo», par. 27, acedido 12 de Outubro de 2022, https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_30121988_christifideles-laici.html.
[2] Cf. Marie-Agnès De Mateo e François-Xavier Amherdt, Abrir-se à fecundidade do espirito (Prior Velho: Paulinas, 2016), 170–73.
[3] Cf. António da Cruz Gonçalves, «Uma Pastoral Sensível à Iniciação Cristã dos Adultos», 101–2.
[4] Cf. De Mateo e Amherdt, Abrir-se à fecundidade do espirito, 175–77.
[5] Cf. De Mateo e Amherdt, 186–87.
[6] Cf. De Mateo e Amherdt, 200.
[7] Cf. De Mateo e Amherdt, 201.
[8] Cf. De Mateo e Amherdt, 189–90.
[9] Cf. De Mateo e Amherdt, 192–94.
[10] João Paulo II, «Carta apostólica Novo Millennio Ineunte do sumo pontifice João Paulo II ao episcopado, ao clero e aos fiéis no termo do grande jubileu do ano 2000», par. 50, acedido 18 de Outubro de 2022, https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_letters/2001/documents/hf_jp-ii_apl_20010106_novo-millennio-ineunte.html.
[11] Cf. De Mateo e Amherdt, Abrir-se à fecundidade do espirito, 195–98.
[12] Cf. De Mateo e Amherdt, 211–13.


POR UMA IGREJA SINODAL

Falamos de abusos na vida religiosa?

Cristina Inogés Sanz | 19 Abr 2023 | in 7 Margens

Só porque algo não é falado não significa que não exista. A cultura da impunidade não só nasceu e se instalou nos seminários, como também estendeu os seus tentáculos à vida religiosa. Não deve surpreender-nos porque o abuso de poder impregnou todas e cada uma das estruturas da Igreja, e a vida religiosa é uma delas.

Antes de continuar creio ser necessário expor um fenómeno que, espero, a psicologia nos ajude a explicar. Para que nos possamos entender em linguagem comum, falarei de leigos e religiosos, sabendo que todo aquele que não é ordenado é leigo.

O fenómeno a que me refiro é este: entre os leigos, os homens denunciam mais abusos do que as mulheres; na vida religiosa, as religiosas denunciam mais abusos do que os religiosos. Destaco este facto porque vou referir-me mais aos abusos entre as religiosas, já que quase não há dados sobre o que acontece – porque acontece – entre os religiosos, sobretudo como abuso de poder e de consciência.

Na vida religiosa seguiu-se a mesma horrível estratégia de esconder a verdade, porque era mais importante a boa imagem da instituição do que a vida das mulheres. Porque, por estranho que pareça para alguns, as religiosas são mulheres.

O abuso de poder, e lembremo-nos que é a origem de todo tipo de abuso, está na vida religiosa. Há também, é claro, o abuso sexual por parte, na maioria das vezes, de capelães e/ou confessores – recordemos o caso Rupnik, por certo, ainda sacerdote e jesuíta – e, na maioria das vezes, com o conhecimento das prioresas, sobretudo na vida contemplativa, que não acreditam na vítima ou, pior ainda, acreditam que o agressor tem esse “direito”.

Que ninguém pense que estamos perante casos isolados de determinadas congregações. Estamos perante uma realidade a nível estrutural e mundial, onde a cultura também desempenha o seu papel e as mulheres, educadas na submissão, se encontram ainda em pior situação. Um exemplo? As religiosas africanas que têm quatro frentes abertas:

A. Começarei com uma pergunta: será que as religiosas que vêm de África – e inclusivamente de outros continentes – para colmatar a falta de vocações nas nossas congregações ou ordens de vida contemplativa, são bem tratadas e têm todas as garantias como cidadãs e membros dessa congregação?

B. As religiosas que chegam a Roma para estudar, enviadas pelas suas congregações, e que acabam – mais bem cedo que tarde – como empregadas domésticas sem ordenado, ou seja, exploradas, ao serviço de cardeais, com o conhecimento das superioras da sua congregação que continuam enviando outras religiosas nas mesmas condições e que acabarão da mesma forma.

C. As religiosas abusadas por parte de um clero que vê o celibato como algo contrário à sua cultura e também abusadas por alguns bispos que, não entendendo também o celibato, acrescentam, ao abusar das mulheres, a segurança de saber que as religiosas não estão infectadas com SIDA.

D. As duas versões de um mesmo drama. Por um lado, o das religiosas que engravidam e que lhes é oferecida a possibilidade de abortar – não há maior incoerência e desprezo do que obrigá-las a cometer um dos maiores pecados segundo a própria Doutrina da Igreja – e, se não aceitam essa opção, são expulsas da congregação, e que procurem encontrar uma vida em África com o estigma que carregam e, por outro lado, o drama das mulheres – não religiosas – que têm filhos de sacerdotes que não são reconhecidos por eles e que não têm maneira de sobreviver nem elas nem os seus filhos.

A este drama desumano e sangrento, acrescenta-se outro que também não é muito divulgado e que serve, mais uma vez, para demonstrar o “amor” à instituição que está acima das pessoas. Este outro drama é a quantidade de sacerdotes africanos que se suicidam após serem infectados com SIDA, por não serem capazes de suportar que se torne pública a sua doença. Não esqueçamos que em África não há recursos para pagar o tratamento e quase nem há hospitais onde se possa fazê-lo.

Sim, mas isso acontece em África, pensarão alguns. É verdade, mas, será que na Europa não se passa nada com as religiosas relativamente à realidade dos abusos? Especificando um pouco mais, em França, Espanha, Itália ou Portugal não há abusos na vida religiosa, sobretudo feminina, por parte de mulheres das suas próprias congregações ou ordens?

Desde há alguns anos que existe um abandono mais do que significativo de religiosas que deixam as suas congregações sem que haja uma crise vocacional ou de idade. A que se deve então este abandono constante? Conheço congregações que num ano perderam quinze dos seus membros. Mulheres com estudos universitários – muitas delas doutoradas – com uma personalidade marcante e uma vida dedicada a viver um carisma numa congregação que abusou delas, tentando subjugar, em muitas ocasiões, as suas consciências ou tratando-as de forma infantilizada, quando não humilhando-as em privado e publicamente diante de outras irmãs da congregação.

Conheço também o caso de uma mulher que abandonou a ordem de vida contemplativa, na qual ingressou com vinte anos. Deixou-a depois de viver nela outros vinte e cinco, e depois de ter passado por três mosteiros aos quais a priora do primeiro enviava informações viciadas sobre ela e, de cada vez, a mesma história se repetia. Era tratada quase como uma demente conflitiva. Quando não aguentou mais, abandonou a ordem com aquilo que tinha vestido. Literalmente. Durante uma semana dormiu na rua porque não tinha dinheiro nem sabia onde pedir ajuda aos serviços sociais da cidade onde estava. Ligou para o bispado expondo a sua situação e não foi ouvida. Acudiu ao vigário geral da sua diocese e não foi ouvida porque “já não era freira e ele não podia fazer nada”. Até hoje, sem nenhuma qualificação académica ou profissional, vive de trabalhos esporádicos – alguns com poucas garantias legais – enquanto espera que o seu processo seja visto em Roma.

Não há relação entre o tratamento que se recebe e o abandono da congregação ou ordem? O abandono, e mais ainda por estas razões, não é um mar de rosas. Porquê abandonar a forma de vida escolhida num determinado momento em vez de denunciar? E quem disse que não o fazem?

Algumas não denunciam pelo calvário que isso implica; outras, que o fazem, acabam por constatar que os seus processos se perdem ou dormem eternamente nalguma gaveta do dicastério correspondente… Haverá maior revitimização da vítima, sem falar no desprezo, do que verificar a impossibilidade de que se faça justiça?

Nada do que eu conto aqui é inventado. A realidade supera a ficção que qualquer escritor pudesse criar. Isto acontece, está a acontecer hoje em dia. Poderemos ficar indiferentes? Espero que cada mulher que possa ler este artigo, seja freira, religiosa ou leiga, faça uma análise profunda da sua vida e veja quantas formas de abuso de poder subtil e quase imperceptível enfrentou sem estar ciente disso. Há formas de abuso tão interiorizadas que quase parecem uma lisonja.

E vocês, religiosos ou monges que também possais ler este artigo, não tenhais medo nem vergonha em denunciar. Ninguém nasce vítima. Chega-se a vítima por causa do tratamento que se recebe de outro ser humano. Assim como uma ferida precisa de desinfetante para evitar a infeção, o abuso precisa de ser verbalizado para que não acabe por gangrenar o coração.

Praticamente todos os movimentos e congregações nascidas no final dos anos oitenta e início dos anos noventa foram intervencionadas, quando não mesmo proibidas pelos efeitos causados pelo personalismo exagerado dos seus fundadores ou fundadoras, e que derivaram em autênticos abusos de poder. Aviso aos navegantes, quais são as características que têm alguns fundadores de movimentos recém-criados?

A Universidade de Friburgo, na Suíça, elaborou há uns anos atrás um dicionário de colofones, que são aquelas últimas linhas que todo o escriba acrescentava ao finalizar a sua obra, pedindo orações e algo mais. Se eram monjas, costumavam pedir material – pergaminho, pena e tinta – para continuarem a trabalhar; se eram monges, o habitual é ler que pediam donzelas. Não é necessário explicar para que é que as queriam… Afinal de contas, não há nada de novo debaixo do sol, diz Qoheleth 1,9

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Jorge Wemans e Júlio Martin.


POR UMA IGREJA SINODAL

Nesta décima terceira resposta, Cristina Inogés-Sanz, teóloga que integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos, desafia-nos a assumir a nossa responsabilidade enquanto leigos e saber qual o nosso lugar nessa Igreja, porque “ninguém é dono da Igreja, nem mesmo os bispos que agiram como se dela fossem donos.”

Só uma Igreja cujo centro é o Evangelho será credível

Cristina Inogés Sanz | 13 Abr 2023 | in 7 Margens

O problema radica na distorção teológica do exercício do poder

1.1 A tremenda crise que a Igreja atravessa fez com que o Cristianismo, e o próprio Evangelho, tenham perdido boa parte de sua credibilidade. Esta crise, cujo sinal mais saliente são os abusos sexuais cometidos, na sua maioria, por membros do clero, mas que tem raízes no abuso de poder, deveria fazer soar o alarme para que nós leigos levemos a sério a nossa responsabilidade, o nosso ser Igreja e o lugar que cada um de nós tem nela. Ninguém é dono da Igreja, nem mesmo os bispos que agiram como se dela fossem donos.

Não podemos enganar-nos e acreditar que toda essa situação é fruto apenas dos abusos sexuais. A crise para a qual nos têm arrastado, principalmente, os bispos (de todo o mundo), resulta da arrogância de terem agido como senhores feudais dos seus territórios-dioceses, sem a menor possibilidade de controlo por parte dos fiéis súbditos, pois a única função destes na Igreja era dizer “amém”.

Estamo-nos desconjuntando como telhas de barro malcozidas. É hora de transformar esta realidade. Agora sabemos como fazê-lo porque sabemos que o verdadeiro problema radica na distorção teológica do exercício do poder. As atrocidades que foram cometidas sob a capa de formas do exercício de um poder corrupto, fazendo as pessoas acreditarem que isso era assim por vontade de Deus, devem-nos fazer entender que aquilo que agora temos não se parece com o que a Igreja deveria ser.

Esta Igreja da qual fomos súditos mudos deve ser transformada por todos nós porque o que a partir de agora não fizermos, ninguém o fará por nós.

Passámos anos a ouvir dizer que tínhamos que dialogar com o mundo, mas, na hora da verdade, o mundo é o grande inimigo. Desde quando? Porquê? O mundo somos nós mesmos. Continuam a fazer-se, em praticamente todas as áreas, abordagens e planos pastorais que se tornam obsoletos e caducos mesmo antes de começarem a serem concretizados. Deixamo-nos consumir pela teologia da adoração quando, na realidade, a fé e a coerência da vida cristã se jogam na teologia do crucificado. Do crucificado, não da cruz.

Temos de ter a coragem de deixar as nossas capelinhas em que nos sentimos bem – uma versão moderna das três tendas da narrativa da transfiguração – e sair à rua porque a Igreja está a demorar demasiado tempo a instalar-se na rua. E precisa de o fazer, literalmente.

Embora seja forte a tentação de nos sentirmos “de Francisco”, temos que nos sentir e ser “do Evangelho”, porque só uma Igreja cujo centro é o Evangelho será credível. É tempo de deixar para trás a passividade e o conforto; é tempo de enfrentar a realidade de que somos ovelhas sem pastor (porque não temos pastores) e que temos de sair juntos dessa crise porque, ou saímos juntos, ou nos afundamos juntos – Francisco dixit.

Não podemos ser membros da Igreja por hábito ou tradição familiar. Devemos ser membros da Igreja por convicção evangélica, por decisão pessoal e por compromisso batismal. Se não respondermos a esta crise como ela merece e exige, do Quem estamos dando testemunho?

1.2 Se os bispos quisessem ouvir, poderíamos unir forças e, entre nós todos, com serenidade, calma, mas sem deixar o tempo passar, encontrar a solução, ou soluções, necessárias, assumir as mudanças urgentes, mas receio que este caminho não vai ser possível porque as mitras não se querem dar a este trabalho. São incapazes de perceber que perder um grama de poder lhes daria toneladas de autoridade moral.

Olhando a realidade deste prisma, penso que quem criou e manteve a situação que até aqui nos trouxe deveriam ser os que fizessem o q eu fosse possível para garantir a mudança. Mas, como são bispos, temo que nada mude se nós, leigos, não assumirmos uma liderança compartilhada que nos leve a adotar todas as medidas sejam necessárias.

Se na sociedade civil passamos a vida a exigir mudanças e soluções, por que não o fazer na Igreja? Por que permanecemos adormecidos, permitindo que a situação se mantenha?

2. É preciso ouvir e partilhar dores, esperanças e possibilidades de mudança. É possível fazer isso ao nível paroquial, diocesano e nacional. Nada nos impede de criar grupos sinodais para continuar ouvindo, dialogando e propondo soluções. E que tudo o que é dito e proposto nesses grupos seja divulgado por meio dos média e das redes sociais. E tudo isso, claro, com uma linguagem fresca e eclesial, propositiva e, sobretudo, não gerando mais polarização do que a que já existe.

Será preciso ter em conta e estar preparado para, na medida do possível, não se deixar influenciar por aqueles que, sem quererem participar nestas propostas porque não acreditam na Igreja sinodal, farão tudo para impedir e pôr em perigo este processo.

3. Será necessário recuperar a voz daqueles que abandonaram os templos – não a Igreja – e também a voz daqueles que estão interessados em viver o Evangelho, mas não são atraídos pela Igreja. Quem acredita e pensa fora da estrutura eclesial tem uma visão menos contaminada e seria de grande ajuda contar com a sua contribuição. Temos de trabalhar em propostas concretas adaptadas à realidade de cada dia e esquecer as utopias.

Se como teóloga puder contribuir com algo para esta reflexão e para a mudança de atitudes, aqui estou.


POR UMA IGREJA SINODAL

A vida entrevê-se nas feridas

Ao início da sua história, quando se perguntava aos cristãos o que havia de novo no seu viver, se se tratava de uma nova religião ou de uma nova filosofia, eles respondiam: é o caminho. Esta é a maneira de seguir aquele que disse: «Eu sou o Caminho». Ao renovar esta consciência, chegamos à semana central do ano litúrgico, fonte da qual brotam todos os dias santos, como nos recorda o anúncio que escutamos no dia da Epifania. No interior do espaço do ano litúrgico – exercício contínuo de contemplação do mistério de amor de Cristo –, nesta semana o tempo dilata-se até nos fazer receber de forma memorial, ritual e real o êxodo pascal de Jesus.

A denominação ambrosiana “Semana Autêntica” ajuda-os a colher o aspeto histórico, autenticamente narrativo de quanto celebramos, ao mesmo tempo que nos encoraja a reconhecer que a Páscoa é precisamente o acontecimento que gera “conversão”, isto é, mudança de olhar, de direção, de sentido de viver. A definição de Semana Santa, típica da liturgia romana, refere-se à centralidades destes dias em que a liturgia nos oferece a oportunidade de imergirmos nos acontecimentos que revelam a vontade de Deus de não nos perder, “atravessando” com maravilhamento o mistério da Páscoa de Jesus.

Neste tempo histórico da vida da Igreja, a urgência que a entrada na grande Semana nos confia é o de nos deixarmos conduzir – individualmente e como povo reunido – talvez não tanto +ara onde “não queremos”, mas sem dúvida para onde “não prevemos” e não imaginamos, para que o Evangelho possa verdadeiramente ressoar com força e verdade. Os passos rumo à Páscoa não são um acontecimento devocional, encerrado nas fronteiras do rito e da comemoração, mas uma experiência que transforma e vivifica a consciência e o agir de cada crente, dentro da comunidade reunida.

«A nova evangelização e a transformação sinodal da Igreja e do mundo constituem um processo em que devemos aprender a adorar Deus de um modo novo e mais profundo – em Espírito e verdade. Não devemos temer que algumas formas da Igreja estejam a morrer: “Se o grão não cai à terra e não morre, permanece só; se, porém, morre, produz muito fruto” (João 12, 24). (…) Em cada período da história da Igreja devemos exercitar a arte do discernimento espiritual, distinguindo na árvore da Igreja os ramos que estão vivos e aqueles que estão secos e mortos. O triunfalismo, a adoração de um Deus morto, deve ser substituído por uma humilde eclesiologia quenótica. A vida da Igreja consiste em participar no paradoxo da Páscoa: o momento do dom de si e da autotranscendência, a transformação da morte em ressurreição e vida nova».

A experiência pascal da Igreja nascente reveste a surpresa de que a ressurreição não é uma ressuscitação do passado, mas uma transformação radical. Tenhamos em conta que também os olhos de quantos foram mais próximos e mais queridos não reconheceram Cristo ressuscitado. Maria Madalena reconhece-o pela voz, Tomé pelas suas feridas, os peregrinos de Emaús ao partir do pão.

Também hoje, uma parte importante da existência cristã é a aventura da busca de Cristo vivo, que se apresenta a nós em muitas formas surpreendentes, por vezes anónimas. Chega através da porta fechada pelo medo; sentimos a sua falta quando nos encerramos no medo. Vem a nós como voz que fala ao nosso coração; não nos daremos conta se nos deixarmos ensurdecer pelo ruído das ideologias e da publicidade comercial, Mostra-se a nós nas feridas do nosso mundo; se ignoramos estas feridas, não temos o direito de dizer com o apóstolo Tomé: Meu Senhor e meu Deus! Ele mostra-se a nós como o desconhecido na estrada de Emaús; não conseguiremos encontra-lo se não estivermos dispostos a partir o pão com os outros, inclusive com os desconhecidos? (P. Tomáš Halík, Introdução à Assembleia continental do Sìnodo, Praga, 6.2.2023)

Para cada um de nós, que esta Semana seja um caminho paciente através das feridas, para chegar com humilde maravilhamento à Luz que ultrapassa toda a expetativa.

Enrico Parazzoli | In Vino Nuovo | Trad.: Rui Jorge Martins | in SNPC |
Publicado em 03.04.2023


POR UMA IGREJA SINODAL

A pastoral da paróquia é abrir portas e receber com um sorriso, em vez de dizer «estamos fechados, não está na hora»

A Igreja é um corpo composto de muitos membros, todos ao serviço uns dos outros e todos animados pelo mesmo amor: o de Cristo. E quando a Igreja não é assim, cai na mundanidade, cai no clericalismo, que é uma coisa feíssima. Recordai-vos sempre que é com a beleza e a riqueza desta variedade e desta comunhão que levais Jesus ao mundo: é este o meio mais poderoso com que anunciais o Evangelho, antes ainda das palavras. (…)

Exorto-vos a caminhar juntos como irmãos e irmãs, porque a fraternidade torna as pessoas mais livres e felizes. O mundo não termina com nós próprios, por favor. A comunidade não se faz à frente do espelho, eu e o espelho, não. Só descobrimos verdadeiramente o mundo quando caminhamos juntos com os outros, dia após dia. Por isso é importante a paróquia: porque é o lugar em que, no seguimento de Jesus, nos encontramos, nos conhecemos, nos enriquecemos uns com os outros, pessoas de diferentes gerações e diferentes condições culturais e sociais, todos com alguma coisa de único a dar e a receber. Vemos nas nossas cidades o que acontece quando nos esquecemos disto: o horizonte restringe-se e todos se tornam mais sós.

Caminhar juntos, caminhar com amor. O amor entre vós esteja sempre em primeiro lugar. Através das atividades formativas, a catequese, os grupos (…), a atenção aos pobres e aos últimos, às pessoas idosas e sós, aos noivos e às jovens famílias, através das bandas de música e das atividades desportivas, vós preparais o terreno, por vezes algo árido e duro, para semear amor e transformar o território em que viveis num campo abundante, rico de frutos bons do Evangelho. Em particular, amar significa “alargar o círculo”, construindo unidade na confiança e no acolhimento, trabalhando juntos e procurando sempre os pontos em comum e as ocasiões para fazer comunidade, em vez de motivos de divisão. Respeitar as diferenças.

Sabeis, eu fui pároco durante seis anos, e trago essa experiência no coração. Gostava da missa com as crianças… Pensai que naquele bairro havia muitas, e na missa dominical das crianças havia 200, 280 – naqueles bairros as famílias têm quatro ou cinco filhos –, e começava sempre a dialogar com elas. Uma vez – era o Pentecostes – disse: «Hoje é Pentecostes!». As crianças respondiam: «Sim, padre, sim». Em resumo, é o Espírito Santo… Quem de vós sabe quem é o Espírito Santo?». E algumas levantavam as mãos. «Muito bem, diz tu!» - «O paralítico!» - «O que disseste?» - «O paralítico.» - «Aquele que anda numa cadeira de rodas?» - «Sim!» - «Não, querido, é o Paráclito, é outra coisa!». Mas era belo. Noutra ocasião falei da não maledicência, porque as maledicências fazem mal, e as pessoas que dizem maledicências fazem mal. «Ah! – disse imediatamente uma criança –, como as senhoras Tal e Tal!». As crianças são espontâneas, a missa com as crianças é uma coisa belíssima: levai-as sempre. A paróquia é um lugar abençoado, onde se vai para se sentir amado. Quem bate à porta das nossas igrejas e dos nossos ambientes procura muitas vezes antes de tudo um sorriso acolhedor, procura braços e mãos abertas, olhos desejosos de encontro e repletos de afeto.

Numa paróquia, tu bates à porta e, se não está no horário, dizem-te: «Vai-te embora, está fechado». Uma vez, um pároco disse-me: «Tenho vontade de fechar as janelas com tijolos.» - «Mas estás louco?» - «Não, porque as pessoas vêm, e se não as recebo à porta, batem às janelas.» As pessoas não se cansam de pedir e de chamar, e nós não devemos cansar-nos de abrir as portas e as janelas. Se tu és padre, é para isto; se tu estás no círculo da paróquia, é para isto: para abrir portas, para abrir janelas, para receber sempre com um sorriso. E não dizer «não está na hora». Abertura total. Braços e mãos abertos, olhos desejosos de encontro e repletos de afeto. Esta é a pastoral de uma paróquia. Na paróquia cada um leva também o seu fardo, para podê-lo partilhar com alguém e aligeirar-lhe o peso, mas também para partilhar as coisas boas que contém.

Sim, há um inimigo grande, nas paróquias, como em todo o lado: a maledicência. Estai atentos, não deixeis entrar a maledicência. A maledicência mata. E não faleis mal uns dos outros. Se não gostas daquele, se não gostas daquela, come o teu juízo, mas não o partilhes para destroçar o outro. «Mas, padre, é tão fácil a maledicência…». Sim, é fácil, é verdade. Mas há um remédio muito bom contra a maledicência, não sei se o conheceis, mas é bom, é um bom remédio. Se te vem a vontade de maldizer, morde a língua. A língua inchará e não poderás falar. Morde a língua antes de maldizer. Nada de maledicência, por favor, é uma peste que destroça as paróquias, destroça as famílias e muitas coisas… (…)

Segui em frente! Vós, idosos, vós, adultos, transmiti aos jovens o testemunho que recebestes das gerações que vos precederam; e dai-o enriquecido pelo vosso empenho e pelo vosso testemunho. E vós, jovens, não tenhais medo de falar com os velhos. Vai falar, vai discutir, vai escutar os velhos, porque te darão força, a partir da sua história, para que tu possas seguir em frente, tu que és jovem agora. Isto não significa olhar sempre para trás, não. Vai ter com os velhos, mas olha para a frente, para o horizonte. É importante que os jovens encontrem os velhos e falem com os velhos.

Papa Francisco
Excertos do discurso aos fiéis das paróquias de Rho (Itália), Vaticano, 25.3.2023
In Sala de Imprensa da Santa Sé | Edição / trad.: Rui Jorge Martins | Publicado em 27.03.2023 in SNPC


POR UMA IGREJA SINODAL

Mulheres na Igreja: Em conjunto com os homens, fora do clericalismo

«Irmã, de que cardeal é a senhora?». Estava nos primeiros meses de trabalho no interior da Cúria romana, e esta pergunta foi como um golpe. Aquilo que em cada ambiente humano surge como natural, com efeito, é menos simples, menos óbvio do que se pensaria. Há uma estratificação de costumes, de símbolos e de dinâmicas tão penetrantes, que se torna transparente, invisível, em cada sistema fechado.

O Concílio Vaticano II marcou uma evolução epocal na autocompreensão da Igreja católica, mas a passagem dos textos à vida ainda não se cumpriu, em larga medida. Como mulher é talvez mais fácil percecioná-lo. Nos primeiros dez anos como bispo de Roma, o papa surpreendeu-nos muitas vezes por simplesmente traduzir o Concílio em gestos. Direi, inclusive, num estilo: o seu é um trabalho diário de tradução do Vaticano II, um acontecimento que, como um novo Pentecostes, restabeleceu o diálogo entre Igreja e mundo contemporâneo.

Estamos hoje perante uma participação sem precedentes das mulheres na vida pública, em contexto profissional, político, cultural, económico e científico. As suas lutas, a nova e espalhada consciência da sua dignidade são um dos resultados mais importantes da modernidade, em grande parte do mundo. É muito difícil para quem escuta e anuncia o Evangelho todos os dias não reconhecer nisto um “sinal dos tempos”.

Todavia, em especial no seu rosto institucional, a Igreja parece não ter registado aquilo que a todos os níveis tornou mais rica a convivência civil. O papa Francisco sabe-o muito bem: há muito por fazer, mas em muitos contextos chega a tratar-se de uma questão em que é preciso começar. E o primeiro passo é valorizar que já deixámos de ser aquelas e aqueles de antes. Em âmbito teológico esta consciência tornou possível, em todas as latitudes, novos e importantes contributos de quem, até há poucas décadas, não tinha sequer acesso às faculdades eclesiásticas.

Causaram alvoroço as palavras pronunciadas pelo papa há alguns dias: «As mulheres têm uma capacidade de administrar e de pensar totalmente diferente de nós, e inclusive, direi, superior a nós, um outro modo. Vemo-lo no Vaticano, também: onde colocámos mulheres, rapidamente a coisa muda, vai para a frente».

Na realidade essas palavras revelam mais uma vez a sua principal preocupação: que as coisas se mexam. Nos seus primeiros dez anos dedicou-se – como gosta de dizer – a desencadear processos mais do que a ocupar espaços. É uma atitude que considera fundamental para realizar o Concílio. Direi que é o movimento, o dinamismo que o papa reconhece ao próprio Concílio, enquanto acontecimento do Espírito, que é vento, sopro, potência.

Como mulher, por isso, deixar-me interrogar e inspirar pelo seu estilo e pelo seu magistério significa não cair numa lógica de ocupação dos espaços e, antes, educar os outros a sair dela. É preciso fazer sair todos, homens e mulheres, do clericalismo. É este o nome a dar à atmosfera invisível que resiste ao Espírito em nome do costume.

Hoje o problema não é que no Vaticano haja mais algumas mulheres, mas que uma religiosa ou um leigo possa ter responsabilidade sobre um bispo ou um padre. Requer-se delicadeza, naturalmente, mas determinação para que tome forma uma Igreja povo de Deus. São precisos «mente, coração e mãos», como sugere o papa Francisco, para demolir as lógicas de poder e o carreirismo.

O que conta, no entanto, é o cenário de conjunto que assim se abre e que tenho diante dos olhos a cada dia no Dicastério de que sou secretária: homens e mulheres, consagrados e leigos, jovens e idosos, com proveniências geográficas, sensibilidades eclesiais e teológicas diferentes, trabalharem juntos para uma única missão. No nosso caso cerca de oitenta pessoas.

Em Roma temos um bispo, naturalmente: o papa Francisco. E com ele partilhamos o caminho. Concretiza-se assim a formação plural do povo de Deus, no preciso momento em que perfis tão diferentes aprendem a viver e a agir em comunhão: O ponto é este: a valorização não só das mulheres, mas de cada um. Uma aliança entre diferentes, a que decerto as mulheres podem dar um contributo decisivo. Sabemos por experiência, com efeito, o que significa não ser visto. Além disso, tecer relações e dissolver rigidezes é algo de que somos deveras capazes.

Gostaria de dizer que a aliança homem-mulher descrita no Génesis, essa unidade de diferentes a que Deus confia o futuro da Terra, pode realmente resplandecer na maneira em que seremos Igreja, se concretizarmos o Concílio. Homens e mulheres juntos somos a imagem de Deus, e só juntos podemos fazer resplandecer esta imagem no mundo.

O papa Francisco faz-nos abandonar muitos hábitos que obscureceram a beleza multiforme do desígnio originário de Deus. Queremos que nisto não esteja só: o que acontece em Roma pode mudar o mundo, mas aquilo que acontece no mundo pode sustentar e inspirar o sucessor de Pedro. Talvez haja isto no insistente pedido para que rezemos por ele: um intercâmbio de dons, uma ideia de aliança.

Ir. Alessandra Smerilli
Secretária do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral | In Avvenire | in SNPC | Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 23.03.2023


POR UMA IGREJA SINODAL

Editorial 7M

Abusos: um passo em frente e cinco questões urgentes

Jorge Wemans | 9 Mar 2023 | in 7 Margens

Percebe-se hoje que boa parte da atrapalhação de D. José Ornelas na apresentação das conclusões da reunião plenária da Conferência Episcopal Portuguesa da passada sexta-feira, dia 3 de março, provinha do facto de estar a defender ideias que não são suas e procedimentos com que não concorda. Contudo, os esclarecimentos dados e, sobretudo, as ações empreendidas por alguns bispos (ainda que minoritários em número) demostram as dissensões havidas e qual é, afinal, o caminho a seguir. Mas mantêm o silêncio sobre o que vão os bispos fazer para irem mais além da casuística e enfrentarem a raiz do escândalo dos abusos sexuais.

A suspensão de funções de alguns sacerdotes pelos respetivos bispos é um sinal importante dado às vítimas, aos restantes abusadores, a toda a comunidade católica e à sociedade portuguesa. Esperamos que o rigor dos subsequentes processos não permita defraudar a expectativa agora criada em vários círculos, especialmente naqueles e naquelas abusados e abusadas quando menores. Todos sabemos quanto é difícil a produção de prova nestes casos. Mas, em qualquer caso, a todos assiste o direito a defender-se e ser defendido.

Porém, talvez não seja, de momento, este último o aspeto mais importante. No terrível e tristíssimo tempo que os católicos deste país vivem urge responder a cinco questões prementes: como vamos disponibilizar realmente a reparação possível e todo o apoio (incluindo indemnizações) às vítimas que o solicitarem?; como conseguir que os bispos negacionistas (nomeadamente no Porto e em Lisboa), saiam dessa posição e tratem de suspender quem devem suspender?; como exigir a identificação clara dos encobridores (ninguém acredita que pelo menos alguns dos crimes agora conhecidos não fossem do conhecimento de terceiros)?; os bispos vão ou não criar uma nova comissão independente que acompanhe a concretização dos compromissos que vierem a assumir? que disposições vão traçar para aprofundar o longo caminho de erradicação do clericalismo na Igreja?

Como refere o Papa Francisco na sua Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018, “dizer ‘não’ aos abusos (seja de poder, de consciência, qualquer abuso) significa dizer com força ‘não’ a qualquer forma de clericalismo”, esse clericalismo que o Papa tem repetidamente sublinhado ser a raiz, a origem, a “perversão” de onde provêm a sensação de poder sem controlo nem fronteiras, o sentimento de impunidade e a ideia de uma superioridade que coloca o padre acima dos demais.

Mas Francisco vai mais longe nessa Carta e sublinha que “tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso nas nossas comunidades, sem a participação ativa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista”.

O Papa escreveu tudo isto (e bastante mais) há quatro anos. Que esperam os bispos portugueses para o pôr em prática? Que planos concretos, que calendário de ações vão divulgar para combater a causa dos abusos na Igreja Católica que está em Portugal? Como vão envolver nessa árdua tarefa as comunidades, os padres, os religiosos e os católicos em geral, suscitando a “participação ativa de todos os membros da Igreja”? Porque se recusam a dar aqueles passos que podem tornar a Igreja um lugar seguro, atraente, capaz de acolher e caminhar com todos e neles reconhecer a presença do Ressuscitado em que acredita?

O tempo para a tomada destas decisões está a esgotar-se. Termina, definitivamente, a 20 de abril, último dia da próxima reunião da assembleia plenária da Conferência Episcopal.


POR UMA IGREJA SINODAL

Que ninguém fique sozinho!

ESPECIAL COMISSÃO INDEPENDENTE PARA O ESTUDO DOS ABUSOS SEXUAIS NA IGREJA

P. Tiago Neto | 26 Fevereiro 2023 | in Ponto SJ

Na carta dirigida ao Povo de Deus, o Papa Francisco declara que «é impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus» (20.08.2018). Recupero esta afirmação num contexto similar ao que motivou esta carta, um relatório que detalha o que viveram pessoas vítimas de abuso sexual, de poder e de consciência. Se é certo que o nosso olhar se volta para o que vai fazer a Igreja, é muito importante que todo o Povo de Deus seja chamado a participar num processo de renovação da Igreja que se adivinha exigente, doloroso, mas necessário. De facto, é importante salientar que se de um modo geral, se reconhece que caiu sobre os ombros dos responsáveis hierárquicos a resolução das questões do passado, também não se pode exigir que sejam unicamente eles a desenhar o futuro. Esta situação reclama a ousadia não só de pensar o exercício do ministério episcopal, muitíssimas vezes concentrado num único indivíduo, com todas as implicações psicológicas que acarreta, como envolver todo o Povo de Deus num processo de reforma da Igreja.

O decreto conciliar Christus Dominus reclama que os Bispos «respeitem o papel que pertence aos seus fiéis nas coisas da Igreja, reconhecendo-lhes também a obrigação e o direito de colaborarem ativamente na edificação do Corpo Místico de Cristo» (n. 16). Respeitar este direito dos fiéis implica um processo de escuta e acompanhamento de todos os que quiserem ser corresponsáveis na construção de um futuro melhor para a Igreja e para a sociedade. Dentro deste grupo estão, em primeiro lugar, as vítimas de abuso que devem ser ouvidas, acompanhadas e ressarcidas nos seus direitos. Elas podem ajudar a Igreja a examinar-se e a pôr-se no seu lugar. A sua voz autorizada por estruturas de apoio confiáveis pode permitir à Igreja compreender as consequências nefastas do sistema de silenciamento das vítimas que vigorou durante décadas.

Em segundo lugar, a Igreja não deve negligenciar o acompanhamento dos agressores, proporcionando-lhes não o destino de Judas, mas o olhar exigente e compassivo que Jesus dirigiu a Pedro (cf. Mt 27,5; Mc 14,72). Ajudá-los a aceitar o próprio fracasso, a reconhecer o pecado e a enveredar por caminhos de cura será um grande passo face à cultura do «care your self» que tem vigorado até agora. A própria aplicação da justiça, quando ela é devida, tem um efeito reparador não só para as vítimas, como para os agressores.

Em terceiro lugar, estão todos os homens e mulheres de boa vontade que, com os seus conhecimentos e experiência podem contribuir na definição e implementação de medidas concretas que previnam todo e qualquer tipo de abusos. Neste grupo estão também aqueles cristãos comuns que se sentem envergonhados e que anseiam por poder fazer ouvir a sua voz. Não pode ser excluída ajuda dos fiéis leigos, onde o Espírito Santo fala, num processo de decisão que os implica diretamente.

Como reconheceu o Sínodo sobre os jovens, «enfrentar a questão dos abusos em todos os seus aspetos também com a preciosa ajuda dos jovens, pode ser deveras uma oportunidade para uma reforma de âmbito epocal» (Documento final, 31). Seria bom que a leitura do relatório da Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais de crianças na Igreja levasse a um caminho sinodal que implicasse toda a Igreja, de modo que ninguém fique sozinho!


POR UMA IGREJA SINODAL

Ir. Becquart: uma Igreja sinodal, única forma para transmitir a fé hoje

In Vatican News

A subsecretária do Sínodo dos Bispos pronunciou~se na manhã deste sábado na Assembleia Sinodal Continental das Igrejas da Ásia, em andamento em Bangkok até este domingo: “Sinodal deve ser todo tipo de trabalho pastoral”. No segundo dia de trabalho, os jovens participantes refletiram sobre as cinco prioridades para o continente asiático.

Andrea De Angelis - Cidade do Vaticano

“A sinodalidade é um dom e na escuta do chamamento de Deus devemos ter uma atitude de gratidão”. Foi o que afirmou a Irmã Nathalie Becquart, subsecretária do Sínodo dos Bispos, no seu discurso na Assembleia Sinodal Continental das Igrejas da Ásia, cujos trabalhos começaram na sexta-feira, 24 de fevereiro, e que terminarão amanhã. A religiosa agradeceu primeiramente aos jovens presentes. “É realmente uma bênção para nós ouvir vocês, aprender com você e – disse – fazer parte desta Assembleia continental”.

A sinodalidade é um chamamento de Deus

Irmã Nathalie Becquart refletiu sobre três pontos com os jovens asiáticos. O primeiro aspecto consiste em ver a sinodalidade como um chamamento do Senhor. “Não se trata de dizer se gostamos, não gostamos, se percebemos mais ou menos entusiasmo, mas – sublinhou – de responder à vontade de Deus para a Igreja do terceiro milênio”.

Ao expressar esse conceito, ela citou o teólogo australiano Herman Rush, que escreve sobre como “a sinodalidade é, em síntese, o Concílio Vaticano II." Consequentemente, “o que estamos a fazer agora é realmente continuar a receção do Concílio, implementando-o”.

O pensamento da subsecretária do Sínodo dos Bispos foi então para o Sínodo sobre os jovens, quando "entendemos como Igreja que a única maneira de transmitir a fé hoje neste mundo, numa sociedade em mudança com todos os desafios que vocês conhecem, consiste em 'ser uma Igreja sinodal'. Dos jovens assim veio um ensinamento para todos os cristãos, porque 'não é apenas a pastoral juvenil que deve ser sinodal, mas todo tipo de trabalho pastoral'.

O dom da sinodalidade

Depois de ter definido a sinodalidade como "um caminho de kenosis, onde é necessário dar espaço ao outro", seguindo Cristo num caminho de "verdadeira conversão e transformação", a religiosa convidou os presentes ao discernimento, porque "o discernimento consiste precisamente em ouvir o Espírito em nós e nos outros do grupo".

O segundo ponto consiste então em viver a sinodalidade como um dom. "O que nos levou a aprofundar a escuta e o discernimento e a discernir a resposta a este chamamento de Deus é precisamente uma atitude de gratidão. Quanto mais conseguirmos discernir o dom da sinodalidade que já recebemos, mais - acrescentou - aprenderemos do passado para o futuro, porque a sinodalidade é um percurso criativo”.

Discernir e escolher

Depois de ter escutado o chamamento de Deus e mostrado gratidão pelo dom da sinodalidade, chega o momento de escolher. O terceiro ponto é precisamente esta escolha, fruto do discernimento.

“O terceiro passo do caminho consiste em discernir e escolher”, sendo capaz de perceber quais são as situações mais urgentes a enfrentar. “Hoje – disse Ir. Nathalie Becquart aos jovens – somos chamadas a selecionar prioridades, observando as várias lacunas”.

Ao admitir que nunca é fácil escolher prioridades, compreende-se a importância de ter uma metodologia para depois chegar a uma decisão, sempre ouvindo o Espírito.

O trabalho dos jovens

Os vários grupos de jovens protagonistas da Assembleia realizada em Bangkok trabalharam juntos, apresentando as questões urgentes para o continente asiático, compreendendo problemáticas e lacunas, e procedendo a uma seleção de cinco prioridades. Estas últimas serão apresentadas no outono na próxima fase do sínodo.

Cada sessão de trabalho terminou hoje com a oração diante do Santíssimo Sacramento. Os grupos de hoje foram moderados e coordenados por Dom Anil Joseph Thomas Couto, arcebispo de Delhi; Christina Kheng, membro da Comissão de Metodologia do Sínodo e Momoko Nishimura, membro do Grupo de Trabalho Sinodal da Federação das Conferências Episcopais da Ásia (FABC).

Igrejas na Ásia

Nestes dias, os delegados dos 29 países que compõem a FABC, reunidos em Baan Phu Waan, o centro de formação pastoral da Arquidiocese de Bangkok, compartilharão suas experiências e se concentrarão em vários temas e tensões que afligem a Ásia - sinodalidade, tomada de decisões, vocações, jovens, pobres, conflitos religiosos e clericalismo – com os desejos de conseguir caminhar juntos no futuro, no vasto e diversificado continente asiático. Todos os trabalhos de grupo e intervenções resultarão num documento final que será apresentado à Assembleia e representará a contribuição das Igrejas na Ásia para a redação do Instrumentum laboris do Sínodo.


POR UMA IGREJA SINODAL

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
AOS PARTICIPANTES NO CONGRESSO PROMOVIDO
PELO DICASTÉRIO PARA OS LEIGOS, A FAMÍLIA E A VIDA

Sala do Sínodo
Sábado, 18 de fevereiro de 2023

Amados irmãos e irmãs, bom dia e bem-vindos!

Agradeço ao Cardeal Farrell e saúdo a todos vós, responsáveis das Comissões Episcopais para o Laicado, com os dirigentes de associações e movimentos eclesiais, os oficiais do Dicastério e todos os presentes.

Viestes dos vossos países para refletir sobre a corresponsabilidade – corresponsabilidade – dos pastores e dos fiéis-leigos na Igreja. O título do Convénio fala duma «chamada» para «caminhar juntos», colocando o tema no contexto mais amplo da sinodalidade. Com efeito, a estrada que Deus está a apontar à Igreja é precisamente viver, de forma mais intensa e concreta, a comunhão e caminhar juntos. Convida-a a superar os modos autónomos de agir ou as linhas paralelas que nunca se encontram: o clero separado dos leigos, os consagrados separados do clero e dos fiéis, a fé intelectual de algumas elites separada da fé popular, a Cúria Romana separada das Igrejas Particulares, os bispos separados dos sacerdotes, os jovens separados dos idosos, os esposos e as famílias pouco envolvidos na vida das comunidades, os movimentos carismáticos separados das paróquias, etc. Esta é a tentação mais séria neste momento. Existe ainda um longo caminho a percorrer para que a Igreja viva como um corpo, como um verdadeiro Povo, unido pela única fé em Cristo Salvador, animado pelo mesmo Espírito santificador e orientado para a mesma missão de anunciar o amor misericordioso de Deus Pai.

Este último aspeto é decisivo: um Povo unido na missão. E esta é a intuição que devemos guardar sempre: a Igreja é o santo Povo fiel de Deus, segundo afirma a Lumen gentium nos nºs 8 e 12; não é populismo nem elitismo, é o santo Povo fiel de Deus. Isso não se aprende teoricamente, compreende-se vivendo-o. Depois explica-se, tanto quanto possível, mas se não se vive não se conseguirá explicar. Um Povo unido na missão. A sinodalidade encontra a sua fonte e finalidade última na missão: nasce da missão e está orientada para a missão. Pensemos nos primeiros tempos, quando Jesus envia os Apóstolos e eles regressam felizes, porque os demónios «fugiam deles»: foi a missão que lhes deu aquele sentido de eclesialidade. De facto, a partilha da missão aproxima pastores e leigos, cria comunhão de intentos, manifesta a complementaridade dos diversos carismas e, consequentemente, suscita em todos o desejo de caminhar juntos. Vemo-lo no próprio Jesus, que, desde o início, Se rodeou de um grupo de discípulos, homens e mulheres, e viveu com eles o seu ministério público. Mas nunca sozinho. E quando enviou os Doze a anunciar o Reino de Deus, mandou-os «dois a dois». Vemos o mesmo em São Paulo, que sempre evangelizou juntamente com colaboradores, incluindo leigos e casais. Não sozinho. E assim foi nos momentos de grande renovação e zelo missionário na história da Igreja: pastores e fiéis-leigos juntos. Não indivíduos isolados, mas um Povo que evangeliza, o santo Povo fiel de Deus!

Sei que falastes também da formação dos leigos, indispensável para viver a corresponsabilidade. Também neste ponto gostaria de sublinhar que a formação deve estar orientada para a missão, não só para as teorias, sob pena de se terminar em ideologias. E é terrível, é uma praga: a ideologia na Igreja é uma praga. Para evitá-la, a formação deve estar orientada para a missão. Não deve ser escolástica, limitada a ideias teóricas, mas incluir também a prática. Aquela nasce da escuta do querigma, alimenta-se com a Palavra de Deus e os Sacramentos, faz crescer no discernimento pessoal e comunitário, e envolve imediatamente no apostolado e em várias formas de testemunho, por vezes simples, que levam a aproximar-se dos outros. O apostolado dos leigos é, primariamente, um testemunho. Testemunho da própria experiência, da própria história, testemunho da oração, testemunho do serviço a quem passa necessidade, testemunho da proximidade aos pobres, às pessoas sozinhas, testemunho do acolhimento, sobretudo por parte das famílias. E assim, indo ao encontro dos outros, formamo-nos para a missão. É uma formação feita «no campo de ação» e, ao mesmo tempo, um caminho eficaz de crescimento espiritual.

Desde o início, venho afirmando que sonho uma Igreja missionária (cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 27; 32). «Sonho uma Igreja missionária». E vem-me à memória uma imagem do Apocalipse, quando Jesus diz: «Eu estou à porta e bato: se alguém [...] me abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele» (Ap 3, 20). Mas hoje o drama da Igreja é que Jesus continua a bater à porta, mas da parte de dentro, para que o deixemos sair! Muitas vezes acabamos por ser uma Igreja “prisioneira”, que não deixa o Senhor sair, que o retém como “propriedade sua”, quando o Senhor veio para a missão e quer que sejamos missionários.

Este horizonte dá-nos a correta chave de leitura para o tema da corresponsabilidade dos leigos na Igreja. Com efeito, a exigência de valorizar os leigos não deriva de uma novidade teológica qualquer, nem de exigências funcionais por causa da diminuição dos sacerdotes; e menos ainda de reivindicações de categoria, para dar a «contrapartida» a quem esteve posto de lado no passado. Pelo contrário, baseia-se numa visão correta da Igreja: a Igreja como Povo de Deus, do qual fazem parte, a pleno título, os leigos juntamente com os ministros ordenados. Por conseguinte, os ministros ordenados não são patrões, são servos: pastores, não patrões.

Trata-se de recuperar a «eclesiologia integral» dos primeiros séculos, na qual tudo se unifica pela pertença a Cristo e pela comunhão sobrenatural com Ele e com os irmãos, superando a visão sociológica que distingue classes e escalões sociais e se baseia, em última análise, no «poder» atribuído a cada categoria. A ênfase deve ser colocada na unidade, não na separação, na distinção. Mais do que como «não-clérigo» ou «não-religioso», o leigo deve ser considerado como batizado, como membro do Povo santo de Deus, que é o sacramento que abre todas as portas. No Novo Testamento, não aparece a palavra «leigo», mas fala-se de «crentes», «discípulos», «irmãos», «santos», termos que eram aplicados a todos: fiéis-leigos e ministros ordenados, o Povo de Deus a caminho.

Neste único Povo de Deus que é a Igreja, o elemento fundamental é a pertença a Cristo. Nos relatos comoventes das Atas dos Mártires dos primeiros séculos, encontramos muitas vezes uma simples profissão de fé: «Sou cristão – diziam – e por isso não posso sacrificar aos ídolos». Di-lo, por exemplo, Policarpo, bispo de Esmirna (cf. Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, IV, 15,1-43); di-lo Justino e outros companheiros seus, todos leigos (cf. Atas do martírio dos Santos Justino e companheiros, cap. 1-5: PG 6, 1366-1371). Estes mártires não dizem «sou bispo» ou «sou leigo» – «sou da Ação Católica, sou daquela Congregação Mariana, sou dos Focolares». Não, dizem apenas «sou cristão». Também hoje, num mundo cada vez mais secularizado, aquilo que nos distingue verdadeiramente como Povo de Deus é a fé em Cristo, não o estado de vida considerado em si mesmo. Somos batizados, cristãos, discípulos de Jesus. O resto é secundário. «Mas, Padre, também um presbítero?» – «Sim, é secundário» – «E um bispo?» – «Sim, é secundário» – «Mesmo um cardeal?» – «É secundário».

A nossa pertença comum a Cristo torna-nos todos irmãos. O Concílio Vaticano II afirma: «Os leigos, portanto, do mesmo modo que, por divina condescendência, têm por irmão a Cristo (…), de igual modo têm por irmãos aqueles que, uma vez estabelecidos no sagrado ministério, apascentam a família de Deus» (Const. dogm. Lumen gentium, 32). Irmãos com Cristo e irmãos com os sacerdotes, irmãos com todos.

Nesta visão unitária da Igreja, onde primariamente somos cristãos batizados, os leigos vivem no mundo e, ao mesmo tempo, fazem parte do Povo fiel de Deus. Para exprimir isto, o Documento de Puebla usou uma expressão feliz: os leigos são homens e mulheres «de Igreja no coração do mundo» e homens e mulheres «do mundo no coração da Igreja» (III Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, Documento final, Puebla 1979, n. 786). É verdade que os leigos são chamados principalmente a viver a sua missão nas realidades seculares onde estão imersos dia a dia, mas isto não exclui que tenham também as capacidades, os carismas e as competências destinados a contribuir para a vida da Igreja: na animação litúrgica, na catequese e na formação, nas estruturas de governo, na administração dos bens, no planeamento e implementação dos programas pastorais, etc. Por isso, os pastores devem ser formados, desde os tempos do Seminário, para uma colaboração quotidiana e ordinária com os leigos, de tal modo que a vivência da comunhão se torne para eles um modo natural de agir, não um facto extraordinário e ocasional. Uma das piores coisas que acontece a um pastor é esquecer o Povo de onde veio, a falta de memória. A ele, pode dirigir-se aquela palavra da Bíblia muitas vezes repetida: «Lembra-te»; «Lembra-te de onde foste tirado, do rebanho de onde te retiraram para voltares a servi-lo, lembra-te das tuas raízes» (cf. 2 Tm 1).

Esta corresponsabilidade vivida entre leigos e pastores permitirá superar as dicotomias, os medos e as desconfianças recíprocas. É tempo de pastores e leigos caminharem juntos, em todas as áreas da vida da Igreja, por toda a parte do mundo. Os fiéis-leigos não são «hóspedes» na Igreja, estão na casa deles, por isso são chamados a cuidar da própria casa. Os leigos, sobretudo as mulheres, devem ser mais valorizados nas suas competências e nos seus dons humanos e espirituais para a vida das paróquias e dioceses. Podem levar o anúncio do Evangelho com a sua linguagem «quotidiana», comprometendo-se em várias formas de pregação. Podem colaborar com os sacerdotes para formar as crianças e os jovens, ajudar os noivos na preparação do matrimónio e acompanhar os esposos na vida conjugal e familiar. Devem ser sempre consultados, quando se preparam novas iniciativas pastorais a todos os níveis: local, nacional e universal. Devem ter voz nos conselhos pastorais das Igrejas particulares. Devem estar presentes nos serviços das Dioceses. Podem ajudar no acompanhamento espiritual doutros leigos e prestar a sua contribuição também na formação de seminaristas e religiosos. Uma vez ouvi esta pergunta: «Padre, um leigo pode ser diretor espiritual?». É um carisma laical! Pode ser um padre a fazê-lo, mas o carisma não é presbiteral; o acompanhamento espiritual, se o Senhor dá a capacidade espiritual para o realizar, é um carisma laical. E, juntamente com os pastores, devem levar o testemunho cristão para os ambientes seculares: o mundo do trabalho, da cultura, da política, da arte, da comunicação social.

Poderíamos dizer: leigos e pastores juntos na Igreja, leigos e pastores juntos no mundo.

Lembro-me das últimas páginas do livro do Cardeal de Lubac, Méditation sur l’Église, no qual, para dizer qual é a pior coisa que pode acontecer à Igreja, diz que a mundanidade espiritual, que se traduz no clericalismo, «seria infinitamente mais desastrosa do que qualquer mundanidade simplesmente moral». Se tiverdes tempo, lede estas três ou quatro últimas páginas de Méditation sur l’Église do Cardeal de Lubac. Dá a entender, citando também alguns autores, que o clericalismo é a pior coisa que pode acontecer à Igreja, pior ainda do que nos tempos dos papas concubinários. O clericalismo deve ser “expulso”. Um padre ou um bispo que caia nesta atitude causa um grande dano à Igreja. Mas é uma doença contagiosa: e ainda pior do que um padre ou bispo que caiu no clericalismo são os leigos clericalizados. Por favor, são uma praga na Igreja. O leigo seja leigo.

Queridos amigos, com estes poucos tópicos quis apontar um ideal, uma inspiração que nos pode ajudar no caminho. Gostaria que todos nós tivéssemos, no coração e na mente, esta bela visão da Igreja: uma Igreja voltada para a missão e onde se unificam as forças e se caminha em conjunto para evangelizar; uma Igreja onde o que nos une é o nosso ser cristão batizado, a nossa pertença a Jesus; uma Igreja onde se vive uma verdadeira fraternidade entre leigos e pastores, trabalhando lado a lado diariamente, nos diversos âmbitos da pastoral, porque todos são batizados.

Exorto a que vos façais promotores nas vossas Igrejas particulares de quanto recebestes nestes dias, para continuarmos juntos a renovação da Igreja e a sua conversão missionária. De coração abençoo a todos vós e aos vossos entes queridos, e peço-vos, por favor, que rezeis por mim. Obrigado.


POR UMA IGREJA SINODAL

Teóloga do Sínodo católico fala ao 7M

Cristina Inogés Sanz: É preciso ser criativo para alargar o lugar da mulher na Igreja

António Marujo | 11 Fev 2023 | in 7 Margens

“O lugar da mulher na Igreja, que é dado pelo baptismo, permite-nos ser tão criativos” como foram os primeiros cristãos na adaptação que fizeram do credo, para serem ouvidos pelos gregos e romanos. A ideia é de Cristina Inogés Sanz, teóloga espanhola que integra a comissão metodológica do sínodo da Igreja Católica, que está a decorrer até 2024. “E isso não irá destruir os fundamentos do cristianismo. Pelo contrário, permitirá que esteja mais presente no mundo real”, defende, nesta entrevista ao 7MARGENS.

De passagem por Portugal, Cristina Inogés Sanz, conhecida de quem lê este jornal também pelas crónicas da sua autoria que publicamos regularmente, participou como convidada, em Novembro, no Congresso sobre os seminários católicos, em Braga.

Formada na Faculdade de Teologia Protestante de Madrid, Cristina Inogés colaborou já com a Faculdade de Teologia de Gotinga (Gottingen), Alemanha, e actualmente é colaboradora regular de várias publicações, entre as quais a revista espanhola Vida Nueva, além de autora de vários livros, que inclui os recentes Beguinas, Memoria Herida (“Beguinas, memória ferida”), sobre a experiência medieval comunitária e autónoma das beguinas, e La Sinfonía Femenina (Incompleta) de Thomas Merton, sobre a relação do monge místico do século XX com as mulheres.

Nesta entrevista, cuja segunda parte será publicada neste sábado, 11, Cristina Inogés defende que os leigos católicos não encontraram ainda o seu lugar na Igreja “porque não os deixam encontrar o seu lugar”. Os abusos sexuais, a relação de Merton com as mulheres e o futuro próximo do Papa Francisco e do Sínodo são os temas da segunda parte da conversa. Nesta primeira, a teóloga fala também da intervenção política dos cristãos, da questão LGBTI e do lugar das mulheres. E, sobre este último tema e apesar de gostar muito do Papa, diz que lhe diria algumas coisas, se tivesse oportunidade.

7MARGENS – Escrevia numa crónica sobre o Sínodo católico que estamos num momento em que as mudanças se podem tornar evidentes. Que mudanças?

CRISTINA INOGÉS SANZ – O laicado tomou consciência de que há um antes e um depois deste sínodo, seja ele mais lento ou mais rápido, tomou consciência de que sabe pensar, tem voz para expressar o pensamento e o que diz é importante.
Isso já é uma grande mudança e um grande avanço. A palavra única do laicado era “ámen”. Ao que vinha de cima, o laicado dizia “ámen”, era a sua única forma de expressão.

7M – Mesmo se falamos 60 anos depois do Concílio Vaticano II…

Sim, inclusive agora a sua palavra é “ámen”. É verdade que sobretudo a fase diocesana do Sínodo [da Igreja Católica] criou essa consciência de que sabemos pensar, sabemos expressar o pensamento e que o que dizemos é importante.

Estamos conscientes de que em Outubro de 2024 não teremos uma Igreja sinodal, isso é impossível. Mas já teremos um pouco a consciência de que isso se poderá alcançar e de que há um antes e um depois deste Sínodo, isso é uma grande evidência.

7M – Será essa a evidência destas mudanças?

De momento, sim. Quem tenha lido o documento da fase continental, verá que saltaram as mesmas questões em todo o mundo; questões que muitas vezes pensamos que são de índole cultural, de uma parte do mundo, porque temos uma forma de vida determinada; mas de facto destacaram-se em todo o mundo. Isso realmente é um primeiro indício de que o Espírito voa com liberdade e que essa liberdade se manifesta numa ampla base do povo de Deus. Se o povo de Deus somos todos, há uma base ampla que é o laicado e que descobriu que as coisas importantes que tem para dizer coincidem em todo o mundo. Ou seja, há uma forma de pensamento que necessita de mudar – sem se impor – e expressar-se dessa maneira.

7M – Falamos de questões como o papel dos leigos, o papel da mulher na Igreja…

O lugar da mulher…

7M – Registo a correcção. Falamos ainda das questões morais, da administração económica, das questões LGBT, dos abusos sexuais… A partir deste quadro, como olha para o momento presente da Igreja?

O meu olhar parte de uma Europa que viveu o que viveu, vive o que vive e agora está a pagar as consequências de uma forma de vida muito concreta. Mas o curioso é que as mesmas inquietudes vêm de todo o mundo, o que nos deve levar a pensar que para lá de uma visão europeia, ocidental, há, no interior das pessoas, uma reflexão que leva a ver que as coisas não são o que têm de ser.

Essas reflexões plasmaram-se em todos os pontos falados. É muito interessante que num lugar de África, como o Lesoto, tenha aparecido como um clamor, dentro da própria Igreja, [a pergunta]: o que fazemos com as pessoas LGBTI, que de repente se manifestaram enquanto tal na nossa comunidade e que não sabemos como acolhê-las? Isso mostra que há um grau de reflexão, que não há uma recusa frontal porque se reconhece que não se sabe como acolher essas pessoas; portanto, pede-se ajuda sobre o que fazer com essas pessoas, que não se quer que se vão embora e que não querem abandonar a comunidade.

7M – De que modo isso a surpreendeu?

Isto pode levar-nos a reflectir porque não fizemos, por exemplo na Europa, esta reflexão. Continuamos a colocar palas perante a realidade LGBTI, [não conseguindo] que [essas pessoas] tenham uma vida normal na Igreja, como qualquer outra. Parece que as questões LGBTI são apenas relativas aos leigos, mas há pessoas LGBTI na vida religiosa, na vida sacerdotal, entre os cardeais, terá havido entre os papas mesmo que não nos tenhamos sabido, e terá havido santos, que não sabemos que eram LGBTI. Mas é uma realidade que está aí.

Só a forma como no Lesoto se colocou a questão, sem qualquer recusa, desafia-nos a nós, que cremos que conquistámos tudo o que era conquistável como direito. Na verdade, sofremos um retrocesso, porque há muita homofobia, muito latente, sobretudo na Igreja. Alguém [que queira ser] padre porque se confessa homossexual, tem uma de duas hipóteses: se confessa, é mandado embora; se mente, vai viver toda a sua vida reprimido e com medo de que alguém descubra e o possa chantagear. Isso já não se deveria admitir hoje.

7M – Algum tema mais?…

Claro: há ainda a transparência em todas as questões económicas ou a realidade da mulher na Igreja – somos 80 por cento da Igreja neste momento, de uma Igreja que não nos aceita plenamente. Mesmo em culturas em que a submissão da mulher não se questiona por ser algo tão cultural que nem se põe em causa, também apareceu o tema.

Essa realidade está aí e há que afrontá-la, simplesmente. O facto de se terem equacionado estas questões a nível mundial abre uma possibilidade de que tal realidade exista e não se possa ocultar nem negar. Já é muito importante reconhecer e falar sobre isso.

7M – Em várias sínteses, referia-se a gestão económica, dizendo que os leigos têm mais vocação para a fazer. A partir do documento da fase continental ou de outras sínteses que conhece, como olhar para o lugar dos leigos: ele não existe, apesar da doutrina do Concílio Vaticano II?

O facto de os leigos não encontrarem o seu lugar é porque não os deixam encontrar o seu lugar. É uma evidência que o clero não se prepara para a realidade da gestão económica, para viver tudo o que implica a responsabilidade de gerir os bens da paróquia, porque nem tudo é viver dos sacramentos e com os sacramentos; se não se conta com os leigos e se em muitas paróquias, por exemplo, não há um conselho económico, isso é uma das formas mais primárias e evidentes de abuso de poder. Onde acontece não haver controlo, pode suceder tudo.

Mas deve considerar-se, além disso, que o laicado tem um sacerdócio baptismal com o qual há que contar. E disso não se fala. Estamos pensando que soluções podemos procurar porque há falta de vocações e, [quando] chega a semana do seminário ou coisas do género, parece que os leigos só servimos para dar dinheiro. Em vez de fazer novenas para pedir vocações, vamos fazer novenas para ver o que nos diz o Espírito com a falta de vocações.

7M – E que diz?…

Temos sempre a mentalidade de vir o Espírito resolver-nos o problema. Não: o Espírito está a dar-nos muitas pistas sobre o que se passa. Vamos ver o que podemos fazer com a falta de vocações, que nos está a dizer, porventura, que repensemos a estrutura eclesial – digo eclesial, não eclesiástica, é preciso dar a volta completa – no sentido do sacerdócio baptismal, que pode ser vivido pelo conjunto do laicado, homens e mulheres. Mas há que lhes dar o seu espaço, uma formação adequada – que não tem de ser uma formação igual à do clero, porque então geraríamos muitíssimos mais problemas – e, sobretudo, fazer entender que o compromisso de fé de um leigo não está ligado à agenda do pároco, nem tem de passar pela paróquia. Tem de passar pelo compromisso de fé no mundo.

Neste momento, há muitíssimos cristãos com um compromisso sólido com a questão social e com a questão política, que estão fazendo um grande trabalho fora da estrutura eclesial. Sempre pensámos que colaborar com a Igreja era ser catequista, dedicar tempo à paróquia. Não, é colaborar com o Evangelho, primeiro.

7M – Mas tão pouco se debate, no interior da comunidade cristã, esse compromisso na política, nos sindicatos, nas associações…

Sim. Tenho alguns amigos – uns mais próximos, outros menos – num amplo espectro da política, não só na grande política de partidos, mas também em associações de vizinhos (que não deixam de ser política). É curioso que todos os que são crentes coincidem no mesmo: a Igreja anima muito a que nos comprometamos, que estejamos presentes. Mas quanto se dá esse passo e se entra na política, a comunidade desaparece. Porque não quer comprometer-se em apoiar, no caso de se passar algo. Que vínculo existe se não há apoio da comunidade?

7M – No Novo Testamento, São Paulo cita várias mulheres que deixara como líderes de comunidades. Devemos começar por ir às fontes, e à Bíblia em concreto, para buscar uma inspiração, para encontrar um lugar para as mulheres na Igreja?

As cartas de Paulo colocam-nos perante os problemas experimentados pelas comunidades, todos eles diferentes. Em Paulo há um paradoxo importante: ele refere claramente algumas mulheres que acolhiam nas suas casas, e que portanto eram líderes das comunidades que acolhiam. Mas ele apaga de cena uma personagem vital no Evangelho, à qual Jesus Cristo, real e directamente a ela, lhe concede o sacerdócio supremo, que é o anúncio da ressurreição: Maria Madalena.

Que ele nunca tinha ouvido falar de Maria Madalena é muito difícil de acreditar, porque deve ter sido um acontecimento tão importante que seria recordado durante muito tempo.

7M – Mas as fontes são importantes?…

As fontes bíblicas são apenas isso, uma fonte. O que tememos é, desde a fonte, situar hoje o cristianismo.

Estamos no século XXI, não somos os primeiros. Muitas realidades mudaram, mas nós temos medo. Agarramo-nos à religião, à norma, não à crença.

Deveríamos ser mais criativos porque a criatividade pastoral é um grande aliado. Porque é que temos duas versões do credo? Quando o cristianismo e a Igreja quiseram expandir-se, tiveram de passar pela Grécia e Roma e não negaram o que veio antes, mas adaptaram uma versão para que gregos e romanos a pudessem compreender. E o credo “longo” apareceu. Tratava-se de uma questão de adaptação à realidade.

O lugar da mulher na Igreja, que é dado pelo baptismo, permite-nos ser tão criativos como eles foram na adaptação do credo. E isso não irá destruir os fundamentos do cristianismo. Pelo contrário, permitirá que esteja mais presente no mundo real.

7M – Que síntese podemos então fazer, entre a inspiração bíblica e a actualidade sinodal?

A Igreja nasce laical e sinodal. A dimensão sinodal durou mais tempo, mas a laical perdeu-se muito cedo. E porque falo de “lugar”? Se falamos de “papel”, ele é outorgado sempre por alguém que crê poder ter poder sobre outrem, que se atribui esse poder. Neste caso, é o clero.

O lugar é dado pelo baptismo. Negar o lugar a uma pessoa baptizada é manipular a realidade da comunidade e privar a comunidade do amor, do contributo, da reflexão, ajuda, conselho dessa pessoa.

Através dos séculos e neste momento, as mulheres – apesar das diferenças que permanecem – já temos um estatuto bastante igual, mas na Igreja continuamos na Idade Média. E oxalá vivêssemos, as mulheres, na Idade Média, em que as mulheres eram muito mais livres na Igreja que neste momento, para poder trabalhar e colaborar nas tarefas de evangelização.

7M – Mas quando se fala deste tema, muitos dizem que essa é a tradição e que Jesus não teve mulheres como apóstolas. Como levar as pessoas a perceber, com o exemplo de Maria Madalena e das mulheres referidas por Paulo, que esse lugar vem desde o início e desde Jesus?

Há uma personagem, que é curioso como é “esquecida”: é a samaritana que se encontra com Jesus. Muitas vezes ficamos pelos maridos que ela tinha tido, isso é o que convém. Na segunda parte do encontro, Jesus diz-lhe para ir e contar [o que ouviu] à sua aldeia. Ela podia ter chegado ao seu povo e ter contado, fazendo-se ela o centro. Mas não, ela conta às pessoas o que Jesus lhe disse, retira-se do centro, dizendo aos outros: ide e vede, ide e falai com ele. Não é preciso que ela acompanhe permanentemente a Jesus, porque ele confia-lhe um ministério, que é o de ir contar [o que ouviu]. Ela afasta-se, não é o centro.

A Igreja, como se converteu em meta e perdeu a sua condição de caminho – que é o que sempre devia ser e que devia recuperar – manipula a história.

Deus criou-nos homem e mulher. No Evangelho de João está claríssimo que o Verbo se fez carne e que na carne de Jesus está assumida toda a carne humana, de todas as condições – homem, mulher, LGBTI, raças, tudo… Se não assumimos isso, não assumiremos nada e haverá sempre diferenças. Se cremos que Jesus, porque era homem, só escolhia homens – que ainda por cima não ordenou nenhum – e que os doze são a base do que vão a ser os seus continuadores e que só podem ser homens, aquela afirmação não é verdadeira.

7M – Estudou as beguinas medievais. Esse exemplo pode ser uma inspiração?

Estamos a viver um momento muito parecido não apenas com o das beguinas, mas de todos os movimentos depois chamados de pré-reformadores, que vão desde finais do século XII ao início do século XVI. Eles vão fazendo tentativa e erro: a Igreja persegue-os mas os que nascem a seguir tomam o que fizeram os anteriores e acrescentam novas questões básicas, como a aceitação das mulheres, a participação do laicado na celebração e na evangelização, com homens e mulheres em plano igual e, sobretudo, recuperar a centralidade da Palavra. Isto, que era próprio de todos os movimentos medievais, será recuperado por Lutero, que “inventa” poucas coisas na Reforma, se quisermos ser um pouco desapaixonados.

7M – E para hoje?…

Estes movimentos – e as beguinas em concreto – são muito válidos hoje, inclusive para a vida religiosa, que está buscando novas formas e novas maneiras de estar na sociedade. Sobretudo algumas mulheres que mostraram, naquela época, que não precisavam de depender de um homem – e não estamos a falar de um qualquer feminismo, estamos a falar de mulheres que se podiam manter, que demonstraram que evangelizavam sem mover-se no mundo eclesiástico, que tinham uma sólida preparação (e mesmo as que não a tinham, não eram rejeitadas, todas tinham o seu lugar dentro do movimento).

Essas mulheres têm de nos ensinar a profundidade da relação com Deus e – para lá de serem as mães de várias línguas europeias nascentes naquela época, assim consideradas pela ONU – são as predecessoras do que hoje conhecemos como pastoral da saúde, pastoral penitenciária, pastoral de educação. Geravam, à sua volta, espaços de acolhimento, de acompanhamento, de cuidado, de cura e eram muito aceites nas cidades. [Elas protagonizavam] movimentos urbanos, não eram como os monges e as monjas que se afastavam, estavam no centro das cidades, faziam um grande serviço à sociedade…

7M – E aos mais frágeis…

E aos mais frágeis, sempre. E tudo isso era valorizado. Essas mulheres podem ajudar-nos muito e se saíssem das típicas notas de rodapé dos manuais de história da Igreja onde normalmente se fala de um movimento ético feminino medieval, ajudaria a recuperar também um pouco de objectividade na história.

7M – Como leu a declaração recente do Papa sobre as mulheres, tendo em conta que, antes, ele dissera que era preciso encontrar um lugar para as mulheres, incluindo nos lugares de responsabilidade na Igreja?

Ele também já tinha dito que a questão da ordenação de mulheres está encerrada e isso não é verdade: por muito que seja magistério de João Paulo II, há muitíssimos exemplos na história em que um Papa disse coisas que depois outros desdisseram. Quando a questão se abrir – porque assim acontecerá –abrir-se-á tarde, mal e por necessidade, porque não somos capazes de ir valorizando e ir formando opinião.

Por outro lado, sublinhe-se o facto de [o Papa] ter criado uma segunda comissão para o estudo do diaconato feminino. O cristianismo de hoje não tem nada a ver com a Igreja e o cristianismo do primeiro século. Não temos de [fazer igual às] mulheres que viviam o diaconato no princípio do cristianismo, temos de ver como o vamos viver hoje. Vejamos o exemplo das mulheres da Amazónia e de muitas outras zonas, onde as mulheres realmente são diáconos “sem papéis”: exercem como tal, mas canonicamente não o são, porque não têm a nomeação canónica.

7M – O Papa pode mudar alguma coisa nesta matéria?

Eu quero muito ao Papa Francisco, gosto muito dos movimentos que ele faz para colocar o Evangelho no centro e para fazer certas mudanças. Mas também é certo que em algumas questões gosta muito de criar uma certa expectativa que depois não se cumpre. Por exemplo: nomeou mulheres para certas áreas importantes no Vaticano, como os Museus Vaticanos, que são dos mais importantes do mundo. No circuito dos grandes museus, causou assombro que tenha sido nomeada uma mulher, quando nunca houve nenhuma directora do Prado ou outros museus.

Isto é assim, mas também é verdade que lugares como esse são administrativos, não têm a força de um lugar deliberativo. Na hora da verdade, continua-se a não contar com a participação das mulheres. Eu gosto muito do Papa, mas se tivesse oportunidade dir-lhe-ia: uma coisa são os lugares de responsabilidade, mas o governo da Igreja continua nas mãos dos cardeais…


VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
À REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO E SUDÃO DO SUL
(Peregrinação Ecuménica de Paz no Sudão do Sul)
[31 de janeiro - 5 de fevereiro de 2023]

ENCONTRO COM OS JOVENS E OS CATEQUISTAS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Estádio dos Mártires (Kinshasa)
Quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Obrigado pela vossa amizade, a vossa dança e as vossas palavras! Estou feliz por ter podido fixar-vos nos olhos, saudar-vos e abençoar-vos, enquanto as vossas mãos levantadas para o céu faziam festa.

Agora quero pedir-vos para durante alguns momentos olhardes, não para mim, mas concretamente para as vossas mãos: abri as palmas das mãos e fixai nelas os olhos. Amigos, Deus colocou nas vossas mãos o dom da vida, o futuro da sociedade e deste grande país. Irmão, irmã, as tuas mãos parecem-te pequenas e frágeis, vazias e inaptas para tarefas tão grandes? Quero, porém, fazer-te notar uma coisa: todas as mãos são semelhantes, mas não há nenhuma igual a outra; ninguém tem mãos iguais às tuas. Por isso, tu és uma riqueza única, irrepetível e incomparável. Ninguém, na história, te pode substituir. Pergunta-te então: Para que servem estas minhas mãos? Para construir ou destruir, dar ou reter, amar ou odiar? Vê! Podes apertar a mão e fechá-la, torna-se um punho; ou podes abri-la e colocá-la à disposição de Deus e dos outros. Aqui está a opção fundamental, desde os tempos antigos, desde Abel que ofereceu com generosidade os frutos do seu trabalho, enquanto Caim levantou a mão contra o irmão e o matou (cf. Gn 4, 8). Jovem que sonhas com um futuro diferente, é das tuas mãos que nasce o amanhã; das tuas mãos, pode vir a paz que falta a este país. Mas, concretamente, como fazer? Quero sugerir-vos alguns «ingredientes para construir o futuro»: justamente cinco, que podeis associar aos dedos duma mão.

Ao polegar, o dedo mais próximo do coração, corresponde a oração, que faz pulsar a vida. Pode parecer uma coisa abstrata, distante da realidade concreta dos problemas. Mas a oração é o primeiro ingrediente, e o fundamental, porque sozinhos nada conseguimos fazer. Não somos omnipotentes e, quando alguém julga que o é, acaba por falhar miseravelmente. É como uma árvore desenraizada: mesmo que seja grande e robusta, sozinha não se aguenta de pé. Por isso mesmo, é preciso radicar-se na oração, na escuta da Palavra de Deus, que nos permite crescer cada dia em profundidade, dar fruto e transformar o ar poluído que respiramos em oxigénio vivificante. Para o conseguir, cada árvore precisa dum elemento simples e essencial: a água. Pois bem! A oração é «a água da alma»: é humilde, não se vê, mas dá vida. Quem reza, amadurece interiormente e sabe erguer o olhar para o Alto, lembrando-se de que foi feito para o Céu.

Irmão, irmã, há necessidade de oração, duma oração viva. Não te dirijas a Jesus como a um ser distante e estranho de quem se tem medo, mas como ao maior amigo, que deu a vida por ti. Conhece-te, confia em ti e ama-te, sempre. Se O contemplas suspenso na cruz para te salvar, compreendes quanto vales para Ele. E podes confiar-Lhe, colocando sobre a sua cruz as tuas cruzes, os teus medos, as tuas preocupações. Abraçá-los-á; já o fez há dois mil anos, e aquela cruz, que hoje suportas, já fazia parte da d’Ele. Portanto, não tenhas medo de tomar o crucifixo nas mãos e apertá-lo ao peito, de derramar as tuas lágrimas por Jesus. E não te esqueças de fixar o seu rosto, o rosto dum Deus jovem, vivo, ressuscitado! Sim, Jesus venceu o mal; fez, da cruz, a ponte para a ressurreição. Por isso, cada dia levanta as mãos para Ele a fim de O louvar e bendizer; grita-Lhe as esperanças do teu coração, confia-Lhe os segredos mais íntimos da vida: a pessoa que amas, as feridas que guardas dentro, os sonhos que tens no coração. Fala-Lhe do teu bairro, dos vizinhos, dos professores, dos companheiros, dos amigos e colegas; do teu país. Deus gosta desta oração viva, concreta, feita com o coração. Permite-Lhe intervir, entrar nos sulcos da vida dum modo especial, ou seja, com a sua «força de paz». Esta tem um nome; sabeis quem é? É o Espírito Santo, Aquele que consola e dá vida. É o motor da paz, é a verdadeira força de paz. Por isso mesmo, a oração é a arma mais poderosa que existe. Transmite-te o conforto e a esperança de Deus. Abre-te sempre novas possibilidades e ajuda-te a superar os medos. É verdade! Quem reza vence o medo e assume o próprio futuro. Acreditais nisto? Quereis escolher a oração como vosso segredo, como água da alma, como única arma a trazer convosco, como companheira de viagem todos os dias?

Agora fixemos o segundo dedo, o indicador. Com ele, indicamos algo aos outros. Os outros, a comunidade: aqui está o segundo ingrediente. Amigos, não deixeis que a vossa juventude seja arruinada pela solidão e o isolamento. Imaginai-vos sempre juntos, e sereis felizes, porque a comunidade é o caminho para estar bem connosco mesmos, para ser fiéis à própria vocação. As escolhas individualistas, pelo contrário, no início parecem aliciadoras, mas depois deixam dentro apenas um grande vazio. Pensai nas drogas: escondes-te dos outros, da vida verdadeira, para te sentires omnipotente; e, no fim, encontras-te privado de tudo. Mas pensai também na dependência do ocultismo e da feitiçaria, que enredam nas grinfas do medo, da vingança e da raiva. Não vos deixeis fascinar por falsos paraísos egoístas, construídos sobre aparências, ganhos fáceis ou religiosidades distortas.

E guardai-vos da tentação de apontar o dedo contra alguém, de excluir o outro por ser de origem diferente da vossa; guardai-vos do regionalismo, do tribalismo, que parecem reforçar-vos no vosso grupo quando, pelo contrário, representam a negação da comunidade. Sabeis como acontece: primeiro, crê-se nos preconceitos sobre os outros, depois justifica-se o ódio e em seguida a violência, no fim encontramo-nos no meio da guerra. Mas tu – pergunto – já terias falado com pessoas dos outros grupos ou sempre estiveste fechado no teu? Terias já escutado as histórias dos outros, debruçando-te sobre as suas tribulações? Claro, é mais fácil condenar alguém do que compreendê-lo; mas o caminho que Deus indica para construir um mundo melhor passa pelo outro, pelo conjunto, pela comunidade. É fazer Igreja, alargar os horizontes, ver em cada um o meu próximo, cuidar do outro. Vês alguém sozinho, atribulado, negligenciado? Aproxima-te dele, não para lhe fazeres ver como és bom, mas para lhe dar o teu sorriso e oferecer-lhe a tua amizade.

David, disseste que vós jovens quereis, e justamente, estar conectados com os outros, mas que as redes sociais frequentemente vos confundem. É verdade! O mundo virtual não é suficiente, não nos podemos contentar em interagir com pessoas distantes ou mesmo falsas. A vida real não se toca com um dedo no ecrã. É triste ver jovens que passam horas diante dum telemóvel: depois de largarem aquele espelho, se olhares para o seu rosto, verás que não sorri, o olhar tornou-se cansado e enjoado. Nada e ninguém pode substitui a força de estar juntos, a luz dos olhos, a alegria da partilha! É essencial falar e ouvirmo-nos: não vos contenteis com o ecrã onde cada um procura o que lhe interessa; em vez disso descobri cada dia a beleza de vos deixardes maravilhar pelos outros, as suas histórias e as suas experiências.

Tentemos agora experimentar o que significa fazer comunidade. Durante alguns momentos, por favor, dai a mão a quem está ao vosso lado. Senti-vos uma única Igreja, um único Povo. Sente que o teu bem depende do bem do outro, que é multiplicado se for posto em conjunto. Sente-te guardado pelo irmão e pela irmã, por alguém que te aceita assim como és e quer cuidar de ti. E sente-te responsável pelos outros, parte viva duma grande rede de fraternidade, onde nos apoiamos reciprocamente e tu és indispensável. Sim! És indispensável e responsável pela tua Igreja e pelo teu país; fazes parte duma história maior, que te chama a ser protagonista: criador de comunhão, campeão de fraternidade, corajoso sonhador dum mundo mais unido.

Nesta aventura, não estais sozinhos; apoia-vos a Igreja inteira, espalhada por todo o mundo. Trata-se dum desafio difícil, mas possível. E tendes também amigos que, das bancadas do Céu, vos impelem para estas metas. Sabeis quem são? Os santos. Penso, por exemplo, no Beato Isidoro Bakanja, na Beata Maria Clementina Anuarita, em São Kizito e nos seus companheiros: testemunhas da fé, mártires que nunca cederam à lógica da violência, mas confessaram, com a vida, a força do amor e do perdão. Os seus nomes, escritos no Céu, ficarão na história, enquanto o fechamento e a violência sempre revertem em detrimento de quem os comete. Sei que já várias vezes demonstrastes saber erguer-vos para defender, mesmo à custa de grandes sacrifícios, os direitos humanos e a esperança duma vida melhor para todos no país. Agradeço-vos por isso e honro a memória de tantos que perderam a vida ou a saúde por estas nobres causas. E encorajo-vos: avançai juntos, sem medo, como comunidade!

Oração, comunidade… E chegamos ao dedo central, que se alonga um pouco mais além dos outros para de certo modo nos lembrar uma coisa imprescindível. É o ingrediente fundamental para um futuro que esteja à altura das vossas expectativas. É a honestidade! Ser cristão é testemunhar Cristo. Ora o primeiro modo de o fazer é viver retamente, como Ele quer. Isto significa não se deixar enredar nos laços da corrupção. O cristão só pode ser honesto, senão trai a sua identidade. Sem honestidade, não somos discípulos e testemunhas de Jesus; somos pagãos, idólatras que se adoram a si próprios em vez de Deus, que se servem dos outros em vez de servir os outros.

Mas – pergunto – como se vence o câncer da corrupção, que parece expandir-se sem nunca parar? São Paulo ajuda-nos, com uma frase simples e genial, que podeis repetir até a recordar de cor. É esta: «Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21). Não te deixes vencer pelo mal: não vos deixeis manipular por indivíduos ou grupos que procuram servir-se de vós para manter o vosso país na espiral da violência e da instabilidade, para continuarem a controlá-lo sem consideração por ninguém. Mas vence o mal com o bem: sede vós os transformadores da sociedade, os conversores do mal em bem, do ódio em amor, da guerra em paz. Quereis sê-lo? Se quiserdes, é possível… E sabeis porquê? Porque cada um de vós tem um tesouro que ninguém vos pode roubar: são as vossas opções. Sim! Tu és o resultado das opções que realizas, e sempre podes escolher a coisa certa a fazer. Somos livres para escolher: não permitais que a vossa vida seja arrastada pela torrente poluída, não vos deixeis levar como tronco seco num rio sujo. Indignai-vos, sem nunca ceder aos aliciamentos persuasivos, mas envenenados, da corrupção.

Vem-me à mente o testemunho dum jovem como vós, Floribert Bwana Chui: há quinze anos – contava ele apenas 26 – foi morto em Goma por ter bloqueado a passagem de alimentos estragados, que teriam danificado a saúde das pessoas. Poderia deixar correr, não o teriam descoberto e ainda ganharia qualquer coisa naquilo. Mas, como cristão, rezou, pensou nos outros e escolheu ser honesto, dizendo não à imundície da corrupção. Isto é conservar as mãos limpas, enquanto as mãos, que ganham em tráficos ilícitos, ficam ensanguentadas. Se alguém te entregar um envelope prometendo favores e riquezas, não caias na armadilha, não te deixes enganar, não te deixes engolir pelo pântano do mal. Não te deixes vencer pelo mal, não acredites nas tramoias obscuras do dinheiro, que te fazem precipitar na noite. Ser honesto é brilhar como de dia, é espalhar a luz de Deus, é viver a bem-aventurança da justiça: vence o mal com o bem!

Passamos ao quarto dedo: o anular. Nele se colocam as alianças nupciais. Mas, se pensarmos bem, o anular é também o dedo mais frágil, aquele que tem mais dificuldade para se levantar. Lembra-nos que as grandes metas da vida, a começar pelo amor, passam por fragilidades, canseiras e dificuldades. Devem ser vividas, enfrentadas com paciência e confiança, sem nos sobrecarregarmos com problemas inúteis, como, por exemplo, transformar o valor simbólico do dote num valor quase de mercado. Mas nas nossas fragilidades, nas crises, qual é a força que nos faz continuar? O perdão. Pois perdoar quer dizer saber recomeçar. Perdoar não significa esquecer o passado, mas não se resignar com o facto de poder repetir-se. É mudar o curso da história. É levantar quem caiu. É aceitar a ideia de que ninguém é perfeito e que todos – e não só eu – têm o direito de recomeçar.

Amigos, para criar um futuro novo, precisamos de dar e receber o perdão. É o que faz o cristão: não se limita a amar aqueles que o amam, mas sabe interromper, com o perdão, a espiral das vinganças pessoais e tribais. Penso no Beato Isidoro Bakanja, um irmão vosso que foi torturado longamente porque não renunciara a testemunhar a sua piedade e propusera o cristianismo a outros jovens. Nunca cedeu a sentimentos de ódio e, ao dar a vida, perdoou ao seu carrasco. Quem perdoa leva Jesus mesmo aonde não é acolhido, introduz amor onde o amor é rejeitado. Quem perdoa constrói o futuro. Mas como tornar-se capaz de perdão? Deixando-se perdoar por Deus. Sempre que nos confessamos, somos os primeiros a receber em nós aquela força que muda a história. Da parte de Deus, somos perdoados sempre e gratuitamente; quanto a nós, é-nos dito – como se lê no Evangelho – «vai e faz tu também o mesmo» (Lc 10, 37). Caminha, pondo fim ao rancor, sem veneno, sem ódio. Caminha, assumindo o estilo de Deus, o único que renova a história. Caminha e acredita que, com Deus, sempre se pode recomeçar, sempre se pode voltar a partir, sempre se pode perdoar!

Oração, comunidade, honestidade, perdão. Chegamos ao último dedo: o mindinho. Tu poderias dizer: sou pequeno, e o bem que possa fazer não passa duma gota no oceano. Mas é precisamente a pequenez, o fazer-se pequenino que atrai Deus. Há uma palavra-chave neste sentido: serviço. Quem serve, faz-se pequenino. Como uma semente minúscula que parece desaparecer na terra e, em vez disso, dá fruto. Segundo Jesus, o serviço é o poder que transforma o mundo. Deste modo, a simples pergunta que poderias até atar ao dedo, para não te esqueceres de a fazer cada dia, é esta: Eu, que posso fazer pelos outros? Ou seja: como posso servir a Igreja, a minha comunidade, o meu país? Olivier, disseste-nos que nalgumas regiões isoladas sois vós, os catequistas, que servis diariamente a comunidade dos fiéis e que isto, na Igreja, deve ser «tarefa de todos». É verdade! E é belo servir os outros, cuidar deles, fazer algo gratuitamente, como Deus faz connosco. Quero agradecer-vos, queridos catequistas: para muitas comunidades, sois vitais como a água! Fazei-as crescer sempre com a clareza da vossa oração e do vosso serviço. Servir não é ficar de braços cruzados, é mobilizar-se. Muitos movem-se, porque seduzidos pelos próprios interesses; vós não tendes medo de vos mobilizar em prol do bem, investir no bem, no anúncio do Evangelho, preparando-vos com paixão e adequadamente, dando vida a projetos organizados e de longo prazo. E não tendes medo de fazer ouvir a vossa voz, porque, nas vossas mãos, está o futuro e também o presente. Vós estais mesmo no ponto central do presente!

Amigos, deixei-vos cinco conselhos para identificar prioridades no meio das inúmeras e persuasivas vozes que circulam. Muitas vezes na vida, como na circulação estradal, é a desordem que cria engarrafamentos e inúteis bloqueios, que fazem perder tempo e energias e alimentam a cólera. Ao contrário, faz-nos bem, mesmo na confusão, dar ao coração e à vida pontos firmes, direções estáveis, para iniciar um futuro diferente, sem se deixar levar pelos ventos do oportunismo. Queridos amigos, jovens e catequistas, agradeço-vos pelo que sois e fazeis: pelo vosso entusiasmo, a vossa luz e a vossa esperança. Quero dizer-vos uma última coisa: nunca desanimeis! Jesus confia em vós e nunca vos deixa sozinhos. A alegria que hoje tendes, guardai-a e não deixeis que se apague. Como dizia Floribert aos seus amigos, quando estavam deprimidos: «Pega no Evangelho e lê-o! Consolar-te-á, dar-te-á alegria». Juntos, saí do pessimismo, que paralisa. A República Democrática do Congo espera, das vossas mãos, um futuro diverso, porque o futuro está nas vossas mãos. O vosso país voltará a ser, graças a vós, um jardim fraterno, o coração de paz e liberdade da África! Obrigado!


POR UMA IGREJA SINODAL

Em Setúbal, ensaiamos uma Igreja de braços abertos… como Cristo

João Marques, diocese de Setúbal | Jan 18, 2023, in Ecclesia

O tempo que vivemos entusiasma os nossos jovens.

Num tempo de crises (financeira, sanitária, sociocultural, energética, bélica e até religiosa), acolher a Jornada Mundial da Juventude, em 2023, é uma graça e uma oportunidade de uma dimensão difícil de alcançar aos nossos olhos terrenos.

Eu próprio tenho feito um esforço para entender esta graça de Deus. Em 2019, quando se anunciou a realização da JMJ em Lisboa (na altura para 2022, entretanto adiada para 2023 devido à pandemia), não imaginava as voltas que as nossas vidas iriam dar. Não só pelos desafios do mundo, mas também pelos desafios que são colocados a nós, jovens portugueses católicos.

Organizar uma Jornada Mundial da Juventude não é só organizar um evento. A JMJ Lisboa 2023 é um potencial acontecimento transformador para a vida da Igreja, em Portugal e no Mundo. É a primeira jornada totalmente feita para jovens nativos digitais. É a primeira jornada a colocar no terreno o Sínodo realizado em 2018, sobre os jovens, a fé e o discernimento vocacional, que convida a escutar os jovens e a colocá-los como agentes ativos da vida da Igreja. É a jornada da “Laudato Si”, da “Fratelli Tutti” e da “Economia de Francisco”. É a primeira jornada sinodal. É a jornada que convida os jovens a levantarem-se, a despertarem do alheamento e da autorreferência, a irem ao encontro de Cristo vivo e a testemunharem a alegria desse encontro.

Os jovens estão cá

Tenho sentido, nos muitos contactos que tenho feito com as realidades juvenis da Diocese de Setúbal, que os jovens acolhem entusiasticamente o seu papel nesta Igreja em transformação. Durante o mês de novembro, milhares de jovens (e não só) vibraram, rezaram, emocionaram-se e peregrinaram com os Símbolos da Jornada Mundial da Juventude (a Cruz Peregrina e o ícone mariano “Salus Populi Romani”). Alguns, quem sabe, até iniciaram um caminho de conversão.

Muitos jovens foram a voz e as mãos desta peregrinação, foram o rosto de Cristo e de Maria juntos dos mais frágeis, das periferias, daqueles que não procuram mas que desejam ser encontrados por Jesus. Concretizada com a ajuda de todos, tivemos uma peregrinação dos símbolos sobretudo pensada por jovens que sentiam o ardor missionário e a necessidade de partilhar com outros a alegria de ser Igreja.

Dizia uma jovem, em referência à celebre frase, que “juntos somos mais fortes, mas com Cristo somos imparáveis!”

O que vejo, oiço e sinto é que os jovens estão cá. Estão cá para transformar e para desinstalar. Para aprender e para ensinar, com humildade. Estão cá para construir uma Igreja de portas abertas, do século XXI mas que não esquece a sua história e tradição. Uma Igreja que quer uma relação viva, alegre, profunda e autêntica de Jesus com a sociedade em que se insere.

Ser Igreja de Acolhimento na JMJ Lisboa 2023

Sendo uma Diocese de Acolhimento da JMJ Lisboa 2023, a Diocese de Setúbal tem uma responsabilidade acrescida pois receberá muitos dos milhares de peregrinos que chegarão de todo o mundo entre 1 e 6 de agosto. São jovens, com as suas comunidades e os seus párocos, que estão a preparar este acolhimento nas suas múltiplas vertentes (voluntários, espaços de acolhimento, famílias de acolhimento, divulgação, receção de peregrinos e muitas outras).

Este é um outro desafio para a nossa Igreja: ser uma Igreja de Acolhimento. Nestes dias, em Setúbal, ensaiamos uma Igreja de braços abertos… como Cristo. E não me refiro apenas aos peregrinos da Jornada Mundial da Juventude.

Refiro-me ao nosso novo bispo, por quem esperamos e rezamos.

Refiro-me a todos, sem exceção, no dia a dia, especialmente aos que vivem mais afastados de Jesus e que vivem fora do padrão de valores cristãos. Também aqui, os jovens têm um papel importante: ajudar a acolher todos, sem julgamento, com um sorriso, com a Palavra e com o amor que emana do Espírito Santo.

A seis meses da Jornada Mundial da Juventude, temos o desafio de apresentar esta proposta de Igreja a todos, pois tão depressa não voltaremos a ter esta oportunidade, tão perto de nós.

Na despedida dos Símbolos na nossa Diocese, dizia um jovem: “Nós temos o desafio de trazer todos, e de fazê-los levantar, tentarem, experimentarem algo novo. Todas as pessoas de fora, com o nosso esforço, vão conseguir levantar-se e vão perceber que mesmo que não seja algo para eles é algo que é bom para nós e também é bom para eles”.

É este o desafio: convidar todos os jovens, e também os menos jovens, a fazer este caminho connosco. A organização da JMJ Lisboa 2023 conta com todos: os jovens, e também os menos jovens, em especial para apoiar no acolhimento que é a nossa missão, a nossa responsabilidade e a nossa prioridade pastoral.

Levantemo-nos apressadamente! Nossa Senhora da Visitação, rogai por nós!

João Marques, Coordenador do Comité Organizador Diocesano de Setúbal da JMJ Lisboa 2023


POR UMA IGREJA SINODAL

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
À CÚRIA ROMANA NA APRESENTAÇÃO DE VOTOS NATALÍCIOS

Sala das Bênçãos
Quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Queridos irmãos e irmãs!

1. O Senhor concede-nos, uma vez mais, a graça de celebrar o mistério do seu nascimento. Cada ano, aos pés do Menino deitado na manjedoura (cf. Lc 2, 12), temos a possibilidade de olhar a nossa vida sob esta luz especial: não é a luz da glória deste mundo, mas «a Luz verdadeira, que (…) a todo o homem ilumina» (Jo 1, 9). Na humildade do Filho de Deus que desce à nossa condição humana, temos uma escola de adesão à realidade. Assim como Ele escolhe a pobreza, que não se reduz a mera ausência de bens, mas é essencialidade, assim também cada um de nós é chamado a voltar ao essencial da própria vida, para deitar fora tudo o que é supérfluo e que pode tornar-se um impedimento no caminho da santidade. E este caminho de santidade não se há de trocar por nada.

2. Mas é importante ter claro que, ao examinar a própria existência ou o tempo passado, se deve tomar sempre como ponto de partida a memória do bem. Com efeito, só quando estamos conscientes do bem que o Senhor nos fez é que podemos também dar nome ao mal, que praticamos ou padecemos. A noção da nossa pobreza esmagar-nos-ia, se não estivesse acompanhada pela consciência do amor de Deus. Neste sentido, a atitude interior, a que deveremos dar mais importância, é a gratidão.

Para nos explicar em que consiste a gratidão, o Evangelho narra-nos o caso dos dez leprosos que foram, todos, curados por Jesus, mas só um regressou para agradecer: um samaritano (cf. Lc 17, 11-19). A este homem, além da cura física, o ato de agradecimento obteve-lhe a salvação total (cf. 17, 19). O bem encontrado, que Deus lhe concedeu, não se detém à superfície, mas toca o coração. Assim, sem a prática constante da gratidão, acabaríamos elaborando apenas a lista das nossas quedas e deixaríamos na escuridão o que mais importa, isto é, as graças que o Senhor nos concede cada dia.

3. Aconteceram muitas coisas neste último ano, e queremos, antes de mais nada, agradecer ao Senhor por todos os benefícios que nos concedeu. E, entre todos estes benefícios, queira Deus que se conte também o da nossa conversão. Esta nunca é um discurso acabado. A pior coisa que nos pode acontecer é pensar que já não precisamos de conversão quer a nível pessoal quer comunitário.

Converter-se é aprender a tomar a sério cada vez mais a mensagem do Evangelho, procurando pô-la em prática na nossa vida. Não é simplesmente manter-se longe do mal, mas praticar todo o bem possível: isto é converter-se! Perante o Evangelho, permanecemos sempre como crianças necessitadas de aprender. Presumir que já aprendemos tudo faz-nos cair no orgulho espiritual.

Em 2022, completaram-se sessenta anos do início do Concílio Vaticano II. E este, que foi senão um grande tempo de conversão para toda a Igreja? A propósito, dizia São João XXIII: «Não é o Evangelho que muda, somos nós que começamos a compreendê-lo melhor». A conversão, que o Concílio nos ofereceu, foi a tentativa de compreender melhor o Evangelho, torná-lo atual, vivo e operante neste momento histórico.

E assim – como, aliás, já acontecera mais vezes na história da Igreja – também na nossa época nos sentimos, como comunidade de crentes, chamados à conversão. E este itinerário está longe de terminar. A reflexão atual sobre a sinodalidade da Igreja nasce, precisamente, da convicção de que o percurso de compreensão da mensagem de Cristo não tem fim e desafia-nos sem cessar.

O contrário da conversão é o fixismo, ou seja, a sub-reptícia convicção de não precisar de qualquer nova compreensão do Evangelho. Trata-se do erro de querer cristalizar a mensagem de Jesus numa forma única e sempre válida; ao passo que a forma deve poder sempre mudar a fim de a substância permanecer sempre a mesma. A verdadeira heresia não consiste apenas em pregar outro Evangelho, como nos lembra Paulo (cf. Gal 1, 9), mas também em deixar de o traduzir nas linguagens e formas contemporâneas, como fez precisamente o Apóstolo dos Gentios. Conservar a mensagem de Cristo significa mantê-la viva, não enclausurá-la.

4. O verdadeiro problema, que muitas vezes esquecemos, é que a conversão não apenas nos torna cientes do mal e faz-nos escolher o bem, mas ao mesmo tempo leva o mal a evoluir, a tornar-se cada vez mais insidioso, a disfarçar-se sob novas formas para termos dificuldade em o reconhecer. É uma verdadeira luta. O tentador volta sempre, e volta travestido.

Jesus, no Evangelho, usa uma comparação que nos ajuda a compreender esta obra que é feita de tempos e modos diferentes: «Quando um homem forte e bem armado guarda a sua casa, os seus bens estão em segurança; mas, se aparece um homem mais forte e o vence, tira-lhe as armas em que confiava e distribui os seus despojos» (Lc 11, 21-22). O nosso primeiro grande problema é confiarmos demais em nós mesmos, nas nossas estratégias, nos nossos programas. É o espírito pelagiano, de que já falei várias vezes. Assim, alguns falhanços acabam por ser uma graça, porque nos lembram que não devemos confiar em nós próprios, mas apenas no Senhor. Algumas quedas, mesmo como Igreja, são um grande apelo a colocar de novo Cristo no centro. Pois, «quem não está comigo está contra Mim, e quem não junta comigo, dispersa» (Lc 11, 23). É tão simples!

Queridos irmãos e irmãs, é demasiado pouco denunciar o mal, inclusive aquele que se esconde entre nós. O que se deve fazer à vista dele, é decidir-se por uma conversão. A simples denúncia pode dar-nos a ilusão de termos resolvido o problema, mas na realidade aquilo que conta é realizar mudanças que nos ponham na condição de não mais nos deixarmos enclausurar pelas lógicas do mal, que muitas vezes são lógicas mundanas. Neste sentido, uma das virtudes mais úteis que havemos de praticar é a da vigilância. Jesus descreve a necessidade desta atenção a nós mesmos e à Igreja – a necessidade da vigilância – com um exemplo elucidativo: «Quando um espírito maligno sai dum homem – diz Jesus –, vagueia por lugares áridos em busca de repouso; e, não o encontrando, diz: “Vou voltar para a minha casa donde saí”. Ao chegar, encontra-a varrida e arrumada. Vai, então, e toma consigo outros sete espíritos piores do que ele; e, entrando, instalam-se ali. E o estado final daquele homem torna-se pior do que o primeiro» (Lc 11, 24-26). A nossa primeira conversão repõe uma certa ordem: o mal, que individuamos e tentamos erradicar da nossa vida, afasta-se efetivamente de nós; mas seria ingénuo pensar que vai ficar longe por muito tempo. Na realidade, pouco depois volta a apresentar-se-nos sob uma nova roupagem. Se antes aparecia rude e violento, agora, ao invés, comporta-se de forma mais elegante e educada. E assim temos necessidade mais uma vez de o individuar e desmascarar. São – perdoai-me a expressão – os «demónios educados»: entram com educação, sem me aperceber. Só a prática diária do exame de consciência é que nos pode fazer dar conta disso. Daqui se vê como é importante o exame de consciência para velar pela casa.

No século XVII – por exemplo – deu-se o conhecido caso das monjas de Port Royal. Uma das suas abadessas, Madre Angélica, começara bem: com grande «carisma», reformara-se a si mesma e ao mosteiro, afastando da clausura até os pais. Era uma mulher cheia de talento, nascida para governar, mas depois tornou-se a alma da resistência jansenista, mostrando um fechamento intransigente inclusive diante da autoridade eclesiástica. Dizia-se dela e das suas monjas: «puras como anjos, orgulhosas como demónios». Tinham expulso o demónio, mas depois este voltou sete vezes mais forte e, sob a roupagem da austeridade e do rigor, trouxera rigidez e a presunção de serem melhores que os outros. Volta sempre: o demónio, expulso, volta; travestido, ma volta. Estejamos atentos!

5. No Evangelho, Jesus narra muitas parábolas dirigidas sobretudo a pessoas bem-pensantes, a escribas e fariseus, com a intenção de pôr a descoberto o engano de se sentirem justos e desprezarem os outros (cf. Lc 18, 9). Por exemplo, nas chamadas parábolas da misericórdia (cf. Lc 15), narra não só os casos da ovelha perdida e do filho mais novo daquele pai infeliz, que se vê tratado como morto precisamente por este filho; são histórias que nos lembram que o primeiro modo de pecar é partir de casa, perder-se, fazer coisas claramente erradas. Mas, nas referidas parábolas, Jesus fala também da dracma perdida e do filho mais velho, com uma lição elucidativa: podemo-nos perder também em casa, como no caso da moeda daquela mulher; e é possível viver infeliz, mesmo permanecendo formalmente no recinto do próprio dever, como acontece ao filho mais velho do pai misericordioso. Se é fácil, para quem sai, dar-se conta da distância, quem fica em casa tem dificuldade para se aperceber de quanto se viva no inferno: dificuldade essa, resultante da convicção de que somos apenas vítimas, tratadas injustamente pela autoridade constituída e, em última análise, pelo próprio Deus. Quantas vezes acontece isto, aqui em casa.

A todos nós, queridos irmãos e irmãs, terá sucedido perder-se como aquela ovelha ou distanciar-se de Deus como o filho mais novo. São pecados que nos humilharam e por isso mesmo, por graça de Deus, conseguimos enfrentá-los sem evasivas. Mas a grande atenção que se nos exige neste momento da nossa existência está ligada ao facto de a nossa vida atual se desenrolar formalmente em casa, dentro dos muros da instituição, ao serviço da Santa Sé, no próprio coração do corpo eclesial; e, por isso mesmo, podemos cair na tentação de pensar que nos encontramos em segurança, somos melhores, já não devemos converter-nos.

Corremos mais perigo do que todos os outros, porque nos encontramos insidiados pelo «demónio educado», que vem sem fazer rumor, mas trazendo flores. Desculpai-me, irmãos e irmãs, se às vezes digo coisas que podem soar duras e fortes, não é por não acreditar no valor da amabilidade e da ternura, mas porque é bom reservar as carícias para os extenuados e oprimidos, e encontrar a coragem de «afligir os consolados» – como gostava de dizer o Servo de Deus D. Tonino Bello –, porque às vezes a sua consolação não é um dom do Espírito, mas engano do demónio.

6. Por fim gostaria de reservar uma última palavra para o tema da paz. Entre os títulos que o profeta Isaías atribui ao Messias, temos o de «Príncipe da Paz» (9, 5). Nunca sentimos, como neste momento, tão grande desejo de paz! Penso na martirizada Ucrânia e também em tantos conflitos que estão ocorrendo em várias partes do mundo. A guerra e a violência são sempre um falimento. A religião não se deve prestar para alimentar conflitos. O Evangelho é sempre Evangelho da paz e não se pode, em nome de Deus algum, declarar «santa» uma guerra.

Onde reinam morte, divisão, conflito, sofrimento inocente, lá podemos apenas reconhecer Jesus crucificado. E, neste momento, gostava que o pensamento de todos nós se voltasse precisamente para aqueles que mais sofrem. A isto mesmo nos podem ajudar as palavras de Dietrich Bonhoeffer, que assim escrevia do cárcere onde estava preso: «Vendo a realidade duma perspetiva cristã, não pode constituir um particular problema o facto de se passar o Natal na cela duma prisão. Provavelmente muitos, nesta casa, celebrarão um Natal mais rico de significado e mais autêntico do que acontece lá onde, desta Festa, se conserva só o nome. Um prisioneiro compreende melhor do que ninguém que miséria, sofrimento, pobreza, solidão, desamparo e culpa têm, aos olhos de Deus, um significado completamente diferente do dos juízos dos homens; que Deus volta o olhar precisamente para aqueles de quem os homens costumam afastá-lo; que Cristo nasceu num estábulo, porque não encontrara lugar na hospedaria; tudo isto, para um prisioneiro, é verdadeiramente uma feliz notícia» (Resistenza e resa, Cinisello Balsamo – Milão, 1988, 324).

7. Queridos irmãos e irmãs, a cultura da paz não se constrói apenas entre os povos e entre as nações; começa no coração de cada um de nós. Enquanto sofremos com o embravecer de guerras e violências, podemos e devemos dar a nossa contribuição para a paz, procurando extirpar do próprio coração toda a raiz de ódio e ressentimento contra os irmãos e irmãs que vivem junto de nós. Na Carta aos Efésios, lemos estas palavras (que encontramos também na Hora de Completas): «Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade. Sede, antes, bondosos uns para com os outros, compassivos; perdoai-vos mutuamente, como também Deus vos perdoou em Cristo» (4, 31-32). Podemos interrogar-nos: Quanta aspereza há no nosso coração? O que é que a alimenta? Donde nasce a indignação que muitas vezes cria distância entre nós e alimenta cólera e ressentimento? Porque é que a maledicência, em todas as suas declinações, se torna a única maneira que adotamos para falar da realidade?

Se é verdade que queremos que o clamor da guerra cesse deixando lugar à paz, então cada um comece por si mesmo. São Paulo diz-nos claramente que a benevolência, a misericórdia e o perdão são o remédio que temos para construir a paz.

A benevolência é escolher sempre a modalidade do bem para nos relacionarmos entre nós. Não existe só a violência das armas, mas também a violência verbal, a violência psicológica, a violência do abuso de poder, a violência oculta das murmurações que fazem tão mal e destroem imenso. À vista do Príncipe da Paz que vem ao mundo, deponhamos toda a arma de qualquer género. Cada um não se aproveite da própria posição e função para mortificar o outro.

A misericórdia consiste em aceitar que o outro possa ter também os seus limites. Também neste caso é justo admitir que pessoas e instituições, precisamente por serem humanas, são limitadas. Uma Igreja pura para os puros é apenas o renascimento da heresia cátara. Se não fosse assim, o Evangelho e a Bíblia em geral não nos teriam contado limitações e defeitos de muitos que hoje reconhecemos como santos.

Finalmente o perdão é conceder sempre uma nova possibilidade, ou seja, compreender que só por tentativas se consegue ser santo. É assim que Deus procede com cada um de nós: sempre nos perdoa, sempre nos põe de pé e dá ainda outra possibilidade. E deve ser assim entre nós. Irmãos e irmãs, Deus nunca Se cansa de perdoar, somo nós que nos cansamos de pedir perdão.

Toda a guerra, para ser extinta, precisa de perdão; caso contrário, a justiça torna-se vingança, e o amor acaba reconhecido apenas como uma forma de fraqueza.

Deus fez-Se criança; e esta criança, tendo crescido, deixou-Se pregar na cruz. Não há realidade mais frágil do que um homem crucificado e contudo, naquela fragilidade, manifestou-se a omnipotência de Deus. No perdão, opera sempre a omnipotência de Deus. Assim, que as prendas deste Natal sejam a gratidão, a conversão e a paz!

A todos desejo um feliz Natal! E uma vez mais peço para não vos esquecerdes de rezar por mim. Obrigado!


POR UMA IGREJA SINODAL

As surpresas e perguntas de Susan Reynolds

“Será que a Igreja quer ter as mulheres como aliadas?”

7Margens | 1 Dez 2022

O instrumento de trabalho que é o Documento para a Fase Continental (DEC) do Sínodo sobre a Sinodalidade da Igreja Católica apresenta um apelo muito vincado a repensar o papel das mulheres, com a particularidade de esse apelo ser um tópico que vem das mais diferentes partes do mundo e não apenas dos países ocidentais do hemisfério Norte.

A leitura é feita por Susan Bigelow Reynolds, professora de Estudos Católicos na Escola de Teologia da Universidade de Emory, nos Estados Unidos da América, num texto de análise publicado esta quarta-feira, 30 de novembro, no jornal digital La Croix International.

No artigo publicado, aquela docente deu-se como tarefa analisar o modo como o documento de trabalho aborda o papel da mulher. Mas procurou fazer esse exercício como se nada soubesse do que há para e por trás do documento, ou seja, procurando desprender-se de conhecimentos e visões construídas sobre a problemática associada ao tema. “Como se este documento fosse a única fonte de informação”, nota ela.

Para pôr as cartas na mesa, a professora Reynolds explicitou o que concluiu com exercícios análogos a este, que fez, ao longo dos anos, sobre documentos da Igreja respeitantes ao papel da mulher. O que ressalta dessa sua análise é que, para os autores desses documentos, “as mulheres são todas exatamente iguais”.

“É uma conclusão assombrosa”, considera ela. Ao longo de gerações, biliões de seres humanos que viveram as situações mais diversas, raras e extremas são objeto de um ensino por parte da hierarquia católica que “parece proceder de uma ilusão fundamental”: que as mulheres “constituem uma espécie de corpo monolítico”, com “um conjunto estreito de dons essencializados”. Esta essencialidade vê-a a autora na noção de “génio feminino”, proposta pelo Papa João Paulo II. Mas também a vê, embora de modo mais mitigado, nas considerações sobre as mulheres do Papa Francisco (ainda que admitindo que este foi evoluindo, ao longo do seu pontificado). “Em qualquer caso, conclui, o resultado é a exaltação através da condescendência”, mesmo que através de “declarações bem-intencionadas”.

Quando, em 27 de outubro deste ano, o Secretariado-Geral do Sínodo apresentou em Roma e divulgou universalmente o DEC, documento que resultou do discernimento de umas dezenas de leigos, pessoas consagradas, padres e bispos de diferentes partes do mundo, Susan Bigelow Reynolds procurou, por conseguinte, suspender o seu “pré-juízo”, para abordar o documento no seu todo e as partes sobre as mulheres da forma mais aberta que lhe foi possível.

Ao que nos diz, no artigo citado, o que viu surpreendeu-a positivamente, a ponto de o seu escrito trazer no título uma interrogação que é também uma surpresa: “Mulheres: já somos protagonistas?”

Quando chegou à subsecção do DEC intitulada “Repensando a participação das mulheres”, sentiu-se “animada”, tanto pela universalidade do apelo que encontrou para repensar a participação das mulheres na Igreja, como “pela multiplicidade de vozes e perspetivas ali representadas”.

Impressionou-a, desde logo, a assertividade do início do Documento: “O apelo a uma conversão da cultura da Igreja, para a salvação do mundo, está ligado em termos concretos à possibilidade de estabelecer uma nova cultura, com novas práticas e estruturas. Uma área crítica e urgente a este respeito diz respeito ao papel da mulher e da sua vocação, enraizada na nossa dignidade batismal comum, para participar plenamente na vida da Igreja”.

Ora, observa a articulista, a conversão começa com a confissão e, neste ponto, ela surpreendeu-se com o facto de o DEC não fugir a “verdades incómodas”: foram elas que, como diz a síntese da Terra Santa, “mais se empenharam no processo sinodal” já que, segundo o Documento, “parecem ter percebido não só que tinham mais a ganhar, mas também mais a oferecer, por serem relegadas para uma margem profética, da qual observam o que acontece na vida da Igreja”.

Do seu ponto de vista, o que lá vem publicado desmente as tais “glorificações sentimentais”, para ela recorrentes, acerca do lugar que as mulheres ocupam na Igreja. “As mulheres não oferecem uma visão única devido à [sua] humildade natural ou à [sua] capacidade materna de cuidar, mas porque as ‘margens proféticas’ são o único terreno a partir do qual podem falar”.

O relatório dos Superiores dos Institutos de Vida Consagrada, por exemplo, fala com dureza da “discriminação enfrentada pelas mulheres religiosas”: prevalente “sexismo na tomada de decisões e na linguagem da Igreja”, que leva à exclusão das mulheres “de papéis significativos na vida eclesial”; tratamento das religiosas como “mão-de-obra barata”; e tendência para “confiar funções eclesiásticas a diáconos permanentes” em vez de permitir que as mulheres partilhem a responsabilidade pelas comunidades eclesiásticas, são alguns dos aspetos denunciados na síntese dos representantes das pessoas de Vida Consagrada.

A professora Reynolds recorda o Concílio Vaticano II e a interpretação dele feita pelo teólogo Karl Rahner, segundo o qual esse acontecimento significou a consciência e afirmação de uma Igreja universal, na pluralidade de povos e culturas. A exemplo dele, também o atual Sínodo poderá vir a significar a inclusão de metade da humanidade e metade do povo de Deus ou, nas suas palavras, “o alvorecer de uma nova época para as mulheres na Igreja”.

Nesta linha, ela cita, a terminar, uma afirmação do DEC, que entende que “as mulheres querem que a Igreja seja sua aliada”, preferindo invertê-la, recolocando-a sob a forma de perguntas que deixa para a atual segunda fase do processo sinodal: “Será que a Igreja quer que as mulheres sejam suas aliadas? O que significaria para as mulheres serem reconhecidas como protagonistas na Igreja, como sujeitos plenos, diversos em todos os aspetos, com a agência a responder em liberdade e criatividade ao apelo do Evangelho?”


POR UMA IGREJA SINODAL

Tensões, preocupações e pedidos de mudança unem católicos do mundo inteiro

Clara Raimundo | 27 Out 2022 | in 7 Margens

Foi publicado esta quinta-feira, 27, o Documento de Trabalho da Etapa Continental do Sínodo (DEC), que servirá de “quadro de referência” para os trabalhos da segunda etapa do caminho sinodal lançado pelo Papa Francisco em 2021. Nele, sobressaem tensões, questões e pedidos de mudança transversais aos fiéis de todos os continentes. Entre os principais motivos de preocupação estão a falta de participação dos “exilados da Igreja”, os contínuos problemas relacionados com escândalos de abusos (sexuais e não só), as disputas litúrgicas e o clericalismo.

Apesar disso, o documento, intitulado “Alarga o espaço da tua tenda” (expressão do Livro de Isaías, capítulo 54), começa em tom de entusiasmo: “o sínodo segue em frente”, lê-se na introdução do texto de 56 páginas, onde se sublinha que “a participação a nível global – nesta primeira etapa – foi superior a todas as expetativas”.

À Secretaria do Sínodo chegaram as sínteses “de 112 das 114 Conferências Episcopais e de todas as 15 Igrejas Orientais Católicas, às quais se juntam as reflexões de 17 dos 23 dicastérios da Cúria Romana, além das que vieram dos superiores religiosos, dos institutos de vida consagrada e sociedades de vida apostólica, e ainda de associações e movimentos de fiéis leigos, sublinha o DEC. A somar a estas, “chegaram mais de mil contributos de pessoas singulares e de grupos” e foram também recolhidas sugestões nas redes sociais, graças à iniciativa do “Sínodo digital”.

“Não faltaram, contudo, dificuldades, que as sínteses não escondem”, salvaguarda desde logo o documento. Entre elas, “o medo que a ênfase sobre a sinodalidade possa fazer pressão para a adoção no interior da Igreja de mecanismos e procedimentos impregnados do princípio da maioria de tipo democrático” ou “o ceticismo sobre a real eficácia ou intenção do processo sinodal”.

Numerosas sínteses mencionam “os medos e as resistências da parte do clero, mas também a passividade dos leigos, o seu temor a exprimir-se livremente e o cansaço de articular o papel dos pastores com a dinâmica sinodal”, refere o DEC.

 

“Uma ferida aberta”

Um obstáculo apresentado como “particularmente relevante” nesta primeira fase do caminho sinodal é o do “escândalo dos abusos cometidos por membros do clero ou de pessoas que desempenham um cargo eclesial”. Em primeiro lugar “e sobretudo” os abusos sobre menores e pessoas vulneráveis, mas também os de outro género (espirituais, sexuais, económicos, de autoridade, de consciência), especifica o DEC. “Trata-se de uma ferida aberta, que continua a infligir dor às vítimas e aos sobreviventes, às suas famílias e comunidades”.

Citando a síntese australiana (o documento refere várias vezes excertos de sínteses nacionais quando estas são representativas do que é expresso pela maioria), “há um forte senso de urgência para reconhecer o horror e os danos causados, e para aumentar os esforços a fim de proteger as pessoas vulneráveis, reparar os danos causados à autoridade moral da Igreja e reconstruir a confiança”.

Inúmeros grupos pediram, assim, “uma mudança cultural da Igreja, com vista a uma maior transparência, responsabilidade e corresponsabilidade”, indica o texto.

A generalidade das sínteses alertou também para a necessidade de incluir aqueles que muitas vezes se sentem excluídos na Igreja: as próprias vítimas de abusos, os divorciados recasados, os pais solteiros, os indivíduos LGBTQ, os homens que deixaram o sacerdócio, mas também os pobres, os idosos , indígenas e migrantes, entre outros.

Como refere a síntese dos Estados Unidos da América, “as pessoas pedem que a Igreja seja um refúgio para quem está ferido e caído, não uma instituição para os perfeitos. Querem que a Igreja encontre as pessoas onde quer que estejam, que caminhe com elas em vez de as julgar e construa relações reais por meio do cuidado e da autenticidade, não com sentido de superioridade”.

Prova dessa vontade é que, não obstante as diferenças culturais, “há notáveis semelhanças entre os vários continentes no respeitante àqueles que são considerados como excluídos, na sociedade e também na comunidade cristã”, refere o documento. Em muitos casos, a sua voz esteve ausente no processo sinodal, e “aparecem nas sínteses só porque outros falam deles, lamentando a exclusão”.

 

Permitir às mulheres participar mais plenamente

O documento destacou também a necessidade de ouvir mais atentamente os jovens, integrar as pessoas com deficiência e dar às mulheres a possibilidade de “participar plenamente na vida da Igreja”. “De todos os continentes chega um apelo a fim de que as mulheres católicas sejam valorizadas acima de tudo como batizadas e membros do Povo de Deus com igual dignidade”, sublinha o texto. “É quase unânime a afirmação que as mulheres amam profundamente a Igreja, mas muitas sentem tristeza porque a sua vida não é bem compreendida, enquanto o seu contributo e os seus carismas não são sempre valorizados.”

Relativamente a este tema, o contributo da Terra Santa expressa bem o pensar e sentir comuns: “Numa Igreja em que quase todos os que tomam decisões são homens, há poucos espaços nos quais as mulheres possam fazer ouvir a própria voz. E constituem, contudo, a espinha dorsal das comunidades eclesiais, quer porque representam a maioria dos praticantes, quer porque são dos mais ativos membros da Igreja”.

A síntese continental conclui, assim, que a Igreja enfrenta atualmente “dois desafios relacionados entre si: as mulheres permanecem a maioria dos que frequentam a liturgia e participam nas atividades, sendo os homens uma minoria; contudo, a maior parte dos papéis de decisão e de governo são desempenhados por homens. É claro que a Igreja deve encontrar o modo de atrair os homens a uma pertença mais ativa na Igreja e permitir às mulheres participar mais plenamente em todos os níveis da vida da Igreja”.

Muitas sínteses pedem que a Igreja prossiga o discernimento sobre algumas questões específicas: papel ativo das mulheres nas estruturas de governo dos organismos eclesiais, possibilidade para as mulheres com adequada formação de pregar no âmbito paroquial, e diaconado feminino. Quanto à ordenação presbiteral para as mulheres, as posições são bastante mais diversificadas: enquanto algumas sínteses a desejam, outras consideram que essa é uma questão fechada.

 

Um “estilo sinodal” a vários níveis

São também muitas as sínteses que sublinham que não há sinodalidade completa sem unidade entre os cristãos. Esta começa com o apelo a uma comunhão mais estreita entre Igrejas de diferentes ritos, refere o DEC. Apesar de reconhecerem que o diálogo ecuménico tem feito progressos desde o Concílio Vaticano II, “as sínteses pedem uma maior atenção às realidades que geram divisões, como por exemplo a questão da condivisão da Eucaristia”.

A “grandíssima maioria das sínteses” assinala também a necessidade de prever a formação para a própria sinodalidade, “de
modo a facilitar uma conversão sinodal no modo de exercitar a participação, a autoridade e a liderança, em vista de uma mais eficaz realização da missão comum”.

E inúmeras sínteses “encorajam fortemente a prática de um estilo sinodal de celebração litúrgica”, que permita a participação ativa de todos os fiéis no acolhimento de todas as diferenças, na valorização de todos os ministérios e no reconhecimento de todos os carismas”. A escuta sinodal das Igrejas “regista muitas questões a enfrentar nesta direção”, como sejam “a reflexão sobre uma liturgia demasiado centrada no celebrante” e “as modalidades de participação ativa dos leigos”. A este respeito, a experiência das Igrejas regista também nós de conflito, que devem ser enfrentados de modo sinodal, “como o discernimento da relação com os ritos pré-conciliares”.

Curiosamente, a fraca qualidade das homilias é assinalada, quase unanimemente, como um problema: são desejadas “homilias mais profundas, centradas no Evangelho e nas leituras do dia, e não sobre política, que usem uma linguagem acessível e atraente e façam referência à vida dos fiéis”, diz o contributo da Igreja Maronita citado no DEC.

 

Não há conclusões, mas há três questões

Todas estas tensões que o caminho sinodal trouxe à superfície deverão ser exploradas “como fonte de energia sem que se tornem destrutivas”, defende o documento. “Só assim será possível continuar a caminhar juntos, em vez de andar cada um pelo seu caminho.” Aprovado e traduzido em cinco línguas, o texto está disponível no site oficial do Sínodo e irá agora orientar a segunda etapa do caminho.

“Não se trata de um documento conclusivo, porque o processo está longe de estar terminado; não é um documento do Magistério da Igreja, nem o relatório de um inquérito sociológico; não oferece a formulação de indicações operativas, de metas e objetivos, nem a completa elaboração de uma visão teológica, embora nele abunde o tesouro ricamente teológico contido na narração da experiência da escuta da voz do Espírito por parte do Povo de Deus, permitindo fazer emergir o seu sensus fidei. Mas trata-se de um documento teológico também no sentido de estar orientado ao serviço da missão da Igreja”, salvaguarda a equipa que o redigiu.

O principal objetivo, para já, é oferecer às Igrejas locais “a oportunidade de escutar a voz de umas e de outras”. Esta segunda etapa, que agora se inicia, deverá concentrar-se, segundo o DEC, na reflexão sobre três questões essenciais, que citamos na íntegra:
1. “Depois de ter lido o DEC em ambiente de oração, que intuições ecoam, de modo mais intenso, com as
experiências e as realidades concretas da Igreja do vosso continente? Que experiências vos aparecem novas ou
iluminadoras?”.
2. “Depois de ter lido o DEC e fazer uma pausa em oração, que tensões ou divergências substanciais surgem como particularmente importantes na perspetiva do vosso continente? Consequentemente, quais são as questões ou
interrogações que deveriam ser enfrentadas e tomadas em consideração nas próximas fases do processo?”.
3. “Olhando para aquilo que emerge das duas perguntas precedentes, quais são as prioridades, os temas recorrentes e os apelos à ação que podem ser partilhados com outras Igrejas locais no mundo e discutidos durante a Primeira Sessão da Assembleia sinodal em outubro de 2023?”.

Nesta etapa, serão realizadas assembleias em todos os sete continentes, e cada assembleia continental elaborará um documento final com base nas suas reflexões. Os documentos finais das sete assembleias continentais servirão de base para a elaboração do Instrumentum Laboris (documento oficial de trabalho) para a etapa universal. Este deverá estar concluído até junho de 2023.


O processo sinodal e a JMJ

Grupo Sinodal Braga-Guimarães | 31 Out 2022 | in 7 Margens

A intenção de oração do Papa Francisco para o mês de outubro pede-nos que “Rezemos para que a Igreja, fiel ao Evangelho e corajosa no seu anúncio, viva cada vez mais a sinodalidade e seja um lugar de solidariedade, de fraternidade e de acolhimento.”

Ou seja, no entender do Papa, o reforço da fidelidade ao Evangelho tem por consequência uma vivência mais intensa de um modo sinodal de conduzir o povo de Deus, levando-o a uma prática mais solidária, mais fraterna e mais acolhedora de toda a realidade do mundo, constituindo, aí sim, o verdadeiro anúncio da presença de Deus.

Isto implica olhar a sinodalidade como um caminho congregador, conducente a um maior empenho e participação dos fiéis, trazendo a sua experiência concreta do dia-a-dia, recheada de desafios, para a condução das orientações práticas e pastorais da Igreja, de que são parte absolutamente fundamental. Aliás, sem fiéis não há Igreja e qualquer caminho de governação que os envolva resulta numa Igreja mais próxima do seu ambiente, das suas interrogações, dos seus anseios e dos obstáculos e dificuldades colocados à vivência da sua fé. Isto é, resulta numa Igreja mais próxima de si própria e mais entrelaçada com o mundo.

No fundo, o nosso Papa pede a nossa oração para que a Igreja retome a consciência de que é um povo congregado numa mesma caminhada, cuja voz é escutada e que deve contribuir para que as vozes caladas ou excluídas do diálogo sejam acolhidas. Um povo em que é grande a diversidade e, com isso, a riqueza e complementaridade das suas vivências, realidades e perspetivas.

Este pedido concreto de oração, reacende inevitavelmente a alegria e o entusiasmo de todos quantos participaram em grupos sinodais, promovidos um pouco por todo o país, e viram as amplas discussões darem origem a um documento-síntese publicado pela Conferência Episcopal Portuguesa, que enuncia as principais preocupações sentidas por tantos que amam a Igreja e a desejam ainda mais reflexo da pessoa de Jesus.

Essa alegria decorre da certeza de que este processo de escuta foi guiado pelo Espírito Santo, que assim se mostra atuante. Aliás, nas reuniões em que participamos – e imaginamos que terá sido assim em todos os locais em que se reuniram grupos em Seu nome – a oração invocando a presença do Espírito foi sempre um dos momentos mais inspiradores, levando a que este tenha sido mesmo um caminho em que Deus foi conduzindo o seu povo.

Mas o entusiasmo também chega pela comunhão que se cria com as primeiras comunidades cristãs, a cuja práxis sinodal muito ficou a dever o crescimento da Igreja. Um sentimento que confirma que a Igreja é, de facto, Universal, porque comunga os Cristãos de todos os tempos e lugares numa busca pela melhor forma de colocar o Evangelho em prática, de acordo com os desafios de cada momento.

É clara a vontade do Papa para que se recupere esta forma de escuta e envolvimento real do Povo de Deus na busca de caminhos para a Igreja e para a interação desta com o mundo. Foi igualmente clara e entusiasta a resposta a essa vontade que deram os muitos grupos sinodais, não só em Portugal como em todo o mundo, pelo que todos esperamos agora um modo de proceder diferente, no qual a hierarquia e os fiéis possam escutar-se verdadeiramente – e não apenas, quando muito, ouvir-se – com muito maior regularidade. Mais do que isso, à Igreja de agora pede-se a capacidade de ir às margens para acolher e escutar quem está fora, principalmente os que foram excluídos por ação concreta ou por omissão da hierarquia ou dos fiéis.

Com isto em mente, é clara a oportunidade que temos agora em mãos, nós Igreja em Portugal, para ir de encontro àquilo que o caminho sinodal nos fez ver. Sem prejuízo de considerar fundamental a aplicação desse modo de atuar a toda a vida da Igreja, neste momento em particular falamos da Jornada Mundial da Juventude JMJ), nas quais seria de extrema importância que inscrevessem na sua prática a escuta dos jovens, crentes e não crentes, integrados, afastados ou excluídos.

Sabemos que há jovens a serem escutados para a elaboração do programa e das dinâmicas daqueles dias, mas não sabemos exatamente qual o seu papel, nem que jovens são esses e que diversidades representam. Que oportunidades de diálogo vão ser estimuladas e de que forma? E com os jovens que se encontram nas diferentes fronteiras? E com os que estão para além das fronteiras?

Parece-nos claro, olhando à síntese portuguesa do trabalho dos grupos sinodais, que para os cristãos (e, por inerência, para os cristãos jovens) é vital a criação de oportunidades para estabelecerem diálogo franco sobre muitas questões que os preocupam, porque é com a sua vivência, direta ou indireta, que são confrontados todos os dias:

• Preocupa-os ver uma Igreja pouco inclusiva, bastante mais rápida a condenar do que a acolher realidades com as quais, grande parte das vezes, se recusa dialogar;

• Preocupa-os assistir à incapacidade de trazer os jovens à Igreja, certos de que o problema pode passar não só pela linguagem utilizada pela hierarquia, demasiado hermética, mas também pelo desinteresse prático em perceber os diferentes desafios com que são confrontados, num mundo substancialmente diferente a cada nova década;

• Preocupa-os perceber que são ainda muito distintas as possibilidades de participação na vida da Igreja concedidas a homens e a mulheres, bem como o viés institucional que tende a confundir Homem com homem;

• Inquieta-os perceber que nem sempre a Igreja se coloca ao lado do Humanismo e da Justiça Social;

• Desassossega-os constatar que o clericalismo é demasiado pesado, pouco ágil e nem sempre suficientemente atento à realidade do mundo, esquecendo-se com frequência que, conforme muitas vezes alerta o Papa, “a realidade é superior à ideia” e o farisaísmo não é uma prática apenas do tempo anterior a Jesus;

• Incomoda-os uma Igreja mais presa em quatro paredes do que “em saída”.

E poderíamos listar muitos outros sobressaltos que estão na origem da crescente fissura entre a Igreja e o mundo, conforme a referida síntese tão bem expõe.

Sem oportunidades reais para se debruçaram sobre estas questões reveladas pelo caminho sinodal, a JMJ correrá o risco de ser mero fogo de artifício, incapaz de impulsionar a Igreja em Portugal num caminho rejuvenescido de maior intimidade com o Evangelho e de ser anunciadora corajosa do Amor, que se manifesta em maior solidariedade, fraternidade e acolhimento de todos.

E há oportunidades que, por não se repetirem, não se podem perder!

Grupo Sinodal Braga-Guimarães


De pastoral para pastoral

Cristina Inogés Sanz | 12 Nov 2022 | in 7 Margens

Estamos de parabéns! Terminou a fase diocesana do Sínodo, mas não o Sínodo em si, e começamos o caminho com tudo fresco na cabeça. Aquilo que dissemos nos grupos e que foi recolhido nas sínteses diocesanas e nacionais está disponível para refrescar a memória. A nossa voz soou clara, com conteúdo e força, e agora temos a grande oportunidade de iniciar o caminho vivendo as primeiras práticas sinodais.

O momento oportuno

Em muitas dioceses, vão começar a aplicar-se os planos pastorais que ficaram parados porque o Sínodo exigia toda a atenção, e que vinham “de cima”, segundo a rançosa explicação de “porque sempre se fez assim”. No entanto, estamos num momento em que as mudanças podem tornar-se evidentes. E se, em vez de aceitar um determinado Plano, elaborado por especialistas (cujos nomes raramente são conhecidos), o fizéssemos juntos? As mudanças têm de vir já “de baixo”. Vamos praticar um pouco?

Na hora de elaborar um plano pastoral entre todos, todos deveremos ter alguns pontos claros para poder realizá-lo. Alguns desses pontos seriam, por exemplo, conhecer a real situação da diocese, o que equivale a transparência em todas as áreas; não ter pressa em ter o plano acabado; estamos a começar a andar de maneira sinodal e vai demorar algum tempo; conhecer as diretrizes de governo do bispo é evidentemente mais do que necessário porque, caso contrário, daria a impressão de que o bispo age como um senhor feudal do seu território sem querer compartilhar nada com aqueles que caminham com ele; todos os contributos dos grupos sinodais deveriam ser recolhidos e tidos em conta, porque manifestam as preocupações concretas de quem vive na diocese (mesmo que não se declarem crentes) e assinalariam linhas essenciais no plano pastoral; na elaboração do mesmo deveriam participar sacerdotes – independentemente dos seus cargos pastorais – e leigos; e que fique claro que os grupos onde se trabalhe o plano pastoral não terão nada a ver com as formas de trabalho seguidas durante a fase diocesana do Sínodo.

Diante das resistências

Agora estaríamos a falar de desenhar formas concretas de pastoral para a diocese: realidade rural, urbana, universitária, paroquial, de reforma dos costumes. Algo novo, diferente, criativo, atraente… Afinal de contas, a pastoral já aponta para ir evoluindo da pastoral dos planos – que poucas vezes funcionaram porque são maioritariamente ideais e não planos avaliáveis – para uma pastoral de atitudes. Nós poderíamos ser os artífices dessa mudança necessária, aliás, urgente. Soa bem, não é verdade? Poder fazer isto entre todos.

A mudança é séria. Compreendo que há pessoas a quem lhes custa aceitar que algo de novo está a nascer. Não o notam? As resistências apenas projetam uma imagem patética de quem resiste – não abertamente, é claro – porque não vá ser que se perca um pingo de poder, sem ser conscientes que perder esse pingo nocivo de poder vale toneladas de autoridade moral.

Vamos lá! Ânimo! Nas dioceses onde não se proponha o trabalho conjunto do plano pastoral, digamos ao bispo que queremos fazê-lo. Estou certa de que, na sua maioria, se alegrarão ao ver a boa disposição, o interesse e o desejo de começar a ser sinodais de verdade.

A mudança veio para ficar. Recordemos que estamos em pleno processo espiritual – e é isso a sinodalidade – e se o processo é espiritual, até que ponto não se envolver ou tentar travá-lo não é ir contra o Espírito?

Sinodais ou rançosamente feudais? That is the question…

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo da Igreja Católica. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin.


VIGEM APOSTÓLICA AO REINO DO BAHREIN
in occasione del "Bahrain Forum for Dialogue: East and West for Human Coexistence"
(3 - 6 NOVEMBRE 2022)

ENCONTRO DE ORAÇÃO COM OS BISPOS, OS SACERDOTES,
OS CONSAGRADOS, OS SEMINARISTAS E OS AGENTES DA PASTORAL

DISCURSO DO SANTO PADRE

Igreja do Sagrado Coração em Manama
Domingo, 6 de novembro de 2022

Amados bispos, sacerdotes, consagrados e seminaristas, agentes pastorais, bom dia! Good morning!

Sinto-me feliz por me encontrar no vosso meio, nesta comunidade cristã que manifesta claramente o seu rosto «católico», isto é, universal: uma Igreja habitada por pessoas provenientes de muitas partes do mundo, que se reúnem para confessar a única fé em Cristo. O bispo D. Paulo Hinder, a quem agradeço o serviço e as suas palavras, ontem falou de «um pequeno rebanho formado por migrantes»: deste modo, ao saudar cada um de vós, penso também nos povos a que pertenceis, nas vossas famílias que saudosamente guardais no coração, nos vossos países de origem. De forma particular, ao ver aqui presentes os fiéis do Líbano asseguro a minha oração e solidariedade a este amado país, tão cansado, tão provado, e a todos os povos que sofrem no Médio Oriente. É bom pertencer a uma Igreja formada por histórias e rostos diferentes, que encontram harmonia no único rosto de Jesus. E tal variedade – vi-o nos últimos dias – é o espelho deste país, das pessoas que o povoam mas também da paisagem que o carateriza e que, embora dominada pelo deserto, goza duma rica e variegada presença de plantas e seres vivos.

As palavras de Jesus que ouvimos, falam da água viva que jorra de Cristo e dos crentes (cf. Jo 7, 37-39). Fizeram-me pensar precisamente nesta terra. É verdade que há muito deserto, mas existem também fontes de água doce que correm silenciosamente no subsolo, irrigando-o. É uma boa imagem do que vós sois e sobretudo daquilo que a fé realiza na vida: à superfície emerge a nossa humanidade, ressequida por tantas fragilidades, medos, desafios que deve enfrentar, males pessoais e sociais de vário género; mas no mais fundo da alma, mesmo dentro, no íntimo do coração, corre calma e silenciosa a água doce do Espírito, que irriga os nossos desertos, restitui vigor ao que corre o risco de secar, lava aquilo que nos embrutece, sacia a nossa sede de felicidade. E não cessa de renovar a vida. É desta água viva que fala Jesus; esta é a fonte de vida nova que Ele nos promete: o dom do Espírito Santo, a presença terna, amorosa e regeneradora de Deus em nós.

Assim far-nos-á bem deter na cena que o Evangelho descreve. Jesus encontra-se no templo de Jerusalém, onde está a celebrar-se uma das festas mais importantes, durante a qual o povo bendiz ao Senhor pela dádiva da terra e das colheitas, comemorando a Aliança. E, naquele dia de festa, realizava-se um rito importante: o sumo sacerdote ia à piscina de Siloé, tirava água e depois, enquanto o povo cantava e exultava, derramava-a fora das muralhas da cidade para indicar que, de Jerusalém, fluiria uma grande bênção para todos. De facto, o salmista havia dito de Jerusalém: «A minha única fonte está em ti» (Sal 87, 7); e o profeta Ezequiel falara duma nascente de água que, jorrando do templo, havia de irrigar e fecundar toda a terra como um rio (Ez 47,1-12).

Com tais premissas, compreendemos bem o que nos quer dizer o Evangelho de João com esta cena: está-se no último dia da festa e Jesus, «de pé», bradou: «Se alguém tem sede, venha a Mim» (Jo 7, 37), porque do seu seio jorrarão «rios de água viva» (7, 38). Que convite estupendo! E o evangelista explica: «Ele disse isto, referindo-se ao Espírito que iam receber os que n’Ele acreditassem; com efeito, ainda não tinham o Espírito, porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (7, 39). A alusão é à hora em que Jesus morre na cruz: naquele momento sairá, já não do templo de pedra, mas do lado aberto de Cristo a água da vida nova, a água vivificante do Espírito Santo, destinada a regenerar toda a humanidade, libertando-a do pecado e da morte.

Irmãos e irmãs, recordemo-nos sempre disto: a Igreja nasce ali, nasce do lado aberto de Cristo, de um banho de regeneração no Espírito Santo (cf. Tt 3, 5). Não somos cristãos por mérito nosso ou apenas porque aderimos a um credo, mas porque, no Batismo, nos foi dada a água viva do Espírito, que nos torna filhos amados de Deus e irmãos uns dos outros, fazendo-nos novas criaturas. Tudo jorra da graça – tudo é graça –, tudo vem do Espírito Santo. Deixai, pois, deter-me brevemente convosco sobre três grandes dons que o Espírito Santo nos entrega, pedindo para os acolhermos e vivermos: a alegria, a unidade e a profecia. A alegria, a unidade e a profecia.

Antes de mais nada, o Espírito é fonte de alegria. A água doce que o Senhor quer fazer correr nos desertos da nossa humanidade, feita de terra e fragilidade, é a certeza de nunca estarmos sozinhos no caminho da vida. De facto, o Espírito é Aquele que não nos deixa sozinhos, é o Consolador; conforta-nos com a sua discreta e benéfica presença, acompanha-nos com amor, ampara-nos nas lutas e dificuldades, encoraja os nossos sonhos mais belos e os nossos maiores desejos, abrindo-nos ao assombro perante a beleza da vida. Por isso, a alegria do Espírito não é um estado ocasional nem uma emoção do momento; e muito menos aquela espécie de «alegria consumista e individualista tão presente nalgumas experiências culturais de hoje» (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 128). Pelo contrário, a alegria no Espírito é aquela que nasce da relação com Deus, de saber que, mesmo nas dificuldades e noites obscuras que por vezes atravessamos, não estamos sozinhos, perdidos ou derrotados, porque Ele está connosco. E, com Ele, podemos enfrentar e superar tudo, até os abismos do sofrimento e da morte.

A vós, que descobristes esta alegria e a viveis em comunidade, gostaria de dizer: conservai-a; mais ainda, multiplicai-a. E sabeis qual é o método melhor para fazer isto? É dá-la. Sim, é mesmo assim: a alegria cristã é contagiante, porque o Evangelho faz sair de nós mesmos para comunicar a beleza do amor de Deus. Por isso, é essencial que, nas comunidades cristãs, não esmoreça a alegria e seja partilhada; não nos limitemos a repetir gestos por hábito, sem entusiasmo, nem criatividade. Caso contrário, perderemos a fé e tornar-nos-emos uma comunidade fastidiosa, e isto é feio! É importante fazer circular a alegria do Evangelho não só na Liturgia, em particular na celebração da Missa, fonte e ápice da vida cristã (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. Sacrosanctum Concilium, 10), mas também numa ação pastoral vivaz, especialmente a favor dos jovens, das famílias e das vocações para a vida sacerdotal e religiosa. A alegria cristã não a podemos guardar para nós mesmos e, quando a colocamos em circulação, multiplica-se.

Em segundo lugar, o Espírito Santo é fonte de unidade. Todos aqueles que O acolhem, recebem o amor do Pai e tornam-se seus filhos (cf. Rm 8, 15-16); e, se são filhos de Deus, são também irmãos e irmãs. Não pode haver espaço para as obras da carne, isto é, do egoísmo: divisões, litígios, calúnias, murmurações. Por favor, tende cuidado com a murmuração: as murmurações destroem uma comunidade. As divisões do mundo, e também as diferenças étnicas, culturais e rituais não podem ferir ou comprometer a unidade do Espírito. Pelo contrário, o seu fogo queima os desejos mundanos e incendeia a nossa vida com aquele amor acolhedor e compassivo com que Jesus nos ama, para podermos, por nossa vez, amar-nos assim entre nós. Por isso, quando o Espírito do Ressuscitado desce sobre os discípulos, torna-se fonte de unidade e fraternidade contra todo o egoísmo; inaugura a linguagem única do amor, para que as diferentes línguas humanas não permaneçam distantes e incompreensíveis; derruba as barreiras da difidência e do ódio, para criar espaços de acolhimento e diálogo; liberta do medo e infunde a coragem de sair ao encontro dos outros com a força desarmada e desarmante da misericórdia.

Isto é feito pelo Espírito Santo, que assim molda a Igreja desde as origens: a partir do Pentecostes, as diferentes proveniências, sensibilidades e perspetivas são harmonizadas na comunhão, forjadas numa unidade que não é uniformidade, é harmonia, porque o Espírito Santo é harmonia. Se recebemos o Espírito, a nossa vocação eclesial é, antes de mais nada, a de guardar a unidade e promover o todo ou – como diz São Paulo – «manter a unidade do Espírito, mediante o vínculo da paz. Há um só Corpo e um só Espírito, assim como a vossa vocação vos chamou a uma só esperança» (Ef 4, 3-4).

No seu testemunho, Chris disse que, quando era muito jovem, o que a fascinara na Igreja Católica era «a devoção comum de todos os fiéis», independentemente da cor da pele, da proveniência geográfica, da língua: todos reunidos numa só família, todos a cantar os louvores do Senhor. Esta é a força da comunidade cristã, o primeiro testemunho que podemos dar ao mundo. Procuremos ser guardiões e construtores de unidade! Para ser credíveis no diálogo com os outros, vivamos a fraternidade entre nós. Façamo-lo nas comunidades, valorizando os carismas de todos sem mortificar ninguém; façamo-lo nas casas religiosas, como sinais viventes de concórdia e de paz; façamo-lo nas famílias, de modo que o vínculo de amor do sacramento se traduza em atitudes quotidianas de serviço e de perdão; façamo-lo também na sociedade multirreligiosa e multicultural em que vivemos: sejamos sempre a favor do diálogo, sempre, tecedores de comunhão com os irmãos de outros credos e confissões. Sei que já dais um bom exemplo neste caminho, mas a fraternidade e a comunhão são dons que não nos devemos cansar de pedir ao Espírito, para repelir as tentações do inimigo que não cessa de semear cizânia.

Por fim, o Espírito é fonte de profecia. Como sabemos, a história da salvação está constelada por numerosos profetas que Deus chama, consagra e envia ao meio do povo para falar em nome d’Ele. Os profetas recebem do Espírito Santo a luz interior que os torna intérpretes atentos da realidade, capazes de captar, nas tramas por vezes obscuras da história, a presença de Deus e de a indicar ao povo. Com frequência, as palavras dos profetas são pungentes: chamam pelo nome aos projetos maus que se abrigam no coração das pessoas, põem em crise as falsas seguranças humanas e religiosas, convidam à conversão.

Também nós temos esta vocação profética: todos os batizados receberam o Espírito e todos são profetas. E, como tal, não podemos fingir que não vemos as obras do mal, deixar-nos estar tranquilos na vida para não sujarmos as mãos. Um cristão, mais cedo ou mais tarde, tem de sujar as mãos para viver a sua vida cristã e dar testemunho. Pelo contrário, recebemos um Espírito de profecia para trazer à luz o Evangelho com o nosso testemunho de vida. Por isso São Paulo exorta: «aspirai aos dons do Espírito, mas sobretudo ao da profecia» (1 Cor 14, 1). Esta torna-nos capazes de praticar as Bem-aventuranças evangélicas nas situações quotidianas, isto é, construir com firme mansidão aquele Reino de Deus onde o amor, a justiça e a paz se opõem a toda a forma de egoísmo, violência e degradação. Ouvi, com apreço, a Irmã Rose falar do seu ministério entre as reclusas, nas prisões. Isto é estupendo! Uma possibilidade pela qual devemos agradecer. A profecia que edifica e conforta estas pessoas é partilhar com elas o tempo, distribuir em pedacinhos a Palavra do Senhor, rezar com elas. É prestar-lhes atenção, porque onde há irmãos necessitados, como os reclusos, está Jesus: Jesus ferido em cada pessoa que sofre (cf. Mt 25, 40). Sabeis o que penso quando entro num cárcere? «Porquê ele, e não eu?». É a misericórdia de Deus. Mas cuidar dos reclusos é útil a todos, como comunidade humana, porque é pela forma como se tratam os últimos que se mede a dignidade e a esperança duma sociedade.

Nestes meses, queridos irmãos e irmãs, temos rezado tanto pela paz. Neste contexto, constitui uma esperança o acordo que foi assinado a respeito da situação na Etiópia. Encorajo todos a apoiar este compromisso em prol duma paz duradoura, para que, com a ajuda de Deus, se continuem a percorrer os caminhos do diálogo e o povo volte em breve a encontrar uma vida serena e digna. Além disso não quero esquecer de rezar e dizer-vos para rezardes pela atribulada Ucrânia, para que acabe aquela guerra.

E agora, queridos irmãos e irmãs, chegamos ao fim. Quero dizer-vos «obrigado» por estes dias que vivemos juntos; mas não esqueçais a alegria, a unidade e a profecia. Não as esqueçais! Com ânimo repleto de gratidão, abençoo a todos vós, especialmente a quantos trabalharam para esta viagem. E, uma vez que serão estas as últimas palavras públicas que pronuncio, permiti-me agradecer a Sua Majestade o Rei e às Autoridades deste país – nomeadamente ao Ministro da Justiça, aqui presente – a requintada hospitalidade. Encorajo-vos a continuar, com constância e alegria, o vosso caminho espiritual e eclesial. E agora invoquemos a intercessão materna da Virgem Maria, sentindo-me feliz por a venerar como Nossa Senhora da Arábia. Que Ela nos ajude a deixar-nos sempre guiar pelo Espírito Santo e nos mantenha alegres, unidos no afeto e na oração. Conto com a vossa oração: não vos esqueçais de rezar por mim.


Sínodo católico: cinco meses para definir prioridades

Jorge Wemans | 28 Out 2022 | in 7 Margens

A respiração das igrejas locais chegou ao Sínodo e este propõe agora cinco meses para as igrejas de cada continente indicarem quais são as experiências novas e iluminadoras que valorizam, quais as questões e interrogações a enfrentar e que ações definem como prioritárias. O Documento de trabalho para a Etapa Continental (DEC), divulgado na quinta-feira 27 de novembro abre o tempo da concretização, ao jeito de um Concílio Vaticano II, parte 2. E é feliz no modo como o faz. [ver 7MARGENS]

Hoje como há 60 anos, tal como escrevia este mês Joseph Ratzinger/Bento XVI a propósito do Concílio Vaticano II, “tornou-se gradualmente evidente a necessidade de reformular a questão da natureza e da missão da Igreja”. É para esse “reformular” que o documento agora convida todos os que participam da “comum dignidade batismal”, e não apenas os bispos. Porque foi essa extensa participação que permitiu “abrir horizontes de esperança para o cumprimento da missão da Igreja.”

Convite que aqueles – leigos, padres e bispos – que aqueles que se recusaram ativamente a participar na primeira fase do Sínodo muito provavelmente não aceitarão. Para os que estão na Igreja Católica agarrados a uma eclesiologia pré-Vaticano II não há necessidade de escutar os crentes para se descobrirem as interrogações que o mundo atual coloca à mesma Igreja. Qualquer movimento nesse sentido é por eles visto como cedência ao ar dos tempos, como meio de claudicar perante a moda e a cultura dominante, como desvio à missão da Igreja trocada por uma vontade de ser popular “no mundo”.

De facto, aquilo que separa os católicos que responderam entusiasmados ao desafio deste Sínodo daqueles que a ele resistem não é o progressismo ou o conservadorismo de uns e outros. O que os separa são duas eclesiologias diferentes, dois modos de entender “a questão da natureza e da missão da Igreja”. O processo sinodal em curso não abre debates sobre as verdades de fé, procura apenas “reformar a Igreja” e convocar todos os batizados a participarem na construção de uma linguagem contemporânea que possa servir de veículo ao anúncio de Jesus Cristo aos homens e mulheres de hoje. E essa linguagem só será percetível se for uma fala construída a partir das preocupações, das alegrias e das angústias dos que habitam “as periferias”, uma fala que nasça de situações e vidas até agora estranhas à Igreja, porque só assumindo a linguagem do outro se pode viver “a escuta que exige reconhecer o outro como sujeito do seu próprio caminho” (nº. 32).

Caminhar na diversidade, sem uniformidade

Ao ler com olhos de fé o percurso já realizado, o DEC recusa escamotear diferenças, dificuldades, crispações e sofrimentos que se tornaram evidentes, mas respira uma confiança lúcida no futuro: “O Povo de Deus experimentou a alegria de caminhar em conjunto e o desejo de continuar a fazê-lo. O modo de o conseguir como comunidade católica verdadeiramente global é algo que ainda falta descobrir completamente.” (nº. 100)

Há, portanto, caminho a percorrer, futuro a construir.

Esse futuro gera-se numa Igreja que é comunidade viva “em contínua reforma das suas estruturas e do seu estilo” e na afirmação da centralidade da sinodalidade: este é modo de ser da Igreja Católica, baseado na “comum dignidade batismal” de todos; é vivendo-a que a Igreja pode acolher todos, incluindo os que “nela não têm voz” ou se “sentem exilados” e cumprir a sua missão no mundo; é ela que confirma a necessidade de ir “para além do clericalismo” e de “repensar a participação das mulheres”.

A importância maior deste documento é a de relançar, agora de forma mais concreta, a reflexão sobre a reforma necessária e desejada da Igreja Católica centrada na sinodalidade. Não uma reflexão feita a partir de uma qualquer análise de performance institucional, mas tendo sempre como horizonte “o sonho de uma Igreja capaz de se deixar interpelar pelos desafios do mundo de hoje e de lhes responder com transformações concretas” (nº. 42), ou, como se escreve na síntese portuguesa citada no mesmo nº 42 do DEC “o mundo precisa de uma ‘Igreja em saída’, que rejeite a divisão entre crentes e não crentes, que olhe para a humanidade e lhe ofereça mais do que uma doutrina ou uma estratégia, uma experiência de salvação, um ‘golpe de dom’ que atenda ao grito da humanidade e da natureza.”

Alguns destes gritos ecoam no texto vindos de grupos muito concretos: os jovens e as mulheres; o dos pobres e o da terra; os deficientes e os cuja vida precisa de proteção especial; a comunidade LGBT; os pobres das periferias… Para todos eles se pede acolhimento e espaço para exercerem o seu protagonismo para concretizar “a visão de uma Igreja capaz de uma inclusão radical, de pertença mútua e de profunda hospitalidade segundo os ensinamentos de Jesus”. (nº. 31)

Para o caminho a percorrer não existem “apelos à uniformidade, mas pede-se que se aprenda a crescer numa sincera harmonia, que ajude os crentes a desempenhar a sua missão no mundo criando os laços necessários para caminhar juntos com alegria.” Ou seja, a difícil unidade, hoje mais complexa do que nunca, não será obtida por um esmagamento da diversidade, mas sim pela harmonia que é preciso construir.

Os desafios são enormes, mas o caminho percorrido não é menor. O Sínodo continua a trazer coisas novas à Igreja Católica.


Um Sínodo para Caminhar

Guilherme d’Oliveira Martins | 20 Out 2022 | in 7 Margens

O Papa Francisco tem insistido na necessidade de trilhar o caminho sinodal, como uma verdadeira partilha de pensamento e ação. No momento em que há preocupações relativamente à imagem pública da Igreja, importa reforçar a exigência e o sentido de responsabilidade e de cuidado, sem os quais prevalecerá uma visão empobrecedora da realidade que somos chamados a compreender. Nesse sentido, há um percurso que deve ser assumido por todos com humildade e fidelidade ao exemplo deixado por Jesus Cristo, deixando a tentação das justificações inúteis e pondo mãos à obra pelo exemplo e pelo cuidado relativamente aos outros.

A palavra sínodo provém do grego, e significa “caminhar juntos” – “Syn” – com; “Hodos” – caminho. Importa, assim, definir uma via de ação, a começar pela definição aberta e inclusiva dos companheiros de viagem. Eis por que de um modo propositadamente simplificado, indicamos um conjunto abreviado de perguntas, que nos ajudarão a não ficarmos indiferentes. «Quando dizemos “a nossa Igreja”, quem é que faz parte dela? Quem nos pede para caminhar juntos? Quem são os companheiros de viagem, mesmo fora do perímetro eclesial?». A escuta é o primeiro passo, exigindo que a mente e o coração estejam abertos, sem preconceitos. Como são ouvidos os Leigos, designadamente os jovens e as mulheres? Como se integra a contribuição de Consagradas e Consagrados? Que espaço ocupa a voz das minorias e dos excluídos? Conseguimos identificar preconceitos que impedem a nossa escuta? Estamos atentos à sociedade e à cultura em que vivemos? E como usar da palavra e participar? Como integrar a liberdade, a verdade e a caridade ou cuidado? Como promover a comunicação, sem ambiguidades nem oportunismo? E em relação à sociedade de que fazemos parte? Quando e como conseguimos dizer o que é deveras importante para nós? Como e quem fala em nome da comunidade?

“Caminhar juntos” só é possível se nos basearmos na escuta comunitária da Palavra e na celebração da Eucaristia. Como promover a participação ativa de todos os Fiéis na liturgia e o exercício da função santificadora? De facto, somos chamados ao Sínodo, como serviço da missão da Igreja, na qual todos os seus membros são chamados a participar. Dado que somos todos discípulos missionários, de que maneira cada um dos cristãos é convocado para exercer a sua missão? Como é que a comunidade apoia os seus membros comprometidos no serviço na sociedade, na responsabilidade social e política, na ciência e no ensino, na promoção da justiça social, na salvaguarda dos direitos humanos? Como os ajuda a viver estes compromissos, numa lógica de missão? Como são integradas as diferentes tradições em matéria de estilo sinodal? Importa ter presente que o diálogo é um caminho de persistência, que inclui silêncios e dificuldades, sendo capaz de recolher a experiência das pessoas e dos povos. Como enfrentamos as divergências, os conflitos, os bloqueamentos?

Que experiências de diálogo e de compromisso partilhado promovemos com crentes de outras religiões e com quem não crê? Como é que a Igreja dialoga e aprende com outras instâncias da sociedade: o mundo da política, da economia, da cultura, a sociedade civil, os pobres…? O diálogo entre cristãos de diferentes confissões ocupa um lugar particular neste caminho sinodal. Que frutos colhemos do facto de “caminharmos juntos”? Uma Igreja sinodal é uma Igreja participativa e corresponsável. Quais são as práticas de trabalho em grupo e de corresponsabilidade? Num estilo sinodal, decide-se por partilha de reflexão, com base num consenso que dimana da obediência comum ao Espírito. Como promovemos a participação na tomada de decisões, no seio de comunidades hierarquicamente estruturadas? Como articulamos as fases consultiva e deliberativa? De que maneira e com que instrumentos promovemos a transparência e a prestação de contas e o assumir de responsabilidades? A espiritualidade do caminhar juntos obedece ao princípio educativo para a formação da pessoa humana e do cristão, das famílias e das comunidades. Como formamos as pessoas que desempenham funções de responsabilidade no seio da comunidade cristã, ouvindo-se mutuamente e dialogando? Que instrumentos nos ajudam a interpretar as dinâmicas da cultura em que estamos inseridos e o seu impacto no nosso estilo de Igreja?

Lembrando-nos da experiência de Giorgio La Pira, importa ter presente que este caminho tem de se basear na fidelidade à dignidade da pessoa humana e na defesa determinada do bem comum!

Guilherme d’Oliveira Martins é administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian.


Sinodais a irradiar

60° ANIVERSÁRIO DO INÍCIO DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II

SANTA MISSA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Terça-feira, 11 de outubro de 2022
Memória de São João XXIII, Papa

«Amas-Me?» é a primeira frase que Jesus dirige a Pedro, no Evangelho que ouvimos (Jo 21, 15), ao passo que a última será «apascenta as minhas ovelhas» (21, 17). No aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, sentimos dirigidas também a nós, a nós como Igreja, estas palavras do Senhor: Amas-Me? Apascenta as minhas ovelhas.

1. Em primeiro lugar, amas-Me? É uma interpelação, porque o estilo de Jesus não é tanto o de dar respostas, mas de fazer perguntas, perguntas que provocam a vida. E o Senhor, que «na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles» (Dei Verbum, 2), pergunta ainda, pergunta sempre à Igreja, sua esposa: «Amas-Me?» O Concílio Vaticano II foi uma grande resposta a esta pergunta: foi para reavivar o seu amor que a Igreja, pela primeira vez na história, dedicou um Concílio a interrogar-se sobre si mesma, a refletir sobre a sua própria natureza e missão. E descobriu-se mistério de graça gerado pelo amor: descobriu-se povo de Deus, corpo de Cristo, templo vivo do Espírito Santo!

Este é o primeiro olhar que devemos ter sobre a Igreja, o olhar do alto. Sim, antes de mais nada a Igreja deve ser vista do alto, com os olhos enamorados de Deus. Perguntemo-nos se, na Igreja, partimos de Deus, do seu olhar enamorado sobre nós. Existe sempre a tentação de partir do eu antes que de Deus, colocar as nossas agendas antes do Evangelho, deixar-se levar pelo vento do mundanismo para seguir as modas do tempo ou rejeitar o tempo que a Providência nos dá e voltar-nos para trás. Mas tenhamos cuidado! Nem o progressismo que segue o mundo, nem o tradicionalismo – o «retrogradismo» – que lamenta um mundo passado são provas de amor, mas de infidelidade. São egoísmos pelagianos, que antepõem os próprios gostos e planos ao amor que agrada a Deus, ou seja, o amor simples, humilde e fiel que Jesus pediu a Pedro.

Amas-Me? Redescubramos o Concílio para devolver a primazia a Deus, ao essencial: a uma Igreja que seja louca de amor pelo seu Senhor e por todos os homens, por Ele amados; a uma Igreja que seja rica de Jesus e pobre de meios; a uma Igreja que seja livre e libertadora. O Concílio indica à Igreja esta rota: como Pedro no Evangelho, fá-la voltar à Galileia, às fontes do primeiro amor, para redescobrir nas suas pobrezas a santidade de Deus (cf. Lumen gentium, 8c; cap. V). Também nós, cada um de nós tem a sua própria Galileia, a Galileia do seu primeiro amor, e seguramente também cada um de nós é convidado hoje a voltar à sua própria Galileia para ouvir a voz do Senhor: «Segue-me». Voltar lá para reencontrar, no olhar do Senhor crucificado e ressuscitado, a alegria perdida, para se concentrar em Jesus. E assim reencontrar a alegria: uma Igreja que perdeu a alegria, perdeu o amor. Quando já se aproximava o fim dos seus dias, o Papa João escrevia: «Esta minha vida, que caminha para o ocaso, não poderia ter melhor coroamento do que concentrar-me totalmente em Jesus, filho de Maria, (...) em grande e continuada intimidade com Jesus, contemplado na imagem: menino, crucificado, adorado no Sacramento» (Jornal da Alma, 977-978). Este é o nosso olhar alto, esta é a nossa fonte sempre viva: Jesus, a Galileia do amor, Jesus que nos chama, Jesus que nos pergunta: «Amas-me”?»

Irmãos, irmãs, voltemos às puras fontes de amor do Concílio. Reencontremos a paixão do Concílio e renovemos a paixão pelo Concílio! Imersos no mistério da Igreja mãe e esposa, digamos também nós com São João XXIII: «gaudet Mater Ecclesia – alegra-se a Mãe Igreja» (Discurso na abertura do Concílio, 11/X/1962). Seja a Igreja habitada pela alegria. Se não se alegra, desdiz-se a si mesma, porque esquece o amor que a criou. E todavia quantos de nós não conseguem viver a fé com alegria, sem murmurar nem criticar? Uma Igreja enamorada por Jesus não tem tempo para confrontos, venenos e polémicas. Deus nos livre de ser críticos e impacientes, duros e irascíveis. Não é só questão de estilo, mas de amor, porque quem ama – como ensina o apóstolo Paulo – faz tudo sem murmurar (cf. Flp 2, 14). Senhor, ensinai-nos o vosso olhar alto, ensinai-nos a olhar a Igreja como a vedes Vós. E quando formos críticos e descontentes, lembrai-nos que ser Igreja é testemunhar a beleza do vosso amor, é viver dando resposta à vossa pergunta: amas-Me? Não é comportar-se como se fôssemos a um velório fúnebre.

2. Amas-Me? Apascenta as minhas ovelhas. A segunda palavra: Apascenta: com este verbo, Jesus exprime o amor que deseja de Pedro. Pensemos precisamente em Pedro: era um pescador de peixes e Jesus transformara-o em pescador de homens (cf. Lc 5, 10). Agora atribui-lhe um ofício novo: o de pastor, que nunca havia exercido. E é uma viragem, porque, enquanto o pescador agarra para si, atrai a si, o pastor ocupa-se dos outros, apascenta os outros. Mais, o pastor vive com o rebanho, alimenta as ovelhas, afeiçoa-se a elas. Não está por cima, como o pescador, mas no meio. O pastor está à frente do povo para assinalar o caminho, no meio do povo como um deles, e atrás do povo para estar perto daqueles que vão atrasados. O pastor não está por cima, como o pescador, mas no meio. Eis o segundo olhar que nos ensina o Concílio: o olhar no meio, estar no mundo com os outros e sem nunca se sentir acima dos outros, como servidores do maior reino que é o Reino de Deus (cf. Lumen gentium, 5); levar a boa nova do Evangelho para dentro da vida e das línguas dos homens (cf. Sacrosanctum Concilium, 36), partilhando as suas alegrias e esperanças (cf. Gaudium et spes, 1). Estar no meio do povo, não acima do povo: este é o pecado feio do clericalismo que mata as ovelhas, não as guia, nem as faz crescer; mata-as. Como é atual o Concílio! Ajuda-nos a rejeitar a tentação de nos fecharmos nos recintos das nossas comodidades e convicções, para imitar o estilo de Deus, que nos descreveu hoje o profeta Ezequiel: «procurarei a [ovelha] que se tinha perdido, reconduzirei a que se tinha tresmalhado; cuidarei a que está ferida e tratarei da que está doente» (Ez 34, 16).

Apascenta: a Igreja não celebrou o Concílio para fazer-se admirar, mas para se dar. De facto, a nossa santa Mãe hierárquica, nascida do coração da Trindade, existe para amar. É um povo sacerdotal (cf. Lumen gentium, 10s.): não deve destacar-se aos olhos do mundo, mas servir o mundo. Não o esqueçamos! O povo de Deus nasce sociável e rejuvenesce gastando-se, porque é sacramento de amor, sinal e «instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» (Lumen gentium, 1). Irmãos e irmãs, voltemos ao Concílio, que redescobriu o rio vivo da Tradição sem estagnar nas tradições; reencontrou a fonte do amor, não para ficar a montante, mas para que a Igreja desça a jusante e seja canal de misericórdia para todos. Voltemos ao Concílio para sair de nós mesmos e superar a tentação da autorreferencialidade, que é um modo de ser mundano. Apascenta – repete o Senhor à sua Igreja – e, apascentando, supera as nostalgias do passado, o lamento pela falta de relevância, o apego ao poder, porque tu, povo santo de Deus, és um povo pastoral: não existes para te apascentar a ti mesmo, para galgar, mas para apascentar os outros, todos os outros, com amor. E, se é justo prestar uma atenção particular, que esta seja para os prediletos de Deus, isto é, os pobres, os descartados (cf. Lumen gentium, 8c; Gaudium et spes, 1), a fim de ser, como disse o Papa João, «a Igreja de todos, e particularmente a Igreja dos pobres» (Radiomensagem aos fiéis de todo o mundo um mês antes do Concílio Ecuménico Vaticano II, 11/IX/1962).

3. Amas-Me? Apascenta – conclui o Senhor – as minhas ovelhas. Não tem em mente só algumas, mas todas, porque ama a todas; a todas designa, afetuosamente, como «minhas». O bom Pastor vê e quer o seu rebanho unido, sob a guia dos Pastores que lhe deu. Quer – e é o terceiro olhar – o olhar do conjunto: todos, todos juntos. O Concílio recorda-nos que a Igreja, à imagem da Trindade, é comunhão (cf. Lumen gentium, 4.13). Em vez disso, o diabo quer semear a cizânia da divisão. Não cedamos às suas adulações, não cedamos à tentação da polarização. Quantas vezes, depois do Concílio, os cristãos se empenharam por escolher uma parte na Igreja, sem se dar conta de dilacerar o coração da sua Mãe! Quantas vezes se preferiu ser «adeptos do próprio grupo» em vez de servos de todos, ser progressistas e conservadores em vez de irmãos e irmãs, «de direita» ou «de esquerda» mais do que ser de Jesus; arvorar-se em «guardiões da verdade» ou em «solistas da novidade», em vez de se reconhecer como filhos humildes e agradecidos da santa Mãe Igreja. Todos, todos somos filhos de Deus, todos irmãos na Igreja, todos Igreja, todos. O Senhor não nos quer assim: somos as suas ovelhas, o seu rebanho, e só o seremos juntos, unidos. Superemos as polarizações e guardemos a comunhão, tornemo-nos cada vez mais «um só», como Jesus implorou antes de dar a vida por nós (cf. Jo 17, 21). Nisto, nos ajude Maria, Mãe da Igreja. Aumente em nós o anseio pela unidade, o desejo de nos empenharmos pela plena comunhão entre todos os crentes em Cristo. Deixemos de lado os «ismos»: o povo de Deus não gosta desta polarização. O povo de Deus é o santo povo fiel de Deus: esta é a Igreja. É bom que hoje, como durante o Concílio, estejam connosco representantes doutras Comunidades cristãs. Obrigado! Obrigado por terem vindo! Obrigado pela presença!

Nós Vos damos graças, Senhor, pelo dom do Concílio. Vós que nos amais, livrai-nos da presunção da autossuficiência e do espírito da crítica mundana. Livrai-nos da autoexclusão da unidade. Vós, que nos apascentais com ternura, fazei-nos sair dos recintos da autorreferencialidade. Vós que nos quereis rebanho unido, livrai-nos do artifício diabólico das polarizações, dos «ismos». E nós, vossa Igreja, com Pedro e como Pedro Vos dizemos: «Senhor, Vós sabeis tudo; bem sabeis que Vos amamos» (cf. Jo 21, 17).


Sinodais a irradiar

Georgino Rocha | 09 Outubro 2022 | in 7 Margens

A comunidade católica quer “continuar o exercício exigente e nunca acabado de promover a sinodalidade na vida e na missão da Igreja”, escreve D. João Lavrador na carta pastoral “Eu renovo todas as coisas”, para o ano apostólico 2022-2023.

Cada ano que começa é “sempre uma oportunidade para a renovação e para sonhar novos caminhos, a nível pessoal, familiar e comunitário”.

Os Conselhos Pastorais, Diocesano, Paroquiais, de Unidade Pastoral e Arciprestal, “a que temos de dar novo vigor, revestem-se de máxima importância no exercício da sinodalidade eclesial”.

Uma “liderança de serviço” assente na fé, faculta aos líderes empresariais uma perspectiva mais ampla e ajuda-os a equilibrar os requisitos do mundo dos negócios com os do Evangelho, assinala o livro “A vocação do líder empresarial”, do Conselho Pontifício Justiça e Paz.

Novos desafios

Que desafios traz à Igreja em Portugal este relatório? [da Conferência Episcopal Portuguesa, CEP, para o Sínodo 2021-2023] – interrogava-se o padre Jorge Guarda, no Simpósio do Clero, a 24 de setembro. E adiantava: Discernir juntos, envolver todos na renovação e despertar a consciência missionária da Igreja.

A Igreja só será missionária na medida em que sair ao encontro dos homens, caminhar, escutar, dialogar e colaborar com eles, dando testemunho com respeito e amor da fé e esperança que lhe vêm de Jesus Cristo morto e ressuscitado. Também a relação da Igreja com o mundo tem de ser sinodal, ou seja, de abertura, partilha de dons e inquietações, de procura da verdade e da justiça. Vão neste sentido os caminhos da missão.

Em conclusão, como disse D. José Ornelas no final do Simpósio do Clero, em resposta à pergunta acima referida, o Relatório da CEP é um instrumento para continuar a caminhada e o discernimento nos diferentes níveis da vida da Igreja no nosso país.

O processo e o caminho estão apenas no início. Avancemos com confiança, guiados e animados pelo Espírito Santo e não nos deixemos parar pelo cansaço, desalento ou retardar dos frutos. Irradiemos o estilo sinodal. A renovação da Igreja está a urgir e transformação e a humanização da cultura é premente.

Georgino Rocha é padre católico da diocese de Aveiro e desempenhou já o cargo de vigário diocesano da pastoral.


Igreja sinodal, a fé permeia a vida secular

Georgino Rocha | 29 Set 2022 | in 7 Margens

Nunca antes uma reflexão tão participada e sobre tantos aspectos relevantes da vida da Igreja e da sua relação com o mundo havia sido produzida e publicada em Portugal.

Análise crítica, coragem e novidade que traduzem confiança na capacidade das comunidades cristãs em “fazer florescer a esperança (…), ouvir uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações e restitua força às mãos” e de nesse caminho serem assistidas pelo Espírito Santo.

O discernimento pastoral

“O que Jesus faria em nosso lugar?, constitui a pergunta chave que guia a reflexão e partilha dos participantes no congresso de Católicos e Vida Pública, no Chile, de 23 e 25 de Agosto de 2022.

O guião dos numerosos participantes, presenciais e online adianta em jeito de quem abre horizontes: Vamos tentando conscientizar que, como leigos com fé, devemos viver nossa fé na vida pública, e que a fé permeia tudo o que fazemos. Por isso, em cada ano abordamos diferentes temas e tentamos mobilizar e conscientizar. Somos uma instituição educacional com impacto na sociedade.

Os participantes pedem que os cristãos sejam “mais autênticos no seu comportamento para com os outros” e que a Igreja viva de forma mais “coerente e corajosa… (com) um novo perfil e uma nova atitude da parte dos sacerdotes e bispos, sendo mais próximos e mais abertos à participação”, promovendo a missão dos leigos, especialmente das mulheres.

Mundo digital

Quanto ao mundo digital, sublinha-se o seu potencial para a “formação na fé”, integrando os “influenciadores/evangelizadores digitais como um canal formativo de valor e futuro”.

A necessidade sai reforçada depois de 110 mil pessoas terem respondido a um questionário online promovido por 244 “influenciadores” e missionários digitais, para o Sínodo 2021-2023, sublinhando a importância de uma pastoral própria para este setor.

“Foi verdadeiramente uma graça de Deus, muito importante, que mostra a necessidade de a Igreja cuidar cada vez mais do continente digital com uma Pastoral Digital organizada e sistemática, a fim de apoiar os missionários digitais”, pode ler-se no relatório conclusivo da iniciativa, divulgado pelo portal de notícias do Vaticano.

A iniciativa “A Igreja escuta-te” foi promovida pelo Dicastério para a Comunicação, da Santa Sé, e a Rede Informática da Igreja na América Latina, tendo recolhido contributos em sete línguas, incluindo o português.

“Precisamos de comunicar, descobrir as riquezas de cada um, valorizar aquilo que nos une e olhar as diferenças como possibilidades de crescimento no respeito por todos” (encíclica Fratelli Tutti, 143).

“Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana” (FT 43).

Uma nova cultura

Numa perspectiva singular, o Papa Francisco observa: Fazer crescer uma cultura do encontro que supere as dialéticas que colocam um contra o outro. É um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem uma unidade rica de matizes, porque “o todo é superior à parte”. O poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém é inútil, ninguém é supérfluo. Isto implica incluir as periferias (cfr. FT 215).

O Programa Pastoral 2022-23 da diocese de Aveiro propõe-se ajudar a definir, promover e implementar o espírito sinodal como forma de ser e edificar a Igreja de Jesus, neste tempo e nesta cultura. Em sintonia eclesial.

Georgino Rocha é padre católico da diocese de Aveiro e desempenhou já o cargo de vigário diocesano da pastoral.


O Relatório de Portugal – O caminho da sinodalidade

Set 16, 2022 | in Ecclesia

Maria Carlos Ramos, Coordenadora do processo sinodal na Diocese de Santarém

Gostava de começar por afirmar que a leitura do Relatório de Portugal, enviado pela Conferencia Episcopal ao Sínodo 2021/2023, me enche de gratidão para com a equipa de redação do documento, toca-me particularmente o gigantesco trabalho de atenção e cuidado, que se adivinha por detrás deste documento.

Não é de mais recordar o processo em si, a proposta, lançada pelo Papa, de uma auscultação do Povo de Deus como parte da preparação para o Sínodo dos Bispo sobre a Sinodalidade, em Outubro de 2023. A princípio era simples. Tão simples que houve dificuldade em nos sintonizarmos. Parecia, tão só, o exercício de: Tomar a Palavra e Escutar. Evocar o Espírito Santo e, de coração, dizermos e escutarmos a Sinodadlidade na Igreja, hoje, na nossa comunidade!

Tomar a Palavra e dizer a Igreja a partir do nosso lugar (cultural, social, linguístico, etário…), revelou ser um exercício muito difícil, desconfortável para muitos. Mas tomar a palavra, ouvir a nossa própria voz e saber que se é escutado sem pré-juízo, é de uma imensa responsabilidade. Saber, que mesmo mal dita, deslocada ou imprecisa a nossa palavra conta, é um acto de humildade e de coragem. Depois, Escutar, escutar todas as palavras, as de dentro e as de fora da Igreja, as iguais e as diferentes, as de perto e as de longe, as que estamos cansados de ouvir e as que nunca quisemos ouvir. É o imperativo da humildade e da coragem.

Na fase diocesana, em cada encontro, a cada temática proposta, o exercício de Tomar a Palavra e Escutar, havia de repetir-se, pelo menos três vezes. No final, o redator, tentaria a síntese … Talvez falhassem as palavras, as ideias não estivessem completas, talvez a própria palavra ou opinião se esfumasse face à palavra do outro que abriu horizonte… No final uma palavra sóbria, comum, nascia da oração e do desejo profundo de ser mais ao jeito do Evangelho. Num exercício de introspeção e conversão, no colectivo.

Uma só proposta, um mesmo exercício para as três fase de preparação para o Sínodo.

Neste relatório, temos as Diocese, Movimentos, Congregações, … a Tomar a Palavra a partir do que Escutaram às paroquias e aos grupos locais. Numa breve introdução, damo-nos conta da imaginação e da criatividade, nas formas e nos meios, que foram postas ao serviço deste processo, para alcançar o maior número de participantes, chamar a atenção aos mais distraídos, aos de dentro e de fora.

Depois, a apresentação dos resultados de ‘uma caminhada sinodal que foi acolhida com entusiasmo e espectativa’. Em vinte parágrafos são sintetizados, de modo englobante e claro, as fragilidades e desafios do nosso tempo, identificados pelo Povo de Deus em Portugal. Quem acompanhou de perto o trabalho dos pequenos grupos nas comunidades não pode deixar de reconhecer que a equipa de redação deste documento captou e foi, tanto quanto lhe foi possível, de uma grande fidelidade às inquietações e adversidades, às questões, às perplexidades e complexidades do nosso tempo identificadas pelos participantes… mas também à sinceridade e à transparência, ao desejo de crescer em corresponsabilidade na Igreja, também às esperanças e à solidez da fé do Povo de Deus.

Gosto deste relatório, até pelo incómodo que me causa.

Fomos capazes de nos desnudarmos!?

Parece-me que este relatório pode mapear os caminhos da nossa conversão, hoje.


Igreja sinodal, luz a irradiar

Georgino Rocha | 18 Set 2022 | in 7 Margens

A Igreja sinodal vai crescendo na cultura da solicitude, na prática do discernimento, na valorização da dimensão integral do ser humano: conhecimento, experiência, afectos, vontade; em ordem a avaliar cada decisão e a promover o bem pessoal integrado no bem comum. Pretende que os cristãos acertem o passo pelo ritmo do Espírito que constantemente nos impele para a verdade e para o bem, fomentem a fraternidade sinodal que desde já mobiliza as forças de cada um e de todos; fraternidade sinodal universal, ministério saudável sinodal. Sempre a irradiar.

A Igreja, na sua constituição de povo de Deus, sabe situar-se na linha de Jesus Cristo-apóstolos-ministérios, uns ordenados, outros instituídos, nomeados e uma séria de serviços reconhecidos. E quer acertar o passo.

A favor dos “três P’s”

Na sinodalidade sou a favor dos três P’s: paciência, perseverança e presença, garante Luís Marín, subsecretário do Sínodo. Estamos caminhando para uma Igreja muito mais integrada e interrelacionada, uma Igreja de escuta e participação, de comunhão e dinamismo.

É preciso tomar decisões que podem ser arriscadas, dar passos, ouvir. É falso o contraste entre dons hierárquicos e carismáticos. Assim como a solução assembleista, a anulação dos carismas por meio de votos e maiorias, do ponto de vista político ou sociológico. Caminhamos juntos, confiando no Espírito. Com profunda gratidão e, sinceramente, com enorme entusiasmo.

A secularização levada a sério

Como escrevia Jorge Wemans no 7MARGENS: “Publicado num contexto em que muitas vozes católicas faziam ressoar uma espécie de “toque a reunir” para salvar a Igreja dos ataques dos seus inimigos sempre prontos a usarem factos poucos esclarecidos para contra ela lançarem anátemas definitivos, o contributo sinodal da CEP ganha ainda maior relevância.

Nele supera-se uma visão da Igreja enquanto sociedade perfeita gerida por príncipes escolhidos por Deus que nenhuma prestação de contas devem aos crentes, aos cidadãos ou à sociedade, para se propor uma Igreja como uma instituição diferente de qualquer outra, mas, como todas as outras, sujeita não apenas ao princípio da prestação de contas, mas comprometida a responder a todas as questões que cidadãos, sociedade e Estado lhe coloquem.”

E agora?

“Nunca antes uma reflexão tão participada e sobre tantos aspetos relevantes da vida da Igreja e da sua relação com o mundo havia sido produzida e publicada em Portugal.” (do mesmo texto citado)

Vivemos um tempo de expectativa activa, de participação e construção, de contribuição para que os resultados finais do Sínodo de 2023 sejam marcados pelo arrojo e pela novidade que são a marca do Espírito. Espírito que sempre, e agora de forma mais urgente, nos chama a renovarmos o modo de ser comunidade para podermos acolher “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo as dos pobres e de todos aqueles que sofrem”, como sendo nossas.

Georgino Rocha é padre católico da diocese de Aveiro e desempenhou já o cargo de vigário diocesano da pastoral.


Igreja sinodal na sociedade secular

Georgino Rocha | 11 Set 2022 | in 7 Margens

A sociedade secular, com a autonomia que lhe advém do Criador e da sabedoria humana que se espelha nas culturas e organizações políticas e religiosas, ó o único espaço onde a Igreja pode realizar a missão que Jesus Cristo lhe confia. A sociedade habitada pelos seres criados e enriquecida pelos dons da natureza e do trabalho humano, como bem se afirma na apresentação do pão e do vinho na eucaristia.

Esta verdade sublime tem outra face, como advertia o cardeal de Goa e Damão, na Índia, D. Filipe Néri Ferrão, em entrevista à Rádio Renascença. Sobre os desafios atuais dos cristãos na Índia, onde o cristianismo é minoritário, observa que ser cristão na Índia hindu “apresenta o mesmo tipo de problemas e desafios” que se vivem num mundo caracterizado pelo secularismo, materialismo, consumismo, “com o seu inevitável impacto sobre a vida e a vivência cristã”.

As pessoas honestas de um mundo secularizado não rejeitam os apelos do transcendente e do religioso, se não encontram resposta rumam “à procura como peregrinos e vão batendo às portas onde se anuncia algo que tenha a ver com o espiritual que grita e incomoda dentro de cada um”, escrevia o antigo bispo de Aveiro, António Marcelino (A vida também se lê, vol. IV, p. 106).

No Curso de Missiologia realizado em Fátima, de 22 a 27 de Agosto de 2022, afirmava o arcebispo de Braga, D. José Cordeiro, ao apresentar o tema “A missão em Portugal e desde Portugal”: “O problema fundamental é que não temos adultos na fé, não temos adultos em Cristo. E sem fé enraizada em Cristo Ressuscitado não se dá testemunho apelativo na sociedade secular.”

Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio, verifica que “hoje a Igreja parece viver muito dentro da praça eclesiástica, apesar dos convites do Papa Bergoglio para sair… Muitas vezes os discursos eclesiais não falam a vida comum.”

A Igreja é vista como sendo “demasiado hierárquica, clerical, corporativa, pouco transparente, estagnada, resistente à mudança”, dando prioridade à manutenção da imagem, ao invés de preservar a segurança da comunidade, surgindo os casos de pedofilia como exemplo mais evidente. Uma Igreja pouco disponível para discutir de forma aberta e descomplexada a possibilidade de tornar opcional o celibato dos sacerdotes e a ordenação de homens casados e das mulheres, sem as considerar em igualdade com os homens na missão, pode ler-se no relatório enviado pela Conferência Episcopal Portuguesa, CEP, para a Secretaria-Geral do Sínodo dos Bispos

O diagnóstico está feito. É preciso ser consequente. A experiência sinodal abre caminhos. A sociedade secular espera os contributos dos cidadãos cristãos para fomentar a humanização integral.

O Papa Francisco, com lucidez profética, aponta caminhos. Aprecia a sã secularidade e destaca o estilo de proximidade, a necessidade de combinar contemplação e missão, de encontrar na familiaridade com Deus a força para o serviço como vocação fronteiriça; de redescobrir e mostrar o rosto da Igreja samaritana que necessita de fazer presente a sua laicidade sem pretensões e de ver os seus pastores implicados neste processo transformador. “Não vos canseis de levar ao mundo o anúncio da vida nova, da fraternidade universal e da paz duradoura, esplêndidos dons do Senhor ressuscitado” (Discurso aos Institutos Seculares).

Georgino Rocha é padre católico da diocese de Aveiro e desempenhou já o cargo de vigário diocesano da pastoral.


1 de 3 pequenas crónicas sinodais

A tensão entre a igreja administrativa e a igreja dos valores

Nuno Caiado | 27 Ago 2022 | in 7 Margens

Atrevo-me a escrever estas crónicas contra o aviso terno da minha mulher: não faças isso, ficas conhecido como o tipo cáustico de mau feitio, que é sempre do contra. Mas se não faço isso, faço o quê, fico a olhar?

Preâmbulo. Confesso-me pessimista. Sempre o fui toda a minha vida, sempre interpretei a vida com um sentimento de que tudo poderia ser diferente e melhor. Atribuo esse pessimismo ora à lucidez, ora à falta dela. Possivelmente, por isso, terei desiludido terceiros, família, colegas, amigos. A eles, as minhas desculpas.

Relativamente ao processo sinodal da Igreja Católica, quer parecer-me que o meu pessimismo não está sozinho. Confesso que nele não me tenho empenhado (quase-quase) nada quer por indolência, quer por uma descrença inicial muito interiorizada, em que ambos os termos se alimentam mutuamente.

Julgo não estar isolado, já de tantos lados surgem suspiros de desalento. Por mais que o 7 MARGENS estoicamente se esforce em dar nota de tantas reflexões e ideias originárias das comunidades, sobretudo paroquiais (já agora, uma igreja confundida com paróquias sempre me pareceu uma grande limitação), percebemos que os filtros institucionais funcionam demasiado bem e que elas parecem condenadas à menorização, como se fossem apenas exteriorização de tristezas conjunturais ou a manifestação de ideias marginais e peregrinas (donde virá esta expressão?) quando são, de facto, emanações directas da vida cristã que pedem honesta e justamente mudanças na organização eclesial, no modo de a Igreja estar no mundo, nas celebrações litúrgicas, na reflexão sobre os temas da actualidade. Querem ser ouvidos e contribuir para o futuro, dois aspectos que parecem ser insuportáveis para a Igreja institucional. O magnífico e corajoso artigo de Jorge Wemans confirma-me esta ideia.

Na minha condição de cristão teologicamente não instruído (que, como verão, não me inibe o atrevimento), ainda que razoavelmente habilitado a interpretar as organizações humanas, vejo aquela tensão que se avoluma entre o imobilismo e a vontade de ser e fazer como a manifestação do confronto entre dois modelos de igreja.

Dois modelos de igreja. Esses modelos são o de uma igreja administrativa e funcionalista que se cristalizou no dogmatismo e nas regras, vivendo exacerbadamente para elas; e o de uma igreja dos valores evangélicos, aos ziguezagues na história, tendencialmente marginal, que procura uma relação com o mundo e se lhe oferece.

Procurando densificar.

A igreja administrativa auto-concebe-se como uma estrutura regida hierarquicamente por normativos imperativos, a que o mundo deveria adaptar-se e obedecer; daí ser autoritária e soberba, imitando a administração napoleónica estadual (de outros tempos mas que, infelizmente, permanece estruturante da sua vetustez), por isso convertendo-se rapidamente em fonte de legitimação e de sustentação das tendências políticas conservadoras (dizia recentemente Luís Osório que “a Igreja Católica foi ‘uma apoiante histórica de quase todas as ditaduras ou projectos autoritários de extrema direita’, sem que consigamos negar a triste evidência) A exacerbação institucional torna-se uma ferramenta de controlo e dominação ideológica. À igreja administrativa interessa-lhe pouco os sinais dos tempos porque o mundo e as pessoas são-lhe secundários; os seus eixos identitários que modelam a organização e seu funcionamento são as regras e o exercício do poder que, percebemo-lo tantas vezes, se exerce à revelia do evangelho, se não mesmo contra o evangelho, ainda que em seu nome. Esta igreja não é um instrumento, mas uma finalidade. É ainda impossível ignorar como é dramaticamente misógina e classicista, e – pior! – se sente bem com isso.

Em tal ecossistema, não admira que os membros do clero surjam frequentemente como funcionários do culto, a que não deverá ser indiferente a impreparação teológica. Consequentemente, a liturgia que encontramos em tantas paróquias (e seguramente nas terríveis transmissões televisivas), é a de um ritual dominical rígido, em geral de mau gosto estético e temporalmente desajustado, que parece imune à vida concreta dos crentes e ainda mais ao mundo exterior.

Em resumo: esta igreja ritual é um grande juiz aferidor da ordem estabelecida, alicerçada na visão de um Deus fiscal e ameaçador, não na de um Deus misericordioso e do amor que sofre com a humanidade dos seus filhos.

As consequências deste rumo eclesial são já conhecidas: perca acentuada de credibilidade e de atracção, tendência para a irrelevância orgânico-institucional, e enfraquecimento intelectual e espiritual dos crentes cada vez mais impreparados para lidar com o mundo a partir de um sistema de valores religiosos fortemente ideologizado e desajustado da realidade.

Por seu lado, a igreja dos valores é um ensaio inacabado de tentar ser mais fiel ao Evangelho, que pretende que seja mais central no seu pensamento e actividade; por isso, parece mais preparada para anunciar Deus, desde logo porque na leitura da realidade entram não apenas factores ideológicos, mas outras lentes. Por exemplo, nela, a caridade e a misericórdia subsistem como ideias e práticas fulcrais, mas transfiguram-se numa solidariedade que é enquadrada por uma visão social da pobreza e das dificuldades sociais. A encíclica Fratteli Tutti é um expoente actual desta visão evangélica, razão por que o funcionalismo eclesial se tem mostrado resistente à encíclica de Francisco (e, notoriamente, ao próprio Papa).

A igreja dos valores parece ser mais favorável à reflexão geradora de uma fé adulta que inclui mais as interrogações do que o absolutismo das certezas, pois é na inquietação que reside o Espírito. Mostra-se tendencialmente mais inclusiva e permeável à participação de todos, à igualdade dos membros do povo de Deus, ao diálogo interno e externo com o mundo a que pertence e que visa servir. Acolhe mais do que exclui (mulheres, LGBT+, divorciados não são problema – de resto, porque estranhíssima razão o seriam?) enquanto tem mais uma atitude de procura do que de rendição ao establishment, razão por que é menos ideológica e mais democrática (será um paradoxo?) e plural. Só por esta razão já é mais sinodal.

Possivelmente é menos dogmática mas mais complexa, cosmopolita, solta, livre, dialogante e comprometida com a realidade. Pode sentir mais dificuldade em encontrar soluções organizativas – a paróquia territorial não precisa de ser necessariamente a sua base, cedendo espaço aos movimentos que agregam pessoas por interesses e vocações. Por fim, nela os padres não são funcionários do culto, não são gestores de coisas, mas pastores de pessoas – todas, independentemente do sexo, estatuto ou qualquer outra condição ou característica – que anseiam não por ser geridas, mas sim guiadas na fé por quem saiba de teologia e de relação humana. E, por isso, imagino nesta igreja uma liturgia participada como celebração da fé e de trajectos comuns, mais do que um rito obrigatório.

Resumindo: esta visão de igreja está mais próxima da fórmula a Igreja é para o mundo e não o mundo para a Igreja.

Os modelos somos nós. Evidentemente que estes dois modelos de igreja – a que subjazem diferentes leituras ou concepções do evangelho, éticas e o respectivo sistema de valores – não existem em estado puro em si mesmo e em cada um de nós; eles interpenetram-se dinamicamente, com o primeiro a ter expressões excessivamente aprimoradas que, como hoje bem o sabemos, tem levado a toda a espécie de desvarios, e o segundo a ser um esforço algo errático de afirmação, enquanto experimenta continuamente a complexidade de ser menos institucional.

Também é claro que os dois modelos desgostam-se mutuamente. Daí que vejamos uma luta entre as duas igrejas, com a administrativa predominante a usar a sua blindagem histórica para resistir às tentativas de abertura e renovação da segunda. No meio, o Papa Francisco, pastorando sabiamente.

Se é certo que em qualquer destes modelos pessoas haverá que encontrarão os caminhos para o céu, o grande desafio a que todos temos que responder é: a qual dos modelos damos primazia nos nossos corações, nas nossas vidas, nas paróquias, movimentos e comunidades a que nos referenciamos, e qual deles queremos para a Igreja.


Bispos publicam síntese

Católicos portugueses desenham uma Igreja radicalmente diferente

In 7Margens | 26 Ago 2022

Os bispos portugueses divulgaram nesta sexta, 26, a síntese nacional das sínteses diocesanas, a que deram o nome de “Relatório de Portugal”, um texto que está já pronto há algum tempo e que foi enviado para o secretariado geral do Sínodo, em Roma, antes de 15 deste mês.

Cumprindo escrupulosamente as 10 páginas superiormente sugeridas, o documento é composto por três partes: uma sobre os processos de recolha de informação, com dados descritivos do que se passou, sem quantificar; uma parte mais substantiva centrada nos conteúdos extraídos das sínteses das dioceses; e a terceira sobre “uma visão da Igreja atual e propostas de mudança”. O objetivo genérico, que vem numa breve introdução, é “ajudar a passar de uma Igreja exageradamente centrada na autoridade e ação do clero para uma Igreja sinodal e missionária, na comunhão e participação ativa de todos os seus membros”.

A parte mais substantiva chega à afirmação de que “as diferentes comunidades diocesanas acreditam que a participação, corresponsabilidade e sinodalidade não são ainda efetivamente praticadas na Igreja”. A ausência dessas práticas – diz o Relatório – “tem consequências na forma como se vive e se perceciona a Igreja”, o que é ilustrado através de uma listagem de aspetos de carga negativa, que caraterizariam a Igreja.

Entre esses aspetos surgem as afirmações de ser “pouco inclusiva e acolhedora, discriminando quem não está integrado ou não vive de acordo com a moral cristã”; uma Igreja que “tem dificuldade em fazer caminho com os jovens”, os quais, por sua vez, acham que ela tem uma “mentalidade retrógrada e desajustada dos tempos em que vivemos”.

“Demasiado hierárquica, clerical, corporativa, pouco transparente, estagnada e resistente à mudança” são caraterísticas que o documento atribui à Igreja, a qual dá mais importância à sua imagem do que à segurança da comunidade, como ocorreu e ocorre com os abusos sexuais.

Por outro lado, é criticada a pouca abertura para debater de forma “aberta e descomplexada a possibilidade de tornar opcional o celibato dos sacerdotes e a ordenação de homens casados e das mulheres” e presa a um modelo que “concebe o humano a partir do masculino”.

O texto refere também aquilo que designa por “ambiguidade” relativamente a movimentos dentro da Igreja, valorizando os que fazem uma “experiência espiritual”, mas não têm em conta a “comunhão” e o diálogo com o mundo.

A “igualdade de mulheres e homens na missão” é também apontada como carecendo de reconhecimento, o que é visível nos processos de tomada de decisão e escolha de lideranças, considerado “pouco transparente e inclusivo”, com cargos ocupados por pessoas com posições vitalícias.

A formação dos presbíteros apresenta deficiências, segundo o Relatório dos bispos, desde logo, “para lidar com os problemas humanos da vida contemporânea”, para o trabalho em equipa, para responder aos desafios das questões de género e para que sejam homens do seu mundo e do seu tempo, com uma dimensão humana, espiritual e social”.

A assunção das causas da ecologia integral e a defesa da Casa Comum como um imperativo; a atenção à “solidão social” dos jovens no “planeta digital”; a adaptação aos ritmos e às exigências da família de hoje; e a insuficiência do diálogo ecuménico e com a sociedade são outras tantas limitações e desafios apontados na síntese nacional.

A este ‘prato da balança’ dos aspetos negativos, a síntese opõe a seguir, como que a contrabalançar, um conjunto de aspetos positivos. Desde logo, “a Igreja é tida globalmente como uma instituição credível, presente nos locais onde ninguém ousa ir e solidária com os mais desfavorecidos, a quem presta assistência, mesmo quando falham todas as outras respostas sociais”.

Além da dimensão socio-caritativa que “confere à Igreja uma visão positiva aos olhos da sociedade”, o documento sublinha “o papel relevante nas áreas da educação, saúde e apoio à terceira idade, e a sua presença humanizadora nos momentos mais difíceis na vida de um indivíduo, acompanhando-o no luto e gestão da dor”.

O episcopado dá já por seguro um assunto de atualidade que tem estado nas primeiras páginas dos órgãos de informação, a saber, o dos abusos: “reconheceu-se também que, ao assumir e corrigir os erros do passado, como no caso dos abusos de menores, a Igreja continua a ser uma referência positiva no seio da sociedade”.

E é neste seguimento de aspetos a sublinhar o ‘prato positivo’ da balança, que surge um parágrafo em que se diz “Dado o desafio lançado pela Santa Sé, que nos pede uma avaliação profunda sobre a Igreja e propostas de mudança, não podemos deixar de notar que a visão atual da Igreja é, pois, marcada por uma imagem maioritariamente desfavorável”, em decorrência do ponto em que se anotaram os aspetos negativos.

Considerando-os “áreas onde a conversão é urgentemente pedida”, o Relatório avança com preocupações que passam, a título exemplificativo, por “uma Igreja de portas abertas, que abrace a diversidade e acolha todos, excluindo as atitudes discriminatórias que deixam à margem a comunidade LGBTQIA+ e os divorciados recasados”; “uma Igreja que dê voz às minorias e estabeleça um diálogo com as periferias, sobretudo, aos que estão mais próximos de nós, denunciando a pobreza e apoiando os pobres, valorizando o que é essencial a uma vida digna e dando maior atenção aos recursos do planeta”.

De seguida, fazem-se múltiplas sugestões que vão de encontro – e procuram ser tópicos para as respostas – aos aspetos negativos atrás enunciados. Exemplos possíveis: participação, transparência e rigor nas formas de decisão e gestão; interconhecimento de movimentos e grupos nas comunidades paroquiais e inter-paróquias; exigências na formação e exercício do ministério de presbítero; atenção à comunicação e à linguagem; participação dos leigos e, particularmente, das mulheres na vida e nas instâncias de decisão da Igreja, entre outros.

Uma orientação enunciada na parte final da síntese, a que vale a pena prestar atenção, diz respeito ao papel que pode vir a ter a Conferência Episcopal Portuguesa na consolidação da consciência sinodal, “dando continuidade a esta dinâmica de caminhada conjunta, com linhas pastorais programáticas… para toda a Igreja em Portugal, programa este delineado a partir da escuta das dioceses que, por sua vez, escutam as suas comunidades”.


POR UMA IGREJA SINODAL

“Nós, cristãos, não somos educados para ler a realidade. Só para os sacramentos. Por isso, as igrejas estão vazias”

ESPECIAL ENTREVISTA P. DOMINGOS MONTEIRO DA COSTA

Rita Carvalho e Rúben Marques| 11 Ago 2022 | in Ponto SJ

(Continuação da secção: Eu sou porque nós somos)

Aos 80 anos, o P. Domingos Monteiro da Costa, jesuíta há 63, celebrou 50 anos de sacerdócio. Pároco da Mexilhoeira Grande, no Algarve, há 47 anos, aí desenvolve um forte e intenso trabalho pastoral e social.

O início da sua vida pastoral foi na Alemanha com algumas experiências na Dinamarca, na Suécia. Como foi?

Fui em 1973 passar o Natal com os imigrantes portugueses. Depois comecei a substituir um padre alemão na zona de Frankfurt. Em 1976 fui substituir outro pároco, mas não me agradou nada, só tinha missa ao domingo, mais nada que fazer à semana. No ano seguinte consegui ir para a paróquia de Langen, através de um colega meu português que estudou lá. Em 1977 pedi-lhe uma paróquia alemã, até para ter um bocado de férias fora da Mexilhoeira Grande, e havia um padre que estava à espera de substituto. Foi ouro sobre azul. A partir de 77, fui sempre substituir o pároco, todos os verões, até 2019, só a covid me fez interromper essa ligação. Mas agora a paróquia convidou-me para ir lá celebrar os meus 50 anos de padre.

Nessa altura, na Igreja já se começavam a falar das questões sociais, na sequência do Concílio, e já havia jesuítas nas paróquias. O P. Domingos já preferia o trabalho pastoral às aulas de filosofia e já tinha a ideia de se juntar a outros companheiros para essa missão. Como surgiu essa oportunidade?

Foi o P. Fragata que nos mandou para o Algarve. O P. Esteves esteve um ano em Portimão a fazer um estudo para a abertura de uma comunidade jesuíta no Algarve, mas chegou à conclusão de que o pároco de Portimão não queria lá religiosos. Fez um relatório a dizer que era impossível irmos para Portimão. Mas o bispo D. Florentino Andrade e Silva é que nos chamou para o Algarve. Quando viemos foi sempre na suposição de que viriam outros jesuítas.

Vieram só por dois meses, certo?

Não, nós viemos enviados pelo Provincial só para ver o terreno, não trouxemos tralha nenhuma e só nos deram dez contos para o começo. Já tínhamos um apartamento, sem nada, para nos instalarmos. O bispo como não conseguiu ninguém para a paróquia da Mexilhoeira Grande passou por lá e deixou-nos um bilhete debaixo da porta. Foi no dia 2 de outubro de 1975 e dizia o seguinte: “Se hoje passarem pelo apartamento antes das 15h apareçam na sacristia da paróquia da Mexilhoeira que eu estou lá numa reunião.” Vimos o bilhete, fomos ao encontro e aí se resolveu o nosso futuro.

Mas não sabiam ao que iam…

Nada. Quando chegámos à matriz (da Mexilhoeira Grande) estavam reunidos com o vigário e os párocos de Portimão à procura de um padre para a Mexilhoeira. Alguém deve ter dito ao bispo: “Estão aí esses dois padres sem fazer nada, é mandá-los para lá”. O P. Arsénio, que estava habituado às lutas, disse-me: “Vamos pedir cinco minutos para refletir. Eles querem correr connosco de Portimão. Vamos aceitar ficar aqui, mas com um padre de Portimão que assuma a responsabilidade”. Ficou o P. Matos por dois meses. Entretanto, o P. Matos afastou-se, o P. Arsénio também e o pobre Domingos ficou pároco da aldeia.

Mas nunca chegou a ser nomeado? Foi ficando..

Não, nunca fui nomeado pároco da Mexilhoeira. Fui ficando.

O que tinha acontecido ao pároco anterior? Estamos a falar do verão quente de 75…

Sim, o bispo disse-nos que o padre estava preso em prisão domiciliária e tinha de sair. Era claretiano. Quando chegámos à Mexilhoeira estava a rua cheia de gente contra a igreja, o padre fechado no primeiro andar, ainda o fomos visitar… O P. Arsénio, já habituado às lides da revolução, começou a falar com aquele povo todo. Eu mantive-me calado o tempo todo. Depois, contaram-me mais tarde que alguém comentou: “Se vem para cá o padre pequenito, nós damos conta dele, se vem para cá o calado, estamos lixados”.

E foi o calado que veio… como foram estes primeiros tempos, de grande conturbação política?

Foram tempos maravilhosos. Armaram-me tudo, cartas anónimas na sacristia, espalhadas de noite à população, foram três assaltos à igreja, acusarem-me de fazer política na igreja…

Foi a tribunal e tudo, certo?

Sim. Havia eleições em 76 e eu, quando passei pelo interior da paróquia, no fim das missas expliquei às pessoas que era preciso votar, porque se tratava de escolher pessoas da terra que conhecíamos. E expliquei os partidos, as pessoas e os símbolos, pois esta gente era toda analfabeta, quase ninguém sabia ler. “O PS sabem quem é o chefe, o Mário Soares; o PPD é o Sá Carneiro; o CDS é o Freitas do Amaral. E há um partido muito conhecido aqui na terra, que expulsou o padre e tudo, mas não está aqui, é o partido comunista. Qual é o símbolo? A foice e o martelo. Mas não está aqui na lista, não concorre. Mas há um partido, o PSJ, e eles estão aqui. Se não estão de cara lavada, em aberto, têm de estar aqui”. E uma senhora disse-me: “Mas nessa lista também há pessoas boas”. E eu disse: “Mas quem está a dizer o contrário? Se a senhora é da opinião que deve votar nessa lista, vote”. Constou que eu estava a dizer que o PCP estava escondido por detrás do PSJ. Levantou um escarcéu incrível. Fui chamado a tribunal, mandaram arranjar testemunhas. Mas não deu em nada.

Depois começou com a sua obra social. Era uma paróquia moribunda de uma pobreza humana, espiritual e material, como costuma dizer. Em que se concretizava isso?

Era uma paróquia abandonada, não contava socialmente. As pessoas tinham vergonha de dizer que eram da Mexilhoeira Grande por causa do escândalo de terem prendido e expulso o pároco. Ficaram com essa chaga. A paróquia tinha a fama de rebelde. Aqui no território houve muitos PIDE, vários foram presos. O pároco que cá esteve durante 25 anos vinha aqui fazer o serviço mínimo.

A comunidade cristã era inexistente?

Não havia catequese, jovens, casais, homens na igreja, havia 40 a 50 velhinhas, que rezavam o terço no meio da missa. Ninguém tinha Bíblia católica. As Testemunhas de Jeová cobriam este espaço todo com visitas, mas depois começaram a perder peso. Cheguei a dizer que era melhor ser bom Testemunha de Jeová do que mau católico. Para termos credibilidade temos que ser melhores do que os outros na oferta que fazemos. Mas não podemos fazê-lo condenando e perseguindo os outros. Este foi a mal da Igreja ao longo de tantos séculos, com as cruzadas, a Inquisição. Acabei na Mexilhoeira com as seitas também. Mas as pessoas não estavam despertas para isso, chegaram a dizer que eu estava a dar cabo da religião. Hoje quem se atreve a dizer isso?

Mas havia também pobreza material?

Sim, esta gente era pobre.

O P. Domingos começou a criar então obra social. Porque começou pelas crianças?

Era o Ano Mundial da Criança, em 1979, queria uma obra simbólica. As crianças ficavam na rua quando os pais iam trabalhar. Nasciam algumas 50 crianças por ano, pelo que se justificava a criação de um jardim de infância. Nem educadoras havia, tive de as ir buscar aos colégios particulares. O pároco anterior tinha deixado 153 contos, eu falei com o bispo, o terreno era da paróquia, tínhamos uma educadora que era irmã doroteia e construí lá o infantário. Fui propor à junta de freguesia fazermos em conjunto. Disse-me um jovem: “O dinheiro é da paróquia, o padre é paroquia, a freira é paróquia, quem é que vai mandar?” E eu disse: “Tive muito desgosto em conhecê-los. O 25 de Abril foi para nos darmos todos uns com os outros, para unir forças, mas vocês, ao fim e ao cabo, querem governar e mandar em mim e nas pessoas. Prefiro trabalhar sozinho”.

A gente só compreende o Evangelho quando as coisas acontecem e vi isso na minha família: a minha mãe que queira que eu fosse para o seminário, a nora contra a sogra, o meu pai contra mim… Vivia-se o Evangelho sem conhecer o Evangelho. Hoje a maioria das pessoas conhece o Evangelho, ou pode conhecê-lo, mas não se pratica. Verifiquei muitas vezes nesta luta dos primeiros anos da Mexilhoeira aquela passagem do Evangelho: “Quando tiverdes de vos defender, não penseis na vossa defesa pois o Espírito Santo vos porá na ponta da língua aquilo que haveis de dizer”.

Mas também diz que foi esse investimento nas crianças que permitiu mudar a mentalidade, certo?

Sim. Quando o jardim de infância começou a funcionar, as coisas começaram a amainar, pois eles acusavam-me de não concluir nada. Quando estava a acabar uma obra, já estava a começar outra: foi o lar de idosos, depois a aldeia da Alcalar, a igreja da Figueira. As pessoas diziam: “Este padre é maluco!”. Felizmente, o Senhor deu-me tempo e os jesuítas também para eu continuar cá e pôr tudo a funcionar.

Hoje vê a paróquia diferente e mais dinâmica?

Sim, foi a igreja que pôs a paróquia no mapa da diocese, e que pôs a freguesia no mapa civil. A pobreza cultural era enorme, os alunos não completavam sequer o 9º ano. Cheguei a dizer aos jovens: “Diziam-me no tempo da formação que eu não podia ler livros para não perder a vocação, vocês leiam isso tudo. Fortalecerão muito mais a vossa fé ao perceberem que a Igreja, depois de tantos disparates que fez, continua viva dois mil anos depois. Só mesmo por ser divina, senão não aguentava”. Não basta a credibilidade religiosa dos sacramentos, temos de ter credibilidade académica, social para falarmos de igual com o mundo.

O P. Domingos diz que era uma luta contra os poderes do céu, da terra e do inferno. Também já o ouvi dizer que era a “pastoral a murro”. Mas isso deu frutos?

Então não deu? Os poderes do céu eram as autoridades religiosas, por isso é que não consultei bispo nem Provincial para me meter nessas obras, diziam-me imediatamente que não era possível. É o pior que pode haver na Igreja: não deixar haver profetas. Não estou aqui a dizer que sou profeta… mas funciono muito com intuições e pedindo sinais a Deus. De acordo com o Antigo Testamento, as visões, os sonhos da noite. Quando me convenço de uma coisa, concluo “Isto vem de Deus”. Não vou consultar a carne e o sangue, os meus superiores vão dizer-me logo que não. Deus diz-nos para pensar no bem dos outros e quando fazemos isso teremos a hipótese de tudo correr bem. Foi a intuição que disse: “Não pergunto a mais ninguém, o caminho é certo.”

Está a falar do tempo após a morte do P. Arsénio?

Depois disso, em 2013. Temos de funcionar por vezes, como cristãos, a partir do negativo, negativo para nós, mas que pode não ser negativo para Deus. Pedir sinais a Deus. Falamos mais de religião do que espiritualidade, e é do espírito de Deus que se trata. A religião é exterior a nós, são rituais. Não é a religião que nos leva a Jesus Cristo, é Jesus Cristo que nos leva aos sacramentos. Nós invertemos tudo.

Ainda hoje sente que a Igreja está marcada por isso?

Sinto. Está.

O Papa bem tem combatido o clericalismo…

Tal e qual. Eu tenho experiências do contrário, de gente que se converte. Às vezes a melhor forma de falar de Deus é não falar dele. Uma vez um alemão veio visitar isto (Aldeia de Alcalar) e ao fim de duas horas disse-me: “Na minha vida tive duas experiências em que as pessoas falaram de Deus sem nunca falar dele. Uma foi quando um padre franciscano foi à minha escola falar das missões. Outra foi hoje, você nunca me falou em Deus, mas esteve sempre a falar de Deus. Esta obra fala de Deus”. Costumo dizer que os lugares da Mexilhoeira que falam melhor de Deus não são a igreja nem a capela, são os lugares onde se pratica o amor. Pois Deus é amor.

Conte-nos um pouco sobre esta Aldeia de S. José de Alcalar, como surgiu esta ideia inovadora? Que leitura da realidade é que surgiu para responder a uma necessidade?

Tem a ver com isso mesmo, mas nós, cristãos, não somos educados para ler a realidade. Somos educados para fazer comunhões, para os sacramentos e depois vamos embora, por isso é que as igrejas estão vazias. As igrejas não estão vazias do mundo, daqueles que já cá não vinham, mas dos que estavam cá e abandonaram. Quando comecei o infantário, foi porque as crianças estavam na rua. Quando fazia funerais, ouvia as pessoas: “Enforcou-se”, ou “Foi ao canal e afogou-se”. O suicídio, diziam que era o destino, a vontade de Deus. E eu perguntava: “Um Deus que determina pessoas para se suicidarem?!” Comecei a ver que todos aos anos havia dois ou três suicídios de pessoas isoladas nos sítios do interior. E disse: “Tem de haver uma solução”. Adaptei a residência paroquial para lar de idosos e acabaram os suicídios. Nunca mais uma pessoa idosa do interior se suicidou. Aqui (Aldeia de Alcalar) já se suicidaram dois, mas vieram de fora, vieram contra a sua vontade.

Depois também me apercebi que havia casais que entravam, marido e esposa, para um quarto. Quando morria um deles, tinham que partilhar o quarto com outra pessoa. Outros, que ainda estavam bem, voltavam para casa. Eu disse: “Tem que haver uma solução para estes casos, para que a família fique na sua casinha”. Tinha outras queixas de pessoas com filhos deficientes que perguntavam para onde iriam os filhos quando morressem. Então pensei numa casa em que os pais pudessem viver num quarto e o filho noutro. Foi isso que me levou a este sonho da Aldeia de São José de Alcalar. Tenho a intuição “isto vem de Deus”, mas depois procuro confirmar com as pessoas fora da Igreja. O senhor presidente da câmara, quando lhe falei no assunto, e era agnóstico, achou fantástico. Disse-me: “Eu ajudo, faço-lhe o projeto”. Isto é de uma consolação enorme. Quando me perguntou se tinha ido buscar a ideia deste projeto à Alemanha, respondi-lhe: “Encontrei-a no Evangelho. Leia-o nas entrelinhas.”

Também se pôs a questão do dinheiro. Eu respondi: “Há uma diferença enorme entre os políticos e os cristãos: os políticos atuam com base na previdência, têm de ter dinheiro para fazer obra; a igreja faz obra para que os cristãos acreditem em nós e nos ajudem. Eu tenho de começar a obra para que o povo acredite”.

Já referiu que veio em 1975, mais o P. Arsénio que trabalhava lá em baixo em Portimão – o pároco da cidade e o pároco da aldeia – mas que esteve sempre à espera que a Província enviasse mais jesuítas para fazer comunidade.

Foram 40 anos à espera. Viemos em 1975 e em 2015 veio a garantia, pela carta oficial do P. Frazão que fundou oficialmente (28 de maio de 2015) a comunidade de Portimão. Em 2012, morreu o P. Arsénio e a paróquia foi entregue ao pároco da matriz que um ano depois a abandonou. O bispo vem-me pedir em 2013 se podia tomar conta da paróquia de Nossa Senhora do Amparo. Dei-lhe a resposta em agosto ainda e tomámos conta na esperança de virem outros jesuítas, o que já estava prometido pelo Provincial P. Alberto Brito. Em janeiro de 2014 veio o P. Luís Amaral, que veio por dois meses e ficou cá três anos. Deus escreve direito por linhas tortas. Ficou cá a preparar a fundação da comunidade, pois o superior só veio em setembro de 2016.

Valeu a pena esperar?

Valeu a pena!

Mas porque não havia essa aposta das paróquias?

Pergunta-me a mim? Não havia porque os jesuítas sempre acharam que o carisma deles era outro.

Que não passava pelas paróquias?

Sim, que não passava. Mas nós fomos enviados para aqui pela Companhia de Jesus, não estávamos por nossa conta e risco. Nessa altura já havia mais de duas mil paróquias nas mãos dos jesuítas no mundo inteiro e já havia 3000 jesuítas a trabalhar em paróquias, que eram 14% do total. Era uma ideia teórica. Depois veio a Congregação Geral 35, em 2005, que tem um capítulo a dizer que as paróquias entram no nosso carisma, pois lidamos com os pobres, com a justiça e as desigualdades. Foi a confirmação de que estávamos no bom caminho. Devo dizer também que foi a nossa ação no Algarve, e a vinda dos noviços que para aqui vieram fazer a prova de inserção social e saíram entusiasmados. Foram eles que lançaram uma campanha positiva acerca do trabalho que se fazia no Algarve e mobilizaram a Companhia. Sentiam-se realizados.

E hoje sente que os jesuítas no Algarve estão para ficar?

Eu já me disse a mim mesmo: pelo menos por mais 40 anos está garantido! A comunidade foi fundada oficialmente. Cheguei a perder a esperança… Se calhar, e escrevo isso no livro, o P. Arsénio e eu também tivemos alguma culpa, pois, apesar de sermos amigos, tomamos aquela atitude…

Nunca trabalharam em comunidade…

A sério, não. Tínhamos visões diferentes.

Mas foram amigos a vida toda?

Toda a vida! 59 anos de amizade, 49 a viver na mesma casa ou perto um do outro. Caso único na Província.

Como olha para as gerações mais novas, com a sua relação com a fé e a prática cristã?

Olho muito positivamente. Já me afligi muito mais sobre o futuro da Igreja, que não depende de nós. Depende de nós na medida em que se não houver cristãos, a Igreja morre, mas vou-me apercebendo que os jovens têm ideais, têm voluntariado… Tenho jovens formados aqui na paróquia que estão a trabalhar noutras paróquias.

Servem a igreja no local onde vivem, é isso?

Exatamente. Inserir-se onde estão e serem lá úteis. Nós, padres, não temos que nos apresentar sempre a lamentar porque o mundo sempre foi mau, já no tempo de Jesus Cristo. Nós é que inventámos esta mania, e com Salazar e com a proteção da Igreja Católica contra os outros, cruzámos os braços e não fizemos nada. Estamos agora a pagar as favas. Aqui não havia nada e vejo o que surgiu. Sou muito otimista. Não ando à procura daqueles que vão à missa, nem tenho possibilidade de andar a escolher os funcionários, e o Senhor tem-me enviado as pessoas que me fazem falta. De maneira que já não me preocupo muito. Também estou no fim da vida. Estou consolado. Costumo dizer ao Senhor: “Se precisas de mim, tens de me dar saúde e vida. És tu o beneficiado, não sou eu, de maneira que estou ao teu serviço.”

Como vê hoje a Igreja em Portugal, nesta caminhada sinodal, com uma Jornada Mundial da Juventude à porta, ao mesmo tempo que estamos com o tema dos abusos sexuais a ser levantado. Como olha para essa realidade?

Os cristãos são muito pecadores e perdemos muitas vezes esta noção, achamos que são uns santinhos. Cometemos erros, todos temos defeitos, temos de ser mais humildes. A Igreja teve coisas muito piores na História que ultrapassou ou esqueceu, ou fez por esquecer: a inquisição, as Cruzadas, a escravatura, o racismo, as mulheres. Estamos nos tempos novos da verdade, e a verdade faz doer, ninguém gosta de ouvir. Mas faz-nos bem ouvir a verdade. Acho muito bem que com os meios de comunicação social, estamos todos expostos, para sermos elogiados ou sermos marginalizados. É não termos medo do mundo, foi ao mundo que Jesus Cristo nos enviou. O nosso problema é por em primeiro lugar o mandamento do amor. É por aqui que saberão que sois meus discípulos. Enquanto andarmos de volta das igrejas, da liturgia dos templos, e não da liturgia da caridade, estamos fora da nossa missão, acho eu.

Eu receio que a Igreja, depois do Papa Francisco, volte ao mesmo de antigamente. Mas depende da escolha, de nós. Gostaria que os bispos fossem eleitos nas suas próprias dioceses, mal ou bem, dioceses pobres, com mais ou menos clero, mas que cada um se cobrisse com as mantas que tem. Não estou de acordo que venha um bispo de longe para uma diocese que não conhece, já avançado de idade, começar tudo do nada. Era a favor de os Núncios visitarem as dioceses, as paróquias, dialogarem com as pessoas, até em função de saber como orientar essa diocese. Pergunto-me: o que faz um Núncio num país? Custa-me ver dioceses que estão há meses à espera de um bispo. Também era da opinião que os bispos, quando fosse para nomear párocos, não fosse apenas a pastoral do “tapa buracos”, do preencher as vagas, mas que soubessem o que se passava nas paróquias em ordem de quando fosse preciso substituir um pároco, se olhasse para o caminho feito e esse caminho continuasse. Não andássemos nisto de “muda o partido do governo, abolem-se decisões anteriores, agora quem manda aqui somos nós, fazemos tudo diferente”. Isto não é maneira de ser Igreja e desinteressa os leigos que estejam comprometidos, desmobiliza muita gente.

E acha que já há uma colaboração com os leigos como o Papa pede?

Eu tenho-a feito. Se calhar até fui pioneiro aqui na Mexilhoeira, com celebrações da palavra dominicais na ausência do padre, desde 1987, com exéquias presididas por leigos na ausência do padre desde 1995. E o diácono que aqui preparei para tomar conta de uma paróquia, pois eu não preciso de um acólito de primeira classe para estar ao meu lado no altar a ler o Evangelho. Disse-lhe: “Quero que assumas a orientação de uma paróquia”. E foi isso que aconteceu

Fala do Nuno Francisco e da mulher que foram formados aqui e agora estão responsáveis pela paróquia de Odiáxere?

Exatamente. Sei que a diocese pensa que os diáconos podem tomar conta de outras paróquias. O caminho faz-se sempre a partir de baixo e nunca de cima, e por isso, creio que os leigos têm um papel fundamental até para educarem os párocos, se se comprometerem. O problema é que muitas vezes os párocos andam cheios de missas, com quatro ou cinco paróquias, e não têm tempo para rezar, para pensar. Também gostaria que no seminário se começasse a preparar os futuros padres para um novo modo de ser igreja. É todo este esquema que era preciso desmontar e pensar.


Para uma Igreja renovada

António Caseiro Marques | 9 Jul 2022 | in 7MARGENS

Foram momentos de muita esperança os que se viveram na Igreja Católica nos últimos meses, a nível universal, desafiados que foram todos os seus fiéis, sacerdotes e leigos a efectuarem uma reflexão sobre os caminhos que se viveram anteriormente, olhar para tudo o que foi feito e discernir aquilo que a Igreja, no seu conjunto, quer para o futuro. No fundo, tentar perceber, sob o impulso do Espírito Santo, o que é que a Igreja quer ser no meio da sociedade em que está inserida, de que forma pode continuar a sua missão de evangelizar, tudo em busca da criação de um mundo melhor para toda a humanidade.

Isso aconteceu apesar da falta de hábitos de escuta da Igreja, enferma desde há séculos, em que o clericalismo se foi impondo, seguindo o modelo de organização da sociedade civil, onde as hierarquias estão bem definidas na generalidade das instituições que governam os povos. A Igreja foi sendo organizada em pirâmide, com o Papa à cabeça, seguindo-se os bispos, os sacerdotes, religiosos e, finalmente, a grande massa dos fiéis. Estes não passavam de uma imensa multidão, vivendo no anonimato eclesial, sem grande possibilidade de se poder manifestar, na ausência de estruturas de diálogo e que apelassem à participação deles no processo de tomada de decisões, escutando apenas aquilo que de cima era transmitido, quantas vezes meramente por repetição do que os transmissores tinham ouvido de outros, sem direito a tergiversações, assim se pensando que se garantia a força e a unidade da instituição.

Com os documentos dos Papas que, desde o final do século XIX, mas principalmente ao longo do século XX e continuando pelo século actual e o enorme impulso do feliz acontecimento que constituiu o II Concílio do Vaticano, tudo se alterou. E assim tinha de acontecer, pois a Igreja deu-se conta de que estava a perder fiéis e que muitas pessoas se iriam afastando cada vez mais da prática religiosa.

Nas duas últimas décadas, em todo o mundo, e igualmente em Portugal, assistiu-se a um afastamento ainda maior, ficando as igrejas desertas. E esse afastamento não se verifica apenas nas cidades, mas também nas nossas aldeias, abandonadas à sua sorte pela falta de padres que assegurem a vida pastoral e espiritual, ou então, assistidas por sacerdotes idosos, que pouco ou nada podem transmitir de novo às pessoas, sem forças para fazerem melhor, por ignorância ou comodismo. Aos poucos, a mensagem deixou de ser apelativa, em virtude de muitas vezes nada dizer que respeite à vida concreta das pessoas.

Quer se queira, quer não, os escândalos que abalaram e ainda abalam a Igreja também contribuíram e estão a contribuir para o abandono da prática religiosa por parte de muitos fiéis. Não que tenham deixado de se sentir como cristãos. Simplesmente fartaram-se de ouvir sempre as mesmas coisas, onde falta a novidade, a aplicação do Evangelho à vida prática. E onde tem faltado a escuta, o diálogo, o convite à participação na vida da Igreja e a chamada à corresponsabilidade na tomada de decisões sobre os vários aspectos que implica a referida participação na missão da Igreja, segundo o carisma de cada um.

Como tem escrito o cardeal Tolentino Mendonça e resulta das palavras do Evangelho, o Sábado é um instrumento, não é uma finalidade, no sentido de que as pessoas é que contam, não as normas com as quais muitas vezes a Igreja se transformou, inadvertidamente, numa “máquina” de exclusão, ainda segundo o mesmo cardeal português.

Deste modo, em boa hora o Papa Francisco lançou a toda a Igreja o ingente e profundamente necessário desafio para que todos, dentro da Igreja, nos debruçássemos sobre o passado, tentando ver os aspectos que merecem reflexão, com vista a perspectivar o futuro e a encontrarmos os melhores caminhos para continuarmos a levar por diante o mandato de espalharmos o Evangelho e todas as riquezas que ele contém junto de todos os povos.

A caminhada sinodal que se iniciou recentemente e que já produziu alguns resultados, pelo menos em termos de abertura ao diálogo e de documentos que foram sendo elaborados pelos milhares de grupos que se formaram em Portugal [ver 7MARGENS] e muitos mais em todo o mundo, não pode parar.

A Igreja tem de ir ao encontro de todos os que se estão nas periferias da vida, todas as periferias: religiosas, espirituais, políticas, culturais e sociais, no sentido de centrar a sua vida no Evangelho e ao serviço dos que mais precisam dos dons que resultam da vivência da mensagem que nos foi legada há dois mil anos.

E se esta caminhada, em boa hora iniciada, já deu frutos, pois pôs todos os que quiseram participar a falar abertamente sobre os problemas e aquilo que pode e deve ser melhorado, seria bom que não parasse nem ficasse à espera da palavra do Papa, que surgirá apenas no final do Sínodo a realizar no próximo ano em Roma.

Por vezes fica-se com a sensação de que parece haver pouca vontade de ir avançando com mudanças nas áreas onde os problemas foram detectados. E elas são necessárias e, em alguns casos, urgentes.

É que, tal como acontece na sociedade em geral, também em Igreja devemos pensar globalmente, mas agir localmente, porque cada Igreja local, cada paróquia conhece melhor os seus problemas e constrangimentos. Daí que não se deva interromper este processo, esta caminhada sinodal, sob pena de a embalagem ganha se desvanecer e ser atirada mais uma vez para o esquecimento, tal como aconteceu com a inovadora doutrina saída do Concílio Vaticano II, muita da qual não passou do papel, não foi posta em prática, com grande prejuízo para toda a Igreja e principalmente para as pessoas.

Por exemplo, constituiria um convite à adesão de mais cristãos a esta caminhada, se fosse dado conhecimento, a todos os que participaram nos trabalhos da escuta, do resultado desses trabalhos e as conclusões que irão ser enviadas para Roma, como em algumas dioceses (por exemplo, a de Vila Real), está a ser feito.

É tempo de despertar, de agir, naquilo que for necessário e possível. Não se trata de teologia, mas apenas de estruturas, de modos de funcionamento, de formas diferentes de fazer as coisas. Por isso, quanto mais depressa as diferentes comunidades iniciarem os processos de adaptação, de transformação, melhor; e mais depressa se corrigirão os erros ou métodos anquilosados do passado.

António Caseiro Marques é advogado e dirigente da Acção Católica Rural.


Diocese do Porto

Plano Diocesano de Pastoral 2022|2023

Abraça o presente!

Juntos por um caminho novo.

IV. Linhas programáticas

     4.1. No âmbito da sinodalidade

1. Dar atenção e seguimento à síntese da fase diocesana do processo sinodal.

2. Adotar um estilo pastoral sinodal, em que sejam ativados a escuta recíproca, o discernimento cuidado, a decisão partilhada… para edificar a comunidade e projetá-la em missão no mundo.

3. Criar, nos diferentes órgãos de participação e corresponsabilidade, hábitos de escuta e de leitura atenta da realidade, de discernimento dos caminhos de evangelização e de avaliação, em ordem à renovação pastoral.

4. Experimentar formas participativas de exercer a corresponsabilidade no anúncio do Evangelho e no compromisso para construir um mundo mais belo e mais habitável (cf. Doc. Preparatório do Sínodo, n.º 2).

5. Valorizar e revitalizar as instâncias organizativas da corresponsabilidade pastoral: o Conselho Económico Paroquial e Diocesano, o Conselho Paroquial de Pastoral e o Conselho Diocesano de Pastoral, os Conselhos Vicariais de Pastoral e o Conselho de Vigários, o Conselho Presbiteral e o Conselho Episcopal.

6. Desenvolver sinergias dentro e entre as comunidades paroquiais, uma vez que nem todas podem garantir todos os serviços essenciais.

7. Pensar e implementar paulatinamente as unidades pastorais, em função da realidade diocesana, plural e multifacetada, nas suas diversas Paróquias, Vigararias e Regiões Pastorais.

8. Superar a mentalidade que separa sacerdotes e leigos, considerando protagonistas os primeiros e executores os segundos, e levar por diante a missão cristã, conjuntamente, leigos e pastores como único povo de Deus. Toda a Igreja é comunidade evangelizadora.

9. Reconhecer e apreciar a riqueza e a variedade dos dons e carismas que o Espírito concede em liberdade, para o bem da comunidade e em benefício de toda a família humana.

10. Acolher, valorizar, integrar e potenciar o contributo específico dos Movimentos, Associações e Obras, na elaboração, aplicação e avaliação do Plano Diocesano de Pastoral, em ordem a uma Igreja mais plural, mais participativa, mais aberta ao mundo e com um laicado missionário.

11. Relançar a intervenção dos Movimentos, Instituições e Associações ligados ao mundo do trabalho e valorizar a intervenção dos leigos na relação da Igreja com o mundo.

     4.2. No âmbito da Jornada Mundial da Juventude

12. Preparar e celebrar a JMJ 2023, de modo que esta iniciativa promova, em meio escolar ou em meio eclesial, a evangelização dos jovens, a resposta vocacional e o rejuvenescimento das comunidades cristãs.

13. Dar justo protagonismo aos jovens e tornar efetiva a sua participação ativa nos lugares de ação pastoral, não apenas no plano da execução, mas também nos processos de planeamento, discernimento, elaboração e tomada de decisão.

14. Acentuar a dimensão da alegria, na proposta, formação, celebração e vivência da fé, como antídoto e vacina contra o individualismo radical.

15. Realizar encontros vicariais de adolescentes para motivar os mesmos a acolherem as propostas da JMJ e acompanharem, nas vigararias, a sua realização.

16. Preparar a passagem do processo catequético da Adolescência para a sucessiva integração nos âmbitos da Pastoral da Juventude.

17. Promover o contributo da mundividência cristã no meio escolar.

18. Cuidar da relação entre a fé e a cultura, valorizando a via da beleza.

     4.3. No âmbito da hospitalidade

19. Formar pessoas (ao nível das ciências humanas e teológicas) de portas abertas ao Espírito e aos outros, atentas a todos, para que nas nossas comunidades todos se sintam em casa. É preciso inclinar o ouvido e escutar em profundidade, sobretudo o mal-estar social agravado pelo abrandamento ou cessação de muitas atividades económicas como efeito da pandemia.

20. Aliar o acolhimento afável ao anúncio e à proposta de um caminho mais exigente, com disponibilidade para o acompanhamento das pessoas nos seus contextos e possibilidades de vida.

21. Ousar novos percursos, novos caminhos, também os da evangelização pessoa a pessoa e pelo caminho (cf. EG 127), o que requer: uma nova mentalidade, novos itinerários, novos processos, novos companheiros de caminhada, novos agentes pastorais, uma nova arte e novas formas de acolhimento e de acompanhamento pastorais, onde joga papel essencial a capacidade de escutar, convocar, convidar, de envolver e de atrair para Cristo, com o próprio testemunho de vida.

22. Valorizar o ministério do acolhimento e o acolhimento de novos ministérios.

23. Criar novos grupos pastorais, de acordo com as necessidades locais emergentes (turismo, cuidado da casa comum, imigração, sem-abrigo, famílias enlutadas, toxicodependência e outras adições, infoexclusão, etc.).

24. Ousar uma nova fantasia da caridade, isto é, uma caridade criativa, a nível pessoal e eclesial, capaz de responder aos gritos, quantas vezes silenciosos, da pobreza, agravada pelos efeitos da pandemia e da guerra na Ucrânia.

25. Empreender, nas paróquias, um caminho sério de reflexão e de trabalho em campo, envolvendo, num pacto educativo global, todos os agentes educativos presentes, de modo que as famílias possam crescer e fazer crescer.

26. Valorizar e envolver na vida pastoral diocesana os dinamismos e carismas próprios da vida consagrada, das obras e dos movimentos eclesiais (cf. Doc. Preparatório do Sínodo, n.º 28).

27. Cuidar de uma renovada atenção aos imigrantes e refugiados.


Uma renovação a precisar de novos impulsos

Georgino Rocha | 23 Mai 2022| in 7 Margens

A experiência que fizemos no Concílio Vaticano II constitui o rosto dos documentos tão ricos que ficam como acervo da sua memória, dizia frequentemente o bispo de Aveiro, D. Manuel de Almeida Trindade. Eu era seu colaborador pastoral. E pude verificar como vivia esta sua profunda convicção.

É este o objectivo fundamental, no meu entender, do Sínodo em curso na Igreja Católica. Experienciar a alegria e a riqueza do viver em comunhão, do caminhar juntos, do partilhar o que de bom se realiza e faz história, do clamor pelo que nos afasta de tão belos passos. E a sentirmo-nos movidos não apenas pela amizade humana nem pela urgência das respostas a dar, mas pelo Espírito que renova a face da terra e bate às portas da Igreja (Apocalipse 3, 20). Movidos a sermos pessoas virtuosas e a praticarmos o discernimento como parte essencial do ser e agir em Igreja.

Acompanhei como conselheiro espiritual a reflexão e partilha que uma equipa de casais realizou ao longo de várias reuniões. A verificação feita e o acesso a dados de vários grupos e movimentos, bem como a comentários de órgãos de comunicação, designadamente o 7MARGENS e a Ecclesia, alargaram o meu horizonte e servem de base a este meu modo de ver e apreciar a caminhada sinodal.

As sínteses das dioceses e outras instituições foram-me chegando a conta gotas e dão-me novo alento para prosseguir com atenção a “Igreja em saída” que procura ser fiel ao seu ser original, a sinodalidade. Acho estas sínteses muito ricas, com grande força germinal para novos impulsos, mais ritmados com as vozes do tempo que vivemos. Por isso, julgo deficiente o seu aproveitamento pastoral e redutor a sua mais-valia, limitando o âmbito do seu conhecimento a alguns círculos e remetendo o acervo restante para os arquivos das cúrias episcopais. [ver 7MARGENS]

Ouvirmo-nos uns aos outros, acolher e oferecer o que é nosso, faz-nos perceber que a Igreja não é, apenas, o bispo e o padre, “a Igreja és tu, somos nós juntos, onde Ele se faz indubitavelmente presente, como fez com os discípulos de Emaús (Lucas 21, 13), como faz com todos os que o procuram, juntos, de coração sincero… O eco das vozes do povo de Deus permanece como farol nos que se dispuseram a segui-lo, tão diversas e ao mesmo tempo harmoniosas que não podemos esquecê-las. Fica connosco, Senhor, não deixes que anoiteça”. Esta é a valoração de Dina Matos Ferreira, coordenadora local da dinâmica sinodal na paróquia católica de São Francisco Xavier, em Lisboa.

Valoração que integro na minha ressonância à dinâmica, frouxa em tantos lados, de renovação eclesial. A necessitar de novos impulsos.

Georgino Rocha é padre católico da diocese de Aveiro e desempenhou já o cargo de vigário diocesano da pastoral.


Por onde pode começar a sinodalidade?

Miguel Panão | 19 Jun 2022 | in 7 Margens

Será que os grupos que se reúnem para realizar como comunidade este percurso sinodal se lembram do gesto mais simples e mais evidente que o ser humano consegue identificar à distância? Um gesto que pode iluminar uma sala inteira sem se acender a luz? Um gesto tão simples que afecta o outro, interiormente, sem pronunciar uma só palavra? O gesto de sorrir.

Ao ler alguns contributos para este percurso e falando com algumas pessoas, um dos comentários que me fez mais impressão (dado o seu realismo) foi o de algumas paróquias sentirem como as pessoas são estranhas umas em relação às outras. De facto, numa boa parte das paróquias onde podemos entrar para celebrarmos juntos a missa, não é evidente sentir o ambiente de acolhimento que muitos desejariam. Porém, não esqueço como esse acolhimento se torna completamente diferente quando existe alguém à porta que nos acolhe com um sorriso. Um sorriso faz toda a diferença e tem história.

Colin Jones é professor emérito de história cultural na Universidade de Londres e procurou compreender qual o percurso histórico deste gesto na evolução cultural. Colin diz que esta palavra parece ter surgido somente no final do Império Romano como uma espécie de sub-riso. Ao longo do tempo, este “riso diminuto” foi ganhando expressão noutras línguas, e quando entra na arte, o sorriso surge como algo suave e angélico, mas com a boca fechada. Aliás, o sorriso com os dentes referia-se a algo de teor maléfico e este facto perdurou durante muito tempo. E das várias razões sociais para esta diferença entre os sorrisos com ou sem dentes, a que me parece mais curiosa é como o sorriso (sem dentes) transmite ainda hoje a ideia de uma pessoa calma e tranquila como gostava de expressar o pintor francês Charles Le Brun. Porém, será uma descendente deste pintor, Elisabeth Louise Vigée Le Brun que num auto-retrato exibido no Louvre decora o seu rosto com um sorriso que revela o branco dos dentes. A impressão que ficamos é diferente da versão angélica. Dá-nos uma maior sensação de proximidade, familiaridade e felicidade. Algo demonstrado em 1988 com um lápis.

Fitz Strack e um grupo de investigadores publicaram naquele ano o resultado de um estudo em que pediram a dois grupos de pessoas para verem uma banda desenhada e deram a todos um lápis (ou caneta). A uns pediram para segurar o lápis com os lábios e a outros pediram que segurassem com os dentes. Se o leitor fizer esta experiência diante de um espelho nota como segurar o lápis com os lábios nos dá um ar mais sério, enquanto que segurar com os dentes sem tocar nos lábios parece que estamos a sorrir. O resultado foi que o grupo daqueles cujo lápis obrigava a face a sorrir acharam a banda desenhada mais engraçada do que o outro grupo. Desta experiência retiramos como o sorriso não só expressa um estado de alma como pode predispor-nos a um certo estado de alma. Quer isso dizer que devemos estar sempre a sorrir?

Quantas vezes não ouvimos de pessoas da nossa comunidade cristã, coisas que nos feriram e, ainda por cima, ditas com um sorriso na cara? Quantas vezes não nos sentimos tristes e obrigámos o nosso corpo a sorrir para expressar como “ser cristão” é “ser feliz”? Não é preciso estar sempre a sorrir, mas se soubermos como o sorriso ilumina o espaço ao nosso redor, é importante usá-lo de um modo equilibrado.

De que serve todo este esforço da sinodalidade, se nos mantivermos estranhos uns em relação aos outros? Parece que a sinodalidade tem a finalidade de actualizar as estruturas da Igreja [Católica], mas de que servem as estruturas se não houver uma vida comum que faça do grupo de pessoas que comungam juntas do pão eucarístico, uma comunidade de vida? O sorriso pode quebrar a barreira da estranheza e estreitar os nossos relacionamentos. Não é raro ouvir de quem está fora da Igreja o comentário de medir o sentir de uma comunidade pela observação da cara das pessoas à saída da missa. Podemos estar a viver momentos de alguma dureza ou tristeza, mas quando a maior parte não sorri, por vezes penso que não se deve a algo que vivemos interiormente, mas ao facto de não nos olharmos sequer, olhos nos olhos, por não nos conhecermos. Podíamos sorrir mais uns para os outros, criando uma ambiente saudável e propício à comunhão entre nós. É um gesto simples, mas por que razão nos esquecemos tão frequentemente dele?


“O Espírito Santo não fala apenas através dos batizados”

ESPECIAL ENTREVISTA A IR. NATHALIE BECQUART - SUBSECRETÁRIA DA SECRETARIA GERAL DO SÍNODO DOS BISPOS

P. José Maria Brito, sj | 3 Junho 2022 | in Ponto SJ

A Ir. Nathalie Becquart, Subsecretária da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, é francesa e pertence à Congregação das Irmãs Xavieranas, congregação com forte ligação à espiritualidade inaciana. Além de ter estudado Gestão, Sociologia, Filosofia e Teologia, especializou-se em Eclesiologia (estudo da vida da Igreja) com uma investigação sobre a sinodalidade. Tem ainda uma longa prática de trabalho com jovens. Supervisionou o Serviço Nacional para a Evangelização dos Jovens e para as Vocações da Conferência Episcopal Francesa, coordenou o programa de escutismo para jovens em áreas urbanas pobres e foi diretora espiritual da Rede Inaciana da Juventude na França.

Nesta conversa com o Ponto SJ, aquando da sua estadia em Portugal para o Dia da Família Inaciana (em março), a Ir. Nathalie fala sobre o processo sinodal e a necessidade de conversão da Igreja a um modo de proceder mais relacional baseado na escuta. Analisa também o lugar dos jovens na Igreja e a forma como esta maior abertura se relaciona com a obediência e a estrutura vertical da Igreja.

Conhecendo o que se passa em várias zonas do mundo, o que nos pode dizer sobre o modo como o processo sinodal tem sido vivido?

A primeira coisa que se pode dizer é que o Sínodo já começou em todo o mundo. Todas as conferências episcopais nomearam equipas e referentes para coordenar os processos dos seus países e houve celebrações de lançamento em várias dioceses do mundo. Tem havido muita criatividade, de acordo com os diferentes contextos e culturas, para adaptar os documentos e os modos de desenvolver o processo sinodal. Alguma coisa está a acontecer um pouco por todo o mundo. Claro, que com ritmos e modos diferentes de proceder. Isso também é influenciado pela prática sinodal que já existe em alguns países como em França. Em alguns países, depois do Vaticano II, tem havido sínodos diocesanos e noutros países nunca se fez nenhum Sínodo e, nesses casos, tudo é novo. Mas foi possível identificar muito entusiasmo, em especial por parte dos leigos em África e na Ásia. As pessoas ficaram muito contentes que lhes fosse dada voz, às vezes pela primeira vez. A nível global é possível verificar que em alguns países é difícil que os padres se envolvam no processo devido à sobrecarga de tarefas que têm ou, por vezes, aos medos associados à conversão que é necessária e ao chamamento a um novo modo de ser Igreja. De um modo geral também se pode dizer que as congregações religiosas estão bastante envolvidas neste processo uma vez que devido à sua vida comunitária muitas delas já têm uma experiência sinodal.

Mas o Espírito Santo está mesmo a trabalhar?

Como já disse, alguma coisa está a acontecer, sentindo-se o desejo de em conjunto responder ao apelo de estar envolvido no Sínodo, de fazer desde já parte do Sínodo. É possível contemplar o trabalho do Espírito Santo em tudo isto. Temos recebido muitas reações que indicam que, quando é verdadeiramente possível estar envolvido num processo de consulta sinodal, seguindo a metodologia da conversação espiritual, isso traz alegria e transforma as pessoas. Naturalmente, como se trata de um novo caminho, há dificuldades e resistências. Como aprendemos com Santo Inácio, quando o Espírito Santo age é normal que surjam resistências. Faz parte do caminho. É um processo longo e não bastarão dois anos de Sínodo para que a Igreja seja mais sinodal. É um longo caminho de conversão, mas parece-me, mesmo analisando os dados de publicações em redes sociais, por exemplo, que há cada vez mais pessoas a falar do Sínodo e da sinodalidade. Há muitas conferências e publicações e as pessoas, passo a passo, vão reconhecendo a importância deste caminho. É verdadeiramente, como diz o Papa Francisco, um chamamento a ser Igreja para hoje. Envolver-se e dispor-se a cumprir a vontade de Deus para a Igreja.

Referiu que se encontram algumas resistências ao processo sinodal, nomeadamente no que respeita ao envolvimento dos padres. Que aspetos necessitam de maior conversão?

No que diz respeito aos padres, bispos e responsáveis da Igreja trata-se de encontrar um novo estilo de liderança. Uma liderança mais colaborativa e servidora. Implica introduzir processos comuns de discernimento e de decisão assentes na ideia de corresponsabilidade. Não se trata de querer que um bispo deixe de ser bispo ou que um pároco deixe de ser pároco. Mas uma coisa é decidir sozinho, outra é decidir a partir de um discernimento conduzido pelo Espírito Santo e consultando as pessoas que se serve. As raízes da sinodalidade encontram-se no Concílio Vaticano II e na ideia de que há uma autoridade dada ao Povo de Deus, devendo ser reconhecido um sensus fidei que capacita espiritualmente os fiéis para reconhecerem o que é pedido pelo Espírito Santo. Se acreditamos nisto temos que ouvir as pessoas. Por isso, é preciso ajudar os bispos e os pastores a terem esta atitude espiritual e isso aprende-se fazendo. A experiência da sinodalidade é uma experiência de discernimento comum, de caminhar em conjunto. Não bastam conceitos. Mas toda a gente na Igreja é chamada à conversão, não apenas os bispos e os pastores. Os leigos têm que se atrever a ter voz. O Papa Francisco pede sempre no começo de cada Sínodo que as pessoas falem com parresia, coragem. E é preciso ter humildade na escuta, é um processo espiritual que requer atitudes espirituais. Não temos a verdade sozinhos, procuramo-la juntos. Precisamos de humildade, capacidade de escuta, mas também de abertura, coragem, coragem para oferecer a nossa própria voz.

E por isso é tão importante empoderar os leigos nomeadamente os jovens e as mulheres. O foco deve estar em dar voz aos que não têm voz: os pobres, os periféricos. Esse é o modo de proceder de Deus que podemos encontrar na Bíblia. O Espírito fala pelos mais pobres. Curiosamente na regra de São Bento ele diz que o Abade nunca deve tomar nenhuma decisão sem ouvir o mais novo da comunidade. Se formos capazes de ir às periferias e ouvir aqueles que usualmente não são ouvidos por ninguém, então daremos testemunho de que somos capazes de ouvir a todos. É importante que os leigos entendam que são chamados a ser discípulos e a assumir a missão da Igreja como sua. A Igreja não é apenas dos padres, bispos e religiosos. Isto implica treinar as pessoas para o discernimento, nem todos sabem de que é que se trata.

Como é possível articular discernimento e obediência? Não deixa de haver uma certa verticalidade na estrutura da Igreja. Isso é claro na organização da Companhia de Jesus, cuja tradição tem algo a aportar à compreensão do que é o discernimento.

A questão terá que ser relacionada com o entendimento que temos da obediência. Em algumas ordens religiosas, não em todas, há ainda um modo desatualizado de entender a obediência. Segundo esse modo, o superior ou superiora decidem tudo e as outras pessoas da comunidade são como pequenas crianças que obedecem sem questionar. Mas isso não é assim. A obediência a que nos comprometemos quando entramos na vida religiosa é a obediência a Deus. Na minha comunidade religiosa dizemos que a obediência é a escuta comum do Espírito Santo. No fim do processo é a superiora que nos envia para alguma missão. Mas ela decide depois e através de um processo de diálogo, no qual eu como religiosa lhe dou a conhecer as inspirações da minha oração e discernimento, tenho que lhe dar informações sobre a minha vida. Implica verdadeiramente um sentido de corresponsabilidade. Não se trata de ser passivo e de esperar por uma decisão tomada exclusivamente pelo superior.

Todas as tradições religiosas podem trazer algum contributo valioso para o Sínodo: pela escuta da palavra de Deus, pelo seu modo próprio de oração, através dos capítulos gerais que orientam os superiores, da vida comunitária. Não basta que haja uma estrutura. Mesmo quando algumas comunidades já vivem sinodalmente, há caminho a fazer. Nenhuma comunidade é totalmente sinodal. O processo de conversão sinodal nunca termina. Não se trata de nos livrarmos dos princípios hierárquicos, mas de equilibrá-los com este maior sentido de horizontalidade, recordando que todos somos irmãos e irmãs em Cristo. A obediência é a Deus, o superior tem um papel importante, mas é uma mediação.

E no que respeita à espiritualidade inaciana, de que é que a comunidade inaciana precisa de ter consciência? A que precisa de estar atenta para identificar o que pode oferecer a este processo?

Temos esta tradição, este dom recebido de Santo Inácio de nos focarmos no discernimento. Podemos oferecê-lo. E quem tem experiência de discernimento comum pode assumir-se como um facilitador do processo sinodal nas paróquias, nas dioceses, aproveitando o conhecimento que possam ter de processos como o da “conversação espiritual”. Na tradição inaciana também há a preocupação de ir às periferias, de ouvir os pobres, de trabalhar pela justiça. E o estilo sinodal tem que ser acompanhado por um estilo de Igreja em diálogo com o mundo. Mas as pessoas podem pensar ‘este é um sínodo inaciano’… Não, não! Organizámos em Roma um encontro muito interessante de estudo com pessoas de várias tradições espirituais: beneditinos, franciscanos, agostinhos, salesianos, inacianos, entre outras, para que nos pudessem dar a conhecer o modo como vivem a sinodalidade e como são os processos de discernimento nas suas comunidades. Foi de uma enorme riqueza. Cada tradição espiritual tem uma experiência própria do discernimento. Como inacianos podemos aprender com outros.

Não sabemos tudo!

Não, não sabemos. É importante reconhecê-lo. E trabalhámos nesse encontro sobre o que caracteriza a espiritualidade sinodal. Em primeiro lugar é uma espiritualidade de reconciliação, de diálogo que permita viver uma vida cristã, tendo claro aquilo que significa ser Igreja no mundo de hoje, sendo uma Igreja encarnada na realidade.

Por falar em encarnação…. Vivemos numa cultura digital e um dos traços dessa cultura é, por um lado, a polarização e por outro, talvez haja uma maior consciência da nossa interdependência. Como é que estas características da nossa cultura podem afetar a experiência sinodal?

Hoje não é possível pensar na missão da Igreja, na evangelização, na organização de projetos pastorais sem integrar a comunicação. É uma questão de inculturação. Vivemos num mundo de comunicação em que as redes sociais e a cultura digital assumem uma grande importância. E, mais do que isso, nós vivemos neste ambiente da cultura digital. Trata-se de um lugar em que as pessoas trocam pontos de vista. É certo que se pode gerar uma certa polarização. Mas o que importa é encontrar modos de escutar aqueles que estão nesses ambientes. Há iniciativas interessantes de algumas dioceses em que se fazem sessões sinodais de escuta através das redes sociais, pedindo às pessoas que tragam a sua voz. Mas claro que temos que estar conscientes do risco da polarização, procurando incrementar o espírito de escuta e diálogo nas redes sociais e na sociedade. Num mundo mais polarizado e fragmentado, o discernimento diz-nos que a sinodalidade é uma urgência porque é um meio para encontrar caminhos de fraternidade e amizade social, na linha da Fratelli Tutti. Precisamos de encontrar formas em que possamos viver juntos na nossa casa comum. E a pandemia aumentou a consciência da nossa interdependência. A sinodalidade é uma visão de um Povo de Deus em que a interdependência é reconhecida. E isto tem em conta uma visão relacional da antropologia que se baseia na reciprocidade. Uma visão que vê a Igreja no mundo assumindo esta reciprocidade: damos alguma coisa, mas também temos que receber. O Espírito Santo não fala apenas através dos batizados, no Povo de Deus. Não podemos ser sinodais como Povo de Deus se não formos Povo de Deus caminhando com o Povo da Terra.

Há uns tempos uma jovem dizia, num encontro em que estive, que participar não pode ser apenas ir à Igreja fazer coisas… arrumar o armazém dos alimentos ou outra coisa. Nós queremos ter voz.

Sim. Isso ficou claro no Sínodo dos Jovens, eles querem ser ouvidos, ser protagonistas. A fé transmite-se por meio de relações. Uma Igreja sinodal é uma Igreja relacional. A única forma de transmitir a fé e ser Igreja na nossa cultura é ser uma Igreja sinodal em que toda a gente é protagonista. E os jovens pedem isso de um modo especial. Com a minha experiência de 30 anos na Pastoral Juvenil, em especial com os universitários, posso dizer que os lugares de Igreja com jovens em que existe vida e dinamização são aqueles que são construídos em conjunto com eles, em que a missão é partilhadas com eles. Assumir a pastoral juvenil partilhando responsabilidades com líderes juvenis. Temos que nos atrever a dar mais responsabilidades aos jovens, trabalhando com eles.

Num inquérito que o Ponto SJ realizou para escutar os jovens ficou claro que o aspeto em que estes se sentem menos ajudados pela Igreja é o da sua vida afetiva e sexual. Partindo da sua experiência, em que aspetos da vida é que os jovens se sentem mais sós e menos ajudados pela Igreja?

Ouço muitos jovens, mesmo em acompanhamento espiritual, e há certamente muitas questões relacionadas com a afetividade e a sexualidade. E no Sínodo dos Jovens foi claro que eles querem que a Igreja os ouça no que se refere a essa dimensão da sua vida. E alguns até compreendem a proposta da Igreja para o matrimónio, mas querem ser ouvidos a partir das suas vivências e realidade, com as suas lutas e dificuldades e conversarem verdadeiramente com padres, religiosas ou com outras pessoas que os possam acompanhar. Para fazê-lo é necessário que haja quem tenha disponibilidade para ouvir, que se conheça também a si próprio, e se deixe tocar pela realidade dos jovens, estando aberto e tendo capacidade para acolher esta dimensão das suas vidas. Por diversas razões, há muitas pessoas na Igreja que não se sentem confortáveis com esta dimensão das suas vidas… e os jovens pressentem esse desconforto. Mas isto deveria fazer parte da Pastoral Juvenil. Em França tentamos que quem trabalhe com jovens esteja preparado para isso, independentemente de haver algumas pessoas mais especializadas neste tema. É que esta é uma dimensão essencial da vida dos jovens.

Uma boa imagem para entender o que significa trabalhar com jovens é a imagem de Jesus caminhando com dois discípulos na estrada de Emaús: aproxima-se, começa a ouvi-los sobre a sua situação, as suas desilusões e sofrimentos. Eles seguiam na direção errada mas Jesus estava simplesmente lá, acompanhando. Os jovens precisam antes de tudo de ser ouvidos e depois podemos explicar alguma coisa. Para escutar outros, é preciso também aprender a escutar-se a si próprio e em especial à sua dimensão afetiva. E se não se está confortável com este processo em termos pessoais não se pode verdadeiramente escutar os outros.

Para terminar, já é possível identificar as situações ou grupos a que a Igreja está a ser convidada a dar mais atenção, que portas se têm aberto? Alguém que peça de um modo mais premente a escuta da Igreja?

É ainda prematuro tirar conclusões… é ainda um tempo de escuta. O importante é que toda a gente possa ser escutada, mesmo grupos que se possam sentir mais marginalizados: LGBTQ, recasados, alguns grupos de mulheres. Estamos disponíveis para receber contributos de todos.


SANTA MISSA NA SOLENIDADE DE PENTECOSTES

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Domingo, 5 de junho de 2022

Na frase final do Evangelho que ouvimos, Jesus faz uma afirmação que nos dá esperança e, ao mesmo tempo, faz refletir. Diz Ele aos discípulos: «O Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, Esse é que vos ensinará tudo, e há de recordar-vos tudo o que Eu vos disse» (Jo 14, 26). Ficamos impressionados com este «tudo», perguntando-nos: Em que sentido dá o Espírito esta compreensão nova e plena a quem O recebe? Não é questão de quantidade, nem questão académica: Deus não quer fazer de nós enciclopédias, nem eruditos. Não. É questão de qualidade, de perspetiva, de intuito. O Espírito faz-nos ver tudo de modo novo, segundo o olhar de Jesus. Poderíamos expressá-lo assim: no grande caminho da vida, Ele ensina-nos donde começar, que caminhos seguir e como caminhar. Temos o Espírito que nos diz donde começar, que caminhos seguir e como caminhar, o estilo «como caminhar».

Primeiro: donde começar. De facto, o Espírito indica-nos o ponto de partida da vida espiritual. E qual é? Disso nos falava Jesus pouco antes, quando diz: «Se me tendes amor, observareis os meus mandamentos» (14, 15). Se me amardes, observareis: esta é a lógica do Espírito. Muitas vezes pensamos ao contrário: se observarmos, amamos. Estamos habituados a pensar que o amor deriva, essencialmente, da nossa observância, da nossa perícia, da nossa religiosidade; ao passo que o Espírito nos lembra que, sem o amor na base, tudo o mais é vão e que este amor não nasce das nossas capacidades, este amor é dom d’Ele. Ele ensina-nos a amar, e devemos pedir este dom. É o Espírito de amor que põe em nós o amor, é Ele que nos faz sentir amados e nos ensina a amar. Ele é – por assim dizer – o «motor» da nossa vida espiritual. É Ele que move tudo a partir de dentro de nós. Mas, se não começamos do Espírito ou com o Espírito ou por meio do Espírito, não se consegue caminhar.

No-lo recorda Ele mesmo, porque é a memória de Deus, é Aquele que nos recorda todas as palavras de Jesus (cf. Jo 14, 26). E o Espírito Santo é uma memória ativa, que acende e reacende no coração a amizade a Deus. Experimentamos a sua presença no perdão dos pecados, quando ficamos repletos da sua paz, da sua liberdade, da sua consolação. É essencial alimentar esta memória espiritual. Sempre nos lembramos das coisas que correm mal: muitas vezes faz-se ouvir em nós a voz que nos recorda os fracassos e as inaptidões, dizendo-nos: «Vês? Outra queda, outra deceção! Nunca conseguirás, não és capaz!» Trata-se duma lengalenga antipática e ruim. O Espírito Santo, por outro lado, lembra outra bem diferente: «Caíste? Mas, és filho, és filha de Deus; és uma criatura única, eleita, preciosa, Caíste? Mas continuas a ser amado, amada. Ainda que tenhas perdido a confiança em ti próprio, Deus confia em ti!» Esta é a memória do Espírito, aquilo que o Espírito nos lembra continuamente: Deus lembra-Se de ti. Perderás a memória de Deus, mas Deus não a perde de ti: recorda-Se continuamente de ti.

Entretanto poder-te-ia vir a vontade de objetar: «Palavras belas! Mas eu tenho tantos problemas, feridas e preocupações, que não se resolvem com fáceis consolações». Ora é justamente neste ponto que o Espírito pede a possibilidade de entrar, porque Ele, o Consolador, é Espírito de cura, é Espírito de ressurreição, e pode transformar as feridas cuja ardida sentes dentro. Ensina-nos a não extirpar as recordações de pessoas e situações que nos fizeram mal, mas deixá-las habitar pela sua presença. Assim fez com os Apóstolos e os seus fracassos. Abandonaram Jesus antes da Paixão, Pedro negara-O, Paulo perseguira os cristãos: quantos erros, quantos sentimentos de culpa! E nós próprios? Quantos erros, quantos sentimentos de culpa! Sozinhos, não encontravam saída. Sozinhos, não; mas com o Consolador, sim! Porque o Espírito cura as recordações. É verdade! Cura as recordações. Como? Colocando no cimo da lista aquilo que conta: a recordação do amor de Deus, o seu olhar pousado sobre nós. Deste modo põe ordem na vida: ensina a acolher-nos, ensina-nos a perdoar, perdoar a nós próprios. Não é fácil perdoar-se a si mesmo: o Espírito ensina-nos esta estrada, ensina a reconciliar-nos com o passado. A recomeçar.

Além de nos recordar o ponto de partida, o Espírito ensina-nos que caminhos seguir. Primeiro lembrava-nos o ponto de partida, agora ensina-nos qual estrada seguir. Deduzimo-lo da segunda Leitura, onde São Paulo explica que «todos os que se deixam guiar pelo Espírito de Deus» «caminham, não segundo a carne, mas segundo o Espírito» (Rm 8, 14.4). Por outras palavras, nas encruzilhadas da vida, o Espírito sugere-nos o melhor caminho a seguir. Por isso, é importante saber discernir entre a voz d’Ele e a do espírito do mal. É que ambos nos falam. É preciso aprender a discernir e compreender onde está a voz do Espírito, para a identificar e seguir a estrada d’Ele, seguir as coisas que Ele está a dizer-nos.

Demos alguns exemplos: o Espírito Santo nunca te dirá que está tudo bem no teu caminho. Nunca to dirá, porque não é verdade. Ele corrige-te, leva-te também a chorar os próprios pecados; instiga-te a mudar, a lutar contra as tuas intrujices e duplicidades, embora tudo isso exija esforço, luta interior e sacrifício. O espírito mau, ao contrário, impele-te a fazer sempre o que te apetece e vem à cabeça; leva-te a crer que tens direito de usar da tua liberdade como te apetece. Depois, porém, quando ficas vazio por dentro… (faz-nos mal esta experiência de sentir o vazio dentro: muitos de nós a sentimos!) e tu quando ficas vazio por dentro, acusa-te: o espírito mau acusa-te, torna-se o acusador, e lança-te por terra, destrói-te. O Espírito Santo, que te corrige ao longo do caminho, nunca te deixa por terra, mas toma-te pela mão, consola-te e sempre te encoraja.

Depois, quando vires que giram dentro de ti amargura, pessimismo e pensamentos tristes (quantas vezes nos deixamos cair nisto!), quando acontecem estas coisas, é bom saber que isso nunca vem do Espírito Santo. Nunca! A amargura, o pessimismo, os pensamentos tristes não vêm do Espírito Santo. Vêm do maligno, que se sente à vontade na negatividade e recorre muitas vezes a esta estratégia: alimenta a impaciência, a vitimização, faz sentir a necessidade de lamentar-se – é feio este lamentar-se e, contudo, quantas vezes…! – e com a necessidade de lamentar-se vem a necessidade de reagir aos problemas criticando, dando a culpa toda aos outros. Torna-nos nervosos, desconfiados e lamurientos. A linguagem do espírito mau é precisamente a lamúria: ele leva-te à lamúria, que é estar sempre triste, com um espírito de funeral. As lamúrias… O Espírito Santo, pelo contrário, convida-nos a não perder jamais a confiança e recomeçar sempre: levanta-te! Levanta-te! Sempre te encoraja: levanta-te! E toma-te pela mão: levanta-te! E como recomeçar? Sendo nós os primeiros a descer em campo, sem esperar que comece outro qualquer. E, depois, levando àqueles que encontramos esperança e alegria, não lamúrias; convida-nos a nunca invejar os outros, nunca! A inveja é a porta por onde entra o espírito mau. Assim no-lo diz a Bíblia: pela inveja do diabo, entrou o mal no mundo. Nunca invejes, nunca! O Espírito Santo leva-te pelo bom caminho, fazendo com que te alegres com os sucessos dos outros. «Que bom! Isso correu-te bem!»

Além disso, o Espírito Santo não é idealista, mas concreto: quer que nos concentremos sobre o aqui e agora, porque o sítio onde estamos e o tempo que vivemos são os lugares da graça. O lugar da graça é o lugar concreto de hoje: aqui, agora. Como? Não são as fantasias que conseguimos pensar… O Espírito leva-te ao concreto, sempre. Ao contrário, o espírito do mal quer afastar-nos do aqui e do agora, levar-nos com a imaginação para outro lugar: muitas vezes ancora-nos ao passado, aos queixumes, às saudades, àquilo que a vida não nos deu; ou então projeta-nos para o futuro, alimentando temores, medos, ilusões, falsas esperanças. O Espírito Santo, não! Leva-nos a amar aqui e agora, em concreto: não um mundo ideal, uma Igreja ideal, não uma congregação religiosa ideal, mas aquilo que existe, à luz do sol, na transparência, na simplicidade. Quanta diferença do maligno, que fomenta as coisas ditas nas costas, as murmurações, as críticas! As críticas são um mau hábito, que destrói a identidade das pessoas.

O Espírito quer-nos juntos; funda-nos como Igreja e hoje – terceiro e último aspeto – ensina à Igreja o modo como caminhar. Os discípulos estavam fechados no Cenáculo; então o Espírito desce e fá-los sair. Sem o Espírito, estavam uns no meio dos outros; com o Espírito, abrem-se a todos. Em cada época, o Espírito transtorna os nossos esquemas e abre-nos à sua novidade. Temos sempre a novidade de Deus, que é a novidade do Espírito Santo; Ele sempre ensina à Igreja a necessidade vital de sair, a necessidade fisiológica de anunciar, de não ficar fechada em si mesma. Ensina a não ser um rebanho que reforça o recinto, mas uma pastagem aberta, para que todos possam alimentar-se da beleza de Deus; ensina a ser uma casa acolhedora, sem divisórias. O espírito mundano, pelo contrário, faz pressão para que nos concentremos apenas sobre os nossos problemas, sobre os nossos interesses, na necessidade de aparecermos relevantes, na defesa a todo o custo das nossas identificações nacionais e de grupo. O Espírito Santo, não! Convida a esquecer-se de si mesmo, a abrir-se a todos. E assim rejuvenesce a Igreja. Atenção! É Ele que a rejuvenesce, não nós. Nós procuramos apenas maquilhá-la um pouco: mas isto não resulta. É Ele que a rejuvenesce. Porque a Igreja não se programa, e os projetos de modernização não bastam. Temos o Espírito que nos liberta da obsessão das urgências e convida-nos a percorrer caminhos antigos e sempre novos, ou seja, os caminhos do testemunho, os caminhos da pobreza, os caminhos da missão, para libertar-nos de nós mesmos e enviar-nos ao mundo.

Mas no fim – curioso! – o Espírito Santo é o autor da divisão, até da confusão, duma certa desordem. Pensemos na manhã de Pentecostes: Ele é o autor que cria divisão de línguas, de atitudes... aquilo era uma confusão! Mas, ao mesmo tempo, é o autor da harmonia. Divide com a variedade dos carismas, mas uma divisão fictícia, porque a verdadeira divisão acaba inserida na harmonia. Faz a divisão com os carismas e faz a harmonia com toda esta divisão, e esta é a riqueza da Igreja.

Irmãos e irmãs, vamos à escola do Espírito Santo, para que nos ensine tudo. Invoquemo-Lo todos os dias, para que nos lembre de começar sempre do olhar de Deus pousado sobre nós, mover-nos nas nossas escolhas escutando a sua voz, caminhar juntos, como Igreja, dóceis a Ele e abertos ao mundo. Assim seja!


Um fenómeno estranho e a fórmula do Papa

Lavínia Leal | 26 Mai 2022| in 7 Margens

É um fenómeno estranho: como é que se explica que um tema sobre o qual todos têm opinião e que de uma forma ou outra faz ou fez parte da vida da maioria dos portugueses é tão rejeitado quando se trata de preencher espaço na emissão?

Faço uma pesquisa rápida no Google Notícias: “Igreja Católica Portugal”.

O resultado espelha bem a relação que a comunicação social “laica” portuguesa tem com a Igreja católica. A maior parte das notícias são sobre abusos sexuais e sobre o Papa.

Existe um preconceito generalizado em relação ao assunto “católico”. Um passado em que o Estado muitas vezes se confundia com a hierarquia da Igreja deixou marcas profundas. Julgo que parte do preconceito vem daí, apesar de o 25 de Abril ter sido há quase 50 anos.

O facto de a RTP ser um órgão de comunicação social público obriga ainda mais ao dever de isenção e à laicidade. O escrutínio do público e das instituições é permanente. Assim como não queremos ser chamados de porta-vozes do governo, também não queremos ser a voz da Igreja. E é assim mesmo que deve ser. Mas, nesta demanda pela isenção, às vezes peca-se por excesso.

Apresenta-se assim um desafio ainda maior para a Igreja ser notícia.

Reconheço que nos últimos anos houve um esforço da Igreja, nomeadamente na diocese de Lisboa, para melhorar a comunicação com imprensa.

Recordo-me de uma conferência de imprensa presidida por D. Manuel Clemente, na sede da Conferência Episcopal. Coincidiu com um momento em que a Igreja portuguesa decidiu travar a admissão de homossexuais nos seminários. Na mesma altura um padre da Madeira tinha assumido a paternidade de uma criança.

D. Manuel foi bombardeado com perguntas sobre os dois temas.

Foi confrangedora a falta de habilidade para responder aos jornalistas. Estava claramente mal preparado. Não tenho dúvidas que era a pessoa que mais sabia sobre os assuntos mas, efetivamente não estava preparado para o que aconteceu.

Ao contrário daquilo que foi tradição durante muitos anos na Igreja portuguesa, que em situações de crise ficava em silêncio à espera que a tempestade passasse, esta conferência de imprensa revela uma vontade de ser transparente e de enfrentar os assuntos difíceis perante a sociedade. Por outro lado, tornou-se evidente a necessidade de a Igreja trabalhar a comunicação. Ter um especialista que antecipe as reações dos média e as perguntas, que saiba como gerir as crises e aconselhe os porta-vozes.

O Opus Dei é um excelente exemplo. No meio do furacão d’O Código da Vinci, a Obra percebeu que era imperativo gerir os estragos e recuperar a imagem. Recrutou um especialista. A forma como Pedro Gil se relacionou com os jornalistas desde o primeiro momento fez toda a diferença para reabilitar o Opus Dei na imprensa. Sempre disponível, linguagem acessível, abre portas, responde com clareza.

Participei uma vez numa formação sobre jornalismo e Igreja no Seminário dos Olivais (Lisboa). Havia jornalistas de vários órgãos de comunicação diferentes, incluindo Ecclesia e Rádio Renascença. Falou-se do episódio com D. Manuel Clemente como exemplo do que não deve acontecer. No momento reservado para perguntas e respostas alguns padres e seminaristas manifestaram indignação por também a Renascença ter questionado D. Manuel. Consideraram um ataque à Igreja. Houve ainda quem defendesse que um jornalista católico deve alinhar com o discurso da Igreja, o que obviamente, não pode acontecer.

Há um esforço claro de aproximação aos média de alguns sectores da Igreja que perceberam a importância que têm para se recuperar a imagem e o respeito da sociedade. No entanto, enfrentam a resistência daqueles que consideram que qualquer notícia é uma ameaça, menos aquelas que reproduzem os discursos do papa ou dos bispos.

As encíclicas, o conteúdo por si só, não têm espaço na informação da RTP. Divulgar o conteúdo de uma encíclica é evangelização, não é notícia. No entanto, se o Papa ou o Vaticano produzirem documentos que falam de contraceção, aborto, sexualidade, casamento dos padres ou sacerdócio de mulheres já se admite uma referência nos jornais da estação.

E de que serve a um jornalista escrever textos cheios de conteúdo se mal começa a reportagem o telespectador faz zapping? O ideal é conjugar conteúdo com criatividade. A articulação dos dois pode reconquistar o público para assuntos menos polémicos e devolver à Igreja o respeito que merece. As reportagens de Joaquim Franco na SIC e agora na TVI são um exemplo extraordinário disso mesmo.

Não sei se Jorge Bergoglio alguma vez fez média training ou se é apenas intuitivo, mas a comunicação é um dom que ele tem. Linguagem simples e comum, transparente, acessível, verdadeira, credível, confiável. Fala olhos nos olhos, ou seja, coloca-se ao nível das pessoas a quem se dirige. Quando se começa no jornalismo repetem-nos constantemente: “Tens de escrever para a porteira. Se a porteira entende, todos vão entender.” O Papa fala para a porteira! Sempre. A comunicação da igreja poderia começar logo por aí. Falar simples. Descomplicar os discursos tantas vezes tão herméticos que até o próprio clero tem dificuldade em entendê-los.

Como pode a Igreja estar presente nos média de forma saudável e permanente?

O Papa Francisco tem a fórmula. Basta seguir-lhe o exemplo.

Lavinia Leal é sub-editora de Sociedade na RTP. Jornalista há 27 anos, interessa-se por temas sociais e religiosos.


Será a comunicação uma prioridade da Igreja?

Ângela Roque | 22 Mai 2022 in 7 Margens

Na aproximação de mais um Dia Mundial das Comunicações Sociais, partilho algumas linhas de reflexão sobre o modo como a Igreja em Portugal se relaciona com os média e com os jornalistas.

Acompanho a área de Religião desde 2009, e reconheço que nestes últimos anos tem havido um esforço para melhorar a comunicação da Igreja. Eu própria, ao longo destes últimos 13 anos, já participei em diversos cursos de formação, workshops e seminários em que o tema central foi o da comunicação. Mas, verdadeiramente, o que mudou?

Muitas dioceses criaram gabinetes de comunicação – e muitos funcionam bem –, têm sites próprios e há consciência crescente da importância de se utilizarem as redes sociais e os meios digitais. Mas a situação varia muito de diocese para diocese, e há ainda um longo caminho a percorrer. Desde logo porque, em muitos casos, não se tomou consciência de que não basta ter um gabinete de comunicação, é preciso ativá-lo de forma profissional. Sem pessoas com formação – ou pelo menos com experiência na área –, que conheçam a realidade da profissão e se dediquem a tempo inteiro à função, não é possível dar resposta capaz às necessidades dos jornalistas.

Todos sabemos que o tempo do jornalismo não é o tempo da Igreja. Mas no atual contexto em que a Igreja está sob escrutínio permanente da opinião pública, há que saber manter canais abertos de comunicação com os jornalistas, ter disponibilidade para responder com clareza às questões que forem solicitadas, assegurar que há quem fale sobre os assuntos.

É certo que a Igreja sempre reconheceu a importância da comunicação em geral, e do jornalismo em particular – a celebração do Dia das Comunicações Sociais foi a única instituída pelo Concílio Vaticano II –, mas perante qualquer caso mais polémico que venha a lume, esbarramos facilmente em dificuldades. Ora, a Igreja tem de estar disposta ao contraditório. O jornalismo precisa desse contraditório para esclarecer, como é seu dever.

Os responsáveis pela comunicação das dioceses ou instituições da Igreja nem sempre têm noção da importância do seu trabalho. Um bom assessor/porta-voz/diretor de comunicação é aquele que prevê dificuldades, que entende a urgência dos jornalistas (queremos tudo para “ontem”), que fala ou arranja quem fale, sobre determinado assunto em tempo útil. Não é possível esperar horas, às vezes dias, por uma resposta. Como não é admissível que quem trata da comunicação esteja incontactável.

Melhorar o relacionamento com os média e com os jornalistas também implica “sair da bolha” e tomar consciência das dificuldades por que hoje passam os meios e os profissionais de comunicação. A crise não é uma coisa abstrata, é real.

Nos últimos anos assistiu-se a um empobrecimento das redações, com vagas sucessivas de despedimentos e/ou rescisões amigáveis. Menos jornalistas significa menos capacidade de acompanhamento e menos atenção ao que pode ser essencial, para se passar a tratar os assuntos “pela rama”.

Muitos jornais de referência deixaram de ter secções de Religião e hoje poucos são os média com profissionais dedicados a uma só área, muito menos só à de Religião. Não se estranhe, por isso, que na maioria dos casos só se fale de Igreja quando há escândalo ou polémica.

A par das dificuldades económicas e de gestão, os média e o jornalismo enfrentam hoje desafios inéditos e maiores do que nunca: num mundo globalizado, as redes sociais – onde a informação circula rapidamente e sem critério nem ética – já estão a condicionar demasiadas vezes as escolhas editoriais que se fazem e não raro estamos todos a fazer o mesmo, porque há a perceção – errada, do meu ponto de vista – de que o que “está a dar” nas redes é o que interessa às pessoas. Abordagens diferenciadoras são uma mais-valia, mas a verdade é que nem sempre as redações têm capacidade para garantir isso.

Apesar de nos últimos anos algumas destas questões terem sido alvo de reflexão também na Igreja, nomeadamente nas mensagens do Papa, na prática – falo de Portugal – parece não haver consciência deste manancial de dificuldades.

Este ano, a mensagem do Papa Francisco para o Dia das Comunicações Sociais é sobre a “escuta”, essencial no jornalismo. É “condição da boa comunicação”, sublinha o texto.

Francisco desafia-nos a “escutar com o ouvido do coração”, e diz que “para fornecer informação sólida, equilibrada e completa, é necessário ter escutado prolongadamente”. Tão pertinente, como sempre. Mas, na velocidade em que hoje trabalhamos, que tempo dedicamos à escuta? E que escuta nos é permitida?

O Papa diz que “a capacidade de escutar a sociedade é ainda mais preciosa neste tempo ferido pela longa pandemia”. A mensagem foi escrita e publicada antes da guerra na Ucrânia, ou faria certamente também referência ao conflito, que tantos desafios tem levantado a quem faz a cobertura da guerra. Francisco também fala da realidade das “migrações forçadas”, para dizer que cada pessoa tem “um nome”, e que o bom jornalismo deve mostrar os “rostos e histórias de pessoas concretas”.

Da teoria à prática, era fundamental que a comunicação fosse encarada como prioritária pela Igreja. Hoje mais do que nunca.

Os jornalistas não são “inimigos”. Escutar, como pede o Papa, implica perguntar. Que não deixemos de perguntar, escutar e dar voz aos “rostos e histórias de pessoas concretas”.

Ângela Roque é jornalista e editora da informação religiosa da Rádio Renascença.


E a escuta dos de fora?

Fr. Fernando Ventura | 10 Mai 2022 | in 7 Margens

Na sequência do inquérito acerca do Sínodo, o frade capuchinho Fernando Ventura reage deste modo à notícia publicada pelo 7MARGENS.

Não estive presente em nenhuma iniciativa sinodal de nenhuma das dioceses portuguesas, nem de nenhum grupo ou congregação. Por este motivo, não me posso pronunciar especificamente sobre nenhuma delas.

Dos dados apresentados na notícia dá para perceber que todas as dioceses levaram a cabo encontros sobre o tema. Esta é uma nota positiva.

Como pontos a refletir, há um que salta à evidência, que é a variedade e pluriformidade da decisão (ou ainda a falta dela) quanto à forma de divulgação das reações recolhidas a nível pessoal, paroquial e de grupo.

Trata-se obviamente de um exercício de liberdade que é respeitável, mas fica-me a ideia da possibilidade de perda da variedade de contribuições, sem violar a privacidade de ninguém.

Além disso, a opção de algumas dioceses pela apresentação de uma síntese implica sempre critérios de elaboração de um texto final, “sintético”, que nunca será capaz de dar cabalmente voz a “vozes individuais”.

Ainda sob este aspecto, noto pelo menos uma falta de referência à “escuta e participação”, nas palavras do Papa, “dos de fora, dos da periferia”. Eventualmente terão sido ouvidos, mas à primeira vista, fica a sensação de que na maioria dos casos, senão na quase totalidade, os que foram “ouvidos” foram os “de dentro”, os de sempre.

Seja como for, o Sínodo sobre a Sinodalidade não é um ponto de chegada, mas um caminho e um estilo de ser e estar no mundo que, oxalá, há-de fazer o seu caminho e há-de ir vencendo alguns medos; pelo menos os medos daqueles que vêm na pedagogia da sinodalidade um qualquer “ataque” à hierarquia e não essencialmente um processo de presença pastoral e de sinal de acolhimento e de escuta, num mundo que cada vez mais se vai tornando “inóspito”, atafulhado de gente que fala e desesperadamente à procura de gente que escuta.

Fernando Ventura é frade franciscano da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos

 

Arquivar o Povo De Deus

Teresa Toldy | 13 Mai 2022| in 7 Margens

Na sequência do inquérito acerca do Sínodo, Teresa Toldy reagiu à notícia publicada pelo 7MARGENS. Aqui fica o seu texto, depois do comentário do franciscano capuchinho Fernando Ventura.

Foi com choque e tristeza que li no 7MARGENS que “a quase totalidade das dioceses portuguesas decidiu divulgar apenas as sínteses diocesanas do processo sinodal em curso na Igreja Católica”. Diz ainda a notícia que “os contributos recebidos de paróquias, grupos, movimentos, comunidades religiosas ou pessoas individuais” não serão divulgados. Apesar de, por exemplo, na diocese de Aveiro se dizer que “o documento com a síntese diocesana será (…) o documento base para programar o próximo ano pastoral”, a diocese da Guarda afirma que “poderia ser falta de respeito o seu uso [dos contributos de grupos] sem consentimento dos mesmos intervenientes)”, pelo que “estes relatórios serão arquivados na Cúria diocesana”. O objetivo destas reflexões é que elas se difundam, que se pense em conjunto, não que processos sãos, participados, salutares, eclesiais, sejam arquivados.

A minha primeira reação foi pensar nos inúmeros grupos que se mobilizaram quanto puderam, com a esperança de que as suas reflexões contribuíssem para que a Igreja seja mais fiel a Jesus Cristo e mais próxima, mais encarnada no mundo, em suma: por amor à mensagem de Jesus, à Igreja e ao mundo. Como é possível que as suas expectativas sejam defraudadas? Como é possível que sejam tomadas decisões de não partilhar os documentos elaborados? Como há-de a Igreja apelar à participação dos seus membros quando se criam processos que, depois, não são levados por diante?

Lembrei-me de um bispo que, antes de partir para Roma, para participar no Concílio Vaticano II, comentou que aquilo ia demorar pouco: era praticamente assinarem o que já estava feito. Enganou-se redondamente: os documentos preparados foram todos rejeitados e o processo de reflexão foi sério, demorou anos – não era mais uma burocracia ou algo para não levar muito a sério. Não é certamente um processo burocrático que o Papa Franciisco quer.

A maior infelicidade é essa: pensar que há pastores que acham que são mais importantes do que as ovelhas e ainda não perceberam que o Papa Francisco deu impulso a um processo, não mandou responder a formulários. Deu um impulso para que a Igreja seja, de facto, Igreja. Aliás, a palavra grega que dá origem à tradução latina “ecclesia” é, precisamente, assembleia. Quando chegará o tempo em que se compreende que a Igreja são todos os seus membros – todos? Quando chegará o tempo de levar o Papa Francisco a sério? É que Francisco sente que faz parte deste Povo, embora pareça que muitos eclesiásticos ainda não o perceberam. É a existência deste Povo que justifica o seu múnus. Não é o contrário. Quando haverá a lucidez e a humildade de compreender a necessidade de levar a sério o Povo de Deus? Até quando se irá tentar arquivar o seu pensamento?

Teresa Toldy é professora universitária de Ética e teóloga; publicou Deus e a Palavra de Deus nas teologias feministas (Ed. Paulinas)


MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA O 59º DIA MUNDIAL DE ORAÇÃO PELAS VOCAÇÕES
[8 de maio de 2022 - IV Domingo de Páscoa]

«Chamados para construir a família humana»

Queridos irmãos e irmãs!

Nos dias que correm, enquanto continuam a soprar os ventos gélidos da guerra e da opressão e frequentemente testemunhamos fenómenos de polarização, prosseguimos como Igreja o processo sinodal iniciado: sentimos urgente necessidade de caminhar juntos cultivando as dimensões da escuta, participação e partilha. Juntamente com todos os homens e mulheres de boa vontade, queremos contribuir para construir a família humana, curar as suas feridas e projetá-la para um futuro melhor. Nesta perspetiva, para o LIX Dia Mundial de Oração pelas Vocações, desejo refletir convosco sobre o amplo significado da «vocação», no contexto duma Igreja sinodal que se coloca à escuta de Deus e do mundo.

Todos chamados a ser protagonistas da missão

A sinodalidade, o caminhar juntos é uma vocação fundamental para a Igreja e, só neste horizonte, é possível descobrir e valorizar as diversas vocações, carismas e ministérios. Ao mesmo tempo, sabemos que a Igreja existe para evangelizar, saindo de si mesma e espalhando a semente do Evangelho na história. Ora esta missão é possível precisamente colocando em sinergia todas as áreas pastorais e, antes ainda, envolvendo todos os discípulos do Senhor. Com efeito, «em virtude do Batismo recebido, cada membro do Povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28, 19). Cada um dos batizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito ativo de evangelização» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 120). É preciso acautelar-se da mentalidade que separa sacerdotes e leigos, considerando protagonistas os primeiros e executores os segundos, e levar por diante a missão cristã, conjuntamente, leigos e pastores como único Povo de Deus. Toda a Igreja é comunidade evangelizadora.

Chamados a ser guardiões uns dos outros e da criação

A palavra «vocação» não deve ser entendida em sentido restrito, referindo-a apenas àqueles que seguem o Senhor pelo caminho duma consagração específica. Todos somos chamados a participar na missão de Cristo de reunir a humanidade dispersa e reconciliá-la com Deus. De modo mais geral, cada pessoa humana, antes ainda de viver o encontro com Cristo e abraçar a fé cristã, recebe com o dom da vida um chamamento fundamental: cada um de nós é uma criatura querida e amada por Deus, objeto dum pensamento único e especial d’Ele e somos chamados a desenvolver, ao longo da nossa vida, esta centelha divina que mora no coração de cada homem e mulher, contribuindo para fazer crescer uma humanidade animada pelo amor e mútuo acolhimento. Somos chamados a ser guardiões uns dos outros, a construir laços de concórdia e partilha, a curar as feridas da criação para que não seja destruída a sua beleza. Em suma, tornamo-nos uma família na maravilhosa casa comum da criação, na variedade harmoniosa dos seus elementos. Neste sentido amplo, não só os indivíduos mas também os povos, as comunidades e as agregações dos mais variados géneros têm uma «vocação».

Chamados a acolher o olhar de Deus

Nesta grande vocação comum, insere-se a chamada mais particular que Deus nos dirige, alcançando a nossa existência com o seu Amor e orientando-a para a sua meta definitiva, para uma plenitude que ultrapassa até mesmo o limiar da morte. Assim quis Deus olhar, e olha, para a nossa vida.

As seguintes palavras são atribuídas a Miguel Ângelo Buonarroti: «No interior de cada bloco de pedra, há uma estátua, cabendo ao escultor a tarefa de a descobrir». Se tal pode ser o olhar do artista, com muito mais razão assim nos vê Deus: naquela jovem de Nazaré, viu a Mãe de Deus; no pescador Simão, filho de Jonas, viu Pedro, a rocha sobre a qual podia construir a sua Igreja; no publicano Levi, entreviu o apóstolo e o evangelista Mateus; em Saulo, cruel perseguidor dos cristãos, viu Paulo, o apóstolo dos gentios. O seu olhar de amor sempre nos alcança, toca, liberta e transforma, fazendo com que nos tornemos pessoas novas.

Esta é a dinâmica de cada vocação: somos alcançados pelo olhar de Deus, que nos chama. A vocação – como aliás a santidade – não é uma experiência extraordinária reservada a poucos. Tal como existem «os santos ao pé da porta» (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 6-9), assim também a vocação é para todos, porque todos são olhados com amor e chamados por Deus.

Diz um provérbio do Extremo Oriente: «Um sábio, ao olhar o ovo, sabe ver a águia; ao olhar a semente, vislumbra uma grande árvore; ao olhar um pecador, sabe entrever um santo». É assim que Deus nos olha: em cada um de nós, vê potencialidades, às vezes ignoradas por nós mesmos, e atua incansavelmente, ao longo da nossa vida, a fim de as podermos colocar ao serviço do bem comum.

Assim a vocação nasce, graças à arte do Escultor divino que, com as suas «mãos», nos faz sair de nós mesmos, para que se delineie em nós a obra-prima que somos chamados a ser. Particularmente capaz de nos purificar, iluminar e recriar é a Palavra de Deus, que nos liberta do egocentrismo. Coloquemo-nos, pois, à escuta da Palavra, para nos abrirmos à vocação que Deus nos confia! E aprendamos a escutar também os irmãos e irmãs na fé, porque nos seus conselhos e exemplo pode esconder-se a iniciativa de Deus, que nos indica estradas sempre novas a percorrer.

Chamados a responder ao olhar de Deus

O olhar amoroso e criador de Deus alcançou-nos de forma singular em Jesus. Ao falar do jovem rico, o evangelista Marcos observa: «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (10, 21). O mesmo olhar de Jesus, cheio de amor, pousa sobre cada um de nós. Irmãos e irmãs, deixemo-nos tocar por este olhar e ser levados por Ele para além de nós mesmos! E aprendamos também a olhar de tal modo um para o outro que as pessoas com quem vivemos e as que encontramos – sejam elas quem forem – possam sentir-se acolhidas e descobrir que há Alguém que as olha com amor, convidando-as a desenvolverem todas as suas potencialidades.

A nossa vida muda quando acolhemos este olhar. Tudo se torna um diálogo vocacional entre nós e o Senhor, mas também entre nós e os outros. Um diálogo que, vivido em profundidade, nos faz tornar cada vez mais aquilo que somos: na vocação ao sacerdócio ordenado, ser instrumento da graça e da misericórdia de Cristo; na vocação à vida consagrada, ser louvor de Deus e profecia de nova humanidade; na vocação ao matrimónio, ser dom mútuo e geradores e educadores da vida; em cada vocação e ministério na Igreja, em geral, que nos chama a olhar os outros e o mundo com os olhos de Deus, servir o bem e difundir o amor com as obras e as palavras.

A propósito, desejo mencionar aqui a experiência do Dr. José Gregório Hernández Cisneros. Quando trabalhava como médico em Caracas, na Venezuela, quis tornar-se irmão terceiro franciscano. Mais tarde, pensou em tornar-se monge e sacerdote, mas a saúde não lho permitiu. Compreendeu então que a sua vocação era precisamente a profissão médica, na qual se prodigalizou especialmente a favor dos pobres. E, sem reservas, dedicou-se aos doentes atingidos pela epidemia de gripe chamada «espanhola», que então alastrava pelo mundo. Morreu atropelado por um carro, ao sair duma farmácia aonde fora buscar remédios para uma idosa, sua paciente. Testemunha exemplar do que significa acolher a vocação do Senhor aderindo plenamente à mesma, foi beatificado há um ano.

Convocados para construir um mundo fraterno

Como cristãos, não só somos chamados, isto é, interpelados cada qual pessoalmente por uma vocação, mas também con-vocados. Somos como os ladrilhos dum mosaico, belos já quando vistos um a um, mas só juntos é que formam uma imagem. Brilhamos, cada um e cada uma de nós, como uma estrela no coração de Deus e no firmamento do universo, mas somos chamados a compor constelações que orientem e iluminem o caminho da humanidade, a partir do ambiente onde vivemos. Tal é o mistério da Igreja: na convivência das diferenças, ela é sinal e instrumento daquilo a que toda a humanidade é chamada. Para isso, a Igreja deve tornar-se cada vez mais sinodal: capaz de caminhar unida na harmonia das diversidades, onde todos têm a sua própria contribuição para dar e podem participar ativamente.

Portanto, quando falamos de «vocação», não se trata apenas de escolher esta ou aquela forma de vida, votar a própria existência a um determinado ministério ou seguir o encanto do carisma duma família religiosa, dum movimento ou duma comunidade eclesial; mas trata-se sobretudo de realizar o sonho de Deus, o grande desígnio da fraternidade que Jesus tinha no coração quando pediu ao Pai «que todos sejam um só» (Jo 17, 21). Cada vocação na Igreja e, em sentido largo, também na sociedade, concorre para um objetivo comum: fazer ressoar entre os homens e as mulheres aquela harmonia dos múltiplos e variados dons que só o Espírito Santo sabe realizar. Sacerdotes, consagradas e consagrados, fiéis leigos, caminhemos e trabalhemos juntos, para testemunhar que uma grande família humana unida no amor não é uma utopia, mas o projeto para o qual Deus nos criou!

Rezemos, irmãos e irmãs, para que o Povo de Deus, no meio das dramáticas vicissitudes da história, corresponda cada vez mais a esta vocação. Invoquemos a luz do Espírito Santo, para que cada um e cada uma de nós possa encontrar o respetivo lugar e dar o melhor de si neste grande desígnio!

Roma, São João de Latrão, no IV Domingo de Páscoa, 8 de maio de 2022.


POR UMA IGREJA SINODAL

A sinodalidade requer “atitudes espirituais” estranhas a muitos católicos

9 Abril, 2022 Eclesial, Sociedade

Entrevista com Jos Moons, um jesuíta holandês que lecciona na Universidade Católica de Louvain e está actualmente a preparar um livro sobre o projecto que o Papa Francisco lançou – a sinodalidade.

Não é apenas uma palavra complicada, mas “sinodalidade” também é uma palavra nova na tradição Católica. No entanto, no seu básico, é muito simples, diz o teólogo Jos Moons.

“Pode ser expressa em três pontos simples: somos Igreja juntos, a caminho, sob a orientação do Espírito Santo”, defende o jesuíta holandês de 41 anos.

Mas o teólogo admite que a sinodalidade complica-se facilmente, porque está relacionada com a participação dos crentes na vida da Igreja.

Como é que se organiza um processo que leva a sério a participação de 1,3 biliões de católicos em todo o mundo?

Moons, que ingressou na Companhia de Jesus em 2009, escreveu a sua tese de doutoramento sobre a Lumen gentium e renovação pneumatológica. Está actualmente em Salamanca (Espanha) a completar nove meses sabáticos, a que chama de “curso de actualização para Jesuítas”.

Em Maio regressará à Bélgica, onde realiza trabalho paroquial e lecciona na Universidade Católica de Louvain (KL-Leuven) e, uma vez de volta, “realizará uma visão geral do que está a acontecer em todo o mundo em torno da sinodalidade”, mapeando subtemas, catalogando os vários tópicos e identificando pensadores importantes.

Moons espera que seja um “serviço em larga escala” para as universidades e toda a Igreja. O jovem Jesuíta também está actualmente a trabalhar com dois colegas teólogos num livro sobre sinodalidade.

“Queremos mostrar que a sinodalidade como prática eclesial existe há muito tempo. Muitas pessoas não sabem disso. Mas funciona há séculos, por exemplo, em mosteiros ou em outras igrejas cristãs”, disse.

Moons concedeu a entrevista que se segue ao jornalista Hendro Munsterman.

De que precisa a sinodalidade para ter sucesso?

A sinodalidade requer algumas atitudes espirituais às quais não estamos habituados na Igreja Católica. Como a atitude espiritual de ousadia: isto tem sido tradicionalmente desencorajado. Também requer uma atitude de escuta. Os bispos não são formados para isso, nem os crentes comuns. Ouvir para depois iniciar uma discussão, geralmente conseguem fazer isso. Mas ouvir no sentido de estar genuinamente curioso sobre o que a outra pessoa pensa é muito mais difícil. Finalmente, requer também a atitude espiritual de discernimento. Quando diferentes vozes se levantam, é preciso pesá-las. Isto pressupõe liberdade interior por parte dos envolvidos, algo a que muitas vezes também não estamos habituados na Igreja. Os bispos muitas vezes conhecem a situação e nem sempre são bons a colocar as suas próprias opiniões em perspectiva. Os fiéis baptizados, por sua vez, muitas vezes também encontram dificuldades.

Mas se todos puderem dar sua opinião, não há perigo de cacofonia? Se as pessoas pensam alguma coisa, isso é necessariamente a opinião do Espírito Santo?

Isso pode realmente parecer ingénuo, e de facto é. Mas é tão ingénuo quanto é o medo de alguns de entrarem neste processo. Se a grande maioria dos fiéis católicos pensa algo, não se pode descartar a possibilidade de que o Espírito Santo queira dizer algo à Igreja ao fazê-lo.

Como funciona a ponderação e o equilíbrio?

Os bispos costumam dizer que tal e tal é o ensinamento da Igreja e devemos ensiná-lo e defendê-lo. Os crentes dizem: é assim que nos sentimos. A posição dos bispos merece respeito e atenção; assim como a posição dos fiéis. Mas também precisamos de um traço objectivante para pensar sobre isto com calma. Há um grupo de pessoas que se especializam nisso, que é a universidade. Não está suficientemente envolvida neste tipo de processo.

Como é que isso funciona concretamente?

Vou dar um exemplo. Em Leuven, dou uma palestra sobre o lugar das mulheres na Igreja Católica Romana e faço com que os alunos leiam um capítulo com evidências históricas da existência de mulheres diaconisas nos primeiros séculos da Igreja. Essa evidência é esmagadora. Ao mesmo tempo, observo que na minha própria formação teológica, eu mesmo nunca tinha ouvido falar sobre isto. Também noto que não desempenha nenhum papel no discurso da Igreja sobre o diaconato. Vejo que em Roma uma comissão é cuidadosamente manipulada e depois outra comissão, quando a evidência está ali mesmo. Portanto, há uma boa razão teológica para a opinião das pessoas, para o seu senso do assunto. Se formos avaliar o que os crentes pensam, poderíamos incluir não apenas a doutrina da Igreja, mas também a universidade, onde essas coisas são pensadas. Observo com pesar que há uma grande divisão entre a Igreja e a teologia.

Os bispos sentem-se os guardiões da tradição. Isto já não é assim?

Não quero despojar os bispos da sua autoridade de doutrina, mas seria bom se os bispos não apenas ensinassem, mas também aprendessem. E não apenas na teologia dos documentos da Igreja, mas também na teologia académica, onde os padrões de solidez intelectual se aplicam.

Os católicos não precisam de mais instrução catequética e teológica?

O que o bispo holandês Gerard de Korte chama de “falta de palavras” dos católicos é verdade: muitas vezes sabemos tão pouco e o que sabemos dizemos mal. Mas não se trata apenas de uma aprendizagem intelectual; trata-se também de aprendizagem espiritual – como viver em conexão com Deus. Além disso, se vamos ensinar coisas, elas devem ser convincentes. Se olharmos, por exemplo, para o que é dito sobre o lugar da mulher na Igreja e a ordenação de mulheres no ministério, é muito difícil aceitar intelectualmente os argumentos que nos são dados pelo Magistério.

Não há perigo para a unidade católica se todos puderem expressar as suas opiniões subjectivas? Não há ameaças de cismas?

Esse perigo não pode ser evitado. Faz parte dos tempos modernos. O indivíduo tornou-se muito importante na cultura moderna. Então, automaticamente acabamos numa situação de pluralidade. Mas todos participam, incluindo os católicos tradicionalistas. Dizem, por exemplo: “Vou a uma liturgia tradicional, porque lá encontro muita coisa”. Esse é um argumento pessoal e completamente moderno. O desafio da nossa Igreja não é tanto buscar a uniformidade, mas sim reunir com diferentes perspectivas.

A sinodalidade requer muita confiança no Espírito Santo. Mas este último é bastante esquivo. Como sabe o que o Espírito quer da Igreja?

Em primeiro lugar, é importante que não vejamos o Espírito apenas como uma espécie de força, mas percebamos que ele está activamente envolvido. Isto muitas vezes é difícil para os ocidentais imaginarem, mas muito importante. Se o Espírito não se apresenta como protagonista, o actor principal permanece na hierarquia, e então, naturalmente, a obediência torna-se a principal virtude. Se o Espírito é o actor principal, então a virtude principal é o discernimento. Então é necessário sentir espiritualmente o que é sábio e isso requer desapego de todos os lados. Os tradicionalistas têm que aceitar um pouco que nem sempre sabem exactamente como as coisas são e como deveriam ser. Os progressistas têm que abrir mão de um pouco de impaciência, por exemplo. A impaciência, quando presente no discernimento, é tipicamente algo que não vem do Espírito bom. Então tornamo-nos duros, frustrados, cínicos. O Papa está intencionalmente a fazer disto um processo, porque num processo os pensamentos podem ser purificados.

(Esta entrevista foi publicada pela primeira vez no jornal cristão holandês Nederlands Dagblad e replicada pelo La Croix International a 14 de Fevereiro de 2022. Foi divulgada em Portugal pelo Departamento Arquidiocesano de Comunicação Social de Braga)


HOJE, COMO SEMPRE, QUEM CANTA O SALMO SOU EU…

(Texto de João Paiva, publicado no site Ponto SJ – jesuítas – no dia 22 de Abril, na rubrica ‘Estilo de Igreja)

– “Hoje, como sempre, quem canta o salmo sou eu”.
– “Esse é o meu lugar na missa”.
– “Tanta coisa que eu dei a este grupo de catequese… e agora fazem-me isto”.
– “Se há pessoa que merece ir a este curso de formação, depois de tantos anos de empenho, sou eu”.
– “Preparei com tanta dedicação esta oração, e acabaram por meter tudo no lixo.”
– “Tantos anos a trabalhar nesta paróquia, para levar agora um ‘chuto’.”
– “Sempre quis pertencer a este grupo… e hei-de conseguir!”
– “Os cânticos são comigo!”.
– “Escolhem sempre os mesmos (nunca a mim…)”.
– “Fiz tanta formação e não me aproveitam”.
– “Uma vida dada a esta congregação, para me colocarem agora numa prateleira…”
– “Paguei tanto para esta obra e agora não tenho direito a nada”.
– Etc, etc.

Sem comentários, para lançamento de conversa, temos, acima, expressões que podemos ouvir em paróquias, grupos de reflexão Cristã, Movimentos e carismas, bastidores religiosos, congregações religiosas e comunidades.

Todas estas expressões, algures entre a imaginação e a criatividade, projetam um forte entrançado psico-socio-religioso de comparação, procura de reconhecimento, mérito, prémio, vitimismo, falta de autoestima e protagonismo. Os bastidores destas frases, sem exceção, inclinam-se mais para o privilégio e para a cobrança, do que para a gratuitidade e para a consciência do dom. Projetam também, claramente, algo que nos une a todos: fragilidade, sede, busca de sentido e procura de um lugar.

A Igreja é, definitivamente, uma casa para todos. Novos e velhos, bons e maus cantores, gente mais e menos culta. E falo de pessoas com variada relação, quer com a cultura das academias, quer com a (agri)cultura da natureza e da vida. O que nos une a todos é uma esperança e uma carência comuns, que converge num sentido de esperança vivida de forma comunitária, tendo o Evangelho como referência. Todos temos lugar. Acontece que Cristo – Presente na fé e inspirador – nos remete para uma tensão de (auto)descentramento constante. E, por Ele, com Ele e n’Ele, estamos não só autorizados, mas incentivados, a mexer as águas. Respeitar demasiado (entenda-se…) as posições/vontades/desejos/sonhos de cada um parece-me, cada vez mais, pouco cristão.

O equívoco central desta problemática é uma bomba explosiva de mérito e procura de reconhecimento. Quando se entende que “se merece” seja o que for, em dinamismo apostólico, está o caldo entornado. Pelo contrário, a colocação de dádiva desinteressada deveria ser o filtro da porta da entrada em qualquer protagonismo de estrutura eclesial. Cada um propõe ou propõe-se, e a circunstância é mesmo essa: uma proposta. Só é genuína proposta se for desapegada, livre, desautocentrada, pronta, portanto, a ser aproveitada ou não. Quem se impõe, ou impõe, mesmo que subtilmente, não tem lugar na comunidade dos cristãos. Cristo é modelo de perfil proponente, numa fidelidade de desapego que sacode livremente o pó das sandálias.

É evidente que este processo de filtro purificante de intenções é um exercício complexo e moroso para todos nós, a pedir trabalho pessoal, comunitário e, sobretudo, criatividade comunicacional. Mas, esse é o ponto central desta despretensiosa reflexão, pede frontalidade e verdade. Os adultos não se devem infantilizar e os monstros não se devem alimentar. Em algumas personalidades que circulam nos corredores atuantes da Igreja, há perfis muito autocentrados e, em muitos casos, quase narcísicos. Tolerar eucaliptos que chamam a si toda a humidade da terra, é secar os campos e comprometer outras fecundidades. Dinamizar cristãmente não é ser bonzinho, mas tatear a esperança na realidade, como ela é.

Há casos particulares que merecem atuações particulares. Por exemplo, com crianças, tem sentido dar lugar a todos para lá dos seus talentos performativos. Mas para adultos (ou adultos em trânsito, como todos somos) há que ir desbravando novos e assertivos caminhos. Nos espaços de assumido terreno celebrativo ou apostólico, em particular, quem está, terá que estar desapegado, pronto a, se preciso for, não ter qualquer papel especial, precisamente porque somos todos especiais e estar e pertencer é o único eventual direito que podemos ter.

Nestes cenários não há bons nem maus. Somos todos débeis caminhantes e, quando distraídos, todos procuramos reconhecimento, muitas vezes embrulhados no feliz estrangeirismo de fishing for compliments: lança-se a isca para sacar reverências. E no final dos eventos, mais do que avaliar frutos, fazemos por colher louros. Poderá ajudar-nos a todos, no acerto da desumbilicalidade, dizer a nós mesmos, este paradoxo: “és profundamente amado aos olhos de Deus mas não tens de ser assim tão importante aos olhos dos outros”. Cada um fará por escutar as suas próprias moções e fazer o seu trajeto de descentramento. Mas no trabalho comum e nas procuras cénicas e performantivas de cariz apostólico, deixar andar não é caminho…

A parrésia, de que tem falado o Papa Francisco e que tanto inspira o atual movimento sinodal, convoca a humildade (contacto com o húmus, com a realidade…), a liberdade de expressão, a escuta e a assertividade. Quem tem lideranças apostólicas (espaço que cada mais, creio, deveria ser ampliado a todos os batizados, sem exclusividade de ordenados), poderá perguntar-se se não é demasiadamente passivo face às enquistações crónicas nas organizações cristãs. Expressões como aquelas com que se iniciou esta reflexão, nos fóruns próprios e nos modos adequados, não poderão ficar sem feedback e não poderão servir jamais para, com a boa desculpa de não ferir, deixar tudo na mesma. Julgando respeitar as várias sensibilidades e personalidades (ou enquistamentos e monopólios?) poderá estar a contribuir-se para um comprometedor status quo, que não é bom nem para os instalados, nem para os candidatos ao caminho…


VIGÍLIA PASCAL NA NOITE SANTA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Sábado Santo, 16 de abril de 2022

Muitos escritores evocavam assim a beleza das noites iluminadas pelas estrelas. Ao contrário, as noites de guerra são atravessadas por rastos luminosos de morte. Nesta noite, irmãos e irmãs, deixemo-nos guiar pelas mulheres do Evangelho, para descobrir com elas a aurora da luz de Deus que brilha nas trevas do mundo. Quando já a noite ia clareando e irrompiam, silenciosas, as primeiras luzes da aurora, aquelas mulheres foram ao sepulcro para ungir o corpo de Jesus. E lá vivem uma experiência que as turvou: primeiro, descobrem que o sepulcro está vazio; depois, veem duas figuras em trajes resplandecentes que lhes dizem que Jesus ressuscitou; imediatamente, correm a anunciá-lo aos outros discípulos (cf. Lc 24, 1-10). Veem, escutam, anunciam: com estas três ações, entremos também nós na Páscoa do Senhor.

As mulheres veem. O primeiro anúncio da Ressurreição é feito, não sob uma fórmula a decifrar, mas sob um sinal que se deve contemplar. Num cemitério, junto dum túmulo, onde tudo deveria estar em ordem e sossego, as mulheres «encontraram removida a pedra da porta do sepulcro e, entrando, não acharam o corpo do Senhor Jesus» (24, 2-3). Por outras palavras, a Páscoa começa invertendo os nossos esquemas. Chega com o dom duma esperança surpreendente. Mas não é fácil acolhê-la. Às vezes (temos de o admitir!) esta esperança não encontra espaço no nosso coração. Em nós, como nas mulheres do Evangelho, prevalecem interrogações e dúvidas, e a primeira reação face ao sinal imprevisto é o medo, é voltar «o rosto para o chão» (cf. 24, 4-5).

Com muita frequência, contemplamos a vida e a realidade com os olhos voltados para baixo; fixamo-nos apenas no dia de hoje que passa, desiludidos quanto ao futuro, fechamo-nos nas nossas necessidades, acomodamo-nos na reclusão da apatia, enquanto continuamos a lamentar-nos e a pensar que as coisas nunca vão mudar. E assim permanecemos imóveis diante do túmulo da resignação e do fatalismo, e sepultamos a alegria de viver. Mas, nesta noite, o Senhor quer dar-nos olhos diferentes, iluminados pela esperança de que o medo, o sofrimento e a morte não terão a última palavra sobre nós. Graças à Páscoa de Jesus, podemos dar o salto do nada para a vida, «e a morte não poderá mais defraudar-nos da nossa existência» (K. Rahner, O que significa a Páscoa, Brescia 2021, 28): esta foi abraçada, inteiramente e para sempre, pelo amor sem limites de Deus. É verdade; pode-nos amedrontar e paralisar. Mas o Senhor ressuscitou! Levantemos o olhar, retiremos dos nossos olhos o véu da amargura e da tristeza, abramo-nos à esperança de Deus!

Em segundo lugar, as mulheres escutam. Depois de terem visto o sepulcro vazio, dois homens em trajes resplandecentes disseram-lhes: «Porque buscais o Vivente entre os mortos? Não está aqui; ressuscitou!» (24, 5-6). Faz-nos bem ouvir e repetir estas palavras: não está aqui! Sempre que pretendemos ter entendido tudo acerca de Deus, podê-Lo arrumar nos nossos esquemas, repitamos a nós mesmos: não está aqui! Sempre que O procuramos apenas nas emoções, muitas vezes passageiras, ou nos momentos de necessidade, para depois O deixarmos de lado esquecendo-nos d’Ele nas situações quotidianas e nas opções concretas de cada dia, repitamos: não está aqui! E quando pensamos em confiná-Lo nas nossas palavras, nas nossas fórmulas e nas nossas tradições, mas esquecendo-nos de O procurar nos cantos mais escuros da vida onde há alguém que chora, que luta, sofre e espera, repitamos: não está aqui!

Ouçamos, também nós, a pergunta dirigida às mulheres: «Porque buscais o Vivente entre os mortos?» Não podemos fazer Páscoa, se continuamos a morar na morte; se permanecemos prisioneiros do passado; se na vida não temos a coragem de nos deixar perdoar por Deus - que perdoa tudo -, a coragem de mudar, de romper com as obras do mal, a coragem de nos decidirmos por Jesus e pelo seu amor; se continuamos a reduzir a fé a um amuleto, fazendo de Deus uma bela recordação de tempos passados, em vez de ir hoje ao seu encontro como o Deus vivo que deseja transformar-nos a nós e ao mundo. Um cristianismo que busca o Senhor entre as ruínas do passado e O encerra no túmulo da rotina é um cristianismo sem Páscoa. Mas o Senhor ressuscitou! Não nos demoremos ao redor dos túmulos, mas vamos redescobri-Lo a Ele, o Vivente! E não tenhamos medo de O procurar também no rosto dos irmãos, na história de quem espera e de quem sonha, na dor de quem chora e sofre: Deus está lá!

Por fim as mulheres anunciam. Que anunciam elas? A alegria da Ressurreição. A Páscoa não acontece para consolar intimamente quem chora a morte de Jesus, mas para abrir de par em par os corações ao anúncio extraordinário da vitória de Deus sobre o mal e a morte. Por isso, a luz da Ressurreição não quer delongar as mulheres no êxtase dum gozo pessoal, não tolera comportamentos sedentários, mas gera discípulos missionários que «voltam do sepulcro» (24, 9) e levam a todos o Evangelho do Ressuscitado. Por isso mesmo, depois de ter visto e escutado, as mulheres correm a anunciar aos discípulos a alegria da Ressurreição. Sabem que poderiam ser tomadas por loucas – aliás o Evangelho diz que «as suas palavras pareceram-lhes um desvario» (24, 9) –, mas não estão preocupadas com a sua reputação, a defesa da sua imagem; não reprimem os sentimentos, nem medem as palavras. Apenas tinham o coração ardente para transmitir a notícia, o anúncio: “O Senhor ressuscitou!”

E como é bela uma Igreja que corre, assim, pelas estradas do mundo! Sem medo, sem táticas nem oportunismos; só com o desejo de levar a todos a alegria do Evangelho. A isto, somos chamados: a fazer experiência do Ressuscitado e partilhá-la com os outros; a rolar aquela pedra do sepulcro, onde muitas vezes fechamos o Senhor, para espalhar a sua alegria pelo mundo. Façamos ressuscitar Jesus, o Vivente, dos túmulos onde O tínhamos encerrado; libertemo-Lo das formalidades onde frequentemente o enclausuramos; despertemos do sono da vida tranquila onde às vezes O reclinamos, para que não perturbe nem incomode mais. Levemo-Lo para a vida de todos os dias: com gestos de paz neste tempo marcado pelos horrores da guerra; com obras de reconciliação nas relações rompidas e de compaixão para com os necessitados; com ações de justiça no meio das desigualdades e de verdade no meio das mentiras. E, sobretudo, com obras de amor e fraternidade.

Irmãos e irmãs, a nossa esperança chama-se Jesus. Ele entrou no túmulo do nosso pecado, chegou ao ponto mais distante onde andávamos perdidos, percorreu os passos emaranhados dos nossos medos, carregou o peso das nossas opressões e, dos abismos mais escuros da nossa morte, despertou-nos para a vida transformando o nosso luto em dança. Façamos Páscoa com Cristo! Ele está vivo e ainda hoje passa, transforma e liberta. Com Ele, o mal já não tem poder, o fracasso não pode impedir-nos de recomeçar, a morte torna-se passagem para o início duma nova vida. Porque com Jesus, o Ressuscitado, nenhuma noite é infinita; e mesmo na escuridão mais densa, nesta escuridão brilha a estrela da manhã.

Nesta escuridão que estais a viver, Senhor Prefeito, Senhoras e Senhores Parlamentares, a escuridão tenebrosa da guerra, da crueldade, todos nós rezamos. Rezamos convosco e por vós, nesta noite. Rezamos por tantos sofrimentos. Nós podemos oferecer-vos somente a nossa companhia, a nossa oração e dizer-vos: “Coragem! Vos acompanhamos!” E também anunciar-vos a grande realidade que é celebrada hoje: Christós Voskrés! (Cristo ressuscitou!)


CELEBRAÇÃO DO DOMINGO DE RAMOS
E DA PAIXÃO DO SENHOR

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Praça São Pedro
Domingo, 10 de abril de 2022

No calvário, confrontam-se duas mentalidades; vemos, no Evangelho, como as palavras de Jesus crucificado se contrapõem às dos seus adversários. Estes vão repetindo, como se fosse um refrão, «salva-te a ti mesmo». Dizem-no os chefes: «Salve-se a si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito» (Lc 23, 35). Proferem-no os soldados: «Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo» (23, 37). E também um dos malfeitores, tendo ouvido tais palavras, repete-as: «Não és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo» (23, 39). Salvar-se a si mesmo, olhar por si mesmo, pensar em si mesmo; não nos outros, mas apenas na própria saúde, no próprio sucesso, nos próprios interesses; ter, poder e aparecer. Salva-te a ti mesmo: é o refrão da humanidade, que crucificou o Senhor. Reflitamos nisto.

Mas, à mentalidade do «eu», opõe-se a de Deus; o salva-te a ti mesmo confronta-se com o Salvador que Se oferece a Si mesmo. No Calvário, segundo o Evangelho de hoje, também Jesus toma a palavra três vezes como os seus adversários (cf. 23, 34.43.46). Em nenhum dos casos, porém, reivindica qualquer coisa para Si mesmo; na verdade, nem sequer Se defende ou justifica a Si mesmo. Reza ao Pai e oferece misericórdia ao bom ladrão. Particularmente uma das suas expressões marca a diferença do salva-te a ti mesmo: «Perdoa-lhes, Pai» (23, 34).

Detenhamo-nos nestas palavras. Quando são pronunciadas pelo Senhor? Num momento específico: durante a crucifixão, quando sente os cravos perfurar-Lhe os pulsos e os pés. Tentemos imaginar a dor lancinante que isso provocava. Lá, na dor física mais aguda da Paixão, Cristo pede perdão para quem O está perfurando. Naqueles momentos, apetecer-nos-ia apenas gritar toda a nossa raiva e sofrimento; Jesus, ao contrário, diz: Perdoa-lhes, Pai. Diversamente doutros mártires referidos na Bíblia (cf. 2 Mac 7, 18-19), não repreende os algozes nem ameaça castigos em nome de Deus, mas reza pelos ímpios. Cravado no patíbulo da humilhação, aumenta a intensidade do dom, que se torna “per-dão”.

Irmãos, irmãs! Pensemos que Deus procede assim também connosco: quando Lhe provocamos dor com as nossas ações, Ele sofre e o único desejo que tem é poder perdoar-nos. Para nos darmos conta disto, contemplemos o Crucificado. É das suas chagas, daqueles orifícios de dor causados pelos nossos cravos que brota o perdão. Fixemos Jesus na cruz e pensemos que nunca recebemos palavras melhores: Perdoa-lhes, Pai. Fixemos Jesus na cruz e vejamos que nunca recebemos um olhar mais terno e compassivo. Fixemos Jesus na cruz e convençamo-nos de que nunca recebemos um abraço mais amoroso. Fixemos o Crucificado e digamos: «Obrigado, Jesus! Amas-me e perdoas-me sempre, mesmo quando me custa amar e perdoar a mim mesmo».

Lá, enquanto é crucificado, no momento mais difícil, Jesus vive o seu mandamento mais difícil: o amor aos inimigos. Pensemos em alguém que nos feriu, ofendeu, dececionou; em alguém que nos irritou, não nos compreendeu ou não foi um bom exemplo. Quanto tempo nos demoramos a pensar em quem nos fez mal! Como também a olhar para nós mesmos e a lamuriar-nos pelas feridas que nos infligiram os outros, a vida ou a história. Hoje Jesus ensina-nos a não perdermos nisso, mas a reagir, a romper o círculo vicioso do mal e dos queixumes, a reagir aos cravos da vida com o amor, aos golpes do ódio com a carícia do perdão. Mas nós, discípulos de Jesus, seguimos o Mestre ou o nosso instinto rancoroso? É uma pergunta que devemos colocar a nós mesmos: seguimos o Mestre ou o nosso instinto rancoroso? Se queremos verificar a nossa pertença a Cristo, vejamos como nos comportamos com quem nos feriu. O Senhor pede-nos para responder, não como nos apetece a nós nem como fazem todos, mas como Ele procede connosco. Pede-nos para quebrar a corrente do «amo-te se me amares; sou teu amigo, se fores meu amigo; ajudo-te se me ajudares». Assim não! Em vez disso, compaixão e misericórdia para com todos, porque Deus vê um filho em cada um. Não nos divide em bons e maus, em amigos e inimigos. Somos nós que o fazemos, fazendo-O sofrer. Para Ele, todos somos filhos amados, que deseja abraçar e perdoar. Vemos isto também naquele convite para o banquete de núpcias do filho: aquele senhor envia os seus servos à encruzilhada dos caminhos, dizendo-lhes «tragam todos, brancos, pretos, bons e maus, todos, sãos e doentes, todos...» ( cf. Mt 22, 9-10). O amor de Jesus é para todos; nisto, não há privilégios. Todos. O privilégio de cada um de nós é ser amado, perdoado.

Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem. O Evangelho sublinha que Jesus «dizia» (23, 34) isso, isto é, não o dissera uma vez por todas no momento da crucifixão, mas passou as horas na cruz com estas palavras nos lábios e no coração. Deus não Se cansa de perdoar. Devemos compreender isto… e não só com a mente, mas compreendê-lo com o coração: Deus não Se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de Lhe pedir perdão, mas Ele nunca Se cansa de perdoar. Ele não suporta até certo ponto para depois mudar de ideias, como nós somos tentados a fazer. Jesus – ensina o Evangelho de Lucas – veio ao mundo para nos trazer o perdão dos nossos pecados (cf. Lc 1, 77) e, no fim, deixou-nos esta ordem concreta: pregar a todos, no seu nome, o perdão dos pecados (cf. Lc 24, 47). Irmãos e irmãs, não nos cansemos do perdão de Deus: nós, sacerdotes, de o ministrar; e, cada cristão, de o receber e testemunhar. Não nos cansemos do perdão de Deus.

Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem. Notemos mais uma coisa. Jesus não só implora o perdão, mas diz também o motivo: perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Como é possível? Os seus opositores tinham premeditado a morte d’Ele, organizado a sua captura, os julgamentos e agora estão lá, no Calvário, para assistir ao seu fim... e, todavia, Cristo justifica aqueles violentos, porque não sabem. É assim que Jesus Se comporta connosco: faz-Se nosso advogado. Não Se coloca contra nós, mas por nós contra o nosso pecado. E é interessante o argumento que usa: porque não sabem, ou seja, aquela ignorância do coração que temos todos nós pecadores. Quando se usa violência, nada mais se sabe sobre Deus, que é Pai, nem sobre os outros, que são irmãos. Esquece-se a razão por que se está no mundo e chega-se a realizar absurdas crueldades. Vemo-lo na loucura da guerra, onde se torna a crucificar Cristo. Sim, Cristo é pregado na cruz mais uma vez nas mães que choram a morte injusta de maridos e filhos. É crucificado nos refugiados que fogem das bombas com os meninos no braço. É crucificado nos idosos deixados sozinhos a morrer, nos jovens privados de futuro, nos soldados mandados a matar os seus irmãos. Hoje, Cristo está crucificado aí.

Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem. Muitos ouvem esta frase incrível; mas apenas um a acolhe. É um malfeitor, crucificado ao lado de Jesus. Podemos pensar que a misericórdia de Cristo suscitou nele uma última esperança e o levou a pronunciar estas palavras: «Jesus, lembra-te de mim» (Lc 23, 42), como se dissesse: «Todos se esqueceram de mim, mas Tu pensas até naqueles que Te crucificam. Então poderia haver também para mim um lugar contigo?» O bom ladrão acolhe Deus, quando a vida dele está prestes a terminar e, assim, a sua vida recomeça; no inferno do mundo, vê abrir-se o Paraíso: «Hoje estarás comigo no Paraíso» (23, 43). Eis o prodígio do perdão de Deus, que transforma o último pedido dum condenado à morte na primeira canonização da história.

Irmãos, irmãs! Nesta semana, abramo-nos à certeza de que Deus pode perdoar todo o pecado. Deus tudo perdoa; pode perdoar todo o afastamento, mudar em dança todo o lamento (cf. Sal 30,12); a certeza de que, com Cristo, há sempre lugar para cada um; a certeza de que, com Jesus, a vida nunca acaba. Nunca é tarde demais; com Deus, sempre se pode voltar a viver. Coragem! Caminhemos para a Páscoa com o seu perdão. Porque Cristo intercede continuamente por nós junto do Pai (cf. Heb 7, 25) e, olhando para o nosso mundo violento e , o nosso mundo ferido, não Se cansa de repetir (e em silêncio, no coração, repitamos com Ele): Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem.


A aventura do regresso às origens

Dina Matos Ferreira | 31 Mar 2022 | in 7Margens

Postos a caminho pelo Papa Francisco, que colocou o “povo de Deus” no eixo do processo de discernimento sobre a Igreja no Terceiro Milénio, deparámo-nos espantosamente com a raiz do próprio cristianismo: essas comunidades de vida e de fé, tão próximas que eram “um só coração e uma só alma”, e tão cheias de amor a Deus que não podiam senão irradiá-Lo.

Não sabíamos ao que íamos e, no entanto, fomos. “Fazei como Ele vos disser” (João 2, 5). Fizemos o que o Papa pediu e da forma como pediu: usámos o método do discernimento espiritual, tão simples como o respirar. Lembrámos a nossa história pessoal com Deus, as luzes e as sombras, os sonhos cumpridos e por cumprir, as dores e os desejos. Juntos, e Deus connosco (é evidente), sonhando a Igreja a partir da memória de um caminho já percorrido.

Assim, a memória individual vê-se transformada em memória coletiva. Mas, muito mais do que isso, cai misteriosamente sobre nós todo o peso da memória do povo de Deus: somos já não só nós nesse micro-poliedro, mas toda a Igreja desde o princípio, e escutámos em nós as vozes desses primeiros, cercados por tantas dificuldades, mas nunca paralisados, antes sempre a caminho de um outro (onde Deus habita) com o fogo do Amor dentro de si.

Sacudindo as poeiras da letargia e de tantos mundanismos a que cedemos tão facilmente, cada encontro teve o dom de nos confrontar com essa Igreja de Cristo que Ele ama e acompanha, revelando-nos o modo. O modo é Ele mesmo, o Único Modelo, tão próximo, tão simples, tão despojado e tão comprometido que não podemos inventar nem fingir não ver.

Ele, o Mesmo, a pedir-nos que nos abeiremos e descubramos sem medo todos os descartados de hoje, os leprosos, os estrangeiros, os paralíticos e os cegos, os surdos, as prostitutas, os ladrões, os Zaqueus, as Madalenas todas dadas como perdidas e que Ele recebeu e amou.

Ele, o Mesmo, a pedir-nos para repousarmos não na Arca de Deus mas no Deus da Arca, recusando o bafio das seguranças falsas e idolátricas e buscando incessantemente o Seu Rosto, princípio e fim de todos os rostos que Ele veio resgatar.

Ele, o Mesmo, dizendo “vão”, “saiam”, abram as portas e deixem-nas abertas, ou apenas “mantenham-se disponíveis”, “dêem o que levam” ainda que sejam cinco pães e dois peixes (Jo, 6,1), mas dêem, não deixem que não se cumpram os milagres possíveis pela vossa incúria, egoísmo ou falsa humildade.

Caindo em nós, todos nos vimos desconfortáveis no nosso lugar. A um cristão não é dado ter um lugar, segurança alguma. O único lugar é Cristo e cada dia é o Seu dia em nós, se nos pusermos à escuta e estivermos ligeiros de carga e coração.

Em surdina ou em avalanche, todos percebemos bem fundo: a Igreja não é o senhor padre, “a Igreja és tu, somos nós juntos”, onde Ele se faz indubitavelmente presente, como fez com os discípulos de Emaús (Lucas 21, 13), como faz com todos os que o procuram, juntos, de coração sincero.

Ainda que nada aconteça, já muito aconteceu. O eco das vozes do povo de Deus permanece como farol nos que se dispuseram a segui-lo, tão diversas e ao mesmo tempo harmoniosas que não podemos esquecê-las. Fica connosco, Senhor, não deixes que anoiteça.

Dina Matos Ferreira é coordenadora local da dinâmica sinodal na paróquia católica de São Francisco Xavier, em Lisboa.


A REFORMA NO CORAÇÃO DA IGREJA

P. António Ary, sj | 25 Março 2022 | in Ponto SJ

No passado dia 19 março, solenidade de S. José e nono aniversário da inauguração do seu pontificado, foi publicada pelo Papa Francisco a muito aguardada reforma da Cúria Romana, com a promulgação da Constituição apostólica Praedicate Evangelium, em português: “Pregai o Evangelho” (o texto, que ainda poderá sofrer correções, só foi disponibilizado em italiano).

O desejo de reorganizar o governo central da Igreja já vinha das reuniões de cardeais que antecederam o conclave, e estava implicitamente contido no anseio de uma «conversão do papado», na lógica da «conversão pastoral missionária» a que Francisco convocou toda a Igreja na sua exortação apostólica Evangelii gaudium, o documento programático do seu pontificado. Através das reuniões periódicas do “Conselho de cardeais” criado para o ajudar nesta empreitada, foi elaborado o documento que agora põe fim a um processo de lento amadurecimento, mas já iniciado, com diversas reformas parciais que foram sendo feitas ao longo dos últimos anos (em particular através da criação de novos organismos e redistribuição de competências, especialmente em matéria económica).

Uma nova arquitetura ao serviço da missão

Como o nome – tomado do envio missionário de Jesus no final do Evangelho de S. Marcos (Mc 16,15) – indica, a ideia orientadora de todo o documento é a de que o governo central da Igreja só se compreende como instrumento ao serviço da evangelização. A Cúria Romana não deve ser uma estrutura de poder, mas um meio para favorecer o anúncio da alegria do Evangelho a todos os povos e a cada pessoa, principal missão da Igreja e de cada um dos seus membros.

Especialmente significativo do espírito missionário que anima a reforma é a primazia dada ao novo Dicastério para a evangelização, que reúne a anterior Congregação para a evangelização dos povos (com competência para as chamadas “terras de missão”) e o Pontifício conselho para a nova evangelização (mais vocacionado para os países tradicionalmente cristãos). Além do seu lugar cimeiro na lista dos organismos vaticanos, este Dicastério, ao contrário dos demais, não terá à sua frente um Prefeito, mas será presidido diretamente pelo Papa (assim como acontecia com o antigo Santo-Ofício antes da reforma de Paulo VI), sinal claro da centralidade da missão evangelizadora na própria autocompreensão do ministério do sucessor de Pedro.

Por outro lado, a conversão missionária passa também por um esforço de modernização e simplificação das estruturas, com a integração de diversos organismos até aqui distintos, ou mesmo autónomos, como a Pontifícia comissão para a proteção dos menores, agora formalmente integrada no organigrama vaticano, no seio do Dicastério para a doutrina da fé. Expressão também desta modernização e agilização é a adoção generalizada da nova designação “Dicastério”, que se aplica a todas as atuais Congregações e Pontifícios conselhos, superando uma hierarquia implícita anterior (tradicionalmente as Congregações tinham à sua frente um prefeito, cardeal, enquanto os conselhos tinham um presidente, normalmente bispo).

A reforma por detrás das estruturas

Apesar do seu potencial transformador, não são as novas estruturas que constituem o coração da presente reforma, mas sim o espírito que a anima e que convoca direta ou indiretamente toda a Igreja. A “alma” da reforma agora concretizada pelo Papa Francisco transparece, antes de mais, nos princípios e critérios que devem dirigir toda a organização e atuação da Cúria romana, aos quais o documento reserva toda a segunda parte. Destes princípios ressaltam a preocupação pela “ministerialidade” ou espírito de serviço que deve caracterizar aqueles que trabalham e colaboram, a qualquer nível, nas instituições vaticanas. Um serviço que implica competência e profissionalismo, sem espaço para carreirismos e compadrios. Ao lado das competências técnicas, exige-se, no entanto, também aos “funcionários” do Vaticano que sejam homens e mulheres de virtude, capazes de dar testemunho da sua fé na vivência da sua vocação particular. Em particular, os sacerdotes e consagrados ao serviço da Cúria romana são convidados a desenvolver alguma forma de atividade pastoral direta.

Neste quadro se integra também a norma segundo a qual todas as nomeações (salvaguardados os direitos laborais dos colaboradores leigos) são feitas por cinco anos, sem garantia de recondução automática. Inovadora, em particular, é a indicação para que os sacerdotes e religiosos que assumem uma missão nas estruturas vaticanas, a qualquer nível, regressem às suas Igrejas locais e institutos ao fim dos cinco anos, evitando uma eternização em Roma, fonte de burocratização e de potencial alheamento da realidade viva da Igreja.

Outra linha inspiradora que atravessa toda a presente reforma é a da sinodalidade, ideia que tem estado no coração da atuação e preocupação do Papa desde o início do seu pontificado (especialmente a partir do famoso discurso na comemoração dos 50 anos do Sínodo dos bispos, em 2015). O “caminhar juntos” que deve caracterizar toda a vida eclesial manifesta-se, ao nível do governo central da Igreja, de uma forma particular na relação entre o Papa e os bispos – Igreja universal e local – no sentido de uma sempre maior subsidiariedade que potencie a atuação de cada um dos níveis. É especialmente significativo o número de referências que o documento faz às conferências episcopais, não como um nível intermédio entre o bispo de Roma e os bispos locais, mas sim como forma de comunhão afetiva e efetiva entre todos os bispos. Ao sublinhar estes organismos, o documento sublinha também o papel dinamizador da Cúria romana ao serviço das Igrejas locais (também nacionais, reginais e continentais), e não apenas como instrumento de centralização.

Especial expressão da sinodalidade é o papel que a todos os batizados é reconhecido pela Praedicate evangelium, sem estabelecer distinções, em particular quanto ao exercício do ministério ordenado. Na mente do Papa Francisco, o sonho da sinodalidade está intimamente ligado ao combate ao clericalismo, mal transversal na Igreja, e que «se insinua diariamente» nas instituições vaticanas, como referiu no seu último discurso natalício à Cúria romana. Assim, o serviço da Cúria romana, para ser rosto de Cristo, deve refletir a variedade dos rostos dos seus discípulos que com os respetivos carismas se colocam ao serviço da Igreja. Em particular, e em direto contraste com quanto afirmava a anterior Constituição apostólica Pastor bonus, o número 5 da segunda parte de Praedicate Evangelium afirma explicitamente que ao exercer um «poder vigário» em nome do Papa (conferido por este), qualquer fiel pode presidir a um Dicastério ou organismo da Cúria romana.

Renovar as estruturas é apenas o início

A reforma da Cúria romana que agora se conclui representa, sem dúvida, um marco importantíssimo no pontificado do Papa Francisco, e também na vida da Igreja universal, mas pode, ainda assim permanecer (em grande medida) uma oportunidade desperdiçada, se ficar confinada ao nível das estruturas. Como tem repetido o Papa, não há renovação possível dos organismos sem uma verdadeira conversão do coração de cada um. Esta conversão não se limita, naturalmente, a quem trabalha na Cúria romana, mas convoca todos os membros da Igreja! Os princípios e critérios consagrados agora na Praedicate Evangelium podem, e devem, por isso servir de inspiração para todos os níveis da vida eclesial, grupos, paróquias, dioceses, movimentos, etc., na convicção que a reforma não é (tanto) um ato, mas um processo e um dinamismo contínuo que implica e responsabiliza cada um.


Levemos a sério o Papa Francisco

Sofia Távora | 15 Mar 2022 | in Sete Margens

O Papa Francisco tem o dom de conseguir a admiração de muitos ateus ou agnósticos, céticos ou mesmo antipatizantes militantes em relação à Igreja Católica. Dentro de portas, divide opiniões, adorado por uns, olhado com desconfiança por outros.

Aquando da sua eleição, há nove anos, o mundo ficou rendido à simpatia, sentido de humor e despojamento deste papa, vindo, como o próprio disse, “do outro lado do mundo”. Até os críticos vorazes da Igreja se renderam a este homem.

Será muito difícil, em todo o caso, discordar do que o Papa diz ou fez, na medida em que a sua conduta é reformista e não revolucionária. O Papa não alterou dogmas, não aboliu ou criou preceitos doutrinários estruturantes. No entanto, vemos a Igreja Católica Apostólica Romana muito fragmentada em diferentes fações. O modo que usou para reunir esta Igreja fragmentada foi, precisamente, procurando recentrá-la no que tem de essencial, revitalizando as raízes do Cristianismo e projetando-o para fora de portas. A mudança drástica que operou foi essa: retroceder à base essencial.

Nessa medida, é curioso que cause tanto incómodo a determinados segmentos da Igreja que se afirmam como os verdadeiros fiéis da pureza da Doutrina cristã. Há aqui uma tremenda contradição. Se acreditamos que o Conclave elege o papa sob a iluminação do Espírito Santo, teremos forçosamente de concluir que o Espírito Santo iluminou os cardeais eleitores na escolha do Papa Francisco.

A perplexidade é tanto maior quando concluímos que, verdadeiramente, o Papa Francisco não inventou qualquer especial doutrina sua. O caminho do Papa tem sido de cimentar o trabalho pastoral feito no tempo do Concílio do Vaticano II. Convocar um Sínodo sobre a sinodalidade é um exemplo concreto e estratégico disso mesmo.

Progressivamente, o Papa vai procurando devolver a palavra aos fiéis leigos. Resta saber se estes estão disponíveis para embarcar com ele.

O caminho que o Papa propõe de ação eclesial e cívica é de uma enorme exigência. Temos de deixar de simplesmente gostar e admirar o Papa para o levar a sério, como voz com autoridade moral que nos deve mobilizar.

A eleição do Papa Francisco há nove anos atrás surgiu numa época muito conturbada da vida da Igreja. Sufocada pelos escândalos da pedofilia, do branqueamento de capitais no Banco do Vaticano e uma desacretização da voz da Igreja na sociedade civil, a eleição do Papa Francisco foi verdadeiramente providencial. O seu estilo pessoal despojado, acompanhado de uma grande interioridade é uma lufada de ar fresco que não pode ser desperdiçada. As portas que foram abertas e permitem o recentramento da Igreja numa essência cristã que, por vezes, parece ofuscada não pode ser desperdiçada. O renascimento da Doutrina Social da Igreja no discurso público constante do Papa tem de dar o impulso necessário para que os católicos assumam a sua presença pública de cara lavada dando o seu precioso e insubstituível contributo cívico.

Contudo, este caminho só pode ser feito se nos assumirmos todos como parte integrante de um caminho comum liderado por este Papa que quer ser um pastor, um pai e, sem dúvida alguma, um companheiro de caminho. Não o deixemos só.


O poliedro de Francisco

O poliedro é também o trabalho em equipa/rede, colaborando com outros. É uma nova forma de ver a realidade e de trabalhar, e, sobretudo, de se relacionar e estar com os outros.

P. Luís Maria da Providência, sj | in Ponto SJ | 7 Março 2022

Dentro de dias, a 13 de março, celebramos o 9º aniversário da eleição do Papa Francisco. Um pontificado marcado por graves crises: o drama dos refugiados/migrantes, a questão dos abusos (sexuais, psicológicos, de autoridade), as mudanças climáticas, a pandemia, a invasão da Ucrânia. Um tempo em que a Igreja procura encontrar um estilo que lhe permita ser uma voz profética no meio do mundo. Um tempo em que, conjugando cristologia e pneumatologia, o Espírito Santo se faz particularmente presente e dinâmico, habitando e trabalhando não só na Igreja, mas também conduzindo a História da Humanidade rumo à consumação em Cristo.

Oito meses depois de ter sido eleito, a 14 de novembro de 2013, com a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG – A Alegria do Evangelho), o Papa traçava as linhas de fundo do que viria a ser o seu programa. O contacto com este texto impressionou-me particularmente no que respeita aos quatro “princípios/tensões bipolares”. Com frequência o Papa tem retomado estes princípios: “o tempo é superior ao espaço”; “a unidade prevalece sobre o conflito”; “a realidade é mais importante que a ideia”; “o todo é superior à parte”.

Será que se trata de axiomas/aforismas/verdades apodíticas, que lhe surgiram na mente inesperadamente e que se lhe impuseram como inquestionáveis? Será que se trata de esculturas gregas, anatomicamente perfeitas, que os arqueólogos puseram a nu? Na Exortação EG, estes quatro princípios integram uma secção intitulada “O bem comum e a paz social” (EG 217-221). O próprio Papa diz que “derivam dos grandes postulados da Doutrina Social da Igreja” (EG 221). Em cada um destes princípios temos dois polos em tensão, mas não de uma forma totalmente simétrica, porque há um que prevalece sobre o outro.

Jorge Mário Bergoglio chegou a iniciar um doutoramento com a tese “Oposição polar como estrutura de pensamento quotidiano e de proclamação cristã”. Propunha-se explorar um filão que Romano Guardini aborda na sua obra L’opposizione polare. Saggio per una filosofia del concreto vivente. Este filão permite desbloquear conflitos e iniciar processos sinodais (do grego syn-odos, que significa caminhar juntos). O Papa distingue “contradições” e “contraposições”. “As contraposições são contradições aparentes”. As contraposições são “polaridades vivas”. “As contraposições interagem numa tensão frutuosa e criativa”, permitindo-nos caminhar/sonhar juntos. As contraposições permitem ultrapassar quer o fundamentalismo quer o relativismo (Papa Francisco, Sonhemos juntos).

O Papa Francisco cresceu na tradição dos Exercícios Espirituais de Inácio de Loiola (1491-1556). Com a idade de 30 anos, Inácio experimentou o apelo a acompanhar este Jesus desconcertante, que não se deixa agarrar por esquemas e preconceitos. Jesus é de uma liberdade radical e total, nos antípodas do mundo. Os adversários de Jesus fazem tudo para O apanhar em contradição, mas Jesus é de uma integridade a toda a prova. Jesus é eternamente gerado pelo Pai e habitado pelo Espírito Santo, que não se sabe de onde vem e para onde vai (Jo 3)! Seria interessante elencar as aparentes contradições de um Jesus surpreendente. No essencial, esse trabalho já foi feito pelos grandes Concílios Ecuménicos do primeiro milénio da História da Igreja.

Pedro Arrupe (1907-1991) é o jesuíta que mais marca a Companhia de Jesus no pós Concílio Vaticano II (1963-1965). Foi missionário no Japão. No final do Vaticano II foi nomeado Padre Geral da Companhia de Jesus, da qual esteve à frente de 1965 a 1981. O teólogo Karl Rahner considera que o testamento de P. Arrupe se encontra no texto “O Coração de Jesus, resumo e símbolo do amor”. Nesse texto, P. Arrupe enumera vários binómios em tensão, característicos dos Exercícios Espirituais e da Companhia de Jesus.

Debrucemo-nos sobre as “tensões” referidas no dito testamento do P. Arrupe: 1. “a tensão entre fé e justiça”, geralmente traduzido por “o serviço da fé e a promoção da justiça”. O reino de Deus pressupõe o teu empenho em favor dum mundo mais justo; 2. “a tensão entre perfeição própria e alheia”: salvas a tua pessoa empenhando-te na salvação do outro; 3. “a tensão entre oração e apostolado ativo”, geralmente traduzido por “contemplação na ação” (J. Nadal) ou por “ver a Deus em todas as coisas” (Inácio de Loiola); 4. “a tensão entre discernimento e obediência”: discernir o que o Espírito Santo te diz, dispondo-te também a obedecer a um outro, por meio do qual o Espírito te interpela. Para P. Arrupe, essas tensões só são resolúveis se vividas à luz do Espírito de Amor que jorra do Coração do Crucificado-Ressuscitado.

Mas retomemos sucessivamente os quatro princípios da exortação EG. Associado a cada um deles há uma “tensão bipolar” (EG 222. 231. 234). Tal como em Inácio de Loiola a relação entre os dois polos não é rigorosamente simétrica, também na exortação EG, em cada binómio, um dos polos tem a primazia sobre o outro:

1. “O tempo é superior ao espaço”. Que tempo é este? Antes de mais, certamente, o tempo dos processos, que leva à maturidade. Um tempo que não é puro cronos, o tempo dos relógios. Pelo contrário, este tempo já traz em si a marca do kairos, o tempo plenitude. Assim concebido, este tempo está associado à história da salvação, contrapondo-se ao espaço que se situa mais na lógica dos impérios

2. “A unidade prevalece sobre o conflito”. De acordo com a profecia, os impérios e as guerras darão lugar à justiça e à paz em prol de todas as nações.

3. “A realidade é mais importante que a ideia”. Não confundas o mapa com a realidade ou a figuração com a realidade. A ideia é sempre uma redução, a realidade é sempre mais rica. A ideia como propedêutica à plenitude, da qual a realidade está cheia. A ideia tem de ser validada pela realidade. A ideia da lei (Antigo Testamento) dá lugar à realidade do amor (Novo Testamento).

4. “O todo é superior à parte”. O jardim do Éden, com a Árvore da Vida ao centro, supera toda a criação que o povoa. Tendo ao centro a cidade santa de Jerusalém, com o templo, Israel supera as doze tribos que o constituem. Também para Inácio se abriu, pelos olhos do entendimento, um novo horizonte e uma perspectiva integrada da realidade. A graça que lhe foi concedida, junto às margens do rio Cardoner, fez nascer assim um homem novo, com um olhar renovado sobre o mundo.

A realidade do mundo é complexa: em vez de simples binómios, há que considerar as mais variadas perspetivas, daí surge o poliedro. O poliedro é também o trabalho em equipa/rede, colaborando com outros. É uma nova forma de ver a realidade e de trabalhar, e, sobretudo, de se relacionar e estar com os outros. Exemplificando com a encíclica Laudato Si’, o poliedro integra “o diálogo e a transparência nos processos decisórios”, por um lado, nos diferentes níveis da política internacional, nacional e local, e por outro, nas diferentes áreas da política e da economia, das religiões e da ciência. Pretende-se criar sinergias, de maneira a que as diferentes partes se fortaleçam conjuntamente.

O Papa Francisco recorre à imagem do poliedro no contexto do binómio “O todo é superior à parte” (EG 236). É uma imagem recorrente para ilustrar a estratégia que permite superar as graves crises do nosso tempo. Neste mundo plural, urge implementar uma cultura do diálogo e da reconciliação, onde cada parte “deve estar mais pronta para salvar a proposição do outro, que para condená-la” (Exercícios Espirituais 21). Só na medida em que pusermos em diálogo os mais variados interlocutores é que poderemos encontrar soluções. Claramente este diálogo passa pela abertura ao Espírito Santo, que apenas pressupõe que pessoas de boa vontade colaborem juntas.

Tendo na origem o diálogo com o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, Fratelli Tutti, Carta encíclica sobre a fraternidade e amizade social, constitui um programa para lançar os fundamentos/bases de uma nova humanidade, onde o respeito pelas diferentes culturas e religiões, pelos valores da justiça/paz e pela integridade da natureza se impõem. Para além do critério económico, há que ter também em conta o critério social e o critério ambiental: as duas encíclicas deste pontificado, Fratelli Tutti e Laudato Si’, constituem este abraço e coração universal que, no Espírito Santo, configuram todas as nações em Cristo.


Visita Pascal 2022? Vamos lá sinodalizar?!

Amaro Gonçalo | in 7 Margens | 27 Fev 2022

São horas de sinodalizarmos as nossas opções pastorais, a propósito da Visita Pascal de 2022, que se avizinha, para caminharmos juntos e não cada um para seu lado…

É tempo de nos ouvirmos, de conversarmos, de partilharmos ideias e sugestões, para discernirmos juntos as melhores escolhas. Façamo-lo no âmbito dos nossos conselhos pastorais e vicariais, no diálogo franco com as pessoas da comunidade e mesmo com aquelas que nos parecem mais distantes e têm uma palavra a dizer. Através das redes sociais, também podemos escutar e dizer o que nos vai na alma. A conversar é que a gente se entende!

Por isso, valerá bem a pena conversar calmamente sobre a Visita Pascal de 2022. Deixo algumas pistas para uma escuta humilde e para tomarmos a palavra, de forma sensata, corajosa e criativa, sobre os caminhos que podemos percorrer juntos:

1. No contexto de uma pandemia, que não nos largará de vez, mas que dará lugar a uma endemia, com menos restrições no âmbito da convivialidade humana, seria ainda precoce, este ano, fazer uma visita pascal “casa a casa”. Porquê? Os movimentos de entrada e de saída, de proximidade e de contactos entre pessoas de proveniências diversas, podiam potenciar focos de contágio e de propagação do vírus que a ninguém interessa. Estaremos de acordo quanto a isto?

2. Os que, porventura, defendem, já para este ano, uma visita pascal, casa a casa, no estilo tradicional, anterior à pandemia, como sugerem o controlo destes riscos de contágio, provocados por grupos de pessoas que andam de casa em casa? Não estarão as nossas famílias “de pé atrás” relativamente a uma visita pascal, casa a casa? Qual seria a sua recetividade? Não será uma temeridade esta mobilidade?

3. A veneração à Cruz Pascal com um beijo, seja na rua, seja dentro de casa, é uma prática a evitar, por razões sanitárias óbvias. Mas concordamos todos com isto? Não se poderia pensar num gesto diferente de veneração à Cruz: uma inclinação, a oferta de uma flor, a recitação de uma oração pascal ou de uma oração de bênção da cruz, etc.?

4. Eventualmente poderia admitir-se o beijo à Cruz – dirão alguns – desde que esta Cruz (beijada dentro ou fora de casa) fosse única e própria em cada família. Mas isso não poria em causa o sinal comum de uma cruz paroquial pascal? Não seria, mesmo no caso de se beijar uma cruz familiar, um gesto de riscos incontroláveis, tendo em conta que se reúnem em famílias, neste dia, pessoas não coabitantes? Que pensamos disto? O gesto do beijo da Cruz, na visita pascal, não será uma prática a rever, desde agora e para sempre?

5. Para dar alguns passos, num tempo que já é bem diferente daquele que vivemos na Páscoa de 2020 e 2021, não se poderia pensar numa visita pascal que fosse uma espécie de “arruada” pelas várias ruas e lugares da paróquia, mesmo sem entrar nas casas dos paroquianos?

6. Não se poderiam organizar percursos de visita pascal, por ruas e lugares da paróquia, com o toque das campainhas, convocando as pessoas a descerem e a saírem à rua, a virem à porta de casa, a reunirem-se em pequenos grupos, para publicamente saudar e rezar um pouco, em volta da Cruz Pascal e paroquial?

7. Não se poderia, em alguns casos, sinalizar previamente alguns lugares ou zonas da paróquia, onde a equipa da visita pascal parasse para aí fazer uma oração pascal, ou uma oração de bênção e de veneração à Cruz, com os vizinhos dessa zona?!

8. Sendo que os contextos pastorais são muito diversificados, como poderíamos adotar práticas que manifestassem o nosso propósito de “caminhar juntos” também na retoma criativa da Visita Pascal?

Aqui estão algumas perguntas para nos sinodalizarmos. Não são questões de doutrina ou de salvação, mas podem ser oportunidade para nos interrogarmos sobre o modo como estamos a caminhar juntos e que passos o Espírito Santo nos sugere, para recriar ou retomar uma prática tradicional, tão bela, como é esta da visita pascal.

Amaro Gonçalo é padre católico e pároco de Nossa Senhora da Hora, diocese do Porto.


Outros o farão por nós

Cristina Inogés Sanz | 13 Fev 2022 | in 7 Margens

Pode ser que ainda haja espaço de manobra. Ou não. O que eu creio é que a pouca credibilidade que nos restava foi por água abaixo. E não é porque não fosse previsível; não é porque não tivéssemos tido tempo de pôr as barbas de molho, vendo os nossos países vizinhos a fazerem aquilo que deveria ter sido feito muito antes; não é porque a situação não apontasse na direcção que, finalmente, tomou o assunto; não é porque muitos de nós não o tivéssemos pedido desde há algum tempo com verdadeiro espírito eclesial.

Aqui nada apanhou ninguém de surpresa, nem sequer a recusa da Conferência Episcopal Espanhola em investigar como tal os casos de abusos sexuais. Embora houvesse sempre a esperança que o fizésseis, mas não. Isso não aconteceu.

Agora outros o farão por nós e fá-lo-ão primando pelos seus próprios interesses, e não tanto pelo interesse das vítimas. Esses outros também não merecem muita credibilidade; contudo, para algumas das vítimas serão a referência de terem tentado ou conseguido fazer algo, aconteça o que acontecer no final. E, obviamente, venceram a batalha dos media.

A casa de todos

O resto de nós vai ter de lidar com a vergonha de ter de calar perante os muitos comentários que se ouvem sobre a Igreja e contra os quais não há defesa possível. No entanto, caros bispos, podeis ficar descansados, muitos de nós católicos continuaremos a inventar mil maneiras de defender a Igreja em que acreditamos e que consideramos ser a casa de todos.

Porém, seria interessante que começásseis a pensar em desculpas – porque em razões será impossível – com as quais se possa tentar explicar o abandono, a indiferença, a falta de credibilidade e, em suma, a situação em que nos deixais a todos. Creio que nos aproximamos muito da imagem do Evangelho de sermos ovelhas sem pastor.

O que ninguém queria – e quero acreditar que vocês bispos também não – já nos caiu em cima. A crise dos abusos sexuais, que já por si é um abismo moral e criminoso, está em vias de se tornar na crise que acabará em grande medida por nos vir a atropelar com outras. Isso sim, a vida, com uma dessas partidas que algumas vezes prega, dá-vos a possibilidade de começar a pensar em como gerir as crises dos abusos de consciência, espirituais e laborais. Porque estas denúncias também irão chegar e mais vale irem-se preparando.

Desde a transparência

Intuo, espero e desejo que nem todos vocês tenham cerrado fileiras em torno da recusa de investigar como Conferência Episcopal. Espero que neste, como em muitos outros temas, agora que temos de aprender a alcançar consensos, sejais capazes de o fazer e, mais importante ainda, que mostreis abertamente como o fizeste. Seria muito bom ir praticando a transparência porque aquilo que vós decidis, diz respeito a todos nós. E todos somos Igreja.

Apesar do que possais pensar, não estais sozinhos. Muitos de nós estamos dispostos a dar uma mão, ou as duas se for necessário, para tirar a Igreja deste pântano em que vós, e a verdade é que lamento dizê-lo, a metestes. E fá-lo-emos, se nos pedirdes, porque a nossa consciência de pertença à Igreja é muito forte e está acima de certas atitudes que vemos e acima de nos vermos a nós próprios mais ou menos apreciados e respeitados.

Pode ser que ainda haja espaço de manobra. Ou não. Depende de vós. Quereis a nossa ajuda?

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin.


Inscrições também para portugueses

Papa vai ter encontro sinodal com estudantes do hemisfério ocidental

7Margens | 11 Fev 22

“Construindo pontes” é o tema de um “encontro sinodal” entre o Papa Francisco e os estudantes universitários do hemisfério ocidental, que se realiza no próximo dia 24, em língua inglesa, espanhola e portuguesa.

A iniciativa deste evento virtual coube à Universidade de Loyola de Chicago, nos Estados Unidos da América, e decorreu de um questionamento interno sobre o modo como a instituição poderia participar no atual Sínodo sobre a sinodalidade.

Os estudantes interessados, inclusive em Portugal, podem desde já inscrever-se para assistir ao evento virtualmente, havendo tradução para inglês, espanhol e português. Segundo os organizadores, Francisco responderá em espanhol e sem guião pré-definido. As inscrições podem ser feitas na página da Universidade.

Na verdade, segundo revelou Peter Jones, responsável atual do Instituto de Estudos Pastorais (IEP) da Loyola, esta iniciativa será mais do que um debate. Pretende ser a plataforma de um “movimento ou rede”, envolvendo estudantes de diferentes áreas do saber, para conversar com o Papa sobre “questões que são prementes entre eles, mas também para propor soluções”.

Após a conversa do dia 24, segundo os organizadores, os estudantes continuarão a reunir-se para colocar as suas ideias em prática.

Embora o Sínodo ocorra sobretudo a partir das dioceses, a Universidade Loyola pretendia também envolver os seus alunos. E foi nesse ponto que, à procura de alguém em Roma que pudesse colaborar, surgiu a pergunta: “Por que não o Papa?”

Uma das pessoas que ouviu a pergunta foi Emilce Cuda, teóloga argentina que leciona no mestrado em espanhol do IEP. Loyola tinha-a contratado antes de ser nomeada chefe do escritório do Conselho Pontifício da América Latina no Vaticano, em agosto passado. Parte do seu encargo nesse papel, disse Jones, é ajudar a construir pontes nas Américas entre o Norte e o Sul. “Uma semana depois, antes do Natal, a dra. Cuda ligou de volta a anunciar que o Papa aceitava.”

Desde então, perto de centena e meia de estudantes têm vindo a reunir-se virtualmente em grupos para “discutir os desafios que enfrentam e o que podem fazer a propósito”. Cada um desses grupos selecionará um representante para falar diretamente com o Papa, apresentando o que foi debatido em grupo.


Escutar e fazer-se escutar

Cristina Inogés Sanz | 5 Fev 22 | in 7 Margens

O verbo escutar parece ter despertado após uma intensa letargia durante a qual foi muito facilmente confundido com o verbo ouvir. Não têm nada a ver um com o outro.

Francisco ofereceu-nos um belíssimo texto para o Dia Mundial das Comunicações Sociais intitulado Escutar com os ouvidos do coração.

Escrito nesse estilo tão próximo e pessoal deste Papa e não lhe faltando profundidade, convida-nos a uma escuta que vai muito além do facto de recebermos palavras no nosso pavilhão auditivo, para irmos mais fundo naquilo que escutamos e, sobretudo, à profundidade daquele que nos fala, confiando, e sem violentar a sua intimidade.

Francisco diz no texto que também na Igreja há uma grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. Tem toda a razão e, embora haja muitas pessoas dispostas a fazê-lo e com boa preparação para o fazer (porque a escuta também precisa de preparação), por vezes dá a impressão de que mais do que Igreja somos somente instituição, o que não é a mesma coisa. Na Igreja, a escuta tem de seguir o ritmo da compaixão, que é uma mistura sólida, nas proporções adequadas, de empatia e compreensão para com aqueles que sofrem e padecem, e que nos permite chegar a sentir o que essa pessoa sente.

A preparação para a escuta não é um assunto trivial e requer o treino do ouvido, do coração, dos gestos do corpo e do olhar, porque tudo faz parte do conjunto de elementos necessários para que a pessoa que está a falar se sinta escutada. Não é aceitável, mesmo que se esteja a prestar toda a atenção, que quem escuta esteja a olhar para o tecto, ou para o infinito, ou tenha os braços cruzados, enquanto a outra pessoa desafoga o seu coração. Muito menos que esteja à procura de uma citação bíblica adequada para a ocasião. O contacto visual na escuta é de importância vital.

Coincidindo – sem que fosse essa a intenção – com a publicação da mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, surgiu a notícia da iniciativa “#OutinChurch. Por uma Igreja sem medo”, na qual 125 pessoas pertencentes à Igreja Católica Alemã, decidiram manifestar publicamente a sua orientação sexual.

Entre eles há professores de religião, sacerdotes, funcionários de diversas entidades diocesanas… Alguns poderão dizer que está na moda sair do armário; contudo, este gesto é extremamente corajoso porque, na Igreja Católica, sair do armário ainda é um gesto que é visto mais como um desafio do que como uma profecia.

Em muitas ocasiões, um gesto como o realizado por estes católicos alemães é a única maneira de fazer-se escutar, de dizer à Igreja que estão aí, que existem.

É certo, e deve ser reconhecido, que algumas vozes dentro da Igreja já compreendem que devem ser adoptadas medidas que incluam, para não continuar a excluir por sistema. Assim, podemos ler as declarações do cardeal Hollerich em La Croix (20-1-22), onde abertamente e, para além de outros assuntos interessantíssimos, diz: “Seria bom que os padres homossexuais, que são muitos, falassem com o seu bispo sem que este os condene”.

A Igreja não é um clube. Um clube tem certas normas. Se as aceitas tudo corre bem, se não as aceitas já sabes onde fica a porta de saída. Sim, a Igreja também tem as suas normas; no entanto, essas normas contidas no Código de Direito Canónico devem ser lidas à luz do Evangelho, que é ou deveria ser a nossa máxima lei. É verdade que o Código de Direito Canónico reflecte e legisla a teologia do momento, e por isso, precisamente por isso, algo tem que ser feito para que não haja tanto contraste.

Há um texto no Evangelho de João que diz: “Também tenho outras ovelhas que não pertencem a este rebanho; também essas devo conduzir: Escutarão a minha voz e haverá um só rebanho sob um só Pastor” (10,16). É um texto maravilhoso que mostra uma força regeneradora, da qual está muito necessitada a nova evangelização. Não esqueçamos que o contexto destas palavras é onde Jesus ensina que Ele é o Bom Pastor. Está a mostrar aos discípulos (tenhamos presente que no evangelho de João só há discípulos, não há apóstolos e discípulos) como deve ser o pastor. Está a dizer-lhes como devem ser como pastores.

A mensagem de Francisco termina dizendo que na acção pastoral, a obra mais importante é o “apostolado do ouvido”. E acrescenta no penúltimo parágrafo: Começou há pouco um processo sinodal. Oremos para que seja uma grande oportunidade de escuta recíproca. A comunhão não é o resultado de estratégias e programas, antes se edifica na escuta recíproca entre irmãos e irmãs. Como num coro, a unidade não requer uniformidade, monotonia, mas sim pluralidade e variedade de vozes, polifonia. Ao mesmo tempo, cada voz do coro canta escutando as outras vozes e em relação à harmonia do conjunto. Esta harmonia foi idealizada pelo compositor, mas a sua realização depende da sinfonia de todas e de cada uma das vozes.

Ámen.

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.


As quatro propostas do cardeal para a reforma da Igreja

Manuel Pinto | 30 Jan 22 | in 7 Margens

Como ler alguns dos grandes desafios que hoje se colocam à Igreja Católica, como sejam o escândalo dos abusos sexuais, a deserção dos fiéis, o papel das mulheres ou a crise do clero? E que é necessário fazer para lidar com esses e outros problemas?

O cardeal Jean-Claude Hollerich deu, há dias, respostas a vários desses e outros problemas, numa entrevista ao jornalista Loup Besmond de Senneville, correspondente permanente do La Croix International no Vaticano, que desencadeou repercussões um pouco por todo o mundo.

Hollerich é jesuíta, passou uma boa parte da sua vida de padre como missionário no Japão e desempenha atualmente as funções de presidente da Comece (Comissão das Conferências Episcopais da União Europeia). Foi, entretanto, nomeado relator geral do Sínodo dos Bispos, que teve início recentemente, com a fase diocesana.

O agora cardeal nasceu e trabalha no meio de portugueses, no Luxemburgo. Fala bem a língua de Camões e estava em Portugal, a passar férias, quando, em 2019, o Papa Francisco anunciou a escolha do seu nome para cardeal.

Registam-se aqui, por tópicos e em resumo (ou de forma literal, quando as frases são colocadas entre aspas), alguns dos contributos do cardeal para as reformas que entende serem necessárias na vida da Igreja Católica. A entrevista integral pode ser lida, em português, na página oficial da Arquidiocese de Braga na internet.

Descobrir as palavras para dizer a mensagem

• Cada vez nos damos mais conta de que “somos e seremos uma minoria” e que “não há receitas mágicas” para o anúncio do Evangelho.

• Nesta cultura do consumo, que “promete satisfazer os desejos humanos, mas não o faz”, as pessoas continuam a ter “perguntas adormecidas” e a “buscar a felicidade, a ter sede de infinito” e a “esbarrar nos seus próprios limites”.

• A mensagem do Evangelho é “excecionalmente fresca para responder a esta busca de sentido e felicidade”. Por outro lado, “o mundo continua à procura, mas já não olha na nossa direção, e isso dói”.

• Não basta querer a toda a força “apresentar a mensagem do Evangelho de tal maneira que as pessoas possam orientar-se para Cristo”, desligadas das profundas mudanças civilizacionais.

• Precisamos de uma nova linguagem, baseada no Evangelho, e definida com a participação de todos (isto é sínodo), já que ninguém entenderá a teologia católica dentro de 20 ou 30 anos.

• Para isso, é preciso trabalhar em rede, os crentes escutarem-se e escutar o Espírito Santo, que é “o mestre da construção”; as coisas não se fazem com ordens de cima para baixo.

Mudar a metodologia da ação

• Para a mensagem do Evangelho ser escutada é preciso mudar de método, que parta da ideia de que a vida e as pessoas estão no centro e que a Igreja partilha com todos a busca de uma sociedade melhor.

• Para ajudar as pessoas a entender aquilo em que os cristãos acreditam, a Igreja deve entrar num continuado diálogo com aqueles que (já) não são cristãos, ou que o são apenas perifericamente.

• Se os católicos não querem falar para si próprios e escutar-se a si mesmos, é necessário predispor-se a compreender o outro; a escutar as histórias (experiências) dos outros; a fazer pontes com a sociedade;

• Este tipo de caminho pressupõe humildade; a Igreja dá a imagem de “instituição que sabe tudo melhor do que os outros”, mas, sem humildade não se pode entrar em diálogo, porque ela “mostra que queremos aprender deles”.

Abusos sexuais na Igreja: mudanças sistémicas

• As situações conhecidas em diversos países, que são sempre um escândalo, mostram que não se trata apenas do falhanço de alguns. “Há uma falha sistémica em algum lado, que é preciso tratar” e a Igreja deve ser estruturada de tal forma que essas coisas deixem de ser possíveis.

• Não têm de se temer as feridas que tais medidas podem causar, porque elas “não são absolutamente nada se comparadas com as das vítimas”. Abusar dessas crianças é um crime real. É uma ofensa muito mais grave do que se for um professor ou um treinador desportivo.

• “O facto de os abusos terem sido tolerados para proteger a Igreja, dói. Nós fechámos os olhos! Isso é quase irreparável”. Muitos perderam a confiança e para recuperá-la é preciso ter grande humildade.

• “Se as mulheres e os jovens tivessem mais voz, estas coisas teriam sido descobertas muito mais cedo. Devemos parar de agir como se as mulheres fossem um grupo marginal na Igreja. Elas não estão na periferia da Igreja, elas estão no centro” e, se não tiverem voz “teremos um grande problema”. Mas as mulheres têm sido demasiado ignoradas.

• “Parece-me óbvio que estas questões estarão na mente e no coração de todos, durante o processo sinodal. Precisamos de abraçar a mudança”.

Atenção à formação do clero

• A formação do clero deve mudar. Não deve centrar-se apenas na liturgia. Leigos e nomeadamente as mulheres devem ter uma palavra a dizer na formação dos sacerdotes. Formar sacerdotes é um dever de toda a Igreja, por isso “toda a Igreja deve acompanhar este passo, com homens e mulheres casados e solteiros”.

• Em segundo lugar, “precisamos de mudar a nossa maneira de ver a sexualidade. Até agora, tivemos uma visão bastante reprimida da sexualidade”. (…) Precisamos de dizer que a sexualidade é um dom de Deus. Sabemos disso, mas dizemo-lo?”

• Algumas pessoas atribuem o aumento do abuso à revolução sexual. É exatamente o contrário: os casos mais horríveis ocorreram antes da década de 1970.

• Nesta área, os padres também precisam de poder, “livremente, sem medo de serem repreendidos pelo seu bispo, falar sobre a sua própria sexualidade” e de serem ouvidos, se estão a ter problemas em viver o celibato.

• “Quanto aos padres homossexuais, e são muitos, seria bom que pudessem falar com os seus bispos sem que estes os condenassem.”

• “Quanto ao celibato e à vida sacerdotal, perguntemos francamente se um padre deve necessariamente ser celibatário. Tenho uma opinião muito favorável ao celibato, mas é indispensável?”


Igreja: Procura-se laboratório de visões

Desde há algum tempo, de várias partes, vai-se afirmando que as comunidades eclesiais vivem (ou deviam) um momento de grande mudança: uma mudança mais profunda e radical do que qualquer outra renovação vivida nos tempos passados.

Esta convicção é suportada pela retórica da mudança causada pela pandemia – acontecimento atualmente objeto de uma espalhada hermenêutica “apocalíptica” – interpretada como uma cesura epocal, uma aresta da história, quase como se fosse o primeiro acontecimento do género.

O que mudar?

Mas o que devemos entender como mudança? Em que consiste? É feita sobretudo de arquiteturas pastorais diferentes das adotadas até agora? De novos setores ou apenas de novos nomes dados a setores que já trabalhavam ou à sua colocação no interior de campos mais amplos de atividade?

Na realidade, nunca será a mudança das formas estruturais e organizativas a produzir uma verdadeira e estável transformação na consciência de uma comunidade. Aliás, as transformações exteriores poderão induzir à ilusão de se ter dado um passo para o denominado “novo”, mas de facto afastam-no, provocando o fenómeno «da imunidade à mudança», como foi definido por alguns estudiosos.

Como escreveu o padre Spadaro na revista “La Civiltà Cattolica”, «para fazer sínodo é preciso expulsar os comerciantes e derrubar as suas bancas… Mas quem são hoje os “comerciantes do templo”? Só uma reflexão impregnada de oração poderá ajudar-nos a identificá-los… Os comerciantes estão sempre próximos do templo, porque aí fazem negócios, aí vendem bens: formação, organização, estruturas, certezas pastorais. Os comerciantes inspiram o imobilismo das soluções velhas para problemas novos, isto é, o usado seguro que é sempre um “remendo”, como o define o pontífice. Os comerciantes vangloriam-se de estar “ao serviço” do religioso. Muitas vezes oferecem escolas de pensamento ou receitas prontas a usar e geolocalizam a presença de Deus, que está “aqui” e não “ali”».

Um processo comunitário

A verdadeira mudança acontece apenas quando todos aqueles que compõem uma comunidade avançam rumo a um outro e alto nível harmónico: por outras palavras, quando o seu fogo intrínseco («Eu vim lançar fogo sobre a Terra; e como gostaria que ele já se tivesse ateado!» (Lucas 12, 49)), a sua paixão, se tornam mais vivos e, por conseguinte, a luz que dele emana intensifica-se e atrai; quando tudo aquilo que faz parte da vida de uma comunidade – relações, conteúdos cognitivos, qualidade do pensamento, valores, planos e projetos, e assim por diante – é transportado conscientemente por um nível de luz e de energia mais cativante e mais prometedor.

A verdadeira mudança é aquilo que intensifica a consciência e a missão de cada componente e que envolve todos os membros da comunidade, cada qual segundo as suas possibilidades e a parte de serviço que exerce no interior do conjunto.

Sem visão, porém, a mudança é impossível. Cada programa de mudança precisa de uma visão. O problema principal, por isso, é a visão, uma visão que envolva coração, cabeça e mãos.

É óbvio que o agente fundamental deste género de mudança é a consciência humana, com o seu poder de incidir em tudo aquilo que a rodeia e sobre o qual pousa a sua atenção.

A mudança numa comunidade não pode derivar das propostas de formas diversas feitas por alguém, por muito boas que possam ser. Mas deve ser acompanhada por caminhos internos de cada um e de todos, com persistência: é esta universalidade que ativa a onda transformadora que sustenta quem nela participa rumo a uma nova etapa evolutiva. O importante é envolver-se, sentir-se parte ativa do processo em concretização, de maneira totalmente independente da dimensão visível da função e do papel que se exerce.

A vida do grupo só muda graças ao fogos acesos por cada um, que, convergindo, sustêm todos rumo ao futuro. Cada um deverá encontrar em si a sua maneira, porque esta não é igual para todos e não pode ser avaliada com base em manifestações exteriores, mas só pode ser percecionado por caminhos internos através do coração.

Visão e imaginação

É evidente, todavia, que para garantir o sucesso da mudança são necessárias uma visão e um envolvimento ativo de todos os membros da comunidade, através de uma liderança participativa (não autocrática) e uma clareza operativa, no momento de colocar a mudança em prática. Trata-se, do mesmo modo, de especificar uma equipa visionária, reconhecendo a qualidade eo talento das pessoas, dando-lhes confiança.

Sim, porque antes ainda de soluções e programações precisamos de visões. Afirmava Antoine de Saint-Exupéry: «Se queres construir uma barca, não juntes homens para cortar madeira, dividir as tarefas e distribuir ordens, mas ensina-lhes a nostalgia pelo mar vasto e infinito».

Mudar quer dizer olhar em frente, avançar rumo ao futuro. O que nos impele a fazê-lo é sempre um objetivo em devir, algo que queremos obter, alcançar, algo no amanhã que queremos conseguir. Em suma, uma visão do que queremos alcançar.

Em síntese, precisamos de ver o futuro antes que se realize, devemos imaginá-lo para depois o poder construir. A visão, ainda antes que projeto, é confiança, certeza numa perspetiva racionalmente impossível. A visão é uma sentinela, um alerta, mas também um caminho para uma realidade muitas vezes considerada improvável.

A verdadeira genuína sabedoria não está sempre numa atitude racional, necessariamente conforme às premissas, e por isso estéril, mas por vezes na clarividente e visionária “loucura”.

Precisamos, como comunidade cristã, de crescer na visão. No Primeiro Livro de Samuel narra-se que naquele tempo, que corresponde a 1000 a.C., «a palavra do Senhor era rara, as visões não eram frequentes» (3, 1). E o Livro dos Provérbios diz-nos depois que «sem a visão o povo vive dissoluto» (Provérbios 29, 18).

O sonho e a Igreja

Cada comunidade eclesial, paroquial e diocesana, em sintonia e dentro do caminho da Igreja universal, é chamada a ter a sua visão, um sonho que tenciona realizar através da sua prática pastoral.

A primeira coisa que o papa Francisco nos entregou foi um sonho: “Evangelii gaudium”. «Eu sonho uma Igreja…». Descreve-nos o que sonha, diz-nos a sua visão, e é essa que arrasta as pessoas, que as coloca em movimento dentro de um processo generativo.

A categoria do sonho é muito cara ao papa Francisco. Não se trata, decerto, da evasão que faz perder o contacto com a realidade da vida quotidiana, mas da visão capaz de orientar, de indicar a direção de marcha, de estimular à mudança.

O sonho, para o papa Francisco, é um instrumento político, capaz de cerzir e regenerar tecidos e espaços sociais feridos e rejeitados. É capaz de suscitar amizade social, como instrumento de transformação do mundo (cf. “Fratelli tutti”, 183), tendo primeiro operado a transformação dos corações com uma grande ação educativa (cf. “Fratelli tutti”, 167-169).

Qual é o sonho que queremos realizar? Qual é a transformação real que queremos gerar no mundo como comunidade? A pertença à comunidade não é gerada por algo que se faz, mas pela partilha de uma visão, de um sonho. É este o ponto de partida generativo de uma comunidade.

O facto é que talvez no substantivo “sonho” entrevemos os contornos irreais da ilusão e da ausência de concreto. Mas sabemos bem que não é assim. O sonho é desenho, expetativa, impulso criativo… É saber que algo de novo deverá suceder.

A visão representa uma imagem fascinante e atraente que se abre ao futuro, um sonho. Ela exprime o modo (o como) em que queremos ser Igreja.

Sem visão, o povo de Deus perde toda a perspetiva, toda a tensão projetiva, e por isso debilita-se no pântano das escolhas de pequena cabotagem e nas práticas de piedade.

Sem visão, o povo de Deus está pronto a tornar-se servo de quem promete rápidas satisfações pseudo-religiosas (e quantas não foram dispostas durante esta pandemia!), isto é, a quem garante que a deglutição de práticas de piedade pode substituir uma real e satisfatória vida de fé.

Um ponto de vista diferente

O que entendemos propriamente com a categoria de “visão”? Seja dito, antes de mais, que uma visão não é uma construção abstrata, uma teoria filosófica ou sociológica ou histórico-cultural. Se fosse assim, hoje teríamos visões sem fim, para cada gosto ou tendência.

Uma verdadeira nova visão é precisamente um diferente ponto de vista sobre as coisas, e portanto, em definitivo, um modo diferente de ser homem e mulher, de se ser crente, que emerge num dado momento da história para a iluminar de uma outra maneira, e dessa forma reorientar-lhe o processo de desenvolvimento.

A visão deve ser capaz de evocar com suficiente clareza a imagem de um futuro possível, credível e desejável. Trata-se de sonhar em grande. E sonhar juntos. Como Igreja não percamos tempo em coisas inúteis, sonhemos! Precisamos de um impulso forte, honesto e eficaz rumo ao futuro. Trata-se de ousar, ter impulsos, olhar além.

As “visões” não vêm à superfície se nos dobrarmos obsessivamente sobre nós próprios, continuamente a considerar feridas, fragilidades, limites, bloqueios, medos, transformando grupos e comunidades numa espécie de grupo permanente de autoajuda. Se continuarmos nessa direção, não só nunca aflorará qualquer visão, como também traímos a nossa missão. Acabamos numa imperdoável autorreferencialidade eclesial.

Não só. Acabamos por produzir “crentes-catos”. Por onde passam, deixam feridas. Crentes que se alimentam diariamente de desconfiança e se defendem de todos, por causa do facto de todos sangrarem, e consideram sempre o outro como a causa das suas feridas. Ou, então, acaba-se a produzir “crentes-bola”, crentes inchados, cheios de si, orgulhosos das suas tradições, das suas práticas, que não precisam de nada nem de ninguém.

A Igreja precisa de crentes livres. Livres do medo, do preconceito, homens e mulheres de pensamento livre, com ideias fortes porque temperadas pelo confronto (“sinodalidade” não como conceito teológico, mas como estilo permanente), para fazer experiência autêntica de um pensamento inovador, e portanto abrir passagens à luz de visões inéditas na história.

«Sinodo/sinodalidade estão a tornar-se slogan, uma nova retórica eclesial que esconde as muitas dificuldades, se não a oposição, de presbíteros e bispos para esta mudança» (card. Mario Grech).

Cultivar o desejo

Como disse o papa Francisco no longo discurso que dirigiu aos participantes na primeira congregação geral da 15.ª Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, com o tema “Os jovens, a fé e o discernimento vocacional”, a tarefa do Sínodo é «fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florir esperanças, estimular confiança, fechar feridas, entretecer relações, ressuscitar uma aurora de esperança, aprender uns com os outros, e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, volte a dar força às mãos».

Confio a conclusão às palavras de um cardeal teólogo e poeta, José Tolentino Mendonça, escritas no seu “Elogio da sede”: «Há nas nossas culturas, e do mesmo modo nas nossas Igrejas, um défice de desejo. Quando se nota, no momento atual, o emergir e em escala cada vez maior, de sujeitos sem desejo, isso deve conduzir-nos a uma autocrítica. Nós, batizados, formamos uma comunidade de pessoas que desejam? Os cristãos possuem sonhos? A Igreja é um laboratório onde, como no oráculo provocatório de Joel (3, 1), os nossos filhos e filhas profetizam, os nossos idosos têm sonhos e os nossos jovens constroem novas visões, não só religiosas, mas também novas compreensões culturais, económicas, científicas e sociais?».

Domenico Marrone | In Settimana News | Trad.: Rui Jorge Martins | in SNPC, 16 de Novembro de 2021 | Retirado da Revista Mensageiro de Santo António, Janeiro 2022


POR UMA IGREJA SINODAL

Cidade do Vaticano, 17 jan 2022 (Ecclesia) – O Vaticano desafiou as comunidades católicas a rezar pela unidade dos cristãos e a valorizar o ecumenismo no processo do Sínodo 2021-2023, lançado pelo Papa em outubro.

“De facto, tanto a sinodalidade como o ecumenismo são processos de caminhar juntos”, referem os cardeais Mario Grech e Kurt Koch, respetivamente secretário-geral do Sínodo dos Bispos e presidente do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos, em comunicado enviado hoje à Agência ECCLESIA pela sala de imprensa da Santa Sé.

Os responsáveis assinam uma carta conjunta que foi enviada, a 28 de outubro de 2021 a todos os bispos responsáveis pelo diálogo com as outras comunidades cristãs, apresentando sugestões para implementar a dimensão ecuménica do processo sinodal nas igrejas locais.

“Sempre que possível, na contribuição diocesana poderia ser inserida uma síntese das respostas dos responsáveis cristãos e dos delegados ecuménicos”, pode ler-se.

É sugerido que o bispo responsável pelo ecumenismo em cada Conferência Episcopal faça parte da equipa encarregada do processo sinodal e que “envie uma carta aos representantes das outras comunidades cristãs e dos Conselhos nacionais das Igrejas, convidando-os a participar”.

A Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos de 2022 (18-25 de janeiro), preparada pelo Conselho das Igrejas do Médio Oriente, com o tema ‘Vimos a sua estrela no Oriente e viemos prestar-Lhe homenagem’ (Mt 2,2), oferece “uma boa oportunidade para rezar com todos os cristãos para que o Sínodo promova o espírito ecuménico”, indica o comunicado divulgado pelo Vaticano.

“Como os Reis Magos, também os cristãos caminham juntos (synodos) guiados pela mesma luz celestial e enfrentando a escuridão do mundo. Também eles são chamados a adorar juntos a Jesus e a abrir os seus tesouros. Conscientes da nossa necessidade de sermos acompanhados pelos nossos irmãos e irmãs em Cristo e pelos seus muitos dons, pedimos-lhe que caminhem connosco durante estes dois anos e rogamos sinceramente que Cristo nos aproxime dele e que assim nos aproximemos uns dos outros”, referem os dois cardeais.

A carta conclui-se com uma proposta de oração para todas as comunidades católicas.

OC

Pai Celestial,

Como os Reis Magos foram a Belém conduzidos pela estrela, que a tua luz celestial guie também a Igreja Católica durante este tempo sinodal, para que caminhe junto de todos os cristãos.

Como os Reis Magos estavam unidos na sua adoração a Cristo, aproxima-nos do Teu Filho, para que, mais próximos uns dos outros, sejamos um sinal da unidade que desejas para a Tua Igreja e para toda a criação. Pedimo-lo através de Cristo Nosso Senhor.

Ámen.


POR UMA IGREJA SINODAL

Sínodo: a busca de um novo modo de ser Igreja no século XXI

Manuel Pinto | 3 Jan 22 | in 7 Margens

Análise

Muitos aguardavam que o Papa Francisco fizesse uma reforma da Cúria e, a seguir, introduzisse mudanças que entende imprescindíveis para a vida da Igreja Católica. Ele respondeu, convocando um Sínodo para escutar todos os batizados, sejam eles leigos ou clérigos.

Ou seja, passou a bola para o lado de quem se assume como católico, como que a dizer que todos os membros da Igreja devem entrar no jogo de sonhar e fazer a Igreja do futuro. E que, nesse jogo, não há nem espectadores nem suplentes.

Na verdade, com o desafio do Sínodo, Francisco foi mais longe: convida todos e cada um(a) a tomar a palavra, pessoalmente ou em pequeno grupo, o que já não é pouco, em comunidades que estão mais habituadas a esperar que o padre fale e diga o que é para fazer e até o modo de fazer.

Francisco quer mais dos crentes: espera que eles se exprimam mas, não menos importante, que eles escutem os outros, pondo especial atenção no protagonismo dos que andam mais arredados, dos que são postos ou se põem de lado, dos que andam menos envolvidos nas “coisas da Igreja”, que pensam, sentem e vivem de modos diferentes, e mesmo ‘fora da caixa’.

O Papa escolheu uma equipa para o acompanhar na animação deste projeto de quase três anos, que inclui bispos, padres e (poucos) leigos, homens e (poucas) mulheres, gente madura e (nenhuns) jovens neste inédito e desafiante empreendimento que começa por ouvir o ‘povo de Deus’. Ele e toda a equipa esperam não tanto que se redijam documentos muito bonitos e cheios de sugestões, mas que, com o sínodo, se comece já a experimentar o caminho sinodal, que se pretende que venha a ser o modo normal de ser Igreja.

Por conseguinte, o Sínodo sobre a sinodalidade, que terá um ponto culminante em Outubro de 2023 com a assembleia de bispos no Vaticano, não é tanto um acontecimento ou uma tarefa de que agora as comunidades, movimentos e paróquias estão incumbidas, para depois passar à frente e voltar tudo “ao normal”. É uma forma de experimentar um novo modo de viver a fé em Jesus Cristo, nas realidades do dia-a-dia, mais apoiado uns nos outros, sem deixar ninguém para trás e com a participação do maior número. É um processo que se inicia com o Sínodo, mas tem o futuro à sua frente. Isto, claro, se não se virar as costas ao desafio.

Austrália, Alemanha, América Latina: movimento imparável?

Em várias partes do mundo, o caminho sinodal já estava lançado, fruto de circunstâncias particulares. Na Austrália, por exemplo, a amplitude e o impacto dos abusos sexuais do clero foram tão violentos, que a Igreja Católica foi posta em causa e teve de se pôr ela mesma em causa. (…)

O caso da Alemanha, com o seu Caminho Sinodal, é diferente: ele nasce da confluência de uma série de problemas sentidos pela Igreja alemã internamente e na sua interação com as mudanças culturais e sociais no país, de que são exemplo as relações ecuménicas, as questões de género, o papel da mulher na sociedade e na Igreja e, naturalmente, os abusos sexuais do clero e o abandono da Igreja por parte de muitos fiéis. (…)

Com características bastante diversas e peculiares, mas muito em sintonia com o espírito do caminho sinodal convocado pelo Papa foi o processo e realização da Assembleia Eclesial da América Latina e das Caraíbas. (…)

Outras Igrejas, como a italiana e a irlandesa, encontram-se também em processos de preparação dos respetivos sínodos, procurando-se, em todos os casos, articulações entre as dinâmicas locais e regionais e a dinâmica mais vasta da Igreja universal.

E em Portugal?

Para quem segue de perto as atividades das diferentes dioceses portuguesas, o que se vê sobre o Sínodo de 2023 pode aparecer, para já, como pouco expressivo e entusiasmante – mesmo sabendo que muito do que acontece nesta fase de consulta e de auscultação se faz em pequenos grupos que não andam, propriamente, à procura de visibilidade mediática.

Ao percorrer os sítios de cada diocese na Internet, verificam-se situações bastante diversas. Vários deles nem sequer têm na página de abertura qualquer menção ao Sínodo, ainda que a diocese tenha criado uma página específica dedicada ao caminho sinodal. Em boa parte dos casos, esses sítios remetem fazem chamada para uma zona do sítio, que tem aquilo que poderia ser caraterizado como informação oficial. São raras as páginas diocesanas dedicadas ao processo sinodal que dão conta das movimentações, formações, produção e distribuição de cartazes ou desdobráveis, textos, documentos ou vídeos de reflexão.

Finalmente, uma parte cinge-se à nomeação do coordenador diocesano (um clérigo) e à cerimónia de abertura e, eventualmente, à inclusão de ligações para os documentos e sítios de referência no Vaticano. No total, haverá meia dúzia de dioceses em que a referência ao Sínodo na Internet exprime vida local.

Alguns pequenos sinais ilustrativos deste aparente lugar subalterno do Sínodo: nos sites, surge por vezes alguma referência ao Sínodo ao lado do plano de ação pastoral, como se fossem dois carris que não se encontram; continua-se, em algumas das dioceses, a usar a expressão “pré-sinodal”, como se a atual fase não fosse já a primeira etapa do Sínodo, aberta a todo o povo de Deus e cujo processo de consulta na fase diocesana decorre até Agosto deste ano de 2022; as mensagens natalícias dos bispos, nesta quadra, praticamente não ligaram o tempo litúrgico e festivo com a escuta sinodal das dioceses; por fim, na auscultação, feita pela agência Ecclesia, de vários jornalistas de meios de comunicação da Igreja sobre o que retiveram de relevante do ano de 2021 e o que esperam para o de 2022, nenhum sentiu o Sínodo com força bastante para merecer referência na revisão do ano findo (apenas uma jornalista se lhe referiu, mas no seu olhar prospetivo).

Ficam, da visita feita ao que se diz e mostra sobre o Sínodo (e que pode não corresponder ao esforço que, de facto se está a fazer no terreno), algumas interrogações para leitores eventualmente mais empenhados e inquietos em torno do desafio do Papa a toda a Igreja:

1. Sabendo-se que este Sínodo não pretende ser um acontecimento mas um processo e um caminho experiencial de longo fôlego, não seria necessário estar já a olhar para (e preparar) os tempos posteriores à fase de escuta?

2. Sendo a Igreja convidada a abrir as portas e entrar em diálogo com setores que lhe são tangenciais ou marginais, não será preciso pensar iniciativas mais abertas e menos convencionais, que criem espaço e motivação para esse encontro?

3. É razoável colocar questionários que pretendem alegadamente “ouvir todas as pessoas de boa vontade”, formulados em linguagem que nem a grande parte dos fiéis entende?

4. A pretexto de salvaguardar que um sínodo não é um congresso ou uma luta de grupos e argumentos para ver quem ganha, não se corre o risco de esvaziar a atenção aos sinais dos tempos, aos problemas dolorosos que enfrenta a sociedade e a Igreja, confundindo aquela preocupação com a salvaguarda da unidade?

5. Em sociedades cada vez mais crispadas e polarizadas, como podem os cristãos testemunhar a proximidade e o diálogo, especialmente dos que são marginalizados e deixados para trás?

Há, certamente, mais questões a enfrentar. Ficam para já estas perguntas.


POR UMA IGREJA SINODAL

Entusiasmados com o Processo Sinodal que o papa Francisco nos pede a todos, começamos já, na nossa paróquia de Esmoriz, a sensibilizar a cidade para ele, com a distribuição de um desdobrável que ‘explica’ o que pretende o papa Francisco e pede às pessoas que nos façam chegar as suas respostas. Esperemos que muitos se entusiasmem também, Continuaremos a chamar a atenção para este Processo Sinodal.

Aqui, no site, de modo breve, não deixaremos de oferecer alguns textos pertinentes. Hoje, começamos com um artigo a propósito de uma conferência muito interessante da teóloga espanhola Cristina Sanz.

Comecemos então por aqui.

Nunca na história os cristãos tiveram uma oportunidade como neste Sínodo

Manuel Pinto | 14 Dez 21 | in 7 MARGENS

“Estamos a jogar o futuro da Igreja. Pela primeira vez os leigos não são um preâmbulo, mas são protagonistas de um sínodo”. As palavras são da teóloga espanhola Cristina Inogés Sanz, membro da Comissão de Metodologia criada pelo Secretariado Geral do Sínodo dos Bispos, atualmente em curso. Foram proferidas nesta segunda-feira, 13 de dezembro, na terceira e última conferência organizada pela comunidade da Capela do Rato, de Lisboa, e que se realizou por teleconferência, devido à pandemia.

Cristina Inogés Sanz começou a sua conferência tecendo considerações sobre o momento da vida da Igreja em que o Sínodo ocorre. “A situação da Igreja é má”, começou por observar, aludindo ao impacto dos abusos de poder nas comunidades católicas em diferentes partes do mundo. Abusos que, esclareceu, “são de natureza psicológica, espiritual, laboral e sexual”. Tudo isto adquire uma visibilidade acrescida pelo facto de, com os media, “estarmos a ver tudo em direto”.

A oradora aludiu, por outro lado, ao clima de “secularismo” que carateriza as sociedades atuais e que, a seu ver “impregna até setores da própria Igreja”, tendo chamado a atenção para a necessidade de tomarmos consciência daquilo que se está a passar, dado que “se não se fizer o diagnóstico, não se pode fazer nada”.

“O grande desafio que temos pela frente, frisou Cristina Inogés Sanz, não é ter outra Igreja, é aprender a ser Igreja de outra maneira”, sendo este um assunto não apenas de alguns, mas de todos e de cada um dos cristãos.

Aprender a comunicar

Na intervenção, a conferencista enunciou alguns desafios que se colocam a este processo sinodal, tendo referido, em primeiro lugar, a necessidade de aprender a comunicar – que “é diferente de informar”, observou.

“Como estamos a comunicar este Sínodo? Como estamos a ser capazes de contagiar?”. É fundamental atuar no sentido de fazer chegar a todos os cantos a notícia de que o Papa Francisco gostaria de ouvir todos os que queiram dizer algo sobre a Igreja. Para isso, os seus membros precisam de estar disponíveis para os “escutar de uma forma ativa”, isto é, serem “capazes de se colocar no lugar e na perspetiva do interlocutor”.

Contudo, para isso, disse a oradora, os crentes precisam de “cuidar da linguagem” que usam, para serem “entendidos por todos”

Outro desafio consiste em recuperar um diálogo efetivo, que, segundo ela, foi perdido, com âmbitos da sociedade como o trabalho, a empresa, a academia, a economia, entre outros. Neste terreno seria necessário assumir esta pergunta: “Igreja, o que estás disposta a escutar sobre ti mesma?”.

Um terceiro desafio passa pela renovação teológica, para que não se continue com um quadro de referência pensado para um mundo que já não existe e que muda de forma veloz. “A fidelidade ao evangelho não consiste em repetir o que vem de há séculos” mas em criar processos e ferramentas que permitam “encontrar as categorias culturais” que possibilitem o diálogo com as linguagens e as pessoas do mundo de hoje.

A comunhão na diversidade

A aceitação da diversidade na Igreja é outro repto lançado neste processo sinodal da Igreja Católica. Para a teóloga, os católicos estão habituados a uma cultura da uniformidade, confundindo-a com unidade, quando a diversidade, que decorre da diferença de contextos e de experiências, não tem de pôr em causa a comunhão. Exemplificou com a questão dos ministérios, que podem ser diversos de uma comunidade para outra.

Neste âmbito, alertou para a pluralidade de situações – os pobres, a diversidade sexual, os problemas das crianças e jovens, das mulheres, dos divorciados que voltaram a casar, dos padres que deixaram o ministério… tudo situações e pessoas para as quais o Sínodo constitui “uma oportunidade” de aproximação, no atual processo de escuta.

Finalmente, o quinto desafio seria a redescoberta da importância do batismo e de se ser batizado, na vida da Igreja, com tudo o que isso implica de pertença, identidade e participação.

Cristina Inogés Sanz incentivou todos à participação, a fazê-lo com liberdade e sem medo, dizendo que as perguntas que figuram nos documentos preparatórios são abertas e não devem limitar ninguém a manifestar-se. Pediu que os grupos ou pessoas individualmente façam chegar os contributos às coordenações diocesanas, abrindo a possibilidade de que tais contributos possam ser enviados diretamente ao secretariado-geral do Sínodo em Roma, caso se veja necessidade desse recurso.

À questão de que os bispos poderão deixar pelo caminho o que foi proposto na base, visto que tomarão as decisões finais a entregar ao Papa, a conferencista respondeu que, tal como referiu o cardeal Mario Grech, em 9 de outubro deste ano, Francisco tem o poder de fazer esse documento final regressar à base, ou seja, ao “Povo de Deus”.

O Sínodo, se é vida, não tem prazo para terminar

Um aspeto importante que realçou a convidada da Capela do Rato foi que o Sínodo, em qualquer das suas fases, não termina nas datas dos calendários pré-fixados, com a eventual produção de um documento. Isso porque o Sínodo “é vida”, ou seja, é um modo próprio de viver a experiencia cristã e esse vai continuar, em aprendizagem permanente.

Uma inquietação que manifestou relativamente ao desencadear dos trabalhos sinodais na atual fase local foi a que se refere aos seminários: ainda que falando a partir da realidade que lhe é mais próxima, disse-se preocupada se os futuros padres não se envolverem a fundo na experiência do Sínodo, dado que este é um ponto decisivo para o futuro da Igreja sinodal.

Já no período em que os mais de 300 participantes na conferência puderam fazer perguntas, a teóloga respondeu, à dúvida sobre o que quer o Papa com este Sínodo, que Francisco quer “recuperar a eclesiologia do Povo de Deus”, aberta pelo Concílio Vaticano II, e que, de algum modo, ficou a hibernar nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Além disso, quer “deixar a porta aberta para que todos lhe digamos porque é que há tantos cristãos que aparentam não serem felizes na Igreja”, na esteira de uma frase dele, de há anos, segundo a qual, seguindo o Ressuscitado, não se pode haver “cristãos de caras avinagradas”, azedos e tristonhos.

Por fim, deixou esta mensagem: é tão forte a dinâmica que foi já lançada em todo o mundo que, acredita ela, “não existe força humana capaz de pôr em marcha um Sínodo como este, senão a força do Espírito Santo”.


POR UMA IGREJA SINODAL

 

Teóloga do Sínodo em Lisboa:

“Seminários e paróquias têm de mudar”

Em primeiro lugar, muito se tem falado da necessidade do Sínodo chegar às pessoas que já desapareceram [da Igreja] e que nem sequer nos demos conta de que desapareceram. Como podemos chegar agora a esta gente?

Esta situação acontece, porque normalmente temos uma ideia do Povo de Deus muito enraizada e damos por certo que algumas pessoas são povo de Deus sem nos perguntarmos nada. Por outro lado, há outras pessoas que, sendo povo de Deus, consideramo-las menos depois de terem desaparecido. Esta é a realidade que devemos mudar, mas é difícil sim, porque o problema radica-se em que devemos aproximar-nos delas, pensando bem como o devemos fazer. É necessário integrá-las positivamente, dizer-lhes que não se sintam marcadas. Não podemos estar constantemente a falar de afastados, porque o conceito de afastamento, por um lado é muito rígido, e por outro também pode ser elástico, porque as causas do afastamento podem ser muitas.

Se englobarmos o mundo inteiro como afastados, na realidade pode haver pessoas afastadas por mais de cem mil motivos e essas pessoas não se podem sentir etiquetadas, como parte de um pacote simplesmente. São pessoas com situações e realidades normalmente dolorosas, porque o seu afastamento foi produzido por causas que as fizeram sofrer. E se formos capazes de falar desse povo de Deus, dessa parte do povo de Deus pela positiva, é uma forma de lhes dar a entender que são convidados para que venham dizer-nos porque se marginalizaram e como lhes fizemos mal ou o que não lhes fizemos. Na verdade, muitas vezes não se trata de fazer, mas também de não fazer. Então, eles podem-nos ensinar como corrigir os nossos erros.

Temos de ser nós a dar o primeiro passo, e até assumir que possa haver responsabilidades inclusivamente por parte da igreja por exemplo.
Sim, sem dúvida, temos que assumir a nossa responsabilidade, isto não se pode negar. Temos que ser corresponsáveis por todos, quero dizer, se falarmos de uma igreja-comunhão somos comunhão para o bem e também somos comunhão para assumir o mal, e por isso, somos corresponsáveis de tudo. Isto não significa que todos os membros da igreja se tenham comportado mal, mas se somos responsáveis e corresponsáveis devemos aproximar-nos dessas pessoas, sobretudo com uma sensibilidade especial e com uma forma de encanto para os não ferirmos ainda mais porque, ao agirmos com eles, estes acreditam que vamos pedir-lhes explicações por nos terem virado as costas… não deve ser assim. O que queremos saber é o que lhes fizemos para terem desaparecido.

Há aqui uma questão de metodologia neste sínodo, que visa uma descentralização, ou seja, começa pelas dioceses e têm de encontrar um canal de comunicação. Vai haver comunicação entre as dioceses e a Secretaria do Sínodo?

Sim, é um desafio, mas realmente é algo que a estrutura deste sínodo mudou muito, por isso o que compete a cada diocese já foi previsto. É verdade que, localmente, há umas equipas que vão ser os que organizam e um pouco coordenam a celebração do Sínodo. Estas equipas vão trabalhar, enviando todos os materiais que se recolheram à conferência episcopal, mas também vão ser enviados diretamente à Secretaria do Sínodo, e isto é uma novidade tremenda, porque quer dizer que há uma relação direta não só entre as dioceses e a conferência episcopal de cada país, coisa muito normal a ver bem as coisas, mas que cada diocese tenha acesso direto à Secretaria geral do sínodo. Esta, sim, é uma grande novidade.

Poderá haver dúvidas, de como posso ir falar com pessoas que não vêm ter comigo ou que nem querem falar comigo? Mas mesmo assim, sou eu que tenho de ir ter com elas… Irão dar sugestões?
Vejamos, a realidade de cada diocese é muito peculiar… Nem os membros da comissão nem a Secretaria do Sínodo terão respostas para tudo. Mas nem se devem dizer “aí está o vademécum” como se isso fosse um dicionário para encontrar a solução. Em todo o caso, sugestões sempre se podem dar.

A comissão metodológica tem uma particularidade: não tem nenhum bispo e vemos que em todas as comissões há presença significativa de leigos e de mulheres, se compararmos com os sínodos anteriores… isto é um sinal também para toda a Igreja?

Na comissão metodológica somos nove membros. Dos nove, somos seis leigos e praticamente somos metade homens e metade mulheres. Não creio que aqui se tenha buscado um número casual, de quota, mas não deixa de ser um sinal de que há uma realidade vital na igreja com que se está a contar. Sobretudo, é um pouco de coerência para viver ou para iniciar a viver o caminho sinodal no qual já embarcámos. Creio que é uma mensagem que se lança.

Crê que haverá uma solução em que todos os participantes se possam sentir representados no documento final?

São passos que se vão dando, porque a estrutura deste sínodo nada tem que ver com a estrutura do sínodo da família, para dar um exemplo… pouco a pouco, temos que ser conscientes de que estamos primeiro num sínodo de bispos e não se pode desmontar o que é a essência de um sínodo de bispos. No entanto, o facto de que se possa trabalhar por fases, e sobretudo que na primeira fase inclua todo o povo de Deus e uma amplíssima base laical, que esteja aí representada e que tenha opção para falar, sugerir e questionar, é importante.
Então quando isso passar para as conferências episcopais e assim que passar a fase continental, que será uma parte muito interessante do sínodo, porque não estamos acostumados a ver a igreja por continentes, vamos ver o conjunto dos continentes e isso vai-nos dar uma perspetiva muito diferente, porque por exemplo a Igreja da Austrália dela não temos muitas notícias, mas é uma realidade assombrosa, o que está a fazer essa Igreja vai-se ver.

E muito se fala sobre o Sínodo de 2023, quem poderá votar…
Sobre o que será a sala sinodal, também veremos como e quantos poderão participar nesta fase que se vai realizando. Quanto à questão dos votos, no final temos que pensar que, se todo o processo sinodal é vivido em chave de discernimento, algo vai ter de mudar. O importante é sobretudo que acabe esta fase, pois é a primeira vez que a base do povo de Deus participa durante tanto tempo. Estamos a sair da pandemia, mas se mantivemos este espírito sinodal vivo, de uma maneira fresca e direta e a comunicar como se deve comunicar com transparência, creio que podemos conseguir algum resultado, pois, quem nos dirige é o Espírito e nunca se sabe donde sai ou por onde vai, algo que é surpreendente.

Falou em apoio para as dioceses que têm dificuldades em implementar um processo metodológico, mas o que fazer com as dioceses que não demonstrem interesse em fazer este trabalho sinodal?
Nem a secretaria nem nós mesmos podem meter-se onde não a chamam literalmente, vamos dizer assim. Imagino que em todos os países haverá dioceses que mostrarão muitíssimo interesse e dioceses que serão absolutamente indiferentes, tudo bem, aí nós não podemos meter-nos nas questões de cada diocese, nem nelas podemos entrar! Nós só podemos ajudar, mas não podemos meter-nos a dizer o que devem fazer, perguntar-lhes não é a nossa missão.

Mas o que lhe poderíamos dizer?

Eu creio que seria interessante animá-las para que entendam que estamos num momento crucial porque a situação da igreja é o que é e não é boa. Temos que ser sinceros, o primeiro passo para resolver um problema é reconhecer que o problema existe. Então temos um problema de uma estrutura rígida, vertical, clericalizada ao máximo, não só por parte do clero, mas também por uma parte do laicado que não soube viver doutra maneira e que reproduziu as formas que recebeu e isso é uma evidência, que nos levou à situação que temos.

Então devemos ser conscientes de que não se deve pensar numa Igreja nova, porque não se trata de fazer isso, mas todos juntos aprendermos a ser igreja de outra maneira, leigos e hierarquia. Se todos apagarmos o nosso ego e deixarmos realmente que a palavra surja e que o Espírito atue, teremos muito a ganhar por sermos uma igreja sinodal; reconhecendo que há estruturas que necessitarão reconduzir-se sinodalmente, se se puderem reconduzir; outras haverá que não se poderão reaver e terão que cair porque não caberão nessa estrutura sinodal e aparecerão outras que serão mais sinodais. Se queremos que o processo sinodal arranque e continue, porque este processo sinodal realmente não se vai esgotar, as primeiras estruturas que há que cuidar e mudar são os seminários e as paróquias, porque estão na origem de tudo. Se isso não se muda, será muito difícil seguir adiante.

A reportagem da abertura do Sínodo dos Bispos em Roma é fruto de uma parceria estabelecida entre a Família Cristã, a Agência Ecclesia, o Diário do Minho e a Associação de Imprensa Cristã.

Entrevista: Ricardo Perna e Octávio Carmo