XV DOMINGO COMUM/A 

Orações


Saudação e monição inicial
Jesus Cristo, o semeador que semeia nos nossos corações a Palavra que salva e nos dá a comer o Pão da vida, esteja convosco.

Estamos aqui porque respondemos ao convite que o Senhor nos faz, cada Domingo, para participarmos no banquete da sua Páscoa. E Ele acolhe-nos e senta-nos à Mesa da Palavra e à Mesa da Eucaristia; entrega-Se a nós na Palavra que salva e no Pão que dá a vida eterna.
De facto, as nossas celebrações dominicais estão estruturadas por uma Palavra que vem fecundar e alimentar a nossa vida, como dirá o profeta. Mas nós não nos limitamos a escutar, a comer, a Palavra, comemos realmente a Palavra de Deus feita carne, em Jesus. Verdadeiramente, há uma profunda articulação – uma não pode separar-se da outra – entre a proclamação das leituras bíblicas e o gesto eucarístico pelo qual o Pão da vida é recebido, abençoado, consagrado, partido e comido. Por isso, não se trata de ler umas leituras, mas de comer a Palavra, nem de assistir à missa, mas comer o Corpo de Cristo. Participamos na celebração.
Para que os nossos corações se abram como terra boa e preparada para escutar as palavras de Jesus e comer o seu corpo, voltemo-nos para Ele e invoquemos a graça transformadora da sua misericórdia:


XIV DOMINGO COMUM/A

Orações


Saudação e monição inicial
A ternura e bondade de Jesus, manso e humilde de coração, e descanso para as nossas almas, estejam convosco.

Começo com uma história contada por D. António Couto a propósito da Palavra de Deus deste Domingo.
Havia uma mulher pobre que andava sempre com uma Bíblia grande debaixo do braço. Dizem que nunca se separava dela. As pessoas que a viam passar todos os dias faziam chacota dela: ‘Porquê sempre a Bíblia, se há tantos livros para ler?’ mas a mulher seguia o seu caminho, imperturbável e indiferente às provocações. Um dia porém, a mulher da Bíblia viu-se cercada por um bando de escarnecedores. Então, levantando bem alto a sua Bíblia e abrindo um grande sorriso, disse: ‘Eu bem sei que há muitos outros livros que posso ler! Mas este, a Bíblia, é o único livro que me lê a mim».
É para isso que estamos aqui hoje e todos os domingos: para nos deixarmos ler pela Palavra e amor de Deus e encontrarmos nela, isto é, em Jesus, o descanso para os nossos dias de cansaço, de desânimo, de sofrimento, como escutaremos no evangelho.


XIII DOMINGO COMUM/A

Homilia


Provavelmente esquecemo-lo, até porque nos dá um jeito grande, mas seguir Cristo – ser cristão – implica desprendimentos, renúncias, lutas, oposições, conflitos. Aderir a Cristo implica a necessidade de fazer opções decisivas, e certamente nada fáceis. E Jesus não facilita as coisas, não é um vendedor de banha da cobra barata. Jesus é exigente. É mesmo excessivo. Podemos mesmo dizer que as suas pretensões são totalitárias. Quer tudo e quer-nos todos. Não admite meias tintas nem soluções de compromisso. Um Cristianismo em saldos ou a baixo preço, em promoção, e uma fidelidade que seja a pensar em favores e privilégios, tem muito pouco a ver com Cristo. Para não dizer que não tem nada a ver com Cristo.
Ou seja, primeiro, Cristo tira-nos o chão de debaixo dos pés. E depois tem a lata de nos convidar a segui-l’O. A fé é uma questão de confiança e Ele é que é o Caminho. Mas não tenhamos medo, como Ele nos dizia no passado Domingo.
Mas há outra dimensão importante na passagem deste Domingo. O chamado discurso missionário que começa por nos dizer que somos enviados como cordeiros para o meio de lobos, vai terminar com um refrescante ‘copo de água’. Termina em chave convivial: atenua um pouco a dureza das palavras de Cristo e introduz uma nota clara de humanidade. Introduz a questão do acolhimento. Mas também o acolhimento proposto por Cristo tem que se lhe diga. Cito D. António Couto: “Acolher os Doze, os discípulos de Jesus, os missionários e evangelizadores de todos os tempos, não consiste apenas em recebê-los educadamente em casa. Consiste também, e sobretudo, em expor-se (eu gosto muito desta palavra!) ao anúncio que trazem, ao testemunho que dão. Não consiste apenas em abrir-lhes as portas da casa. Tem muito mais a ver com abrir o coração à mensagem de que são portadores, sabendo e vendo bem que por detrás deles está Jesus que os enviou”. E D. António Couto acrescenta: “Acolher os anunciadores, os mensageiros, os profetas, não é fácil, porque o anúncio de que são portadores provoca divisão, requer uma nova postura pró ou contra Cristo, uma escolha que não admite compromissos ou soluções retóricas, divide a humanidade, a família, o coração de cada um.”
E para terminar um pouco de insensatez, como diria Paulo, aproveitando esta questão do acolhimento dos enviados. É verdade que todos somos missionários e enviados. Mas, na Igreja toda, o primeiro enviado é o papa Francisco, na diocese, o bispo, e na paróquia, o pároco. Fico por mim. E consciente da minha imperfeição, mas também do meu amor fiel e dedicado à paróquia que me está confiada neste momento, pergunto: quando olhamos, falamos, dizemos mal do pároco ou criticamos sem saber do que falamos, lembramo-nos que ele é enviado por Cristo e que está à frente da paróquia em nome de Cristo? Somos humildes para acolher o anúncio do Evangelho que ele, o pároco, tem a missão de fazer? Acreditamos nele? Confiamos nele?


XII DOMINGO COMUM/A

Homilia


Não tenhais medo de nada nem de ninguém. Temei, sim, a Deus, diz Jesus.
Sim, temos de temer a Deus, mas não porque Ele nos ameace e castigue e seja vingativo e mau. Aliás, vale a pena dizer que quando alguém tem medo de Deus por causa de Ele nos poder mandar para o inferno – como infelizmente ouvimos vezes demais – nós é que já perdemos Deus, nós é que já nos separámos d’Ele, porque perdemos o sentido verdadeiro e feliz da nossa relação com Ele, de amor que só pode ser uma relação e de confiança. Deus é amor, não é terror. Deus salva-nos porque nos ama, não porque aterroriza. Se até se preocupa com os passarinhos e com um só dos nossos cabelos, como não havia de se preocupar connosco!
Sim, temos de temer a Deus, como diz Jesus, mas em que sentido?
Temos de ‘temer a Deus’ (o Temor de Deus é um dos sete dons do Espírito Santo) porque Ele nos confia uma missão que nos expõe a todos os riscos, que nos põe em estado permanente de conflito interior, e em conflito com os outros, como testemunhava Jeremias e testemunha João Baptista ou o próprio Paulo. Para não falarmos do próprio Jesus. Nenhum deles, como nenhum sato, teve uma vida sossegada.
Temos de temer a Deus que nos diz para não termos medo, mas que, ao mesmo tempo, nos atira para situações que metem medo, que não são nada tranquilizadoras. Pensemos na resposta à vocação sacerdotal ou matrimonial. Mas veja-se, neste tempo concreto que estamos a viver na Igreja, a questão da sinodalidade, da renovação da Igreja, das mudanças que precisamos de fazer. E nós, cheios de medo (mas sem o Temor de Deus), porque isso implica conversão, mudança, desinstalação, fazer coisas novas, ou fazer as coisas de forma renovada, agarramo-nos ao já feito, ao já visto, ao já andado. Porque deixar as coisas como estão, limitar-se a repetir, nos deixa tranquilos. (Atrevo-me a sugerir a leitura de um artigo saído no jornal digital 7 Margens e que sairá quase todo no próximo jornal A Voz de Esmoriz.)
Mas pensemos ainda nos servidores de que a paróquia precisa: leitores, catequistas, cantores, visitadores de doentes… Quantas vezes por medo, não ousamos arriscar avançar e desistimos, porque não temos tempo, não temos preparação, não temos qualidades…
Não tenhais medo de nada nem de ninguém. Temei, sim, a Deus, diz Jesus. Quer dizer, confiai em Deus, acolhei a missão que Ele vos confia…
E onde podemos ir buscar a razão para não termos medo, e temermos a Deus no sentido do Evangelho, uma vez que Deus se abstém de intervir milagrosamente para evitar as nossas dificuldades, incompreensões e conflitos? Àquela frase ‘não se vendem dois passarinhos, até os cabelos da vossa cabeça…’, que poderia traduzir-se assim: Não acontece nada na vossa vida sem que o Pai esteja implicado. Deus está ainda mais implicado, empenhado na nossa vida do que nós próprios. Como diz uma mística: ‘A mim compete-me pensar em Deus; pensar em mim é assunto d’Ele’.
Ou seja – e é esse o testemunho de Jeremias, de João Baptista, de Paulo e de todos os santos e santas – a confiança, a tranquilidade, a coragem do apóstolo perseguido, objecto de oposições tantas vezes furiosas e maldosas, funda-se na certeza de que Deus está implicado, de que Deus tem que ver com as nossas dificuldades, com os conflitos que encontramos por causa do Evangelho. Por causa do Evangelho, sublinho. Infelizmente, a maior parte dos nossos conflitos não é por causa do Evangelho.
Claro que nós preferíamos um Deus que fosse como que um escudo protector, um pára-raios, um refúgio blindado ou uma almofada que amortecesse os golpes, para não ferir e rasgar a pele. Mas não é esse o Deus de Jesus Cristo. Deus está connosco, mas desde dentro, encaixa todos os golpes que nos atingem, mas desde dentro. Nós preferíamos uma fé que fosse uma espécie de impermeável. Mas a fé expõe-nos ‘ao sol, em carne viva’, como diz o poeta e mostra o profeta.
João Baptista, ensina-nos a não ter medo, a ter coragem para seguirmos e sermos fiéis ao caminho do Evangelho, a sermos humildes como tu, para nos deixarmos transformar e assim transformarmos a Igreja e o Mundo, cumprindo as nossa missão de preparar o caminho sinodal para acolher o Salvador. Ámen.


SANTÍSSIMA TRINDADE

Homilia


Passado o Tempo Pascal, neste Domingo depois do Pentecostes, a Solenidade da Santíssima Trindade leva-nos – quer levar-nos (essa é a ‘missão’ da liturgia: levar-nos pela mão para dentro do Mistério de Deus) – ao encontro do amor do Pai, revelado no dom da vida do Filho e derramado em nós pelo Espírito Santo que nos faz acreditar no nome do Filho Unigénito de Deus.
Temos de ter isto muito claro: o Deus em quem acreditamos não é uma vaga energia que anda nos ares, nem uma força do Universo sem rosto e sem nome, nem uma ideia ou uma doutrina ou um código moral. O nosso Deus é relação, e relação de amor e de vida, de unidade e de comunhão, na diversidade, nas diferenças.
E a Igreja tem de ser – só pode ser, se quiser ser Igreja de Cristo – uma imagem da Trindade que é Deus. O que é que isto pode e deve significar, sempre, mais ainda mais neste caminho sinodal? Como é que a Igreja é ícone da Trindade?
Algumas frases para reflexão:
A comunidade – a paróquia – não pode contentar-se com ser… comunidade. Tem de chegar à comunhão. Quer dizer, a comunidade – a paróquia – não é uma mera justaposição de pessoas que vivem umas ao lado das outras, que se sentam e celebram umas ao lado das outras. Não é uma mera justaposição de serviços que se vão sucedendo – hoje é a minha vez, amanhã a tua, eu faço isto, tu fazes aquilo – mas que não estabelecem, não criam nem constroem relações profundas entre si. Serviços que existem e funcionam, mas sem que haja entre eles – entre as pessoas – uma harmonia verdadeira e autêntica, que é uma coisa que vai – que deve ir – muito mais longe do que o tratamento formal. Veja-se, por exemplo, a dificuldade de tantas e tantos de estar naqueles momentos mais informais, que vão para além das missas e celebrações.
No entanto, quando se fala de comunhão e de unidade, isso não tem nada a ver com uniformidade ou unanimidade. Tem a ver apenas e só com viver o amor na diversidade, como Deus que é Pai, Filho e Espírito, sem mistura nem confusão. Uma comunidade ‘funciona’ não quando se multiplicam e funcionam as actividades, quando funciona a organização – eu, como pároco, não quero cair nessa armadilha, e o Calendário Pastoral não tem esse objectivo –, mas quando existe e é visível a comunhão real entre as pessoas. Uma comunidade progride, cresce, quando cresce a fraternidade, quando a fraternidade – que não é a mesma coisa de sermos todos amigos e concordarmos em tudo – se converte no sinal – no sacramento – do amor do Pai, revelado pelo Filho e derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo. Vendo como nos amamos, quer dizer, como procuramos ser fiéis ao Evangelho do amor de Jesus, o mundo, a cidade, deve poder entender que Deus é amor e torna as pessoas capazes de amar e de construir a Casa Comum da fraternidade, da paz e da justiça.
O papa Francisco disse isto muito melhor do que eu na homilia do Pentecostes, no passado Domingo. Cito estas frases:
“Além da criação, vemos o Espírito agir igualmente na Igreja, a partir do dia de Pentecostes. Notemos, porém, que o Espírito não dá início à Igreja propondo instruções e normas à comunidade, mas descendo sobre cada um dos Apóstolos: cada um deles recebe graças particulares e carismas diversos. Toda esta pluralidade de dons diferentes poderia gerar confusão, mas o Espírito, como sucedeu na criação, gosta de criar harmonia precisamente a partir da pluralidade.
E o Sínodo em curso é – e deve ser – um caminho segundo o Espírito: não um parlamento para reclamar direitos e exigências à maneira das agendas de trabalho no mundo, nem ocasião de se deixar levar ao sabor de qualquer vento. Mas o Sínodo é uma oportunidade para ser dóceis ao sopro do Espírito. Coloquemos de novo o Espírito Santo no centro da Igreja; caso contrário, o nosso coração não arderá de amor por Jesus, mas por nós mesmos. Ponhamos o Espírito no início e no coração dos trabalhos sinodais. Pois «é sobretudo d’Ele que a Igreja tem, hoje, necessidade! Sim, para Se mostrar ao mundo, Ele escolheu o momento e o lugar em que todos estavam juntos. Portanto o Povo de Deus, para estar cheio do Espírito, deve caminhar em conjunto, fazer sínodo. Assim se renova a harmonia na Igreja: caminhar juntos, tendo no centro o Espírito. Irmãos e irmãs, construamos harmonia na Igreja!”
E eu digo: que assim seja!


ASCENSÃO

Homilia


Depois de uma vida gasta ao serviço do Reino de Deus, Jesus regressou ao Pai, mas deixou aos seus discípulos de todos os tempos e lugares e condições a missão de anunciar esse Reino e de o tornar uma proposta capaz de renovar e de transformar o mundo.
Estou consciente de que a Igreja – a comunidade dos discípulos de Jesus a que eu também pertenço – é, hoje, a presença libertadora e salvadora de Jesus no meio de todos os homens e mulheres? E como é que eu procuro testemunhar esse Reino na minha vida de todos os dias – em casa, no trabalho ao na escola, na paróquia?

A missão que Jesus confiou aos seus discípulos de todos os tempos e lugares e condições é uma missão universal, é para todas e todos.
Tenho consciência de que sou responsável pela vida e pela felicidade e pela liberdade de todos os meus irmãos e irmãs, mesmo que habitem no outro lado do mundo, mesmo que seja o simples gesto de fechar a torneira da água ou limitar o lixo que faço?

Tornar-se discípulo – ser cristão – é, em primeiro lugar, aprender os ensinamentos de Jesus, a partir das suas palavras, dos seus gestos, da sua vida oferecida por amor.
Preocupo-me em conhecer bem os ensinamentos de Jesus? Quer dizer, sei – acredito – que a Fé, o Evangelho, é Jesus, e portanto um encontro de amor, e não um manual de doutrina ou um conjunto de ritos?

No dia em que fui baptizado – mesmo que tenham sido em bebé e tenham sido os meus pais a pedir esse sacramento – comprometi-me com Jesus e vinculei-me com a comunidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, a comunidade dos discípulos, a Igreja. A minha vida tem sido coerente com esse compromisso? Estou disponível para fazer caminho com todos os irmãos e irmãs, construindo a Igreja sinodal, fazendo crescer a paróquia na comunhão, participando na vida da paróquia, e cumprindo assim a missão confiada por Jesus?

É um tremendo desafio, este de testemunhar hoje o Reino, de ser hoje discípulo de Jesus. E temos apenas esta promessa: “Eu estou sempre convosco até ao fim dos dias.”
Manda, Senhor, o teu Espírito e renova-nos, para renovarmos a Igreja e o Mundo. Aleluia!


6º DOMINGO DE PÁSCOA

Homilia


“Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos”, dizia Jesus aos seus discípulos, na Última Ceia, e diz-nos a nós, hoje, aqui reunidos para fazer o que Ele nos mandou: “Fazei isto em memória de Mim.”
A Igreja, a comunidade dos seus discípulos de todos os tempos e lugares, só pode ser uma Igreja do amor.
Começo por recordar umas palavras do professor Juan Ambrosio, na passada segunda-feira, na aula da Escola Vicarial, citando um seu antigo professor. Dizia ele que a democracia não serve para a Igreja. Porquê? Porque peca por defeito. A democracia é pouco para a Igreja. A Igreja tem de ir muito mais além e mais longe do que a democracia, tem de ser sinodal. Tem de ser uma Igreja do amor. Na Igreja não estamos uns contra os outros, a competir uns com os outros, não é uma questão de maiorias ou minorias, mas de amor, de amor fraterno. Na Igreja, somos todos irmãos e irmãs, somos todos chamados a deixar-nos habitar pelo Ressuscitado e pelo Espírito que o Pai nos enviou, para levarmos o Evangelho, quer dizer, para levar Cristo, a todas e a todos. Como? Amando. “Se Me amardes, guardareis os meus mandamentos.”
Cristo não diz: se fordes fortes e inteligentes; se fordes obedientes; muito menos diz: se não quereis ir para o inferno. Diz simplesmente: Se Me amardes…
No seu discurso de despedida – no momento mais solene e dramático da sua vida, já com a morte diante de si – Jesus não nos deixa uma doutrina, um código moral de bom comportamento, um manual de instruções, uma constituição para a Igreja. Deixa-nos um desejo, um único desejo, um sonho: que amemos. Se aprendemos a amar, aprendemos o fundamental.
E isso é ser Igreja sinodal. É caminhar juntos, todos juntos, atrás do Ressuscitado, para aprender a amar como Ele.
A Igreja é Igreja de Cristo, não quando é o lugar da obediência à autoridade, porque sim; da disciplina porque tem de ser; da organização perfeitamente funcional e formal, mas que não faz Igreja.
É como se Jesus dissesse: Se não fordes a Igreja do amor, nem sequer sereis Igreja; Se Me amardes, não Me envergonharei de vós; Se Me amardes, a minha Missão pode considerar-se cumprida.
Bem diz o teólogo: ‘Para os primeiros crentes, o cristianismo não era propriamente uma religião, mas uma nova maneira de viver.’
A sinodalidade é viver do amor de Jesus e guardar os seus mandamentos, isto é, testemunhar o seu amor. Ámen. Aleluia.


5º DOMINGO DE PÁSCOA

Homilia


Cristão é um homem ou uma mulher que, em Jesus, vai descobrindo o caminho mais acertado para viver, a verdade mais segura para orientar-se, o segredo mais capaz de dar a vida. É isso que Jesus diz ao afirmar, como ouvimos: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” E Jesus é Aquele – é o único – com quem e por quem nós caminhamos para o Pai e que nos dá, desde já, agora, a vida que Ele partilha com o Pai, a mesma vida que Ele partilha com o Pai.
Se acreditamos nisto, vamos ter um problema: Jesus, como dizia a segunda leitura, é ‘a pedra angular, viva, escolhida e preciosa, mas rejeitada’. Ou seja, só seremos cristãos, discípulos de Cristo, testemunhas do Ressuscitado, se estivermos dispostos a ser rejeitados, como Cristo. e seremos rejeitados, apenas e só, se vivemos como Cristo.
Quer dizer, muito para além dos serviços a que estamos destinados e que fazemos; muito para além da multiplicidade das funções que executamos, todos os crentes participamos numa tarefa comum: a construção da Igreja, da Igreja de Cristo e não da minha; da Igreja sinodal e não da Igreja individual da ‘minha missa’, do ‘meu Baptismo’, do ‘meu casamento’; da Igreja do serviço e não duma estação de serviços; duma Igreja de comunhão, de participação e de missão, e não de divisão em grupos, de assistência maldizente, de consumismo individual e beato; uma Igreja do nós e não do eu; uma Igreja da decisão, da opção e não da submissão, como dizia, por estes dias, um professor sobre o discernimento em contexto sinodal.
E para a construção desta Igreja, como pedras vivas, cada um traz o material necessário: a própria pessoa, com a riqueza do amor, o poder do amor, a liberdade do amor, como dizia o mesmo professor: a pobreza, a humildade e o serviço. Nada mais faz falta mais para a construção da Igreja da qual Cristo é a pedra viva e angular. Se trabalharmos com essas atitudes, o mais provável é sermos rejeitados, apontados, desacreditados. Por exemplo:
Quando a nossa pedra não entra nas medidas estandardizadas do conformismo; quando não aceitamos as regras do êxito, da afirmação pessoal, da hipocrisia, da fachada e da máscara; quando nos obstinamos em ser pedras vivas que pensam, escutam e falam, e não pedras que parecem mortas, mas têm uma língua bem viva e venenosa; quando participamos e não somos pedras inertes e indiferentes, quando não somos pedras quadradas que se recusam a ser trabalhadas; quando não somos pedras meramente decorativas, só para fazer de conta.
Cristão é um homem ou uma mulher que, em Jesus, vai descobrindo o caminho mais acertado para viver, a verdade mais segura para orientar-se, o segredo mais capaz de dar a vida.
O que nos falta a nós é o que faltava já a Filipe: o conhecimento profundo do Mestre. Sendo que, conhecer, na Bíblia, não é saber umas coisas sobre Jesus, não é ter umas opiniões sobre a religião, não é ter umas visões e bons sentimentos, mas sim acolher Cristo no coração, deixar-se habitar e transformar por Cristo e pelo Espírito do Ressuscitado. É viver uma relação de intimidade e ter as mesmas atitudes e os mesmos sentimentos de Cristo. Aleluia!


IV DOMINGO DE PÁSCOA/A

Homilia


Neste 4º Domingo de Páscoa, Domingo do Bom Pastor e Dia Mundial das Vocações, vale a pena sublinhar a dimensão sinodal desta imagem com raízes bíblicas tão antigas e fundas: há o Pastor, Jesus Cristo, atrás do qual caminha o rebanho. Caminhar todos juntos atrás de Jesus, para testemunhar a Boa Nova: eis a sinodalidade. Comunhão, participação e missão são as atitudes decisivas e fundamentais.
Duas citações da Mensagem do papa Francisco para este Dia Mundial das Vocações:
“A missão comum a todos nós, cristãos, é testemunhar com alegria, em cada situação, por atitudes e palavras, aquilo que experimentamos estando com Jesus e na sua comunidade, que é a Igreja. (…)
Esta ação missionária não nasce simplesmente das nossas capacidades, intenções ou projetos, nem da nossa vontade nem mesmo do nosso esforço de praticar as virtudes, mas duma profunda experiência com Jesus. Só assim podemos tornar-nos testemunhas de Alguém, duma Vida; e é isso que nos torna «apóstolos». Reconhecemo-nos então «como que marcados a fogo por esta missão de iluminar, abençoar, vivificar, levantar, curar, libertar» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 273).

Na Igreja, somos todos servos e servas, segundo diversas vocações, carismas e ministérios. A vocação ao dom de si próprio no amor, comum a todos, desenvolve-se e concretiza-se na vida dos cristãos leigos e leigas, empenhados a construir a família como uma pequena igreja doméstica e a renovar os diversos ambientes da sociedade com o fermento do Evangelho; no testemunho das consagradas e consagrados, entregues totalmente a Deus pelos irmãos e irmãs como profecia do Reino de Deus; nos ministros ordenados (diáconos, presbíteros, bispos) colocados ao serviço da Palavra, da oração e da comunhão do Povo santo de Deus. Só na relação com todas as outras é que cada vocação específica na Igreja se revela plenamente com a sua própria verdade e riqueza. Neste sentido, a Igreja é uma sinfonia vocacional, com todas as vocações unidas e distintas em harmonia e juntas «em saída» para irradiar no mundo a vida nova do Reino de Deus.”
A Igreja, digo eu, só pode ser ‘uma sinfonia sinodal’, onde todos caminham juntos, atrás do Bom Pastor.


III DOMINGO DE PÁSCOA/A

Homilia


Neste episódio dos discípulos de Emaús – que só aparece no evangelho segundo São Lucas – o evangelista quer responder a esta pergunta: Se Jesus ressuscitou e está vivo, como é que eu posso encontrá-l’O? Onde e como posso fazer uma verdadeira experiência de encontro real com esse Jesus que a morte não conseguiu vencer? Porque é que Ele não aparece de maneira gloriosa e não resolve os nossos problemas e os problemas do Mundo de uma vez?
É a estas perguntas que o evangelista Lucas vai responder, dizendo claramente que é, sobretudo na celebração comunitária da Eucaristia – na Mesa da Palavra e na Mesa do Pão –, que os crentes fazem a experiência do encontro com Jesus vivo e ressuscitado.
Vale a pena reparar como hoje, dois mil anos depois, se mantém o mesmo esquema litúrgico da Missa: a liturgia da Palavra – a escuta e a explicação das Escrituras, e a liturgia eucarística – o partir do pão, onde repetimos os mesmos gestos e palavras de Jesus, na Última Ceia e na mesa de Emaús.
Algumas perguntas:
Ouvimos como as palavras de Jesus fizeram arder o coração daqueles dois discípulos de Emaús. E eu, que lugar é que a Palavra de Deus tem e desempenha na minha vida? Tenho mesmo consciência que Jesus me fala e me aponta caminhos de esperança através da sua Palavra?
Sabemos, como ouvimos também, que sempre que nos sentamos à mesa com a comunidade e partilhamos o pão que Jesus nos oferece; sempre que nos reunimos com os irmãos e irmãs à volta da mesa de Deus, para celebrar o memorial da Páscoa, encontramos o Ressuscitado que enche de sentido e de plenitude a nossa vida, já agora e para sempre. E eu, como participo na mesa da Eucaristia? Reconheço nela, verdadeiramente, a presença do Ressuscitado?
E ainda uma última questão: como nos foi dito, depois de fazer a experiência do encontro com Cristo vivo e ressuscitado na celebração da Eucaristia, aqueles dois discípulos saíram apressadamente para ir contar o que tinham ouvido e visto. E eu, também me sinto e me deixo enviar para testemunhar que Jesus está vivo, com a minha vida ressuscitada, isto é, através dos meus gestos de amor, de partilha, de serviço, de alegria, de bondade?
“Foi este Jesus que Deus ressuscitou e disto todos nós somos testemunhas”, dizia Pedro
Que também nós sejamos suas testemunhas, hoje e sempre. Aleluia!


II DOMINGO DE PÁSCOA/A

Homilia


O que esta passagem do Evangelho, escutada todos os anos, no segundo Domingo da Páscoa e Domingo da Misericórdia, nos ensina é que não somos, nunca poderemos ser cristãos, sem Cristo: Ele é que está no centro e nós só somos por referência a Ele e ligados a Ele, como os membros ao corpo e os ramos à videira; não somos e nunca seremos cristãos sem o Domingo: é o Dia do Senhor, o dia permanente da ressurreição, a Páscoa semanal, a fonte dos dias da semana. Assim acontece, de oito em oito dias, desde há dois mil anos; não somos e nunca seremos cristãos sem a comunidade, como nos mostra o episódio de Tomé: a comunidade é o lugar onde o Ressuscitado se faz presente: pela comunhão com os irmãos e irmãs, pela participação na Mesa da Palavra que faz arder o coração, pela Mesa da Eucaristia da qual recebemos o Pão, pelo Espírito Santo transformado em Corpo de Cristo e alimento da vida eterna, pela missão que nos é confiada.

Tenho o Domingo, e a Eucaristia que é o coração do Domingo (para nós, cristãos, a Eucaristia é que faz o Domingo), como primeiro dia para uma semana com Jesus Cristo no centro da minha vida?
Na nossa paróquia, no serviço que fazemos, Cristo é verdadeiramente o centro? É para Ele que tudo tende e é d’Ele que tudo parte? É atrás d’Ele que corremos?

É nos gestos de amor, de partilha, de serviço, de comunhão, de encontro, de fraternidade que encontramos Jesus vivo e ressuscitado a transformar e a renovar a Igreja e o mundo.
É isso que a nossa paróquia testemunha? Quem procura Cristo, encontra-o em nós, no nosso viver comunitário, nas publicações das redes sociais e nas conversas, por exemplo?
Desde a sua Mensagem para a Quaresma, para nos ajudar a fazer o caminho de conversão quaresmal, que o papa Francisco lembra e insiste no caminho urgente da sinodalidade.
Vamos deixar que a celebração da Páscoa, que vai até ao Pentecostes, durante cinquenta dias, faça de nós cristãos sinodais, paróquia sinodal, centrados no Ressuscitado e correndo atrás da comunhão e da participação para encontrarmos os caminhos sempre novos da missão?
Assim seja. Aleluia!


Homilia (09-04-2023)

VIGÍLIA PASCAL NA NOITE SANTA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Basílica de São Pedro
Sábado Santo, 8 de abril de 2022


A noite está a chegar ao fim e começam já a despontar os primeiros fulgores da aurora, quando as mulheres saem para o túmulo de Jesus. Caminham com passo incerto, olhar perdido e o coração dilacerado de dor por aquela morte que lhes arrebatou o Amado. Mas tendo chegado lá, ao ver o túmulo vazio, invertem o rumo, mudam de estrada; abandonam o sepulcro e correm a anunciar aos discípulos um percurso novo: Jesus ressuscitou e espera-os na Galileia. Na vida destas mulheres, aconteceu a Páscoa, que significa passagem: de facto, passam do caminho triste rumo ao sepulcro para uma corrida jubilosa até junto dos discípulos, a fim de lhes dizer não só que o Senhor ressuscitou, mas que há uma meta a alcançar imediatamente, a Galileia. O encontro com o Ressuscitado é lá. O renascimento dos discípulos, a ressurreição do seu coração passa pela Galileia. Entremos também nós neste caminho dos discípulos, que vai do túmulo à Galileia.
As mulheres – diz o Evangelho – «foram visitar o sepulcro» (Mt 28, 1). Pensam que Jesus Se encontre no lugar da morte, e que tudo tenha acabado para sempre. Às vezes acontece-nos, também a nós, pensar que a alegria do encontro com Jesus pertença ao passado, enquanto aquilo que o presente nos dá a conhecer são sobretudo túmulos selados: os túmulos das nossas desilusões, amarguras e difidência, os túmulos do «não há mais nada a fazer», «as coisas não mudarão jamais», «melhor gozar o dia a dia» porque «do amanhã não estamos seguros». Também nós, se fomos amofinados pela dor, oprimidos pela tristeza, humilhados pelo pecado, amargurados por algum fracasso ou pressionados por alguma preocupação, experimentamos o gosto amargo do cansaço e vimos a alegria apagar-se no coração.
Às vezes notamos simplesmente o peso de levar por diante a vida quotidiana, cansados de arriscar pessoalmente contra uma espécie de muro de borracha dum mundo onde parecem prevalecer sempre as leis do mais astuto e do mais forte. Outras vezes sentimo-nos impotentes e desanimados perante o poder do mal, os conflitos que dilaceram as relações, as lógicas feitas de cálculo e indiferença que parecem governar a sociedade, o câncer da corrupção – e há tanta –, a propagação da injustiça, os ventos gélidos da guerra. Mais ainda, talvez nos tenhamos defrontado com a morte, ao roubar-nos a doce presença dos nossos queridos ou roçar-nos por um triz na doença ou nas calamidades, e facilmente caímos vítimas da desilusão e secou a fonte da esperança. Assim, por estas ou outras situações – cada um de nós conhece as suas –, os nossos caminhos detêm-se perante túmulos e nós ficamos imóveis a chorar e lamentar-nos, repetindo, sozinhos e impotentes, os nossos «porquês». Aquela cadeia de «porquês»...
Ao contrário, as mulheres na Páscoa não ficam paralisadas diante dum túmulo, mas – diz o Evangelho – «afastando-se rapidamente do sepulcro, cheias de temor e grande alegria, as mulheres correram a dar a notícia aos discípulos» (28, 8). Levam a notícia que mudará para sempre a vida e a história: Cristo ressuscitou! (28, 6). E, ao mesmo tempo guardam e transmitem a recomendação do Senhor, o seu convite aos discípulos, ou seja, que partam para a Galileia, porque lá O verão (cf. 28, 7). Mas, irmãos e irmãs, perguntamo-nos hoje: que significa ir para a Galileia? Duas coisas: a primeira, sair da clausura do Cenáculo partindo para a região habitada pelos gentios (cf. Mt 4, 15), sair do escondimento para se abrir à missão, escapar do medo para caminhar rumo ao futuro. A segunda – e isto é maravilhoso –, voltar às origens, porque precisamente na Galileia é que tudo começara. Lá o Senhor encontrara e chamara pela primeira vez os discípulos. Portanto, ir para a Galileia é voltar à graça primordial, é readquirir a memória que regenera a esperança, a «memória do futuro» com que fomos marcados pelo Ressuscitado.
Vemos assim o que faz a Páscoa do Senhor: impele-nos a seguir em frente, sair da sensação de derrota, rolar a pedra dos sepulcros onde muitas vezes encerramos a esperança, olhar o futuro com confiança, porque Cristo ressuscitou e mudou a direção da história; mas, para o conseguir, a Páscoa do Senhor leva-nos ao nosso passado de graça, faz-nos regressar à Galileia, onde teve início a nossa história de amor com Jesus, onde ocorreu o primeiro chamamento. Por outras palavras, pede-nos para reviver o momento, a situação, a experiência em que encontramos o Senhor, experimentamos o seu amor e recebemos um olhar novo e luminoso sobre nós mesmos, sobre a realidade, sobre o mistério da vida. Irmãos e irmãs, para ressuscitar, recomeçar, retomar o caminho, precisamos sempre de voltar à Galileia, isto é, voltar, não a um Jesus abstrato, ideal, mas à memória viva, à memória concreta e palpitante do primeiro encontro com Ele. Sim, para caminhar devemos recordar; para ter esperança devemos nutrir a memória. E este é o convite: recorda e caminha! Se recuperares o primeiro amor, o deslumbramento e a alegria do encontro com Deus, seguirás para a frente. Recorda e caminha.
Recorda a tua Galileia, e caminha para a tua Galileia. É o «lugar» onde conheceste pessoalmente Jesus, onde Ele deixou de ser, para ti, uma personagem histórica como outras, tornando-Se a pessoa da tua vida: não um Deus distante, mas o Deus próximo, que te conhece melhor do que ninguém e te ama mais do que qualquer outra pessoa. Irmão, irmã, traz à memória a Galileia, a tua Galileia: a Galileia da tua chamada, daquela Palavra de Deus que, num momento concreto, foi dirigida precisamente a ti; daquela forte experiência no Espírito, da maior alegria do perdão sentida depois daquela Confissão, daquele momento intenso e inesquecível de oração, daquela luz que se acendeu no teu íntimo e transformou a tua vida, daquele encontro, daquela peregrinação, etc. Cada um de nós sabe onde se encontra a sua Galileia, cada um de nós conhece o próprio lugar da ressurreição interior, lugar inicial, fundante, que mudou as coisas. Não podemos deixá-lo no passado, o Ressuscitado convida-nos a ir até lá, para celebrar a Páscoa. Recorda a tua Galileia, trá-la à memória, reaviva-a hoje mesmo. Volta àquele primeiro encontro. Interroga-te como e quando foi, reconstrói o seu contexto, tempo e lugar, repassa a emoção e as sensações, revive as suas cores e sabores. Com efeito, tu sabes, foi quando esqueceste aquele primeiro amor, quando olvidaste aquele primeiro encontro que começou a depositar-se o pó no teu coração. E experimentaste a tristeza e, como para os discípulos, tudo parecia carecido de perspetiva, com um rochedo selando a esperança. Mas hoje, irmão, irmã, a força da Páscoa convida a rolar para fora as pedras da desilusão e da desconfiança; o Senhor, perito em derrubar as pedras tumulares do pecado e do medo, quer iluminar a tua memória santa, a tua recordação mais bela, tornar atual aquele primeiro encontro com Ele. Recorda e caminha: volta para Ele, redescobre a graça da ressurreição de Deus em ti! Volta à Galileia, volta à tua Galileia.
Irmãos, irmãs, sigamos Jesus até à Galileia, encontremo-Lo e adoremo-Lo lá onde Ele espera cada um de nós. Revivamos a beleza daquele momento em que, depois de O ter descoberto vivo, O proclamamos Senhor da nossa vida. Voltemos à Galileia, à Galileia do primeiro amor, cada um volte à sua própria Galileia, a do primeiro encontro, e ressurjamos para uma vida nova!


Homilia (02-04-2023)

RAMOS

Homilia


Hoje, começa a Semana Santa, Semana Maior, Semana Autêntica. Somos todos desafiados, especialmente nesta, a abraçar a Cruz de Jesus, deixando-nos abraçar por Ele. Diz um autor que Deus, para vencer de uma vez por todas a distância entre Ele e nós, inventa a cruz que ergue a Terra, que baixa o Céu, que recolhe os horizontes e é a encruzilhada de todos os nossos caminhos dispersos. A cruz é o abismo onde Deus se torna o amante. A Cruz é o abraço do Céu à Terra e da Terra ao Céu. Abraçados e “agarrados a Ele, viveremos”.
Cantemos esse abraço com o belo hino que cantámos ao logo de todo o caminho que nos trouxe e nos leva até à Páscoa.

Atei os meus braços com a tua Lei, Senhor,
E nunca os meus braços chegaram tão alto.

Ceguei os meus olhos com a tua Luz, Senhor,
E nunca os meus olhos viram tão longe!

Só desde que Te dei a minha alma, Senhor,
Ela é verdadeiramente minha.

Por isso, hei-de subir até à Vida,
Despedaçando o corpo na subida.
Por isso, hei-de gritar, de porta em porta,
A mentira das noites sem estrelas;

Hei-de fazer florir açucenas nos meus lábios;
Hei-de apertar a mão que me castiga;
Hei-de beijar a cinza dos escombros;
Hei-de esmagar a dor
E hei-de trazer, aqui, sobre os meus ombros,
A tua cruz, Senhor!

Lá em cima, os braços de Jesus, pregados e estendidos num abraço irrevogável, nunca mais revogado, são as portas do Paraíso escancaradas para sempre. Então, ao longo dos dias santos desta Semana Santa, como escreve o papa Francisco aos jovens, “olha os braços abertos de Cristo crucificado. Deixa-te salvar uma e outra vez”. Deixa-te abraçar por Ele. Porque só aquilo que, em ti, é abraçado por Ele, pode ser transformado, re-criado.
Novo génesis, nova criação, do ser humano em Deus: o amado nasce sempre da ferida do coração de quem o ama. O ser humano nasce do coração ferido do seu criador. Por isso, na cruz de Jesus resplandece verdadeiramente a glória da vida, a Páscoa é a manhã da nova criação.
Que esta Semana Santa seja vivida por nós, na intimidade deste abraço à Cruz, deste abraço da Cruz.
E agora, escreve o papa Francisco na Cristo Vive, tenta ficar um momento em silêncio, deixando-te amar por Ele. Tenta silenciar todas as vozes e fica por um instante nos seus braços de amor” (CV 115).


Homilia (26-03-2023)

V DOMINGO DA QUARESMA/A

Homilia


Não é fácil isto da ressurreição. Parece uma coisa impossível. Parece demais. Por coincidência, li numa crónica de jornal, de alguém insuspeito de ter fé, umas palavras bem a propósito. Dizia assim:
“Fui há dias surpreendentemente interpelada pelas mulheres reunidas no interior do café do monte (a jornalista mora no Alentejo).
«Diga-nos, disseram-me elas, acredita que os mortos voltam à vida? Sem cafeína ainda que me carburasse o cérebro, hesitei na resposta, até porque algumas das presentes eram, além de crentes, viúvas, e quem sou eu para desesperar quem quer que seja?
Antes que pudesse dizer palavra, a mais crente das presentes antecipou-se: “Eu sou católica, acredito em tudo, na Nossa Senhora, em tudo, mas não me venham cá dizer que os mortos voltam à vida”, e, demonstrando um empirismo de fazer inveja a Francis Bacon, acrescentou: “Das portas do Céu, ainda ninguém mostrou a chave”.»
Ao contrário do que parece, não é mesmo nada fácil acreditar na ressurreição, na de Cristo, na dos nossos irmãos e irmãs e na nossa própria. Mas é essa a promessa que Deus faz, a promessa que só Ele pode fazer. É esse o poder do seu amor. E a verdade é que Cristo já nos abriu a porta do Céu. A chave é a Cruz e Ele mesmo, como cantamos tantas vezes, é a Porta do Céu. Será que acreditamos n’Ele e O seguimos?
Uma coisa é certa: que a terra seja redonda ou tenha a forma de uma pera ou de um limão, não tem influência nenhuma sobre o meu modo de viver, sobre as escolhas que faço. Mas a fé na ressurreição marca decisivamente, tem uma influência determinante sobre o meu caminho, a orientação que tenho de dar à minha existência aqui na terra, nas opções que tenho de fazer. “A nossa liberdade, escreve Tomàs Halík, a nossa redenção de qualquer forma de escravidão, é o testemunho mais convincente da ressurreição de Cristo, essa pedra angular da nossa fé.”
Estou disposto a interrogar-me seriamente sobre o sentido da minha vida?
A ressurreição de Lázaro não aconteceu para alimentar em nós o desejo de um milagre igual: a morte faz parte da vida e todos morreremos um dia. Este evangelho da ressurreição de Lázaro é-nos contado por três razões, pelo menos: para acreditarmos que Jesus está próximo de nós, chora e se comove por nós quando sofremos e morremos; para que se manifeste aos olhos de todos o poder do amor de Jesus, o seu poder de Filho de Deus, que é mais forte do que a morte; e para que aprendamos a conviver, já aqui em baixo, na terra, com a ressurreição, que deixemos a ressurreição ser, já agora, fonte de uma vida ressuscitada. A última palavra não é a da morte. A última palavra é de Deus, do seu amor e da sua vida eterna. Por isso, podemos cantar confiantes.


Homilia (19-03-2023)

IV DOMINGO DA QUARESMA/A

Homilia


Quando chegarmos à noite da Vigília pascal e acendermos o Círio Pascal, e acendermos dele as nossas velas, lembremo-nos deste evangelho que acabamos de escutar. Quando cantarmos, no Tempo pascal: Nós vimos o Senhor Jesus ressuscitado, vimos a luz da nova criação, é o tempo da nova aliança, a manhã da nova criação, lembremo-nos do gesto de Jesus que misturou a saliva com a terra, para fazer lodo, aplica-lo nos olhos do cego, renovando assim o gesto criador de Deus, no princípio, quando criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança. Jesus, o Enviado – como diz o nome da piscina onde o cego se lavou para começar a ver – veio, e vem, para nos recriar, para nos refazer, de novo, à imagem e semelhança de Deus. Será que estamos disponíveis para isso? Será que acreditamos que só Jesus é capaz de fazer isso?
Como ouvimos, o problema grave – que nem Jesus é capaz de resolver – não é o cego. São os outros, os que acham que vêem muito bem. Curar o cego, para Jesus foi fácil – um pouco de terra misturada com a saliva e a ordem para ir lavar-se à piscina de Siloé. O mais difícil foram os outros. Desgraçadamente, Jesus não conseguiu abrir os olhos dos que dizem que vêem muito bem e que continuam, obstinadamente, com os olhos fechados.
Vale a pena reparar nisto e fazer perguntas. A narração começa com um único cego em cena: Jesus encontrou no seu caminho um cego de nascença, e termina com o cenário cheio de cegos incuráveis: Nós também somos cegos, perguntam os fariseus, e Jesus responde-lhes: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado. Mas como agora dizeis: Nós vemos, o vosso pecado permanece. Isto é, continuais cegos, porque vos recusais a ver a verdadeira luz. Desgraçadamente, eles – isto é, nós – não têm nada a aprender, já têm a verdade toda, já sabem tudo, já andam aqui há tanto tempo.
Estamos no caminho sinodal, com Jesus e com toda a Igreja. Estamos dispostos a deixar para trás o ‘sempre foi assim’, os hábitos e os costumes e avançar? Estamos dispostos e disponíveis para caminhar juntos, para nos sentarmos juntos à mesa da sinodalidade, para ensaiarmos juntos, aprendermos a cantar melhor, a proclamar melhor a Palavra de Deus, a ser melhores catequistas? Estamos dispostos a obedecer, isto é, a ouvir, o que Jesus nos manda fazer, como o cego? Esse homem, que se chama Jesus, disse-me: Vai lavar-te à piscina de Siloé. Eu fui, lavei-me e fiquei a ver.
Como ouvimos, nem sequer um milagre consegue abrir os olhos a quem não está cego. Por isso, como o cego de nascença, atemos os nossos braços com a Palavra de Jesus, deixemos que os nossos olhos fiquem cegos com a luz de Jesus, e chegaremos mais alto, e veremos mais longe.


Homilia (12-03-2023)

III DOMINGO DA QUARESMA/A

Homilia


“A mulher deixou a bilha, correu à cidade e falou a todos.” Comecemos então por esta pequena indicação do evangelista, sabendo que, em São João, os pormenores são sempre muito importantes.
Que se lixe a bilha, já não me faz falta nenhuma. Desculpem a expressão, mas deve ter sido mais ou menos isto que a mulher samaritana pensou, depois daquele inacreditável diálogo com Jesus e já a sentir-se renovada, lavada, restaurada na sua dignidade e dessedentada pelo amor e pela alegria que recebeu, sem contar, daquele homem sentado à beira do poço que, a primeira coisa que fez, foi pedir-lhe a ela para lhe matar a sede a Ele. “Dá-me de beber’ pede estranhamente Jesus.”Salta à vista, diz D. António Couto, que Jesus Se transforma em pedinte com o intuito de transformar em pedinte a mulher: a maravilhosa delicadeza de um Deus que pede para dar.” É essa a táctica preferida de Jesus: levar a pessoa – no caso a mulher – a tomar consciência da sua verdadeira necessidade; fazer nascer um desejo, fazer cair na conta do que não se tem, pôr a descoberto a pobreza de cada um, e fazer brotar um pedido: “Senhor, suplicou a mulher, dá-me dessa água…” Precisar é sempre o momento supremo. Só temos de Deus o que cabe em nós.
Mas voltemos à bilha deixada para trás. Esse gesto de deixar a bilha foi como se deitasse fora todo o imenso peso da sua vergonha, da sua tristeza, dos seus medos, do repúdio que sofria dos outros, do modo como era olhada. Certamente, ela escolheu aquela hora para vir ao poço porque era a hora em que mais ninguém saía de casa. Não corria o risco de encontrar ninguém pelo caminho. O encontro com Jesus foi libertador e salvador. Então, que a bilha fique ali junto ao poço, quem sabe partida, em cacos, como sinal desse pesado passado que ficou definitivamente para trás. Agora, depois daquele encontro, começou uma nova vida.
Alguns e algumas recordar-se-ão que foi assim que começámos, a 1 de Outubro, as mesas da sinodalidade: partindo algumas bilhas e convidando quem estava presente a levar um caco, para escrever o nome e a data do seu Baptismo. Entretanto, com esses cacos, estamos a construir uma pia baptismal, que é o suporte principal da mesa da sinodalidade que tem estado sempre presente nas mesas da sinodalidade. Quem dera que fosse como esse gesto simbólico da mulher samaritana: deixar para trás o que era habitual e costume fazer-se, os nossos preconceitos, as nossas resistências, as nossas desconfianças, para renovarmos a paróquia, alargarmos a tenda e o coração, e corrermos a dizer a todos a vida nova que Jesus nos oferece.
Trata-se, como insiste o papa Francisco, de redescobrir o nosso Baptismo e renovarmos a nossa fidelidade a essa fonte de vida eterna que jorra, a essa nascente que jorra para a vida eterna.
Como a mulher samaritana, atemos os nossos braços com a Palavra de Jesus, deixemos que os nossos olhos fiquem cegos com a luz de Jesus, e chegaremos mais alto, e veremos mais longe. Como a mulher da Samaria.


Homilia (05-03-2023)

II DOMINGO DA QUARESMA/A

Homilia


A melhor homilia, este ano, para esta Quaresma, em caminho sinodal, é a Mensagem do papa Francisco, centrada no episódio da Transfiguração e na sinodalidade. Limito-me a sublinhar alguns parágrafos.
“O evangelho da Transfiguração é proclamado, cada ano, no II Domingo da Quaresma. Realmente, neste tempo litúrgico, o Senhor toma-nos consigo e conduz-nos à parte. Embora os nossos compromissos ordinários nos peçam para permanecer nos lugares habituais, transcorrendo uma vida quotidiana frequentemente repetitiva e por vezes enfadonha, na Quaresma somos convidados a subir «a um alto monte» juntamente com Jesus, para viver com o Povo santo de Deus uma particular experiência de ascese.
A ascese quaresmal é um empenho, sempre animado pela graça, no sentido de superar as nossas faltas de fé e as resistências em seguir Jesus pelo caminho da cruz. (…) É preciso deixar-se conduzir por Ele à parte e ao alto, rompendo com a mediocridade e as vaidades. É preciso pôr-se a caminho, um caminho em subida, que requer esforço, sacrifício e concentração, como uma excursão na montanha. Estes requisitos são importantes também para o caminho sinodal, que nos comprometemos, como Igreja, a realizar. Far-nos-á bem refletir sobre esta relação que existe entre a ascese quaresmal e a experiência sinodal. (…)
A Jesus, seguimo-Lo juntos; e juntos, como Igreja peregrina no tempo, vivemos o Ano Litúrgico e, nele, a Quaresma, caminhando com aqueles que o Senhor colocou ao nosso lado como companheiros de viagem. À semelhança da subida de Jesus e dos discípulos ao Monte Tabor, podemos dizer que o nosso caminho quaresmal é «sinodal», porque o percorremos juntos pelo mesmo caminho, discípulos do único Mestre. Mais ainda, sabemos que Ele próprio é o Caminho e, por conseguinte, tanto no itinerário litúrgico como no do Sínodo, a Igreja não faz outra coisa senão entrar cada vez mais profunda e plenamente no mistério de Cristo Salvador. (…)
E chegamos ao momento culminante. O Evangelho narra que Jesus «Se transfigurou diante deles: o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz» (Mt 17, 2). Aqui aparece o «cimo», a meta do caminho. No final da subida e enquanto estão no alto do monte com Jesus, os três discípulos recebem a graça de O verem na sua glória, resplandecente de luz sobrenatural, que não vinha de fora, mas irradiava d’Ele mesmo. (…) Como toda a esforçada excursão de montanha, ao subir, é preciso manter os olhos bem fixos na vereda; mas o panorama que se deslumbra no final surpreende e compensa pela sua maravilha. Com frequência também o processo sinodal se apresenta árduo e por vezes podemos até desanimar; mas aquilo que nos espera no final é algo, sem dúvida, maravilhoso e surpreendente, que nos ajudará a compreender melhor a vontade de Deus e a nossa missão ao serviço do seu Reino.
A novidade de Cristo é cumprimento da antiga Aliança e das promessas; é inseparável da história de Deus com o seu povo, e revela o seu sentido profundo. De forma análoga, o caminho sinodal está radicado na tradição da Igreja e, ao mesmo tempo, aberto para a novidade. A tradição é fonte de inspiração para procurar estradas novas, evitando as contrapostas tentações do imobilismo e da experimentação improvisada.
O caminho ascético quaresmal e, de modo semelhante, o sinodal, têm como meta uma transfiguração, pessoal e eclesial. Uma transformação que, em ambos os casos, encontra o seu modelo na de Jesus e realiza-se pela graça do seu mistério pascal.”
Como disse noutra ocasião o papa Francisco: ‘A tradição é a transmissão do fogo, não a adoração das cinzas. A tradição é a fé viva dos mortos; o tradicionalismo é a fé morta dos vivos.’ Por isso, o papa acrescenta ainda na sua Mensagem: “Erguendo os olhos, os discípulos apenas viram Jesus e mais ninguém» (Mt 17, 6-8). E aqui temos a segunda indicação para esta Quaresma: não refugiar-se numa religiosidade feita de acontecimentos extraordinários, de experiências sugestivas, levados pelo medo de encarar a realidade com as suas fadigas diárias, as suas durezas e contradições. A luz que Jesus mostra aos seus discípulos é uma antecipação da glória pascal, e é rumo a esta que se torna necessário caminhar seguindo «apenas Jesus e mais ninguém».
Atados à Lei do Evangelho e cegados pela Luz de Cristo, deixemo que as nossas cinzas – as nossas fadigas, durezas e contradições – se acendam com o fogo da Palavra e a água do Espírito, cantando.


Homilia (26-02-2023)

I DOMINGO DA QUARESMA/A

Homilia


Como ouviremos daqui a pouco na Oração Universal (feita a partir de citações da ‘Cristo Vive’), o papa Francisco pede aos Jovens – e a todos, claro – para ‘não ficarmos a assistir à vida da varanda ou sentados no sofá’. Temos de meter ‘as mãos na massa e os pés ao caminho’. Um dia destes, encontrei esta frase, citada numa crónica do jornal e dita, segundo li, por um dos mais consagrados rappers nacionais: Valete: “Eu queria mudar o mundo, mas não visitava a minha avó.”
É deste mas que quero falar hoje. Comecemos pelo princípio, quer dizer, pela primeira leitura: Deus conversa com o Homem, mas ele dá mais ouvidos à serpente; Deus estabelece um limite que recorda ao Homem que ele não é Deus e que será libertador para o Homem, mas o Homem não suporta o limite e quer ser Deus; Deus manda ao Homem apenas uma proibição, mas a serpente, com astúcia e mentira, faz crer ao Homem que tudo está proibido.
A arte enganadora da serpente, da tentação que continua a esconder-se no nosso coração, consiste sempre em sussurrar-nos: ‘Mas que mal é que tem?’. Qualquer tentação abre caminho no nosso coração com esse, aparentemente inofensivo – é assim que o Diabo nos engana: ‘Qual é o mal?’
Jesus, como ouvimos, não foi no engano, não foi no mas. Para Ele não há mas nem meio mas. O único caminho é ser fiel à Palavra de Deus, acolhida no coração e não repetida de cor. Como ouvimos, o Diabo também citava a Palavra de Deus a Jesus (o que prova que citar a Bíblia não é prova irrefutável de fé), mas era de uma maneira interesseira e enganosa, para proveito próprio. Jesus não se deixa enganar, por mais difícil que seja o caminho. E como vai ser difícil o caminho de Jesus!
Então, o que é que nos é proposto e pedido esta Quaresma? Que recusemos as tentações do Diabo, sempre tão aborrecidas, sempre iguais e escravizadoras, e não resistamos – acolhamos – as ‘tentações’ de Deus, que são bem mais interessantes, bem mais sedutoras e libertadoras. Mesmo que não pareçam. E segundo o papa Francisco as ‘tentações’ de Deus para a Igreja neste tempo são a comunhão, a participação e a missão. A ‘tentação’ da sinodalidade, numa palavra; a tentação de alargar a tenda, o coração. A estas ‘tentações’ não deveríamos resistir.
Ascese quaresmal, itinerário sinodal, é o título da Mensagem para esta Quaresma, que termina assim: “Queridos irmãos e irmãs, que o Espírito Santo nos anime nesta Quaresma na subida com Jesus, para fazermos experiência do seu esplendor divino e assim, fortalecidos na fé, prosseguirmos o caminho com Ele, glória do seu povo e luz das nações.”
Abraça o presente da Páscoa: É Cristo vivo. Agarrado a Ele viverás.
Atei os meus braços com a tua Lei, Senhor, e nunca os meus braços chegaram tão alto…


Homilia (19-02-2023)

SÉTIMO DOMINGO COMUM/A

Orações


Saudação e monição inicial
A loucura do amor de Cristo na Cruz, que nos revela a santidade do Pai, e a força do Espírito Santo que habita em nós e nos santifica, estejam convosco.

“Oh sublime ciência das alturas”, escreve D. António Couto, a propósito deste Domingo. “Continuamos, diz ele, a escutar nas alturas, em alta frequência e alta-fidelidade, o que não se pode escutar cá por baixo, em onda média, no meio do barulho e do entulho.”
Ao propor-nos, hoje, as duas últimas das seis antíteses proferidas no Sermão da Montanha, “Jesus continua e, alta sintonia, altíssima alegria, altíssimo amor, estendendo o amor para além dos círculos restritos das nossas simpatias, até aos nossos próprios inimigos! Amor assimétrico, que Jesus ensina agora nas alturas, mas que praticará e ensinará até à Cruz! Ele leva até ao alto do monte das Bem-Aventuranças e até ao alto do Calvário os nossos ódios desenfreados e a nossa fria justiça distributiva e restitui-nos em troca o perdão excessivo e o amor transbordante.”
Estamos aqui para celebrar a loucura desse amor, para celebrar o sacramento que nos ensina e nos torna capazes de amar com esse mesmo amor de Cristo. Senhor, faz descer sobre nós a tua graça.
Senhor tem piedade de nós.
Cristo, tem piedade de nós.
Senhor, tem piedade de nós.

Final
Não são fáceis de engolir nem de mastigar as palavras de Jesus no Sermão da Montanha. Mas não temos outro caminho senão subir com Ele ao alto do monte, ao alto da Cruz, ao alto da Eucaristia.
No entanto, não nos iludamos: o grande combate é contra nós mesmos, não é contra os outros. O patriarca ortodoxo Atenágoras, como grande crente que era, dizia isso mesmo: “A guerra mais dura é aquela que cada um combate contra si mesmo. É preciso conseguir desarmar-se. Eu próprio combati esta guerra durante anos, e foi terrível. Mas agora estou desarmado, e já não tenho medo de nada, porque o amor expulsou o medo”.
Na próxima quarta-feira, de Cinzas, (re)começamos, continuamos, este combate da nossa conversão permanente para subirmos com Jesus ao alto da Páscoa. Estamos dispostos a isso? Vamos fazê-lo com coragem?

 

SÉTIMO DOMINGO COMUM/A

Homilia


Começo hoje, como acabei no Domingo passado, com aquele fabuloso título de um livro que faz a pergunta certa diante do Sermão da Montanha: «Why Be Happy When You Could be Normal?» Porquê ser feliz, quando podes ser normal?
Ser normal – ser humano, se quisermos – é pagar com a mesma moeda, responder a um insulto com outro insulto, gostar de quem gosta de nós, ser simpático com que é simpático connosco… Tudo isto é muito razoável. Mas Jesus diz que não chega, que isso não faz de nós filhos e filhas do Pai que está nos Céus, que não nos fará entrar no Reino, porque até um pagão é capaz de fazer isso.
E não precisamos de fazer nada do outro mundo, ainda que tenha de ser extraordinário, isto é, para além do comum, do normal. Não responder ao mal com outro mal, mas com um gesto de bondade, com uma palavra de reconciliação, com um silêncio pacificador. Nélson Mandela e Martin Luther King são dois bons exemplos desta novidade do Reino.
A questão mais difícil é esta: será possível engolir palavras tão indigestas como estas? Será possível escutar estas palavras e deixar tudo na mesma, sem mudar nada? Que é que eu vou fazer com estas palavras de Jesus? Suprimi-las do Evangelho? Apagá-las bem no fundo da consciência para não nos lembrarmos delas? Deixá-las, adiá-las para melhores dias, quando formos mais velhos? Pensar que elas são para os outros? Devolvê-las na volta do correio porque vieram para o endereço errado?
Ou acolhê-las como elas são realmente: um dom do amor de Deus. Será que eu consigo mesmo acreditar que este amor que Jesus nos entrega, nos oferece, é a novidade cristã que não podemos esquecer nem esconder, mas que é o melhor presente que temos para oferecer ao mundo, é a melhor herança que podemos deixar aos mais novos e aos nossos irmãos e irmãs? é a felicidade?
O que é mesmo verdade é que a vocação do cristão é a da loucura, da loucura do amor manifestado na Cruz, ao jeito de Francisco de Assis. Então, se estamos dispostos a entrar pela porta do Reino que é Jesus, e a ser missionários deste amor novo, desta novidade do amor de Jesus, com toda a humildade deixemos que as palavras do cântico se gravem no nosso coração.


Homilia (12-02-2023)

SEXTO DOMINGO COMUM/A

Homilia

Aprendi esta semana que ‘o nome hebraico para a Bíblia, Mikra, significa um chamamento, uma proclamação. Quer dizer, para compreender a Bíblia é necessário, por vezes, ouvi-la em vez de lê-la’. E esse autor contava que uma professora de História da arte pedia aos estudantes para escolherem uma pintura e, em seguida, sentarem-se diante dela durante três horas. Porque, dizia ela: ‘se quiseres ver uma pintura, tens de esperar que ela se mostre. Se quiseres ouvi-la, tens de estar em silêncio’.
Temos, diante de nós, este imenso quadro do Sermão da Montanha, essa medida alta da vida cristã, esse convite a ser santos. Somos capazes de ficar em silêncio e escutar essa Palavra, ou passamos, apressados, à coisa seguinte?
“Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus’, dizia Jesus. Lembrei-me a este propósito destas palavras de um teólogo russo, no seu livro A Loucura do Amor de Deus: “Os cristãos fizeram todo o possível para esterilizar o evangelho; dir-se-ia que o mergulharam num líquido neutralizante. Adormece-se tudo o que impressiona, supera ou vira ao contrário. Convertida, desta forma, em algo inofensivo, esta religião aplanada, prudente e razoável, o homem não pode senão vomitá-la”. Aonde nos levará este cristianismo inoperante e adormecido, suave e cómodo, senão à indiferença, a nossa e a dos outros?
É verdade que o Sermão da Montanha não produz automaticamente pessoas de bem e irrepreensíveis – continuamos bem pecadores e limitados –, mas aquelas palavras, se escutadas, longamente em silêncio, talvez tenham a força de criar em cada um de nós uma dinâmica de conversão, de adesão ao Reino, um estremecimento do coração que não nos deixe na mesma indiferença. Só depende de nós. No alto do monte, Jesus, o novo Moisés, diz-nos: “Se quiseres, guardarás os mandamentos: ser fiel depende da tua vontade.”
A este propósito, cito o título de um livro, que encontrei citado e que resume bem o que está em causa na proposta de Jesus, que começa o Sermão da Montanha com nove ‘Felizes’: «Why Be Happy When You Could be Normal?»: Porquê ser feliz quando podemos ser normais?
A questão é mesmo essa: queremos ser felizes ou queremos manter-nos normais?
O Sermão da Montanha é um convite à liberdade, à liberdade de seguir o caminho do Evangelho e entrar pela porta do reino, do reino da liberdade do amor.


Homilia (05-02-2023)

QUINTO DOMINGO COMUM/A

Homilia

Continuamos com Jesus, no monte da Eucaristia, a escutar o Sermão da Montanha. Depois de ter apresentado a nova Lei (as bem-aventuranças), Jesus diz qual é a missão do novo Povo de Deus, a missão da Igreja, a missão dos baptizados, a nossa missão. As duas parábolas ou comparações – a do sal e a da luz – destinam-se, de forma bem clara, a definir a missão daqueles que aceitam viver no espírito das bem-aventuranças.
Hoje, somos convidados a reflectir sobre o nosso compromisso cristão, sobre o modo como somos cristãos, como somos discípulos de Jesus, como somos ou não construtores do seu Reino. E o que ficamos a saber é que aqueles que foram interpelados pelo desafio do "Reino" não podem remeter-se a uma vida cómoda e instalada, nem refugiar-se numa religião ritual, feita de gestos vazios, mas têm de viver de tal forma comprometidos com a transformação do mundo que se tornem uma luz que brilha na noite do mundo e que aponta no sentido desse mundo de plenitude que Deus prometeu aos homens – o mundo do "Reino".
Jesus exorta os seus discípulos – exorta-nos – a não nos instalarmos na mediocridade, no comodismo, no "deixa andar"; e pede-lhes – pede-nos – que sejamos o sal que dá sabor ao mundo e que testemunha a perenidade e a eternidade do projecto salvador de Deus.
A primeira leitura apresentava as condições necessárias para "ser sal e ser luz": não se trata de cumprir ritos religiosos estéreis e vazios, mas em comprometer-se verdadeiramente com a justiça, com a paz, com a partilha, com a fraternidade. E a segunda leitura avisava que ser "sal e luz" não é colocar a esperança de salvação em esquemas humanos de sabedoria, mas identificar-se com Cristo e interiorizar a "loucura da cruz".
Como é que me situo face a isto? Para mim, ser cristão é um compromisso sério, profético, exigente, que me obriga a testemunhar o "Reino", mesmo em ambientes adversos, ou é um caminho "morno", instalado, cómodo, de quem se sente de bem com Deus porque vai à missa ao domingo e cumpre alguns ritos que a Igreja sugere?
Eu sou, dia a dia, o sal que dá o sabor, que traz um acrescento de amor e de esperança à vida daqueles que caminham ao meu lado? Para aqueles com quem lido todos os dias, sou uma pessoa insípida, incaracterística, instalada numa mediocridade cinzenta, ou sou uma nota de alegria, de entusiasmo, de optimismo, de esperança numa vida nova vivida ao jeito do Evangelho, ao jeito do "Reino"?
No alto do monte, Jesus é o novo Moisés que oferece ao novo Israel a nova Lei que deve guiar todos os que estão interessados e disponíveis para aderir e construir o Reino. É isso que vamos cantar.


Homilia (29-01-2023)

QUARTO DOMINGO COMUM/A

Orações

Saudação e monição inicial
A graça e a bondade do Senhor Jesus que vem inaugurar o Reino de Deus e propor o caminho da verdadeira felicidade, estejam convosco.

Como os discípulos e as multidões, há dois mil anos, estamos nós, hoje, aqui, na montanha da Eucaristia, para escutar as palavras de Jesus. Durante quatro domingos, até ao início da Quaresma, iremos escutar o chamado Sermão da Montanha, que começa, como sabemos, com as Bem-Aventuranças. Estamos preparados e disponíveis para acolher, acreditar e seguir esse caminho novo que Jesus nos promete e propõe? Estamos dispostos a ser construtores do Reino que Ele anuncia?
Três exemplos, de entre nove, desse mundo virado do avesso (a partir do site dos Dehonianos):
Jesus diz: felizes os pobres em espírito; o mundo diz: felizes vós que tendes dinheiro – muito dinheiro – e sabeis usá-lo para comprar influências, comodidade, poder, segurança, bem-estar, pois é o dinheiro que faz andar o mundo e nos torna mais poderosos, mais livres e mais felizes.
Em quem é que eu acredito?
Jesus diz: felizes os misericordiosos; o mundo diz: felizes vós quando desempenhais o vosso papel sem vos deixardes comover pela miséria e pelo sofrimento dos outros, cada um que faça pela vida, pois quem se comove e tem misericórdia acabará por nunca ser eficaz e vencedor neste mundo tão competitivo.
Em quem é que eu acredito?
Jesus diz: felizes os que promovem a paz; o mundo diz: felizes vós os que não tendes medo da guerra, do conflito, que sois duros e insensíveis, que não tendes medo de lutar contra os outros e sois capazes de os vencer, pois só assim sereis homens e mulheres de sucesso.
Em quem é que eu acredito?

Senhor, misericórdia.
Cristo, misericórdia.
Senhor, misericórdia.


QUARTO DOMINGO COMUM/A

Homilia

Uma característica importante do Evangelho segundo Mateus, que é o evangelista deste ano, está na importância que ele dá aos ditos, às palavras de Jesus. Por isso, o seu evangelho está organizado à volta de cinco grandes discursos de Jesus. O primeiro é este que começámos a escutar hoje, o chamado Sermão da Montanha, que abre com a proclamação tremenda e sempre muito incómoda das Bem-Aventuranças. Que raio de felicidade é esta que Jesus nos propõe? Alguém pode acreditar e seguir este caminho? Pelos vistos, para sermos cristãos e discípulos de Jesus, não há outro.
Mas é preciso muito cuidado e muita atenção para entender bem o sentido das palavras de Jesus, não vá alguém entender que é bom viver na miséria ou sofrer ou chorar ou ser perseguido. Trata-se de ler a nossa vida e de a viver, iluminados pela luz do Evangelho, pela luz que Jesus traz à nossa vida. Não podemos ser bem-aventurados se não nos convertermos, se não formos capazes de apreciar e viver os dons de Deus. A felicidade prometida por Jesus não é um mecanismo automático, mas uma escolha, um caminho de vida no seguimento de Jesus: Ele é que é o pobre dos pobres, o que mais chorou e sofreu, o mais humilde, o que teve fome e sede de justiça, o misericordioso, o príncipe da paz, o perseguido. A bem aventurança é uma promessa de Deus, mas é necessariamente uma escolha nossa.
Apenas um exemplo, com palavras do papa Francisco: “o pobre em espírito é o cristão que não confia em si mesmo, nas riquezas materiais, que não se obstina nas suas opiniões pessoais, mas escuta com respeito e aceita de bom grado as decisões de outros. Se nas nossas comunidades existissem mais pobres em espírito, haveria menos divisões, conflitos, polémicas.”
Portanto, os pobres em espírito – por opção, os pobres de coração, como traduzem os franceses – são aqueles e aquelas que se entregam confiadamente nas mãos de Deus, que seguem os seus caminhos e aceitam as suas propostas, por mais exigentes que sejam, e são também aqueles e aquelas que praticam a justiça para com os irmãos e irmãs, que respeitam os direitos dos mais débeis, que não cometem arbitrariedades. Ser pobre é então uma atitude espiritual de abertura a Deus e aos irmãos e irmãs, é um coração transformado pelo Evangelho, é o Evangelho posto em prática. Não tem directamente a ver com a conta bancária.
No alto do monte, Jesus é o novo Moisés que oferece ao novo Israel a nova Lei que deve guiar todos os que estão interessados e disponíveis para aderir ao Reino. É isso que vamos cantar.


Homilia (22-01-2023)

TERCEIRO DOMINGO COMUM/A

Domingo da Palavra de Deus

Homilia


Na Exortação ‘A Alegria do Evangelho’, o papa Francisco escreve: “Na presença de Deus, numa leitura tranquila do texto, é bom perguntar-se, por exemplo: «Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é que me incomoda neste texto?”
Sim, digo eu, que me sinto muitas vezes incomodado com a Palavra que escuto, a Palavra de Deus tem de incomodar-nos, porque nos pede que vamos sempre mais longe do que aquilo que seria normal, que seria humano, que nos dava jeito.
Como sabemos, mas nunca é de mais lembrar, a Missa é constituída por dois momentos fundamentais: a Liturgia ou Mesa da Palavra e a liturgia eucarística ou Mesa da Eucaristia. Ou seja, a Palavra de Deus não é um adorno, um enfeite, uma coisa para encher o tempo. A Palavra de Deus é Cristo e é a expressão da vontade e dos projectos de Deus a nosso respeito e para nosso bem, para que a nossa alegria seja completa, como diz uma passagem de São João. Se não escutamos a Palavra, como poderemos conhecer os projectos do Senhor, como poderemos responder ao seu chamamento com prontidão, como fizeram Pedro e André, Tiago e João? Este Domingo da Palavra é mais uma oportunidade que temos para deixar que as palavras do Senhor ecoem no mais profundo do nosso coração, nos incomodem e alguma coisa possa mudar na nossa vida, segundo o desejo de Deus.
Dois incómodos:
O primeiro é da segunda leitura e a reflexão não é minha: O texto recorda, como também nos recordou o senhor D. Américo, na passada segunda-feira, em Gondesende, que a experiência cristã é, fundamentalmente, um encontro com Cristo; é d’Ele e só d’Ele que brota a salvação. A vivência da nossa fé não pode, portanto, depender do carisma da pessoa tal, ou estar ligada à personalidade brilhante deste ou daquele indivíduo que preside à comunidade. Para além da forma mais ou menos brilhante, mais ou menos coerente como tal pessoa anuncia ou testemunha o Evangelho, tem de estar a nossa aposta em Cristo; é n’Ele e só n’Ele que bebemos a salvação; é a Ele e só a Ele que o nosso compromisso baptismal nos liga. Cristo é, de facto, a minha referência fundamental? É à volta d’Ele e da sua proposta de vida que a minha experiência de fé se constrói? Em concreto: que sentido é que faz, neste contexto, dizer que só se vai à missa se for tal padre a presidir? Que sentido é que faz afastar-se da comunidade porque não gostamos da atitude ou do jeito de ser deste ou daquele animador?
Paulo não mede as palavras: a Cristo e unicamente a Cristo os cristãos, todos, foram consagrados pelo baptismo. É Cristo e só Cristo a única fonte de salvação. Ser baptizado é entrar a fazer parte do corpo de Cristo e participar no acontecimento salvador do qual Cristo é o único mediador.
Há casos em que as pessoas com responsabilidade de animação nas comunidades cristãs favorecem, consciente ou inconscientemente, o culto da personalidade. Não se preocupam em levar as pessoas a descobrir Cristo, mas em conduzir o olhar e o coração dos fiéis para a sua própria e brilhante personalidade. Tornam-se imprescindíveis e inamovíveis, são incensadas e endeusadas e potenciam grupos de pressão que as admiram, que as apoiam e que as seguem de olhos fechados. Que sentido é que isto faz, à luz daquilo que Paulo nos diz, neste texto? (retirado do site dos Dehonianos)
O segundo (incómodo) é do evangelho:
«Vinde e segui-Me e farei de vós pescadores de homens». Ao contrário do comodismo que nos instala, Jesus desinstala-nos – é outra maneira de dizer ‘incomoda-nos’ – e propõe-nos que O sigamos. E é na medida em que nos dispomos a segui-l’O que poderemos assumir a sua missão, hoje. Ser pescador de homens é resgatar – salvar – quem está na iminência de se perder nas ondas do mar revolto da vida. Que contributo quero eu dar para ajudar quem vive na tristeza, no desespero, na angústia, na solidão, na pobreza? Como quem se pergunta: estou mesmo disponível para acolher o convite de Jesus e seguir atrás d’Ele?


Homilia (08-01-2023)

EPIFANIA

Homilia


Este episódio da visita dos Magos ao Menino nascido em Belém é uma magnífica catequese ‘inventada’ por São Mateus, para nos dizer quem é Jesus e qual é a sua missão: Ele é o Filho de Deus prometido e vem cumprir a promessa de reunir todos os filhos e filhas de Deus, de todos os cantos da Terra, como anunciava o profeta na primeira leitura, e como São Paulo afirmava de maneira completamente nova e inesperada, e certamente estranha e provocadora aos ouvidos de muitos, de ontem e de hoje: “os gentios recebem a mesma herança que os judeus, pertencem ao mesmo corpo e participam da mesma promessa em Cristo Jesus, por meio do Evangelho.”
Mas, para além de ser uma catequese sobre Jesus, este episódio dos Magos também recorda aos cristãos de todos os tempos as duas atitudes que vão repetir-se ao longo de todo o Evangelho e ao longo da História, e que se repetem também em nós, hoje: acolher ou rejeitar Jesus. De que lado é que eu estou? De que lado é que estamos?
Como escreveu um amigo meu: Quem dera, que o nosso caminho de fé nunca se instalasse na comodidade do que ouvimos dizer, do que já fizemos, do sempre foi assim. Quem dera que o nosso caminho de fé chegasse à relação pessoal com um Deus, que nos ama com a paixão de um verdadeiro amor. Quem dera que a nossa fé brotasse do “encontro pessoal com Cristo, que dá à nossa vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Quem dera que pudéssemos acolher e viver o caminho sinodal como o caminho que Deus nos indica e pede hoje a nós. A imagem ou símbolo do Sínodo que está colocada na fachada das nossas igrejas é bem eloquente disso mesmo: todos a caminhar juntos iluminados e guiados por Cristo.
Que nos ensinam então os Magos? Estes astrólogos estrangeiros que chegam a Jerusalém observam, conhecem e compreendem o céu, como nós devíamos observar, conhecer e compreender a cidade e a paróquia, para poder anunciar a Luz do Evangelho.
Estes astrólogos que vêm de longe caminham de olhos levantados para a estrela que os guia, e de ouvidos atentos às tradições e profecias de uma cultura que não era a deles; e não ficam nem caminham de olhos no chão, encerrados e fechados em si mesmos, a lamentar o que ficou para trás; não caminham à espera de encontrar o que já sabiam ou faziam, mas curiosos e disponíveis para o novo, para o caminho por fazer que a estrela indicava e iluminava, sempre mais adiante. Até o regresso foi ‘por outro caminho’! Como diz uma cantiga: “Só se lembra dos caminhos velhos
quem tem saudades da terra”, como os israelitas, no deserto, tinham saudades das cebolas e panelas de carne que tinham ficado na terra do Egipto. Mas só alcançariam a liberdade e a Terra Prometida caminhando em frente, fazendo caminhos novos, arriscando o futuro, por mais incerto e difícil que parecesse.
Estes astrólogos inquietos e livres procuravam um rei e encontram um recém-nascido, ao colo da mãe, na parte da casa destinada aos animais. Mas reconhecem naquele Menino tão desprotegido e tão igual a todos os meninos, o rei, o rosto luminoso de Deus, o Salvador.
E porque será que estes Magos foram capazes de uma tal viagem sem certezas e de um reconhecimento tão jubiloso e feliz? Será que foi porque a sua procura era sincera? Será que foi porque tinham um espírito aberto? Será que foi porque caminhavam juntos, em caravana, contando uns com os outros, apoiando-se uns aos outros, animando-se uns aos outros? Será que foi porque não se contentavam com as aparências, com o faz de conta, com o mínimo, com o passado? Foi certamente por isto e por muitas outras razões. E nós, que estamos dispostos a aprender dos Magos e com eles?
Alguém escrevia: ‘Impressiona também – oxalá impressione, digo eu –, no relato de Mateus, a desinstalação dos Magos: viram a estrela, deixaram tudo, arriscaram tudo e vieram procurar Jesus. Somos capazes da mesma atitude de desinstalação, ou estamos demasiado agarrados ao nosso sofá, ao nosso colchão especial, à nossa televisão, à nossa aparelhagem? Somos capazes de deixar tudo para responder aos apelos que Jesus nos faz através dos irmãos e irmãs?
E eu acrescento: E se o caminho sinodal fosse mesmo a viagem que nos é pedida, neste Natal, hoje, a nós? E se a comunhão, a participação e a missão fossem mesmo o caminho que nos leva até Jesus e fazem com que Ele nasça em nós? E se a formação que nos é oferecida fosse mesmo o caminho que nos é proposto para sermos mais capazes de seguir por outro caminho, por caminhos novos?
Somos capazes da mesma atitude de desinstalação ou estamos demasiado agarrados e instalados nas nossas manias de que já sabemos tudo, já fazemos tudo bem, não precisamos de que ninguém nos venha dizer como se faz, sem sequer nos darmos conta de que não saímos do sítio, da cepa torta?
Pelo menos, tenhamos a ousadia de caminhar até ao Presépio com os nossos presentes mais ou menos desengonçados: a nossa Caridade demasiado limitada e feita de sobras, a nossa Esperança demasiado hesitante e mundana, a nossa Fé tão débil e magrinha que corre o risco de ficar esmagada pelo peso do nosso eu tão pesado, os nossos compromissos tão dependentes dos nossos humores, o nosso entusiasmo tão apagado… enfim, cada um que veja que os presentes desajeitados e mal-amanhados que traz. Uma coisa é certa, Jesus recebe-os a todos de bom coração e confia-os ao Pai. E o Pai há-de fazer alguma coisa com eles. Pelo menos, tenhamos a ousadia de caminhar até ao Presépio, como os Magos. Ámen.


Homilia (01-01-2023)

SANTA MARIA, MÃE DE DEUS

Homilia


Como escreveu o cardeal Tolentino Mendonça num belíssimo artigo, no Expresso de 23 de Dezembro passado, intitulado ‘O Presépio somos nós’ (é também o título de um seu poema de Natal): “Cada Homem é o presépio onde Deus nasce. Os presépios que se armam e, depois, tranquilamente se arrumam, os presépios a que reservamos um prazo determinado (e não mais do que isso), os presépios que apenas ilustram a inofensiva nostalgia dos símbolos não são presépios de verdade. O Presépio somos nós. É dentro de nós que um Deus nasce.”
Por isso, mesmo que alguns – talvez mesmo muitos – tenham ficado desiludidos, o nosso presépio, este ano, aqui, na igreja paroquial, não podia deixar de ter a marca sinodal, não podia deixar de nos fazer lembrar – é essa a função dos símbolos – o caminho sinodal que todos estamos chamados a fazer, caminhando juntos, ao encontro de Jesus e do seu Evangelho, redescobrindo e aprofundando o nosso Baptismo em Cristo, para sermos, para aprendermos a ser, cada vez mais, a Igreja sinodal que Deus espera para este terceiro milénio, como nos repete o papa Francisco. Neste momento, a mesa sinodal tem apenas a ‘perna frágil’ da solidariedade, o que a sustenta é aquela ‘pia baptismal’ revestida com os cacos levados por cada um dos participantes na primeira mesa sinodal e depois preenchido com o nome e a data do Baptismo. Quem sustenta a mesa sinodal somos nós, baptizados e disponíveis para ser a Igreja, a paróquia que estamos chamados a ser.
Por isso, o nosso Presépio – apenas Maria, José e o Menino nos braços de José – está colocado na Mesa sinodal que nos acompanha desde o dia 1 de Outubro e nos acompanhará até ao dia 1 de Julho, e que iremos continuar a construir, mês a mês, sempre no primeiro sábado. E o Presépio está aqui colocado para não nos deixar esquecer este processo de renovação da Igreja que todos temos de fazer, centrando-nos em Jesus. Temos de voltar sempre a Jesus e não ao que achamos ou deixamos de achar, ao que gostamos ou deixamos de gostar. O Evangelho, que é o próprio Jesus, a Palavra encarnada, é que é o centro da nossa fé. O Presépio está aqui assim colocado para nos fazer perceber que o Natal é mesmo uma festa para nos incomodar, quero dizer, com o papa Francisco, para nos converter, para não nos deixar na mesma, na tal inofensiva nostalgia que não nos leva a lado nenhum, muito menos a Cristo.
Num contexto social e mundial muito difícil, basta pensar nas consequências das alterações climáticas, na guerra da Ucrânia e na violência e desrespeito pela liberdade e dignidade das mulheres e dos homens, no Afeganistão, no Irão, na Síria e noutros países, nos refugiados, na instabilidade política, nas consequências da Covid 19; basta pensar na difícil situação da Igreja e na ‘tarde do cristianismo’. Neste contexto social eclesial e mundial, como é que nós vivemos a festa do Natal? No meio de tantos discursos destrutivos e pessimistas dos ‘profetas da desgraça’, saberemos e seremos capazes de escutar a Palavra que Deus diz à nossa Humanidade e à Igreja no acontecimento do Natal? Naquele Menino que ainda nem sequer sabe falar?
Se não estivermos atentos, como Maria, como José, como os pastores, como os Magos, o nascimento de uma criança deitado numa manjedoura corre o risco de passar despercebido e de parecer insignificante. Não aos outros, mas a nós também, que já fazemos o Presépio há tantos anos. Mas a verdade é que, ao tornar-se humano, o Filho de Deus vem abrir-nos caminhos de uma verdadeira transformação e humanização da nossa vida pessoal, da vida do nosso Mundo e também da Igreja que somos.
O acontecimento do Natal é Palavra de Deus que nos encoraja – nos desafia, nos urge – a participar activamente na construção de um mundo outro – não de outro mundo –, mais humano, mais justo, mais fraterno, mais pacífico; e de uma Igreja sinodal que seja mais comunhão, mais participação, mais missão, e menos, muito menos, manutenção do estado das coisas, dos mesmos hábitos e costumes.
Nós, cristãos, diante do Presépio, diante do Menino de Belém, somos chamados a ser inventivos, criativos e audaciosos para abrir caminhos de renovação e de transformação, na Igreja e no Mundo.
O caminho sinodal no qual a Igreja – a nossa paróquia – está comprometida oferece-nos uma oportunidade única de valorizarmos todas as iniciativas que abrem caminho a um mundo outro, mas também as que abrem caminho – e a Mesa sinodal é apenas uma delas – a uma Igreja outra, uma paróquia outra. Guiados sempre pela Palavra de Deus encarnada em Belém, Jesus Cristo, e pelo caminho que a Igreja traça diante de nós.
Foi mais longa esta homilia, peço desculpa por isso. Termino desejando que o Natal deste ano, esta esperança partilhada, esta Esperança que é Jesus nascido para nós, nos mobilize para fazermos de 2023 um bom ano (o ano sonhado por Deus), nos mobilize para o Caminho sinodal e nos mobilize – mobilize os Jovens – para a Jornada Mundial da Juventude. Um ano em que, guiados pela Luz de Belém e depois pela Luz da Páscoa; guiados pela Palavra encarnada em Belém e depois pela Palavra pregada na cruz, em Jerusalém, nos deixemos empurrar pelo Espírito Santo e caminhar apressadamente, como Maria, para levar a todos e todas a Boa Nova capaz de mudar os corações. Ámen.


Homilia (25-12-2022)

NATAL (Meia Noite)

Homilia


“Na tua casa e na tua sala, há lugar para quem e para quê?”, pergunta D. António Couto no seu comentário às leituras desta noite e dia de Natal.
Aqui, em frente à Mesa da Eucaristia, onde o Menino nascido em Belém, casa do pão, deitado na manjedoura, continua a fazer-se pão para nós, alimento de vida eterna para nós, é caso para nos perguntarmos: Na tua casa e na tua mesa, há lugar para quem e para quê?
Quero dizer, será que percebemos que da Mesa da Eucaristia temos de passar para a mesa da sinodalidade, que é a Mesa da Eucaristia, ao comermos o único pão, a fonte da comunhão entre nós? E que, por isso, não é possível sentar-se à Mesa da Eucaristia sem estar disponível para sentar-se à mesa da sinodalidade? Sem sentir uma imensa alegria por sentar-se à mesa da sinodalidade, com as irmãs e irmãos, partilhar a Palavra e partilhar o Pão, partilhar os sonhos e os desafios? Partilhar as dúvidas e os anseios? Crescer na amizade?
Perguntado de outra maneira: Será que já nos encontramos com Cristo? Será que já fomos encontrados por Cristo, que já nos deixámos encontrar por Cristo? Será que já nos pusemos mesmo diante do Presépio, ao lado dos pastores e dos magos e adorámos o Menino? Será que compreendemos a lição de Belém? Se não compreendemos Belém, não compreendemos a Eucaristia, se não compreendemos a Eucaristia não compreendemos Belém. Não há Natal sem Páscoa, nem há Páscoa sem Natal. É o mesmo Senhor, o mesmo Salvador. Como bem diz D. António Couto: “Note-se ainda o sinal dado aos pastores e a nós, leitores, um recém-nascido envolto em faixas numa manjedoura. É preciso também ver já aqui a Luz da Páscoa, com o corpo de Jesus a ser envolto num lençol e deposto num sepulcro”.
Não, o Natal não é a festa da família, como tantos fazem questão de dizer. É muito bom e importante reunir a família, mas o Natal é bem mais, muito mais do que isso. Na tua casa e na tua mesa, há lugar para quem e para quê? Há lugar para Cristo? É Ele que ocupa o lugar central?
Não, o Natal não é a recolha de bens e de coisas para distribuir pelos pobres. É muito bom e muito importante partilhar e ser solidário. Mas o Natal é mais, bem mais do que isso: não é dar coisas, é aprender a pobreza do Presépio, para se fazer pobre com os pobres, como Cristo fez; para fazer as opções e escolhas certas e justas, seja a relação fraterna com todos e todas, sejam quem forem, venham de onde vierem, seja com o cuidado da Casa Comum, não exagerando no consumo, não desperdiçando, diminuindo e separando o lixo, por exemplo.
Não, o Natal não é, como recebi de uma Associação, vizinhos, festa, comunidade, encontro. É isso também, mas é bem mais do que isso. O Natal é o melhor presente, o melhor dom de Deus. O Natal é a visita do próprio Deus que se nos oferece como fonte de vida plena e eterna. O Natal é Deus que Se faz humano, pessoa humana, para que nós possamos participar e ser habitados pela vida divina.
O que eu quero dizer é que tem de haver para cada um de nós um a.C. e um d. C., um antes de Cristo e um depois de Cristo. Tem de haver aquele encontro que muda a vida toda. Como na grande História se contam os anos a. C, e d. C., também a história pessoal de cada um de nós tem de ser vivida a. C. e d. C. Como aconteceu com Maria, José, Paulo, Francisco de Assis, Madre Teresa de Calcutá, Carlo Acutis, Joana de Portugal, Pedro Frassati, Clara Luz Badano e tantos outros e outras.
Como diz o poeta (José Augusto Mourão):

que um arcanjo ilumine o nosso caminho
ao menos uma vez!
que o arcanjo que velava à cabeceira da Criança
nos ensine a força da fraqueza,
a doçura irresistível dos não violentos,
a lei do perdão

que a Criança nos ensine
que o amor de adoração é sempre partilhado,
comunicativo

que o arcanjo ilumine o que nos faz
sempre partir: um rosto, a sede de justiça, o choro
ou a fome, a cegueira dos olhos
ou do coração,
Deus que nos moves para a adoração
e o louvor neste fim de tarde
e que alumias o mundo

Na minha casa, na minha mesa, há lugar para quem e para quê?
No meu coração, na minha vida, há um a.C. e um d. C.? Um antes de Cristo e um depois de Cristo?
Deus Menino, faz de mim um Presépio, um lugar para Ti, para eu ser um lugar para os outros. Ámen.

 

NATAL (Missa do Dia)

Homilia


O prólogo ou início do evangelho segundo São João, que a Igreja nos oferece, todos os anos, nesta Missa do Dia de Natal, é uma síntese meditativa – é uma meditação – de todo o mistério de Natal. Porque o Menino nascido para nós em Belém é a revelação de Deus, é a verdade de Deus e a verdade do Homem – do ser humano, de cada pessoa. Cada ano, sempre um passo mais adiante no caminho da nossa vida e da vida do Mundo, ao reflectir, ao celebrar e meditar este acontecimento, nós criamos condições e pomo-nos na atitude para compreender quem é Aquele que nasceu e quem somos nós. Repito: a revelação de Deus é também revelação do Homem, da pessoa humana. É diante de Deus, é diante do Menino de Belém que aprendemos o rosto de Deus, quem é Deus, e o rosto do Homem, o meu e o dos outros, de todos os outros, meus irmãos e minhas irmãs.
‘Oh, Senhor, nosso Deus e nosso Pai, concede a muitos, a todos e todas, e também a nós, poder celebrar o Natal caminhando juntos com reconhecimento, humildade, alegria e confiança para o Presépio, para Belém, para adorar o teu Enviado, Aquele em quem Tu mesmo vieste até nós, ao meio de nós.
Hoje, neste dia e todos os dias, Senhor, nosso Deus e nosso Pai, tem piedade de todos aqueles e aquelas que ainda não Te conhecem ou Te conhecem mal, a Ti e ao teu Reino; tem piedade daqueles e daquelas que talvez um dia souberam tudo, mas depressa o esqueceram, o entenderam mal ou o renegaram mesmo.
Tem piedade, Senhor, nosso Deus e nosso Pai, desta Humanidade hoje tão atormentada e tão ameaçada, entristecida por tanta insensatez. Ilumina os pensamentos daqueles que, de Oriente a Ocidente, detêm o poder e que, segundo parece, não sabem onde têm a cabeça. Para não falar sequer do coração. Concede aos homens e mulheres que governam, aos representantes dos povos, aos juízes, aos professores e aos funcionários, aos jornalistas, o discernimento e a imparcialidade que precisam para uma acção responsável que ajude na construção da Casa Comum da fraternidade e da amizade. O Presépio é a imagem dessa Casa Comum onde todos e todas têm lugar e são bem-vindos, a começar pelos mais pobres e humildes.
Por isso, Senhor, nosso Deus e nosso Pai, põe Tu mesmo, neste tempo de Natal, nos lábios dos que deverão pregar, as palavras justas, as palavras necessárias, as palavras que ajudam, e abre também os ouvidos e os corações daqueles e daquelas que os escutam.
Consola e anima quantos e quantas, nos hospitais, sofrem no corpo e na alma; aos prisioneiros, aos aflitos, aos abandonados e aos desesperados. Socorre-os com a única coisa que pode ajudar-nos a todos: a claridade da tua Palavra e a acção silenciosa do teu Espírito Santo.
Senhor, nosso Deus e nosso Pai, nós Te damos graças porque sabemos que nunca Te suplicamos nem suplicaremos em vão. Nós Te damos graças, porque fizeste brotar a tua luz, porque a tua luz brilha nas trevas e porque as trevas nunca poderão apaga-la. Nós Te damos graças porque és o nosso Deus e porque nos concedeste ser o teu povo.
Senhor, nosso Deus e nosso Pai, com José, homem do silêncio fecundo, e como Maria, a virgem da Palavra, que conservava todas estas coisas no seu coração e as meditava, também nós queremos ser testemunhas fiáveis e luminosas do Natal, acolhendo em nós o Verbo da vida, para O levarmos apressadamente pelas ruas e caminhos da nossa cidade e da nossa vida. Ámen.’ (A partir de uma oração de Karl Barth)


Homilia (18-12-2022)

(Para se compreender melhor a homilia, talvez seja bom começar pelas palavras iniciais que já apontam para a Beata Chiara Luce Badano)

4º DOMINGO DO ADVENTO/A
Orações


Saudação e monição inicial
‘A todos os que estais presentes nesta assembleia eucarística, amados por Deus e chamados a serdes santos, a graça e a paz de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo, esteja convosco’.

Chegamos ao quarto e último Domingo do Advento e, felizmente, este ano, vamos ter a semana inteira para podermos continuar a caminhar juntos para Belém, para o Natal, para o Presépio, acompanhando Maria e cantando com ela as Antífonas do Ó: desejar com ela que venha depressa o Nosso Salvador, o Filho de Deus gerado no seu ventre pelo Espírito Santo. Não desperdicemos esta oportunidade, esta graça que nos é dada.
Mas hoje, neste quarto Domingo, temos ainda uma santa jovem que também pode iluminar-nos e inspirar-nos para vivermos da alegria de sermos amados e amadas por Deus: Chiara Luce Badano. Até o seu nome é luminoso: Clara Luz.
Nasceu no dia 29 de Outubro de 1971, em Itália. Os pais tiveram muita dificuldade em engravidar, sendo Chiara uma filha muito desejada, depois de onze anos de casamento. Foi consagrada a Nossa Senhora logo em bebé e a mãe ensinou-a a rezar desde muito pequena.
(Deixem-me dizer que, na celebração comunitária dos baptismos, aqui na nossa paróquia, o último gesto é precisamente esse: convido os pais a trazerem uma flor e, neste momento, vão junto do altar de Nossa Senhora de Lurdes colocar a flor, enquanto cantamos um cântico mariano.)
Quando frequentava o 3º ano da escola conheceu o Movimento dos Focolares, que será muito importante para o desenvolvimento da sua vida cristã. Por exemplo, quando fez a Primeira Comunhão, em 1979, assumiu dois propósitos: ‘Tenho de estar muito atenta para não fazer com que a mãe se zangue, para não fazer nada feio, porque naquele dia vou receber Jesus’, e ‘Daqui em diante, terei de oferecer a Jesus mais atos de amor’. Tinha 8 anos. Há-de morrer, quase a fazer 19 anos, no dia 7 de Outubro, dia de Nossa Senhora do Rosário, de um tumor muito agressivo, depois de uma vida breve mas intensa, onde não faltou a prática do ténis e sobretudo o desejo de ser fiel ao Evangelho de Jesus. Ela dizia: “Não devo falar de Jesus, mas devo oferecer Jesus com o meu comportamento.”
O papa Francisco, ao propô-la como exemplo na Carta aos Jovens ‘Cristo Vive’, escreve: “A jovem Beata Clara Badano, que morreu em 1990, «experimentou como o sofrimento pode ser transfigurado pelo amor (...). A chave da sua paz e da sua alegria era a total confiança no Senhor e a aceitação também da doença como expressão misteriosa da sua vontade para o seu bem e para o bem de todos».
Ao acendermos a quarta vela da Coroa do Advento e ao cantarmos com Maria, deixemos que a beata Clara Luz, que era muito devota de Nossa Senhora, nos ilumine nesta quarta semana e nos ensine como deixar-nos guiar pela Luz do Evangelho.

 

4º DOMINGO DO ADVENTO/A
Homilia


“Graça a vós e Paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo”, assim saudava Paulo os cristãos da igreja de Roma. D. António Couto sublinha deste modo a importância desta saudação que é tudo menos banal ou mera boa educação: “Notemos, diz o biblista, que a locução «Graça e Paz» abre todas as cartas de São Paulo, e a «Graça» está em todas as saudações finais, fechando todas as cartas. A Graça e a Ação da Graça, continua ele, estão antes de tudo e preenchem tudo. Nesse sentido, é bom e justo que tomemos consciência de que não é mais suficiente um cristianismo convencional… É igualmente insuficiente a espiritualidade de militância… Um serviço pastoral que se reduza a “coisas que fazer” está gasto. Passou o tempo dos cristãos meramente “praticantes”. Hoje são necessários cristãos enamorados, à maneira de Jesus.”
Chiara Luce Badano é um bom exemplo deste enamoramento. E donde lhe vem este enamoramento, este desejo de ser à maneira de Jesus? O retrato que é feito dela no livrinho sobre os patronos da Jornada Mundial da Juventude diz assim: “Um dos traços importantes da espiritualidade de Chiara é o contacto próximo com o Evangelho em particular, e com a Sagrada Escritura, em geral. Como ela escreveu quando tinha 14 anos: «Redescobri o Evangelho sob uma nova luz. Compreendi que não era uma cristã autêntica porque não o vivia profundamente. Agora quero fazer deste livro magnífico o meu único objectivo da vida. Não quero e não posso continuar analfabeta de uma tão extraordinária mensagem.»
Depois, a vivência da Eucaristia, enquadrada no plano mais amplo da vida de oração. E também a devoção mariana.” Cujo centro é Jesus.
Trata-se sempre do mesmo Jesus, Filho de Deus Nosso Salvador, a Palavra feita carne, o Evangelho vivo, e a Eucaristia que recebemos na comunhão. É deste Jesus que temos de enamorar-nos, de quem somos discípulos e a quem somos chamados a seguir e a testemunhar. “Não devo falar de Jesus, mas devo oferecer Jesus com o meu comportamento,” como ela dizia.
São José, a grande figura inspiradora deste quarto Domingo, porque era justo, porque procurava ser fiel à vontade de Deus, percebeu – mesmo que em sonhos – que devia ficar ao lado de Maria, para que assim se pudesse cumprir o desígnio de Deus, para que a salvação de Deus pudesse chegar a todos os homens e mulheres. Com toda a humildade, sem dizer uma única palavra, enamorada de Maria, mas ainda mais enamorado de Deus, ele há-de compreender e aceitar, por causa desse enamoramento, a missão que Deus lhe queria confiar. Deus precisava dele e ele aceitou também entregar-se à vontade de Deus, como Maria.
É isso que Deus nos pede e propõe hoje a nós. Sabendo, como dizia Clara Badano que ‘Deus nos ama imensamente’, entregar-nos a Ele e à sua vontade, mesmo que nos pareça difícil, mesmo que tenhamos pensado fazer outra coisa. Deus precisa de nós, hoje.
Neste quarto e último Domingo do Advento, que São José e a beata Clara Badano nos ensinem a descobrir qual o sonho de Deus para cada um de nós, e nos ensinem a confiar nesse sonho e a confiar-nos a esse sonho. Deus não é complicado, é justo, subtil, leve como um sonho, misterioso como um sonho, precioso como um segredo…
Maranathá! Vem, Senhor Jesus!


Homilia (11-12-2022)

(Para se compreender melhor a homilia, talvez seja bom começar pelas palavras iniciais que já apontam para o Beato Frassati)

32º DOMINGO DO ADVENTO/A
Orações

Saudação e monição inicial
A alegria e a paz, a paciência e o amor do Senhor Jesus que vem salvar-nos estejam convosco.

Estamos já no terceiro Domingo do Advento, o chamado Domingo da alegria, como cantávamos e como a primeira leitura sobretudo nos vai dizer.
Mas de que falamos quando falamos de alegria, nós, os cristãos? De um sentimento? Da euforia por ter saído o euro milhões ou termos sido campeões? De uns sorrisos mais ou menos simpáticos e tantas vezes postiços, a fazer de conta? Não tudo isso é demasiado efémero e exterior.
Socorro-me do papa Francisco que falou da alegria cristã numa das suas homilias: Mas «o que é a alegria?» questionou-se Francisco. É a respiração do cristão. A alegria «não é algo que se compra ou que se obtém com esforço: não, é um fruto do Espírito Santo». «Alegria não significa viver de risada em risada, não, não é isso» admoestou o Pontífice. A «alegria — acrescentou — não é ser engraçado, não, não é isto, é outra coisa». Porque «a alegria cristã é a paz, a paz que se encontra nas raízes, a paz do coração, a paz que somente Deus nos pode dar: esta é a alegria cristã».
É exemplo desta alegria cristã o beato Pier Giorgio Frassati, um dos quatro santos jovens que nos acompanham, iluminam e inspiram neste Advento a caminho da Jornada Mundial da Juventude. Nascido numa família da alta burguesia italiana, certamente talhado para outros voos, acabou por ser encontrado por Cristo e percebeu que só havia uma maneira de viver: sendo, como ele disse, ‘um homem completo e um cristão pleno’. Escreveu ele que morreu aos 24 anos de uma poliomielite fulminante: “Viver sem nenhuma fé, sem um património a defender, sem defender através de uma luta contínua a Verdade, não é viver, mas envelhecer. Nós não podemos envelhecer, mas viver.”
Cada Advento é-nos oferecido para isso mesmo, para vivermos, acolhendo Aquele que é a nossa vida: Cristo vivo que quer encher de alegria e de graça a nossa vida, como encheu a vida de Maria, de Frassati e de tantos outros e outras.
Ao acendermos a terceira vela da Coroa do Advento e ao cantarmos com Maria, deixemos crescer no nosso coração o ardente desejo de sermos ‘um homem completo, uma mulher completa, e um cristão pleno, uma cristã plena’.

32º DOMINGO DO ADVENTO/A
Homilia

Se repararmos bem nas palavras do profeta e nas palavras de Jesus, a fé é sempre – tem de ser sempre – um dinamismo transformador: da nossa vida, da vida dos outros e da vida do Mundo.
É verdade que o fundamento da espiritualidade de Pier Giorgio Frassati é a vivência do Baptismo: descobrir-se cada vez mais como filho de Deus e descobrir as melhores formas de viver como filho de Deus. É verdade que ele encontrou e alimentou e fortaleceu essa espiritualidade no encontro com Cristo na Eucaristia. O próprio papa Francisco, ao falar dele na Exortação Apostólica Cristo Vive, dirigida especialmente aos jovens, citou estas palavras de João Paulo II também elas dirigidas aos jovens, em Turim: O beato Pier Giorgio Frassati, que morreu em 1925, era um jovem de uma alegria contagiosa, uma alegria que também superava as inúmeras dificuldades da sua vida. Dizia que tentava retribuir o amor de Jesus que recebia na comunhão, visitando e ajudando os pobres.”
De facto, a celebração da Missa terá o lugar central da sua oração, assim como a adoração do Santíssimo. Com efeito, o seu empenho por ajudar os mais pobres nasce de uma consciência aprofundada do que é a Eucaristia: se Jesus o visita através deste sacramento, ele retribui o encontro com Jesus visitando-O nos mais pobres e fragilizados. Para ele era isto ser um cristão pleno e viver o Baptismo, viver como filho de Deus. E ele concretizou isto comprometendo-se, por exemplo, com a Conferência de São Vicente de Paulo, cujo carisma é precisamente ajudar os pobres – não os pobrezinhos, coitadinhos – fazer-se próximo deles, estar e caminhar ao lado deles, não apenas dar-lhes coisas: fazer-se pobre com os pobres, como Jesus fazia e disse aos mensageiros enviados por João Baptista: “Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos vêem, os coxos andam, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres.”
Mas concretizou também essa dimensão social – prática, se quisermos – da Eucaristia com a sua intervenção política, participando politicamente na construção de uma sociedade mais livre, mais justa, mais atenta aos que sofrem. E cito estas palavras sobre Frassati, no livrinho que foi publicado sobre os santos patronos da Jornada Mundial da Juventude: “Como homem completo, vemos como desenvolve as qualidades que o tornam uma pessoa agradável: simpatia pessoal, vontade de estar com os amigos, alegria interior, pureza de coração, amor pelo desporto e pela beleza da natureza, desejo de praticar o bem. O nosso jovem une estas qualidades humanas às qualidades espirituais, que fazem dele um cristão pleno, como a oração íntima com Deus, a fé inabalável e o empenho social. Como base de toda a sua vida, está o amor a Deus, que se traduz em amor pela Igreja, pelo mundo e pelos outros. Ora aqui está um bom programa para o Advento, a caminho da Jornada Mundial da Juventude e em caminho sinodal: redescobrir e aprofundar o Baptismo e amar a Deus, sabendo que esse amor se concretiza no amor à Igreja crescendo na comunhão e na participação para que ela se renove, e cresça na missão de amar o mundo e os outros levando-lhes a alegria do Evangelho, Cristo vivo, que é a luz e a salvação. Maranathá! Vem, Senhor Jesus!


Homilia (04-12-2022)

PAPA FRANCISCO
ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 4 de dezembro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia, feliz domingo!

Hoje, segundo domingo do Advento, o Evangelho da Liturgia apresenta-nos a figura de João Batista. O texto diz que «trazia um traje de pelos de camelo», que se «alimentava de gafanhotos e mel silvestre» (Mt 3, 4) e que convidava todos à conversão: «Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus» (v. 2). Ele pregou a proximidade do Reino. Em suma, um homem austero e radical, que à primeira vista pode parecer um pouco duro e incutir algum temor. Mas, então perguntemo-nos: por que a Igreja o propõe todos os anos como o principal companheiro de viagem durante este tempo de Advento? O que está por detrás da sua severidade, por detrás da sua aparente dureza? Qual é o segredo de João? Qual é a mensagem que a Igreja nos transmite hoje com João?

Na realidade, o Batista, mais do que um homem duro, é um homem alérgico à duplicidade. Por exemplo, quando fariseus e saduceus, conhecidos pela sua hipocrisia, se aproximam dele, a sua “reação alérgica” é muito forte! De facto, alguns deles, provavelmente vieram ter com ele por curiosidade ou oportunismo, pois João tinha-se tornado muito popular. Aqueles fariseus e saduceus sentiam-se justos e, perante o apelo do Batista, argumentavam dizendo: «Temos por pai a Abraão» (v. 9). Assim, entre duplicidades e presunção, não aproveitaram a ocasião de graça, a oportunidade de começar uma vida nova; estavam fechados na presunção de serem justos. Por isso João diz-lhes: «Produzi frutos dignos de arrependimento!», (v. 8). É um grito de amor, como o de um pai que vê o filho arruinado e lhe diz: “Não deites fora a tua vida!”. Com efeito, prezados irmãos e irmãs, a hipocrisia é o maior perigo, porque pode arruinar também as realidades mais sagradas. A hipocrisia é um grave perigo! É por isso que o Batista - como depois também Jesus - é duro com os hipócritas. Podemos ler, por exemplo, o capítulo 23 de Mateus, onde Jesus fala tão energicamente aos hipócritas da época! E por que fazem isto o Batista e também Jesus? Para os despertar. Mas, aqueles que se sentiam pecadores «iam ter com ele e eram por ele batizados» (v. 5). É assim: para acolher Deus, não importa a habilidade, mas a humildade. Esta é a maneira de acolher Deus, não a bravura: “somos fortes, somos um grande povo...”, não, a humildade: “sou um pecador”; mas não em abstrato, não, “por isto, isso e auilo”, cada um de nós deve confessar, antes de mais a si mesmo, os próprios pecados, as próprias falhas, as próprias hipocrisias; devemos descer do pedestal e mergulhar na água do arrependimento.

Estimados irmãos e irmãs, João, com as suas “reações alérgicas”, faz-nos refletir. Não somos por vezes também um pouco como aqueles fariseus? Talvez olhemos para os outros de cima para baixo, pensando que somos melhores do que eles, que temos a nossa vida nas mãos, que não precisamos todos os dias de Deus, da Igreja, dos irmãos. Esquecemos que existe apenas um caso em que é lícito olhar para o outro de cima para baixo: quando é necessário ajudá-lo a levantar-se; o único caso, os outros não são lícitos. O Advento é um tempo de graça para tirar as nossas máscaras - cada um de nós as tem - e pôr-se na fila com os humildes; para nos libertarmos da presunção de acreditarmos que somos autossuficientes, para irmos confessar os nossos pecados, os escondidos, e receber o perdão de Deus, para pedirmos desculpa a quantos ofendemos. Começa assim uma nova vida. E o caminho é apenas um, o da humildade: purificar-nos do sentido de superioridade, do formalismo e da hipocrisia, para ver os outros como irmãos e irmãs, pecadores como nós, e ver em Jesus o Salvador que vem por nós - não pelos outros, por nós - como somos, com as nossas pobrezas, misérias e defeitos, sobretudo com a nossa necessidade de sermos levantados, perdoados e salvos.

E lembremo-nos de mais uma coisa: com Jesus há sempre uma oportunidade de recomeçar: nunca é tarde demais, há sempre a possibilidade de recomeçar. Tende coragem, Ele está próximo de nós e este é um tempo de conversão. Cada um pode pensar: “Tenho esta situação aqui dentro, este problema que me faz envergonhar...”. Mas Jesus está ao teu lado, recomeça, há sempre a possibilidade de dar um passo a mais. Ele espera por nós e nunca se cansa de nós. Nunca se cansa! E nós somos tediosos, mas Ele nunca se cansa. Ouçamos o apelo de João Batista para voltarmos a Deus, e não deixemos passar este Advento como os dias do calendário, pois este é um tempo de graça, de graça também para nós, agora, aqui! Que Maria, a humilde serva do Senhor, nos ajude a encontrar a Ele e aos irmãos no caminho da humildade, que é a única que nos fará ir em frente.


Homilia (20-11-2022)

CRISTO-REI

Estamos a celebrar, neste último Domingo do Ano Litúrgico, a solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo. Comecemos por escandalizar-nos – surpreender-nos, se quiserem – pela passagem do Evangelho que escutámos. Quem está diante de nós é um malfeitor crucificado no meio de malfeitores e gozado, ridicularizado, pelos chefes dos judeus, pelos soldados e por um dos malfeitores crucificados com Ele. É isso que significa para eles a frase que escreveram: “Este é o Rei dos judeus.” Só podem estar a brincar, claro. Como é que pode ser rei, alguém assim pregado numa cruz, despojado das suas vestes e abandonado!
Mas então, se nós estamos a celebrar a solenidade de Cristo-Rei e se é este mesmo o nosso Rei, então temos muito que pensar. E que mudar. E quem nos ensina é o outro malfeitor, aquém nós chamamos ‘o bom ladrão’.
Nós não sabemos qual é a fé desse malfeitor. O que sabemos, porque o ouvimos da sua boca, é que ele compreende que Jesus não é um impostor nem um simples homem. Ao olhar Aquele homem crucificado ali ao seu lado, talvez tenha pressentido no silêncio soberano de Jesus, no olhar misericordioso de Jesus quando ouvia os insultos; talvez ele tenha percebido a verdadeira realeza, a verdadeira autoridade que vem do amor e da entrega. Por isso, ele ousou dizer esta bela oração: “Jesus, lembra-te de mim, quando vieres com o teu Reino”. E pôde ouvir ele da boca de Jesus: “Hoje, estarás Comigo no paraíso”.
Por isso. D. António Couto diz que este malfeitor – o bom ladrão – é o primeiro teólogo da Crus: foi o primeiro a compreender o poder salvador do Crucificado, foi o primeiro a compreender, e a acolher, a palavra salvadora dita pela Cruz e na Cruz. E cita um texto belíssimo de São João Crisóstomo, do fim do século IV, início do século V: “Este ladrão roubou o paraíso. Ninguém antes dele ouviu uma promessa semelhante: nem Abraão, nem Isaac, nem Jacob, nem Moisés, nem os profetas, nem os Apóstolos. O ladrão entrou à frente deles todos. Mas também a sua fé ultrapassou a deles. Ele viu Jesus atormentado e adorou-O como se estivesse na glória. Viu-O pregado a uma cruz e suplicou-Lhe como se O tivesse visto no trono. Viu-O condenado e pediu-Lhe uma graça como se faz a um rei. Ó admirável malfeitor! Viste um homem crucificado e proclamaste-O Deus!”
Pegando na palavra de São João Crisóstomo, pergunte-se cada um de nós: Que estou disposto a fazer para roubar o paraíso? Sei, ao menos, que venho à Eucaristia para dizer a Jesus: Lembra-Te de mim, quando vieres com o teu Reino; e para ouvi-l’O dizer-me a mim: Hoje estarás cominho no Paraíso. A Eucaristia é o «hoje» da nossa salvação. Ámen.


Homilia (13-11-2022)

33º DOMINGO COMUM/C

No Sábado passado, no salão dos nossos Bombeiros, a Mesa da Sinodalidade tinha como ponto de partida a ‘Fantasia da Caridade’. O padre Jorge Cunha sublinhou como os cristãos, a partir de Cristo e do seu Evangelho, inventaram – criaram – relações novas. Inventaram a Fraternidade. Todos somos irmãos e irmãs. E há um gesto na Eucaristia que hoje, passados dois mil anos, continua a ser sinal disso mesmo. Porque esse gesto é tantas vezes mal-entendido e reduzido a uma esmolinha que não mexa muito na carteira, vale a pena ouvir estas palavras do papa Francisco, na sua Mensagem para este 6º Dia Mundial dos Pobres, estou a falar da recolha das ofertas ou ofertório, quando passamos da Mesa da Palavra para a Mesa da Eucaristia. Escreve o papa:
“Neste contexto tão desfavorável – o papa refere-se concretamente aos pobres gerados pela insensatez da guerra –, situa-se o VI Dia Mundial dos Pobres, com o convite – tomado do apóstolo Paulo – a manter o olhar fixo em Jesus, que, «sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9). Na sua visita a Jerusalém, Paulo encontrara Pedro, Tiago e João, que lhe tinham pedido para não esquecer os pobres. De facto, a comunidade de Jerusalém debatia-se com sérias dificuldades devido à carestia que assolara o país. O Apóstolo preocupou-se imediatamente em organizar uma grande coleta a favor daqueles pobres. Os cristãos de Corinto mostraram-se muito sensíveis e disponíveis. Por indicação de Paulo, em cada primeiro dia da semana recolhiam quanto haviam conseguido poupar e todos foram muito generosos.
Como se o tempo tivesse parado naquele momento, também nós, cada domingo, durante a celebração da Santa Missa, cumprimos o mesmo gesto, colocando em comum as nossas ofertas para que a comunidade possa prover às necessidades dos mais pobres. É um sinal que os cristãos sempre cumpriram com alegria e sentido de responsabilidade, para que a nenhum irmão e irmã faltasse o necessário. Já o testemunhava no século II São Justino que, ao descrever ao imperador Antonino Pio a celebração dominical dos cristãos, escrevia: «No dia do Sol, como é chamado, reúnem-se num mesmo lugar os habitantes, quer das cidades quer dos campos, e leem-se, na medida em que o tempo o permite, ora os comentários dos Apóstolos ora os escritos dos Profetas. (…) Seguidamente, a cada um dos presentes se distribui e faz participante dos dons sobre os quais foi pronunciada a ação de graças, e dos mesmos se envia aos ausentes por meio dos diáconos. Os que possuem bens em abundância dão livremente o que lhes parece bem, e o que se recolhe põe-se à disposição daquele que preside. Este socorre os órfãos e viúvas e os que, por motivo de doença ou qualquer outra razão, se encontram em necessidade, assim como os encarcerados e hóspedes que chegam de viagem; numa palavra, ele toma sobre si o encargo de todos os necessitados».
E o papa dá uma indicação muito clara: «Quanto mais cresce o sentido de comunidade e de comunhão como estilo de vida, tanto mais se desenvolve a solidariedade».
Dito isto, acrescento duas reflexões:
«Quando sucederá isto?», perguntam os discípulos e perguntamos nós que continuamos a fazer as perguntas erradas. Mas Jesus não responde ao quando, ou ao onde. Jesus indica como caminhar, como viver: com perseverança, com fidelidade, como testemunhas. Porquê? Porque o quando é agora. Agora é que é preciso transformar o mundo; agora é que é preciso viver a fraternidade; agora é que é preciso caminhar juntos e crescer na comunhão, na participação e na missão; agora é que é preciso ser pobre e fazer-se próximo dos pobres; agora é que é preciso converter-se, deixar o meu caminho e seguir atrás de Jesus pelo caminho do Evangelho- agora, não depois.
Claro que é importante saber como vai acabar, mas é ainda mais urgente decidir-se a começar. O único tempo certo é o da conversão. E esse deve acontecer cada dia.


Homilia (06-11-2022)

32º DOMINGO COMUM/C
Orações

Como ouvimos, o objectivo dos saduceus era ridicularizar a fé na vida depois da morte. Eles eram pessoas ‘realistas’ e muito pragmáticas que só acreditavam no que viam e palpavam, e não iam nessas balelas e ilusões da ressurreição e da vida eterna. Acreditavam na Lei de Moisés e liam a Palavra de Deus, mas depois da morte não havia mais nada. De facto, e é importante ter noção disto, a fé explícita e clara na ressurreição e na vida eterna está praticamente ausente em quase todo o Antigo Testamento. Portanto, os saduceus, não estavam assim tão mal informados.
Hoje, e ao contrário do que possamos pensar, há muitos cristãos como os saduceus, para os quais essa coisa da eternidade não diz nada e se afigura pouco interessante. Continuam a ser grandes os equívocos, os enganos acerca do que é ressurreição e a vida eterna. E é esses equívocos que Jesus quer desmontar. Por isso, não dá resposta à pergunta ridícula dos saduceus, mas convida-os – e convida-nos hoje a nós – a pensar – a acreditar – de outra maneira.
Três sublinhados:
A ressurreição será uma transfiguração, não uma reprodução. Quer dizer, é preciso desfazer o equívoco, o engano, de pensar que a vida eterna será simplesmente como que uma prolongação, depois da morte, da existência aqui na terra. Não, o mundo que há-de vir não será um decalque deste mundo; nem a vida eterna uma reprodução ampliada desta vida. Será uma vida ressuscitada. Jesus apenas a sugere, ao dizer que ‘seremos como os anjos’, mas nós não sabemos como são os anjos, a não ser que cantam eternamente os louvores de Deus; e que ‘seremos filhos de Deus’, anunciando a plenitude da relação de intimidade como a que existe entre o Pai e Jesus.
Temos duas certezas, segundo as palavras de Jesus: “Deus não é um Deus de mortos, mas de vivos” e “para Ele todos estão vivos”. Portanto, negar a Ressurreição é negar a vida e equivale a negar a própria existência de Deus. Repito o que disse no início: Deus nunca é tão Deus como quando ressuscita os seus filhos e filhas. A palavra Ressurreição equivale à palavra Deus. Quem diz Deus diz ressurreição e quem diz ressurreição diz Deus. A fé na ressurreição não é fruto da minha necessidade ou desejo de existir para além da morte, mas dom do amor de Deus que quer os seus filhos e filhas vivos para sempre. Por isso, a fé não é o cumprimento mais ou menos escrupuloso de certos rituais ou devoções, mas esta confiança absoluta no amor de Deus que nos oferece a vida para sempre no seu Reino.
Senhor, eu creio, mas aumenta a nossa fé.


Homilia (30-10-2022)

31º DOMINGO COMUM/C
Orações

Num dos textos publicado no site da paróquia, na última semana, uma mulher escreve assim: “Andei na Catequese, no Grupo de Jovens, fiz parte do Coro Infantil, depois do Coro Juvenil e depois do Coro adulto numa paróquia que me viu crescer, me ajudou no caminho, se tornou casa… Animei retiros espirituais – fiz outros tantos – fui a pé a Fátima e fui animadora de grupos de jovens.
Mudei de cidade, mas encontrei uma paróquia onde me integrei e voltei a assumir responsabilidades: servi enquanto leitora, fiz parte do Conselho Pastoral e da equipa que garantia o boletim de informação paroquial.
Casei-me na igreja matriz dessa nova casa e lá batizei a minha filha… Sou Católica desde que me conheço e sempre preguei o Amor que me ensinaram – em casa e nos lugares por onde tive a sorte de passar – sem entender por que havia tantas pessoas a duvidar de que a Igreja era lugar desse Amor que eu sempre encontrara e que vivia diariamente.
Até ao dia em que me separei.
Quando me separei, e ao contrário do que esperara (e do que precisava!), não pude voltar da mesma forma à casa que sempre me acolhera e de que tanto precisava. Os sacerdotes evitavam falar-me – salvo raras e importantíssimas exceções –, os antigos colegas de coro, de ministério do leitor, os vizinhos de banco nas eucaristias semanais preferiam ignorar a minha presença…os olhares mudaram, as bocas silenciaram, a distância fez-se sentir como uma espécie de rochedo que foi crescendo para me tapar uma porta que, de repente, me queriam dizer que já não podia passar.”
Tendo presente este testemunho e a história de Zaqueu, só duas reflexões muito breves.
Primeira: “Zaqueu procurava ver quem era Jesus, mas, devido à multidão, não podia vê-l’O, porque era de pequena estatura”. «Note-se bem, escreve D. António Couto, que a narrativa não diz que Zaqueu procurava ver Jesus, o que equivaleria a ver o seu rosto, o seu aspecto, a roupa que vestia…Diz antes que Zaqueu procurava ver quem era Jesus. Entenda-se, portanto, que o que Zaqueu procurava ver não era o rosto, o aspecto, o exterior de Jesus, mas a sua identidade, a sua intimidade, o seu modo de ser e de viver.» E acrescenta o narrador que Zaqueu não conseguia ver quem era Jesus por causa da multidão, por ser de pequena estatura. Mas o problema não eram os centímetros a menos. O problema é que Zaqueu era publicano, chefe de publicanos, e portanto traidor da sua pátria, colaboracionista com os ocupantes romanos, cobrador de impostos aos seus irmãos por conta dos romanos, explorador ladrão. Não tinha salvação. Aos olhos dos impecáveis e naturalmente ‘muito católicos’, dos decentes e sérios, dos ‘puros e santos’, era um pecador público sem hipótese de perdão, um excluído. “Salta à vista, diz D. António Couto, que não podia estar no meio da multidão, porque, se esta o descobrisse, o cobriria de insultos, cuspidelas, pontapés…”
Quantas vezes é que eu/cada um de nós já não impedimos alguém de ver quem é Jesus?
Segunda coisa: “Senhor, vou dar aos pobres metade dos meus bens e, se causei qualquer prejuízo a alguém, restituirei quatro vezes mais”, diz Zaqueu a Jesus, depois de Jesus se ter feito convidar e entrar na sua casa de pecador e de perdido.
Escreve D. António Couto: “Conclusão sempre nova para Zaqueu e para nós: Zaqueu não dá aos pobres para ser salvo, mas porque foi salvo.” Dito de outra maneira: Zaqueu só se resolveu a ser generoso após o encontro com Jesus e após ter feito a experiência do amor de Deus. O amor de Deus não se derramou sobre Zaqueu depois de ele ter mudado de vida, mas foi o amor de Deus que provocou a conversão e lhe fez mudar a vida.
Será que eu/cada um de nós já me deixei encontrar alguma vez, verdadeiramente, pelo amor de Deus revelado em Jesus?


Homilia (23-10-2022)

30º DOMINGO COMUM/C
Orações

Gostemos ou não – e eu tenho a impressão que não gostamos muito – a verdade é que Deus também é juiz, como dizia logo a primeira frase da primeira leitura e como mostrava a passagem do Evangelho. O amor, a misericórdia e a bondade de Deus não O deixam indiferente. Não é tudo igual para Ele. Não tanto faz. Ele é imparcial, mas não impassível. Está claramente do lado dos pobres, dos indefesos, dos oprimidos, dos que são vítimas de injustiça. A imparcialidade de Deus é a sua parcialidade, quer dizer, a sua preferência descarada pelos humildes e pecadores que confiam n’Ele e Lhe abrem o coração, porque sabem que só Ele pode salvar.
De facto, tanto quanto parece, Deus não suporta a arrogância exibicionista dos poderosos e convencidos que são melhores que os outros. Dos que são de tal modo convencidos de si mesmos que nem sequer precisam de Deus. Para aquele fariseu, Deus é inútil e irrelevante, é ele que se salva a si mesmo, que ganha a salvação com a soma de todas as coisas boas que faz. Aquele fariseu não tem nada a receber, nada a aprender, sabe perfeitamente o que é bem e o que é mal, e até sabe que o mal e os maus são os outros. Por isso, a sua oração – ele acha que é oração mas, de facto, não é – consiste em informar Deus dos seus méritos. O fariseu diz palavras ao espelho, vê-se apenas a si mesmo. Verdadeiramente, ele é um ateu, não acredita, não confia em Deus. Acredita e confia apenas em si mesmo. Reza para si, contempla-se a si mesmo, ouve-se a si mesmo. Tantas palavras e tantos méritos tornam a sua reza tão pesada que nem sequer é capaz de chegar ao tecto do Templo.
O publicano, esse terrível pecador aos olhos do fariseu, faz o contrário: reza voltado para Deus, consciente de ser pecador, isto é, de precisar da graça e da misericórdia de Deus. Reza como se dissesse: sou um ladrão, bem sei, mas assim não estou bem; não sou honesto, bem sei, mas não estou contente; gostaria de ser diferente, mas não consigo; por isso, Tu, Deus, perdoa-me e ajuda-me. Orar verdadeiramente é isso, saber que só Deus nos pode converter, nos pode mudar, nos pode santificar, justificar, como diz o texto. Deus também é juiz na oração: nem tudo aquilo que achamos que é oração é verdadeira oração. Como dizia a primeira leitura, só a oração humilde atravessa as nuvens. São tão poucas as palavras e nenhuns os méritos do publicano que a sua oração chega aos céus.
No fundo, o que está em causa na oração é a fé, quer dizer, a imagem que fazemos de Deus. E esta nem sempre é aquela que aprendemos de Jesus. Infelizmente, muitas vezes ainda continuamos a ver Deus com o livro do Deve e do Haver na mão, a fazer contas, quando Ele deseja apenas que confiemos no seu amor, que saibamos que somos infinitamente amados por Ele e que vivamos dessa fonte do seu amor. Como são Paulo. Ámen.


Homilia (16-10-2022)

29º DOMINGO COMUM/C
Orações

Saudação e monição inicial
A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor misericordioso do Pai e força transformadora da Palavra do Espírito, estejam convosco.

Daqui a pouco, a primeira leitura – que nos prepara para escutar a passagem do Evangelho – vai mostrar-nos Moisés em intensa oração: oração perseverante, de todo o seu coração e com todo o seu corpo. Tão intensa que até precisou de ajuda para manter os seus braços levantados. A oração é um exercício exigente, que envolve todo o nosso corpo e todo o nosso espírito: é todo o nosso ser que ora, que celebra.
Assim acontece na Eucaristia. Deixem-me citar estas palavras do papa Francisco na sua pequena, mas preciosa, carta sobre a Liturgia: «Escreve Guardini: “Devemos entender quão profundamente estamos entrincheirados no individualismo e no subjetivismo, quão desacostumados perante o apelo que nos vem das coisas “grandiosas” e quão pequena é a medida da nossa vida religiosa. Devemos recuperar o sentido da “grandeza” da oração, a vontade de nela implicar também a nossa existência. Mas a maneira de o conseguir é através da disciplina, abandonando um sentimentalismo doentio, através de um trabalho sério, realizado em obediência à Igreja, sobre o nosso ser e agir religiosos”. É assim que se aprende a arte de celebrar.
É uma atitude que todos os batizados são chamados a viver. Penso em todos os gestos e palavras que pertencem à assembleia: reunir-se, caminhar em procissão, sentar-se, estar de pé, ajoelhar-se, cantar, ficar em silêncio, aclamar, olhar, ouvir. Todos juntos, fazendo o mesmo gesto, todos falando juntos numa só voz – isso transmite a cada um a força de toda a assembleia. Não se trata de seguir um livro de etiqueta litúrgica: trata-se antes de uma “disciplina” – no sentido usado por Guardini – que, se observada com autenticidade, nos forma… Não são a explicação de um ideal em que nos inspiramos, mas sim uma ação que envolve o corpo na sua totalidade, ou seja, em ser uma unidade de corpo e alma.» (50,51)

Não tenhamos medo de nos entregarmos à música de Deus, ao seu jogo e à sua dança; nem tenhamos vergonha de participar com alegria e entusiasmo na celebração. Só assim podemos apoiar-nos uns aos outros, como Hur e Aarão fizeram com Moisés.

O Senhor é o nosso auxílio, o Senhor é a nossa salvação e o nosso abrigo. Ergamos a nossa voz, do mais fundo do coração, e invoquemos a sua ternura, a sua bondade, a sua misericórdia.

(canta-se o Senhor, tende piedade de nós)

 


29º DOMINGO COMUM/C
Homilia

Depois da semente pequenina, muito pequenina, que é a fé, mas que pode virar do avesso a nossa vida se a deixamos germinar e crescer no coração; depois do samaritano leproso curado, agradecido a Jesus e salvo, eis-nos hoje perante uma viúva desprotegida socialmente, economicamente e juridicamente, mas persistente no seu clamor pela justiça.
Logo no início da passagem, o narrador dá-nos a chave para podermos abrir a porta da parábola e compreendê-la correctamente: “Jesus disse aos seus discípulos uma parábola sobre a necessidade de orar sempre, sem desanimar.”
Hoje – uma palavra fundamental no Evangelho segundo São Lucas, que é precisamente conhecido como o Evangelho da oração, porque é o evangelho que contêm as mais belas orações e onde Jesus aparece mais vezes a rezar – hoje, Jesus, a nós que algumas vezes duvidamos da eficácia da oração e até chegamos a pensar que Deus não nos ouve, diz-nos uma parábola sobre a necessidade de orar sempre, sem descanso. Porquê? Para lembrar a Deus as minhas necessidades e dificuldades? Para convencer Deus a voltar-se para mim? Para conseguir que Deus faça a minha vontade e o que lhe peço?
Não, não é para isso que rezamos, que Deus ama-nos e bem sabe do que precisamos. Nós oramos para que a nossa fé e a nossa confiança se mantenha acesa. Nós oramos para mantermos o diálogo permanente com Deus, porque sabemos que é nesse diálogo que vamos entendendo, pouco a pouco, e às vezes com tanta dificuldade, os projectos e ritmos de Deus; porque é nesse diálogo que Deus transforma os nossos corações; é nesse diálogo que aprendemos a entregar-nos nas mãos de Deus e a confiar n’Ele como uma criança se entrega e confia ao colo da mãe.
Nós não oramos para converter o coração de Deus, que não precisa de ser convertido, tal é o seu amor por nós, mas para deixarmos converter o nosso coração a esse amor de Deus. E essa conversão é lenta, muito lenta, dura a vida inteira. Por isso, temos de orar sempre, sem descanso.
“Mas quando voltar o Filho do homem, encontrará fé sobre a terra”, pergunta-nos, agora, hoje, Jesus. E qual é o sinal dessa fé que permanece para sempre? É a oração, paciente e persistente, que mantém a porta sempre aberta para Deus, mesmo que seja uma pequena fresta, mesmo que seja uma luz pequena no meio da noite mais escura.
Senhor, ensina-nos a orar.


Homilia (09-10-2022)

28º DOMINGO COMUM/C

“Levanta-te e segue o teu caminho; a tua fé te salvou”, diz Jesus ao único leproso que voltou atrás para Lhe agradecer. Como no Domingo passado, também hoje é a questão da fé que está em causa. E tendo presente o episódio narrado unicamente por São Lucas, podemos dizer, desde já, que a fé é confiar e agradecer. O cristão não é aquele que pede graças ou recebe graças, é aquele que dá graças- Pensando na Eucaristia dominical, podemos dizer que exactamente isso que fazemos: estamos aqui porque Jesus nos disse, na véspera da sua paixão, na Última Ceia: «Fazei isto em memória de Mim»; e estamos aqui para Lhe agradecer a sua entrega na Cruz para nos salvar. Oxalá aprendamos sempre mais a celebrar, participar e viver a Eucaristia como acção de graças, e não como um preceito ou uma obrigação ou um frete para nos livrarmos da ira de Deus.
Mas voltemos ao episódio do evangelho que deve ser bem interpelador para nós. No princípio, para pedir a cura, estavam todos. Todos queriam ser curados. No fim, quando se tratou de reconhecer de quem veio a cura e o que ela significava, era de esperar que não viesse ninguém, uma vez que Jesus os tinha mandado ir ter com os sacerdotes, como mandava a lei de Moisés, e eles assim fizeram. Mas não. Um deles – precisamente o samaritano estrangeiro e mal visto – sentiu-se irresistivelmente atraído por Jesus. Compreendeu que a gratidão está antes de tudo. E voltou para trás. E foi então que entrou verdadeiramente em comunhão com o seu Salvador, entrou numa relação mais profunda do que aquela que acontece entre um doente e um profissional de saúde. Enquanto os nove se sentiram apenas curados, limpos da lepra, ele sentiu-se salvo. Aquele gesto de Jesus tocou-lhe o coração e mudou a sua vida. Converteu-o. Por isso, ele se prostra de rosto em terra aos pés de Jesus, para Lhe agradecer. Como fizera, de outra maneira, o sírio Naamã que, ao ver-se curado, prometeu que nunca mais iria oferecer sacrifícios ou holocaustos a não ser ao Senhor, Deus de Israel.
Quando eu celebro o meu casamento em Cristo, quando escolhemos baptizar um filho ou filha, quando venho à missa, sou como os nove ou como o samaritano? Tenho o que quero, cumpro o que manda a tradição apenas, ou deixo-me transformar e converter por esse encontro salvador com Jesus?
A fé não é uma questão de cumprir ritos, mais ou menos regularmente ou apenas quando se está atrapalhado ou há alguma razão especial, é reconhecer Jesus como Salvador e confiar-Lhe a vida, e dar graças pela sua salvação. É ir ao seu encontro e deixar-se encontrar por Ele, deixar-se converter por Ele, mudar a direcção do caminho para estar com Ele. Senhor, faz crescer e frutificar a nossa fé. Ámen.


Homilia (02-10-2022)

27º DOMINGO COMUM/C

Provavelmente porque perceberam que as exigências para seguir Jesus no seu caminho para Jerusalém – esse caminho que continua hoje e é proposto por Ele a cada um de nós –, os discípulos fizeram este pedido a Jesus: Senhor, aumenta a nossa fé.
A fé está, portanto, no coração do Evangelho deste Domingo. Mas nós temos de perceber – é esse o objectivo de Jesus, há dois mil anos e hoje – que a fé não tem a ver com tamanho, não se mede, nem é grande nem é pequena. A fé é uma entrega e uma confiança total em Jesus; e é sobretudo um grande risco, uma tremenda aventura que vira a nossa vida do avesso, porque nos faz acreditar em Cristo e não em nós. É por isso que somos servos inúteis: porque a única coisa que queremos, mas que custa tanto a aceitar e viver, é servir por amor, sem tempo, nem contrato, sem cláusulas, em doação total, dando a vida como Cristo.
E porque isto é difícil, sim, a fé pode variar em fervor e em profundidade. E pode mesmo apagar-se. Como alguém diz: a fé é como uma bicicleta, se não avançar, cai. Isto é, se não for alimentada, se não dermos ao pedal, se não pusermos em prática o Evangelho, se não nos alimentarmos de Cristo, ela acaba por extinguir-se. A fé é um dom de Deus, como a tal semente minúscula de mostarda, que só o próprio Deus fará crescer em nós. Então, a nós cabe-nos apenas – mas é muito e não é fácil – desbravar o terreno, retirar os obstáculos, não impedir a acção da graça de Deus em nós. A nós, cabe-nos apenas sermos servos inúteis, deixar-nos usar por Deus, sermos úteis à vontade de Deus.
No que à fé diz respeito, à fé em Jesus Cristo, evidentemente, tudo tem a ver apenas com gratuidade. À gratuidade do dom de Deus, deve corresponder, da nossa parte, uma atitude de dedicação apaixonada e humilde, diligente e modesta, sem reivindicações farisaicas nem instrumentalizações propagandísticas.
Como escreve um autor: ‘Diria que hoje não faltam servos. O problema é que vemos uma grande desproporção entre o número de servos que se acham necessários, até mesmo indispensáveis, que sonham com feitos grandiosos – e por isso fazem questão de que todos saibam o que fazem, às vezes, até antes de terem feito alguma coisa – e o pequeno número de servos inúteis. Ora, se queremos que a vinha do Senhor seja cultivada e não apenas ilustrada, não apenas a fazer de conta; se queremos que a paróquia seja cada vez uma comunidade, uma verdadeira comunhão; se queremos mesmo que a sinodalidade passe a ser o nosso modo de ser Igreja, de ser paróquia, seja o modo de ser de cada um de nós… então precisamos mesmo muito e cada vez mais de servos inúteis. Precisamos mesmo muito e cada vez mais de operários que encontrem a alegria em lutar por Deus e pelo seu Reino, humildemente, sem dar nas vistas, fazendo o que for necessário, sem a exibição descarada da sua utilidade. Precisamos mesmo muito e cada vez mais de esmorizenses que encontrem alegria em caminhar juntos, em discernir, em comunhão e participando, os caminhos novos da missão de anunciar e testemunhar o Reino de Deus.
No Reino de Deus, os que fazem a história e mudam a história são os humildes incansáveis que põem à disposição do seu Senhor uma espinha, a coluna, que se dobra e um sorriso que os impede de perder o sentido das proporções. E quando levantam a cabeça cansada da enxada com que trabalham, não é para receber a coroa de louros, mas apenas para limpar o suor e continuar a trabalhar.
Como é que eu trabalho a inteligência da fé que professo? Que livro é que eu li recentemente para alimentar a fé? Neste novo Ano Pastoral, a que serviço é que eu vou juntar-me para escutar a Palavra de Deus, para reler a minha vida à luz da fé, para partilhar a fé, para anunciar, celebrar e testemunhar a fé, para rezar?
Senhor, aumenta a nossa fé. E ajuda-nos a não nos levarmos demasiado a sério. O servo do Evangelho, depois de se ter posto silenciosamente à disposição do seu Senhor, em vez da admiração pública, prefere conceder-se antes a si mesmo o raríssimo, mas preciosíssimo prémio da inutilidade. Ámen.


Homilia (25-09-2022)

26º DOMINGO COMUM/C
Homilia

Como lembrei no início da celebração, a Igreja celebra hoje o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. Caem como uma luva, neste dia e nesta preocupação pastoral da Igreja, as palavras de Jesus e as palavras do profeta Amós. E é muito feliz o título de um comentário que li: A ousadia de vivermos como irmãos. Sim, ser cristão, a missão do cristão que celebra Cristo à volta da Mesa da Palavra e da Mesa da Eucaristia é converter-se e trabalhar sempre para construir a Casa Comum da Fraternidade, para fazer desta Terra, toda a Terra, uma Casa onde todos e todas tenham lugar à mesa, e não uma casa fechada onde alguns se banqueteiam esplendidamente e muitos ficam ao portão sem nada para comer, nem sequer as migalhas.
Não, ser discípulo de Jesus não é nada cómodo; e Lucas não facilita nada as coisas. Para ele, a riqueza – legítima ou ilegítima – é sempre culpada, é sempre perigosa. Porquê? Porque os bens não pertencem a ninguém em particular (nem sequer àqueles que trabalharam duramente); mas são dons de Deus, postos à disposição de todos os seus filhos e filhas, para serem partilhados e para assegurarem uma vida digna a todos. Quem se apossa – ainda que legitimamente – desses bens em benefício próprio, sem os partilhar, está a defraudar o projecto de Deus, o sonho de Deus; quem usa os bens para ter uma vida luxuosa e sem cuidados, esquecendo-se das necessidades dos outros homens e mulheres, está a defraudar os seus irmãos e irmãs que vivem na miséria.
É verdade, não somos donos dos bens que Deus colocou nas nossas mãos, ainda que os tenhamos adquirido de forma legítima: somos apenas administradores, encarregados de partilhar com os irmãos e irmãs aquilo que pertence a todos. No Domingo passado, escutámos o que acontece aos maus administradores. É tempo de nos convertermos. É só a nossa conversão que Jesus deseja, porque só ela nos fará acolher a salvação.
Como me situo face aos bens, se calhar a começar pelo bem maior que é a minha vida? Vejo os bens que Deus me concedeu como ‘meus, muito meus, só meus’, ou como dons que Deus depositou nas minhas mãos para eu administrar e partilhar, porque pertencem a todos?
Por muito pobres que sejamos devemos interrogar-nos continuamente para perceber se não temos um ‘coração de rico’, para perceber se a nossa relação com os bens não é uma relação egoísta, açambarcadora, exclusivista: há ‘pobres’ cujo sonho é apenas levar uma vida igual à dos ricos. É isso que muitos programas da televisão, por exemplo, estão sempre a tentar meter no coração.
Como ouvimos, só a Palavra de Deus pode levar-nos à conversão. Ouçamos Moisés e os profetas. Continua a não haver outro caminho.


Homilia (18-09-2022)

25º DOMINGO COMUM/C

No fim de contas, o Evangelho faz-me sempre a mesma pergunta: a quem ou a que é que eu sou fiel? Quem é, verdadeiramente, o Senhor da minha vida? Por quem ou porque coisas é que eu sou capaz de fazer tudo, de deixar tudo?
Com esta estranhíssima parábola, é isso que Jesus está, de novo a perguntar-me. Não está naturalmente a elogiar a desonestidade, mas a capacidade daquele administrador fazer o que era necessário para se safar da situação em que se meteu.
Então, se eu acredito mesmo na salvação e quero ser salvo, o que eu faço para que isso aconteça?
Voltemos ao Domingo e à Eucaristia que é o sacramento da nossa salvação, o sacramento que nos dá a vida eterna. Sou capaz de deixar tudo para não a perder? Acredito que vale a pena deixar o que for preciso para participar nela?
O que Jesus está a dizer-nos é que os seus discípulos devem aprender do administrador não a ser desonestos, mas a capacidade de decidir com prontidão, inteligência e sagacidade. É isto que está em causa. Face ao Reino de Deus, o discípulo de Jesus deve ser igualmente rápido, hábil e perspicaz a tomar decisões, a pôr Jesus e o seu Evangelho em primeiríssimo lugar. Não há urgência maior.
Uma vez mais, Jesus convida os filhos e filhas de luz – nós que recebemos a sua Luz no Baptismo – que nos deixamos adormecer pela indolência, pelo rame-rame e pela rotina, a captarmos a urgência da hora e a tomar a decisão de que depende o nosso futuro, de que depende a nossa salvação.
Neste Caminho sinodal que estamos a fazer, a percebermos a urgência de caminharmos juntos, a urgência da comunhão, da participação e da missão, porque é isso que Deus espera da Igreja que somos, neste tempo que vivemos, como não se cansa de nos repetir o papa Francisco.
"O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio." É esta a urgência desta hora, é esta a nossa conversão urgente.


Homilia (11-09-2022)

24º DOMINGO COMUM/C
Homilia

Como já sublinhei no início*, só temos um lado para escutar esta parábola e para que ela possa produzir em nós frutos de conversão: o lado dos fariseus e dos escribas, para quem Jesus conta hoje, de novo, esta imensa e tremenda parábola.
Limito-me a citar este parágrafo de D. António Couto: “É também interessante notar que os dois filhos desta história falam ao Pai, ao seu Pai comum, como fazem os cristãos. Como fazemos nós. Mas em nenhum momento da história se falam um ao outro. Se calhar, também como nós. Só sabemos falar por trás, entre raivas acumuladas, insultos e desprezo. Parece que também neste aspecto a história de Jesus põe a nossa vida a descoberto.”
Ou seja, acrescento eu, podemos vir todos à missa, fazer muitas coisas e gostar muito de Nosso Senhor, e andarmos de costas voltadas uns para os outros, a dizer mal uns dos outros, a trabalhar cada um – ou cada uns – para o seu lado, provavelmente convencidos até de que somos melhores que os outros, de tão cumpridores que somos.
É por isso que precisamos de menos missas e mais Missa, isto é, precisamos que a celebração da Eucaristia seja verdadeiramente celebração de irmãos e irmãs que, em comunhão, falam ao Pai comum, unidos a Cristo e habitados pelo Espírito Santo, cantam e louvam o Pai do Céu.
Mas é também por isto que precisamos urgentemente de pôr a Mesa da Sinodalidade, para aprendermos a estar e a falar todos uns com os outros, a caminhar juntos. Ou, como diz o autor do livrinho Converter Peter Pan, que já citei no Domingo passado: “A primeira coisa a fazer é iniciar um verdadeiro tempo de sinodalidade, que é um tempo de oração e de reflexão, um tempo de leitura dos sinais dos tempos e de discernimento, um tempo de escuta do Espírito e de tomada de decisões necessárias. Nas comunidades, portanto, nunca deveria faltar, ao lado das mesas da Palavra, da Eucaristia e da Caridade, a mesa da Sinodalidade.”
Peço apenas que, como o filho mais novo, tentemos acreditar nestas palavras e trabalhar para esta conversão- também ao caminho sinodal – e não ficarmos no ressentimento convencido e estéril do filho mais velho, que não leva lado nenhum nem faz crescer nada de novo.
Vou partir e vou ter com meu Pai. Ámen.

* Saudação e monição inicial
Irmãs e irmãos, a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos revela o coração misericordioso do seu Pai e nosso Pai, esteja convosco.

“Este Domingo XXIV do Tempo Comum, escreve D. António Couto, oferece-nos a proclamação e audição integral, assim vivamente o espero, da grande parábola de Lucas 15.” Trata-se de uma única parábola e não de três, como sublinha o biblista, e nós vamos escutá-la integralmente, como deve ser. Acrescenta ele: “É a história dos pecadores e dos publicanos, dos escribas e dos fariseus. De uns e outros, todos temos um pouco. Todos se aproximam de Jesus: os primeiros para O escutarem com alegria; os segundos para O recriminarem com azedume pelo facto de Ele receber os primeiros e comer com eles… A estes últimos – fariseus e escribas – conta Jesus uma parábola. Note-se que, para escutarmos correctamente «esta parábola» de Jesus, é do lado dos fariseus e dos escribas que nos devemos postar, dado que é para eles que Jesus conta a parábola. «Esta parábola» é, portanto, para eles e para o nosso lado orgulhoso, farisaico, classista e exclusivista, para o nosso como eles.”
Ultrapassando então a tentação habitual e simplista de nos colocarmos do lado, mais fácil, do filho mais novo, pensemos que somos bem mais o filho mais velho, somos os fariseus e os escribas, perguntemo-nos: “Como vemos Deus? Como um Pai ou como um patrão? E os nossos irmãos e irmãs são para nos alegrarmos com eles ou para os insultarmos e denegrirmos?”
Confessemos os nossos pecados: Confesso a Deus…


Homilia (04-09-2022)

23º DOMINGO COMUM/C
Homilia

Escutemos de novo as palavras de Jesus, voltado hoje para nós, que estamos aqui porque queremos caminhar atrás d’Ele e ser seus discípulos: “Se alguém vem ter comigo e não odeia – diz o texto original – o próprio pai e a mãe e a mulher e os filhos e os irmãos e as irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo”.
São palavras duras, difíceis; palavras que queimam. Mas são sobretudo palavras perigosas, se forem mal entendidas. Serão palavras belíssimas, se as compreendermos bem e a fundo, se acreditarmos nelas e fizermos delas fonte de vida e de salvação.
Claro que não se trata de odiar no sentido habitual para nós. Isso seria contrário e contraditório com tantas outras palavras de Jesus. Como bem traduzia o texto proclamado, trata-se de preferir, de dar o primeiríssimo lugar a Jesus. Portanto, não se trata de odiar a família ou a própria vida, mas de sermos capazes, de termos a liberdade e a força para preferir, para pôr antes de tudo e de todos – da família, da própria vida ou dos bens – Jesus e o caminho do seu Evangelho. Não é necessário ‘odiar’ ninguém, aliás, é mesmo proibido, como sabemos de outras passagens. O que é preciso, o que é decisivo e incisivo é amar mais. Se pusermos Jesus e o seu Evangelho à frente de tudo e de todos, se deixarmos que seja o amor de Jesus a encher os nossos corações, a verdade é que seremos capazes de amar mais a tudo e a todos, de fazer de cada homem e de cada mulher, meu irmão e minha irmã, de fazer da minha vida – como Cristo – um dom para os outros. Jesus não estorva nada nem atrapalha, engrandece tudo.
Só mais duas coisas, citando D. António Couto: “Entenda-se bem que o Caminho de Jesus é um Caminho de decisões fortes. Sendo que ‘decisão’ deriva de decidere, que significa cortar. Aí estamos outra vez então no domínio do bisturi e da operação de Coração aberto que tem de fazer todo o discípulo de Jesus. A ligação do discípulo a Jesus deve estar antes e ser a chave de leitura de todas as outras ligações: consigo próprio, com a família, com os amigos, com os bens”.
Mas, ‘sendo um Caminho de decisões fortes, de cortes, é também um caminho de ponderação e deliberação atenta e serena. Seguir Jesus no seu Caminho implica ser fiel a Jesus da mesma maneira que Jesus é fiel ao Pai. Não se pode compor uma espécie de cristianismo à medida, selecionando de Jesus os aspectos que nos agradam, e deixando de lado o que nos incomoda’.
A decisão fundamental de seguir Jesus exclui as meias tintas, as desculpas cómodas, as tácticas… E isto aplica-se à vida pessoal de cada um de nós, mas também à vida da paróquia, onde, por causa do Caminho Sinodal, somos chamados também a fazer opções – dolorosas muitas vezes – que ponham em primeiro lugar a fidelidade ao Evangelho e à Missão que nos foi confiada.
“A assembleia dominical, diz ainda D. António Couto, é um tempo extraordinariamente denso e intenso, em que os discípulos de Jesus e as multidões se sentam para ouvir a Palavra de Deus e para tomar as decisões consentâneas com a força da Palavra que escutamos. Decisões são cortes. São incisões. Todos os discípulos de Jesus se devem sujeitar urgentemente a esta operação de Coração aberto.”
Mas não tenhamos medo, estamos em boas mãos. Ele é o nosso médico e salvador. Ámen.


Homilia (28-08-2022)

22º DOMINGO COMUM/C
Homilia

Como tenho feito nos últimos domingos, também hoje me sirvo e vos sirvo algumas palavras certeiras de D. António Couto para nos ajudar a acolher e não deixar que passem ao lado estes ensinamentos de Jesus. Escreve ele:
“Imaginemos o final de uma manhã de verão batida por um vento quente, e que se está a celebrar um casamento hebraico com um número elevado de convidados que se empurram uns aos outros à volta da tenda nupcial.
Ali ao lado, as mesas aguardam os convidados para o almoço festivo. Alguns, entretanto, já começaram a ocupar os lugares mais propícios à fotografia de jet-set com lugar garantido nas primeiras páginas dos jornais do dia seguinte, enquanto outros se procuram aproximar o mais possível dos esposos para poderem ver o que se segue.
O cenário descrito pode servir para situar o Evangelho deste Domingo, com Jesus a esquadrinhar aquelas faces oxidadas pela mentira e toldadas por latas e latas de tinta e montes de aparências. E, a partir das hipocrisias que se cruzam diante dos seus olhos, Jesus adverte os convidados que se atropelam na tentativa de ocupar os primeiros lugares: «Procurai os últimos lugares!». O que Jesus tem em vista é esta vanglória de nos sentirmos superiores aos outros, de o podermos mostrar e de sermos reconhecidos como tal. Esta busca de prestígio, este desejo vão de ostentar superioridade, pode ver-se até no próprio funeral e na pedra tumular!
E, voltando-se para o fariseu que o tinha convidado, Jesus desequilibra-lhe a maneira mundana de ver e de fazer, e põe-lhe diante dos olhos a assimetria do Reino de Deus: “Quando deres um banquete, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos”. Por esta lógica simétrica – hoje convido-te eu a ti, amanhã convidas-me tu a mim – os pobres ficam sempre de fora! A assimetria do Reino de Deus vira tudo do avesso e ao contrário: “convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos, e serás feliz por eles não terem com que te retribuir”. Como se vê, aos quatro grupos de pessoas que dão lustro ao nosso «ego», Jesus contrapõe outros quatro grupos de pessoas habitualmente excluídas, não só por não trazerem nenhum lustro ao nosso «ego», mas até por criarem algum embaraço. Mas é por esta brecha de Graça aberta no nosso quotidiano que entra Deus e o mundo novo de Deus, diz Jesus.”
Como disse no início, cada um de nós está aqui com as suas motivações, as suas razões, a sua capacidade de entender e de traduzir na sua vida os ensinamentos de Jesus. O Evangelho não é uma receita nem um manual de boa educação e de boas maneiras; o Evangelho é uma Graça que cada um é chamado a deixar crescer e frutificar em si, conforme vai sendo capaz. Estamos em processo, estamos a caminho.
Se, ao menos, nos deixássemos embaraçar – incomodar, diria o papa Francisco – por estas palavras de Jesus, talvez Deus conseguisse fazer alguma coisa em nós, fazer de nós santos e santas, como aqueles e aquelas que logo haveremos de seguir na Procissão: eles e elas, a começar pela Senhora da Boa Viagem, e nós atrás de Jesus, do Senhor dos Aflitos, para aprendermos o último lugar, o lugar do serviço, o lugar da comunhão, “que não se expressa com maiorias ou minorias, mas nasce essencialmente da relação com Cristo. Jamais teremos um estilo evangélico nos nossos ambientes, se não colocarmos Cristo no centro”; o lugar da participação, que “deveria expressar-se através dum estilo de corresponsabilidade”; o lugar da missão, “que nos salva de nos fecharmos em nós mesmos. A missão torna-nos vulneráveis – é bom a missão tornar-nos vulneráveis –, ajuda-nos a recordar a nossa condição de discípulos e permite-nos descobrir sempre de novo a alegria do Evangelho”, diz o papa Francisco.


 

FESTA DO MAR/22
BÊNÇÃO DO MAR

1. Cântico: Ó pescador…

2. Saudação e monição
O pior que nos pode acontecer é perder os rituais. Sem os rituais ficaríamos perdidos, sem balizas nem âncoras nem bússolas ou faróis que nos orientem. Um filósofo, estudioso dos fenómenos da sociedade actual, tem mesmo um livrinho com este título: Do Desaparecimento dos Rituais, onde escreve que ‘os rituais transmitem e representam os valores e os regimes que tornam coesa uma comunidade’, e cita esta frase de um poeta: “a festa é uma «festa nupcial», um tempo sublime de esponsais com os deuses. A festa funda uma comunidade entre pessoas e com os deuses. Faz que os homens participem do divino”.
Isto, que é verdade em muitas situações humanas e em todas as religiões, é também verdade, naturalmente, na nossa fé cristã e nas festas e romarias que se fazem em todas as terras. É verdade nesta Festa do Mar, da nossa cidade e paróquia de Esmoriz, contemplando e honrando Jesus Cristo – que invocamos como Senhor dos Aflitos – e também Maria, sua e nossa Mãe – que invocamos como Senhora da Boa Viagem.
Fazemos a festa, em primeiro lugar e numa perspectiva cristã, para nunca esquecermos que Cristo é o único capaz de nos salvar e para aprender com Maria a ser fiéis ao Evangelho, sempre e até ao fim. Como ela.
Por isso, cada ano, a Festa é sempre diferente. Parece a mesma, mas é sempre nova. Como na nossa vida, não se trata de uma mera repetição, que rapidamente nos levaria à rotina e à morte. Do amor e da alegria, por exemplo. Cada ano, a Festa deve ser vivida e celebrada por nós sempre de maneira criativa e renovada. Do mesmo modo que a nossa vida não está parada – quantas coisas nos aconteceram, alegres ou tristes: nasceram e morreram pessoas na nossa família, nos vizinhos e nos amigos, fomos tocados pela doença e por outras situações difíceis, nós e os outros… – quantas coisas nos aconteceram ao longo de um ano, também a festa acaba por ser marcada por essa história que vivemos, quer pessoal quer familiar, que comunitariamente.
E também a Igreja nos desafia e convida a deixar-nos guiar, aprofundar e viver a fé tendo algum objectivo muito concreto. E temos duas metas muito importantes que não podem deixar de estar presentes: a Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023 e o Caminho Sinodal, por causa do Sínodo que vai acontecer em Outubro de 2023. Como cristãos, como baptizados, não podemos ficar indiferentes a estes desafios e caminhos a que nos convida o papa Francisco.
Então, se é verdade o que dizia o filósofo e o poeta: ‘os rituais transmitem e representam os valores e os regimes que tornam coesa uma comunidade’, ‘a festa funda uma comunidade entre as pessoas e com Deus’, esta Festa do Mar – como as outras festas que fazemos na nossa paróquia e cidade, deverão servir para tornar mais forte nossa comunhão: Esta, diz o papa Francisco, não se expressa com maiorias ou minorias, mas nasce essencialmente da relação com Cristo. Jamais teremos um estilo evangélico nos nossos ambientes, se não colocarmos Cristo no centro; e não este partido ou aquele, esta opinião ou aqueloutra, mas Cristo no centro. Muitos de nós trabalham juntos, mas o que fortalece a comunhão é poder também rezar juntos, escutar juntos a Palavra, construir relações que vão além do simples trabalho e reforçar os laços bons – os laços bons entre nós –, ajudando-nos uns aos outros. Sem isto, corremos o risco de ser apenas estranhos que colaboram, concorrentes que procuram a melhor posição; esta Festa deve levar-nos a uma maior participação na vida da comunidade: Esta, diz o papa Francisco, deveria expressar-se através dum estilo de corresponsabilidade. Com certeza que, na diversidade de funções e ministérios, as responsabilidades são diferentes, mas seria importante que cada um se sentisse envolvido, corresponsável no trabalho; esta Festa deve levar-nos a viver mais claramente a nossa fé com sentido missionário: Esta, diz o papa Francisco, salva-nos de nos fecharmos em nós mesmos. Quem se fecha em si mesmo, «olha de cima e de longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência.
Pedir a bênção do mar é, antes de tudo, tomar consciência da missão que o Senhor confia hoje a nós, como em tempos diferentes confiou aos santos que trazemos em procissão. Oxalá nos deixemos santificar, sendo fiéis a este tempo que vivemos.
Antes de pedir a bênção do mar, cantemos o amor de Deus que é eterno e nos acompanha em todos os momentos e circunstâncias da nossa vida.

3. Salmo responsorial: Cantai ao Senhor, porque é eterno o seu amor, cantai ao Senhor, cantai.

4. Oração de Bênção:
E agora, unidos a Maria e a todos os santos e santas, oremos, pedindo a bênção de Deus para todos os que trabalham no mar, para todos os que trabalham do mar e vivem o mar, para as suas famílias e também para a nossa cidade:

Senhor da criação e da vida, em quem acreditamos e a quem nos confiamos, porque conhecemos o vosso amor infinito por nós, o amor que levou Maria e todos os santos e santas a não ter medo e a dar a vida por Vós, vivendo segundo o Evangelho:
+ abençoai este nosso mar, para que seja fonte de pão e de alegria, mas não nos deixeis esquecer que é a nós que está confiada a tarefa da ecologia integral, que nos lembra que, na criação, tudo está interligado, que a vida é uma rede de relações e que somos chamados à fraternidade; não nos deixeis esquecer que nos cabe a nós construir nesta Terra a Casa Comum onde todos tenham lugar e possibilidades de viver com dignidade; ensinai-nos a cuidar e zelar pelo equilíbrio e conservação das espécies no mar, renunciando sempre à tentação da ganância e do lucro fácil, para que o alimento do mar chegue para todos e se multiplique; fazei-nos cuidar zelosamente para que o mar imenso e belo não se torne um mar de plástico e de lixo estéril e inútil até para nós;
Abençoai, Senhor, todos os que trabalham e vivem do mar, e abençoai as suas famílias que, ao preparar e fazer esta procissão com toda a alegria, manifestam a esperança que têm em Vós;
abençoai também todos os vossos filhos e filhas que moram e trabalham nesta nossa cidade de Esmoriz e que precisam da vossa luz para manter a esperança.
Fazei que o amor e devoção que temos ao vosso Filho, Senhor dos Aflitos, a Maria, Mãe de Jesus e nossa mãe, Senhora da Boa Viagem, e a todas as santas e santos que nos são propostos como exemplos de fidelidade, coragem e alegria, nos tornem cada vez mais atentos à vossa Palavra, nos ensinem a comunhão, a participação e a missão que a Igreja sinodal espera de nós;
fazei que esta procissão nos recorde que somos o povo de Deus que caminha junto, a família dos baptizados chamados a trabalhar e construir a paróquia, participando nas suas tarefas; fazei que esta procissão nos lembre que somos discípulos missionários a quem cabe a missão de anunciar a alegria do Evangelho e ser construtores do vosso Reino;
fazei que esta festa e este caminhar com os santos e santas, os mais belos modelos da fé em Cristo, façam de nós verdadeiros discípulos daquele Mestre que, também hoje, também agora, passa junto ao mar, nos chama e nos envia para sermos pescadores de homens, para viver e testemunhar a fraternidade humana entre todos e todas.
Cristo Jesus, Senhor dos Aflitos e nosso Salvador, fazei que confiemos cada vez mais em Vós, que nos confiemos cada vez mais a Vós, para seguirmos com Maria, Senhora da Boa Viagem, a nossa viagem, a nossa peregrinação a caminho do vosso Reino.
Nós Vo-lo pedimos a Vós, Deus, nosso Pai, por Jesus Cristo, vosso Filho e nosso irmão, Ele que é Deus e convosco vive e reina, na unidade do Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Ámen.

Sigamos em paz, atrás do Senhor dos Aflitos e da Senhora da Boa Viagem, na companhia dos santos e santas, os mais ilustres filhos e filhas da Igreja a quem devemos imitar, e agradeçamos o dom da fé que nos guia e anima.


Homilia (14-08-2022)

20º DOMINGO COMUM/C
Homilia

“Eu vim trazer o fogo à Terra, e como Eu desejo que já tivesse sido aceso. Tenho um baptismo para ser baptizado, e como estou sob stresse até que Ele seja consumado, levado à perfeição”. Abria assim a extraordinária lição do Evangelho deste Domingo. Esta passagem está situada praticamente a meio do Evangelho segundo São Lucas, no seu caminho para Jerusalém, para a Páscoa, para a sua morte e ressurreição, a consumação do seu Baptismo, como já tinha sido anunciado na Transfiguração.
Não sabemos se estas palavras de Jesus traduzem a sua desilusão com o fracasso da sua missão, se a sua impaciência e angústia por chegar ao fim. O que sabemos é que Jesus não é homem de meias tintas e põe as cartas todas na mesa, não esconde nada aos seus discípulos, àqueles que O seguirem, aos baptizados na sua morte e ressurreição.
Como disse já no início, citando D. António Couto, “o baptismo é um lume que alumia e queima e prepara para a luta do amor. E o amor é uma luta que implica decisões todos os dias e a todas as horas. Biblicamente – era bom ter consciência disso – o amor não é um estado mais ou menos romântico ou idílico que se sofre, mas uma catadupa de decisões que temos de tomar.
Por isso, o baptismo de Jesus – e também o nosso naturalmente – coloca-nos no caminho duro da decisão que é incisão – corte – do sangue e do combate; de um amor que impõe decisões e incisões e lutas todos os dias. E D. António Couto, para ilustrar o carácter combativo do nosso baptismo e do caminho crucial – da cruz – da vida cristã, conta este episódio da vida do poeta russo Serghei Eseni: à beira do suicídio, o poeta refugia-se no quarto de um albergue. Mas antes de o fazer, sentiu, vindo do mais fundo da alma, a vontade irreprimível de escrever uma última poesia. Mas não havia tinta no albergue. Então ele fez um corte, uma incisão, no braço, e escreveu com o próprio sangue o seu último poema.
E D. António comenta: “Serve o episódio para percebermos que só com o próprio sangue, isto é, com a nossa vida, podemos escrever a nossa adesão ao Reino. E perceber, portanto, que o nosso baptismo não pode ficar apenas registado com tinta no arquivo paroquial. Temos de o escrever com o próprio sangue, no dia-a-dia. E o pior é que este tom combativo do Evangelho não se refere aos últimos tempos, não é para depois, não está para vir. É no nosso dia-a-dia que se trava este combate. O combate do caminho sinodal, o combate da comunhão, da participação e da missão, custe o que custar, deixando-nos queimar pelo fogo de Deus que é o Espírito Santo.
A causa do Evangelho não precisa de funcionários diligentes nem de cerimoniários inofensivos que cumprem o ritual. Precisa de homens e mulheres apaixonados, que sabem que paixão significa padecer, significa deixar-se queimar pela e na construção do Reino. Só o que arde morre, iluminando, diz o poeta.
Seremos capazes de deixar que este fogo de Deus nos incendeie e abrase? Seremos capazes de deixar que esta paixão tome conta de nós e nos queime?

 

ASSUNÇÃO
Homilia

(Esta homilia segue a par e passo a do padre Amaro Gonçalo, com as adaptações necessárias)

A cena bíblica da Visitação que acabamos de escutar, inspira a Jornada Mundial da Juventude, que se realizará, em Lisboa, de 1 a 6 de agosto de 2023. Previamente, de 24 a 31 de julho, nos chamados Dias da Diocese, seremos desafiados a acolher, também aqui na nossa paróquia de Esmoriz, num grande abraço de hospitalidade, em nossas casas, e comunidades eclesiais, milhares de jovens, vindos de todas as partes do mundo. Nós que vivemos este ano pastoral, imitando Maria, que Se levantou e Se pôs apressadamente a caminho, para sair ao encontro da prima Isabel, vivamos o novo ano pastoral de 2022-2023, inspirados pela saudação de Maria a Isabel, valorizando a hospitalidade, o acolhimento e a escuta ativa. Mantendo propósito de avançar “Juntos por um caminho novo”, o desafio mariano específico para o novo ano pastoral é mesmo este: Abraça o presente!
O abraço entre Maria e Isabel é, na verdade, o abraço de duas mulheres que partilham a alegria pelo maravilhoso e surpreendente presente de uma vida nova, que uma e outra acolhem em gestação no seu seio materno. É o abraço de quem se acolhe mutuamente no amor, de quem partilha o Evangelho da Vida em carne viva, de quem faz do seu coração um lugar feliz para o outro. É o abraço de quem abraça a graça, os desafios, as dificuldades e as oportunidades da hora presente. ‘Abraçar’ tem, para nós, não apenas esta dimensão afetuosa da reciprocidade e da ternura do amor, mas inclui o desafio de acolher, de escutar com atenção, de discernir tudo à luz da Palavra do Senhor, de responder e de corresponder aos desafios do tempo presente. Neste sentido, o lema programático diocesano “abraça o presente” significa sobretudo isto: “vive no presente; não vivas no passado nem no futuro. Vive a graça desta hora. Não te deixes paralisar pelas amarguras e nostalgias do passado, nem asfixiar pelas incertezas do amanhã, obcecado pelos temores do futuro. Não há outro tempo melhor para ti do que o presente: agora e aqui, onde estás, é o único e irrepetível momento para fazeres o bem, para fazeres da vida um presente! A plenitude da vida que esperas no Céu é um presente do teu presente. Abraça-o”.
Este presente que nos propomos acolher, de braços abertos, ao jeito de Maria e de Isabel, tem muitos rostos e significados: é, em primeiro lugar, o presente de Cristo vivo na nossa vida; é ainda o presente deste processo sinodal, que não pode ficar na gaveta. Mas este presente é também a graça extraordinária da JMJ 2023, porque nos desafiará a reconhecer nos jovens o agora ou o presente de Deus. É, por isso, o presente da novidade que Deus nos oferece no rosto de cada jovem, de todos os jovens, vindos de todas as partes do mundo, para a JMJ: eles irão entrar nas nossas casas, nas nossas realidades familiares e eclesiais, para animar e renovar as nossas vidas. São um presente que queremos abraçar, acolher e envolver, abrindo portas e janelas ao sopro da novidade do Espírito.
Sigamos o exemplo de Maria, que é acolhida e acolhedora. Como Maria e Isabel, a comunidade cristã, a nossa paróquia, deve tornar-se um Corpo que acolhe, para se tornar um lugar que gera vida. A esta luz, cuidemos por formar pessoas e comunidades hospitaleiras, pautadas por um estilo pastoral amável e dialogal, feito de presença, de escuta e de proximidade, capazes de promover a cultura do encontro, de propor e de acompanhar, num ambiente familiar, que gera e regenera vidas novas em Cristo.
Estamos a menos de um ano da JMJ 2023. Que este presente abraçado por todos faça crescer a nossa Paróquia, cuja padroeira é a precisamente a Senhora da Assunção, à imagem de Maria, como uma Mãe de coração aberto, uma comunidade mais jovem e rejuvenescida, mais feliz, mais recetiva à novidade, mais criativa e proactiva, mais atenta à realidade. Uma comunidade, ao jeito da Mãe do Senhor: com os pés ligeiros sobre a terra e com vistas largas para o Céu.

Nossa Senhora da Visitação,
que partistes apressadamente para a montanha ao encontro de Isabel,
fazei-nos partir também ao encontro de tantos que nos esperam
para lhes levarmos o Evangelho vivo:
Jesus Cristo, vosso Filho e nosso Senhor!

Iremos apressadamente, sem distração nem demora,
antes com prontidão e alegria.
Iremos serenamente, pois quem leva Cristo leva a paz,
e o bem-fazer é o melhor bem-estar.

Nossa Senhora da Visitação,
com a vossa inspiração, esta Jornada Mundial da Juventude
será a celebração mútua do Cristo que levamos, como Vós outrora.
Fazei que ela seja ocasião de testemunho e partilha,
convivência e ação de graças,
procurando cada um o outro que sempre espera.

Convosco continuaremos este caminho de encontro,
para que o nosso mundo se reencontre também,
na fraternidade, na justiça e na paz.
Ajudai-nos, Nossa Senhora da Visitação,
a levar Cristo a todos,
obedecendo ao Pai,
no amor do Espírito! Ámen.


Homilia (10-07-2022)

15º DOMINGO COMUM/C
Orações

Para que não haja equívocos (volto à palavra que usei já no Domingo passado) e nós não corramos o risco de ficar do lado de fora da parábola – quero dizer, para que a parábola fique mesmo gravada no coração como um aguilhão –, todos os comentadores chamam a atenção para isto: o doutor da Lei põe uma questão a Jesus: ‘quem é o meu próximo?' e Jesus responde com outra questão que ‘vira o bico ao prego’, como diz o povo: ‘qual dos três foi o próximo daquele homem ferido na beira do caminho?’
Para Jesus o que importa não é saber quem é o meu próximo, quem é que precisa de mim, é eu fazer-me próximo, é eu sair ao encontro e ajudar quem precisa de mim. Lembrando de novo a pergunta do papa Francisco, na homilia da solenidade de São Pedro e São Paulo: o que importa não é eu saber o que a Igreja precisa ou, pior do que isso, dizer mal e lamentar a Igreja que devia ser assim ou assado, fazer isto ou aquilo, mas perguntar-me: Que posso eu fazer pela Igreja?
O discípulo, o missionário, o baptizado, o cristão – são tudo sinónimos e somos nós – é aquele e aquela que ‘param o cavalo’ e saem de si e das suas coisas para fazer o que faz falta, para fazer o que precisa de ser feito. Por isso, a pergunta, incómoda, de Jesus (oxalá seja também incómoda para nós hoje), obriga-nos a mudar o olhar, o modo de ver e de pensar: o próximo não é apenas o pobre, o doente, o refugiado de que me falam e que tantas vezes está longe, mas sou eu – o próximo sou eu – na maneira como olho, como me situo e relaciono com os outros, com as necessidades/feridas que vejo à minha volta (também a ‘Igreja ferida’, como diz o papa Francisco).
Portanto, não esqueçamos, a questão que nos é posta por esta parábola exclusiva de Lucas, o evangelista da misericórdia de Deus, é esta: de quem é que eu me vou fazer próximo? Hoje, quando sair da Eucaristia, de quem é que eu me vou fazer próximo?
Como alguns saberão e até terão lido, o papa Francisco coloca esta parábola no centro da Fratelli Tutti, a sua carta sobre a Fraternidade e a amizade social. Duas citações breves, e cada um que se deixe interpelar:
“Esta parábola é um ícone iluminador, capaz de manifestar a opção fundamental que precisamos de tomar para reconstruir este mundo. Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na estrada. A parábola mostra-nos as iniciativas com que se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, recusam uma sociedade de exclusão, mas fazem-se próximos, levantam e reabilitam o caído, para alcançar o bem comum… Existem simplesmente dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo; aquelas que se debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e aquelas que olham distraídas e aceleram o passo… é a hora da verdade. Debruçar-nos-emos para tocar e cuidar das feridas dos outros? Abaixar-nos-emos para levar às costas o outro?” (67,70)
Agora já sabemos o que é ser cristão, o que é ser discípulo de Jesus. Não temos desculpas.


Homilia (03-07-2022)

14º DOMINGO COMUM/C
Orações

Como papa Francisco tem repetido centenas de vezes e o caminho sinodal nos recorda insistentemente, ‘ser missionário não uma segunda vocação, facultativa, uma espécie de adorno ou adereço que pode advir apenas a alguns cristãos. “Sempre sem equívocos”, para voltar a citar D. António Couto: ser cristão é ser missionário! É viver intensamente de Jesus e com Jesus, e partir, sair de si, para levar Jesus ao coração dos nossos irmãos e irmãs”. Uma mulher, Madeleine Delbrêl, chamada a apóstola das ruas de Ivry, dizia as coisas assim, de maneira contundente, como evangélica faca de dois gumes: «A missão não é facultativa. Os meios ateus e indiferentes em que vivemos impõem-nos uma escolha: Missão ou demissão cristã».
É por isso que esta questão do caminho sinodal também não é facultativo e está aqui para nos fazer tomar consciência do que significa e implica ser cristão. Com todas as dificuldades que isso acarreta, como aliás o próprio Jesus Cristo, também hoje, não esconde e faz questão de lembrar: “Ide. Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos”. E como Paulo também testemunha ao dizer que ‘traz no seu corpo os estigmas de Jesus’, os estigmas, as dores e feridas provocadas precisamente pelas dificuldades e sofrimentos que experimentou ao anunciar o Evangelho.
Algumas características da missão, para que não haja equívocos:
- A fonte da missão está na oração e não no projecto humano: “Pedi ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara”. Os trabalhadores da desta seara não são recrutados através de aborrecidas campanhas publicitárias nem patéticos apelos à generosidade, mas são enviados por Deus, que gosta de ser ‘picado’ pela nossa oração. O campo é seu, portanto, a missão é graça e não planificação dos homens e mulheres. Eu não sei se já entendi este mistério. Mas entendi, pelo menos, que o apostolado – o serviço na Igreja, na paróquia – sem a oração converte-se numa profissão, numa função, numa formalidade, na ilusão de um estatuto.
- A missão está sob o signo, é marcada pela debilidade, a mansidão, uma entrega sem reservas e sem quaisquer pretensões. Como Cristo, o apóstolo, o missionário, cada um de nós, é sempre um perdedor aos olhos do mundo: “Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos”. Caramba! Não parece nada animador nem estimulante. E então se pensarmos que os lobos mais ferozes estão sempre dentro da comunidade, conforme experimentou São Paulo, que fala dos estigmas de Cristo que traz no seu corpo, ainda fica mais difícil de acreditar e acolher. Mas eu continuo a acreditar que a única força – como a de Cristo, o Cordeiro manso e humilde de Isaías – é uma palavra desarmada, serena, humilde, pacífica, e que pode sempre ser recusada e ridicularizada pelos violentos, pelos arrogantes e convencidos desta terra.
- A pobreza é o estilo da missão: “Não leveis bolsa nem alforge nem sandálias…” A missão não tem a ver com os meios, mas com a pessoa e o testemunho concreto da sua vida. Lembro estas palavras do papa Francisco, na passa quarta-feira, na homilia da solenidade de São Pedro e São Paulo:
“Vêm-me ao pensamento duas perguntas. A primeira: Que posso fazer eu pela Igreja? Não lamentar-me da Igreja, mas empenhar-me em prol da Igreja. Participar com paixão e humildade: com paixão, porque não devemos ficar espectadores passivos; com humildade, porque envolver-se na comunidade nunca deve significar ocupar o centro do palco, nem sentir-se o melhor impedindo aos outros de se aproximarem. Igreja em processo sinodal significa isto: todos participam, mas ninguém no lugar dos outros ou acima dos outros. Não há cristãos de primeira e de segunda classe; mas todos, todos são chamados.”
E todos somos enviados, hoje, agora, aqui, na nossa querida paróquia de Esmoriz. Não tenhamos medo, nada poderá causar-nos dano. E deixemo-nos enviar. É o que Jesus espera de nós.


Homilia (26-06-2022)

13º DOMINGO COMUM/C
Orações

Saudação e monição inicial

Cada Eucaristia é sempre um grande trabalho de parto: em cada Eucaristia, Deus quer fazer-nos de novo, fazer-nos renascer, renovar-nos, fazer de nós um homem e uma mulher novos, independentemente dos anos que somamos.
Mas se isso é verdade cada Domingo, atrevo-me a dizer que os trabalhos deste Domingo são ainda mais trabalhosos. Pelas leituras que vamos escutar – oxalá sejamos mesmo capazes de as escutar; pelo 10º Encontro Mundial das Famílias que termina este Domingo, em Roma, e que nos pede que sejamos capazes de viver um amor e uma entrega que seja verdadeiramente evangelizador, testemunha do Evangelho de Cristo – esse Evangelho do qual vamos escutar daqui a pouco uma passagem que nos complica muito a vida; e também pela recordação de São João Baptista, que fazemos no lugar do campo Grande, da nossa cidade e paróquia de Esmoriz: São João Baptista – se formos para além das sardinhas e manjericos – não é um santo nada fácil: mostra-nos bem o que é isso de seguir Jesus até ao fim, radicalmente, até dar a vida.
Mas comecemos, todos nós, por ouvir estas palavras de Paulo – outro santo que deu o seu sangue por Cristo e pelo seu Evangelho – para que não nos passem despercebidas depois no meio das outras leituras:
“Foi para a verdadeira liberdade que Cristo nos libertou… Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Contudo, não abuseis da liberdade como pretexto para viverdes segundo a carne; mas, pela caridade, colocai-vos ao serviço uns dos outros, porque toda a Lei se resume nesta palavra:
«Amarás o teu próximo como a ti mesmo». Se vós, porém, vos mordeis e devorais mutuamente, tende cuidado, que acabareis por destruir-vos uns aos outros.”
Paremos um instante, ao iniciar esta celebração de comunhão e de fraternidade em Cristo, e perguntemo-nos – cada um de nós – como e quanto contribuímos para esse vício tão antigo e tão actual (o papa Francisco fala muitas vezes dele) de nos mordermos uns aos outros…
E para que Deus nos encha com a sua graça e essa graça nos ajude, pelo contrário, ‘a amar o próximo como a si mesmo’, (cantemos a glória de Deus) invoquemos o perdão de Deus, confessando os nossos pecados:

 

13º DOMINGO COMUM/C
Homilia

Já o sugeri, no início, cada uma destas leituras, devia fazer-nos ficar muito tempo a ruminá-las, a deixar-nos ‘incomodar’ por elas, isto é, a deixar-nos transformar, a ser dados à luz por elas.
Fiquemos, desde já, com a imagem do arado, na primeira leitura queimado como sinal da vida completamente nova que começou para Eliseu ao ser escolhido, e também sinal da decisão de abandonar a vida antiga – a vida dos desejos da carne – e não, São Paulo não está a falar da sexualidade, mas das divisões e da maledicência dentro da comunidade, da paróquia –, sinal de que não será possível voltar atrás, como dizia depois Jesus, no evangelho. Cada um de nós que se pergunte pelos ‘arados’ que precisa de queimar para poder seguir Jesus e ser fiel ao seu Evangelho. E que a nossa paróquia, guiada por mim, pároco, tenha a coragem de perguntar se tudo aquilo que fazemos ao longo de um Ano Pastoral – catequese, festas, procissões, missas… – tem verdadeira capacidade de remeter para o seguimento de Jesus – esse seguimento radical de que Ele nos fala –, se contribui realmente, verdadeiramente, para o crescimento da paróquia rumo a uma Comunhão maior, Participação mais alargada e comprometida, Missão mais visível e efectiva. Para usar a expressão do papa Francisco e de tantos que querem seguir com ele: se contribui para alimentar em nós o sonho de uma paróquia renovada e sinodal ou serve apenas para alimentar a ilusão de manter um passado que já passou, para fazer de conta que somos muito católicos enquanto passamos a vida a ‘morder-nos’ e a lutar por lugares e importâncias diabólicas – porque vindas do Diabo mentiroso e divisor – completamente contrárias ao testemunho de João Baptista que disse: ‘Ele, Jesus, o Messias, é que deve crescer, e eu diminuir.» Se somos apenas o ‘Clube dos Poetas Mortos’ ou se temos a coragem do professor do filme e rasgamos as folhas velhas dos livros velhos que guardam apenas moralismos e boas intenções (das que enchem o inferno), com cheiro a mofo.
Quer pessoalmente quer paroquialmente – em comunidade – precisamos da mesma liberdade e coragem que Jesus nos revela ao iniciar o seu caminho para Jerusalém; a mesma liberdade e coragem que o evangelista Lucas nos diz de Jesus e que a tradução não deixa perceber inteiramente. De facto, o que o texto diz é: “Aproximando-se os dias de Jesus ser levado deste mundo, Ele tornou o seu rosto duro como pedra na direcção de Jerusalém”. Escreve D. António Couto: “A expressão «tornar o rosto duro como pedra – que provém da leitura que escutamos em Sexta-Feira Santa – serve para assinalar uma atitude firme e decidida da qual não se pode voltar atrás… O facto de Jesus «tornar o seu rosto duro como pedra na direcção de Jerusalém» deve ensinar-nos a ver que Jesus caminha sem hesitação para a Cruz, o que faz do seu caminho e do nosso caminho um caminho Crucial”, de seguimento da Cruz, como aliás, escutávamos no passado Domingo: ‘Se alguém quiser seguir-Me, tome a sua cruz todos os dias…’
Como diz outro teólogo, nada meigo na leitura que faz do Evangelho ‘temos de decidir-nos entre uma religião burguesa ou um cristianismo de seguimento’. Isto é, entre uma religião acomodada e que não incomoda, exterior e sem doer, que deixa tudo na mesma, porque somos nós – sou eu – a medida, ou uma vivência da fé feita de entrega, de fidelidade e compromisso, de transformação e renovação, sem concessões. É por isso que eu embirro, desde sempre acho eu, com aquela coisa de ‘cativar’ – só no livro do Principezinho é que ela faz sentido. Não, ao olhar para Jesus e ao escutar as suas palavras: “As raposas têm as suas tocas e as aves do céu os seus ninhos, mas o Filho Homem não tem onde reclinar a cabeça”; “Deixa que os mortos sepultem os seus mortos; tu, vai anunciar o reino de Deus”; “Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás não serve para o reino de Deus”, não consigo vislumbrar nenhuma vontade de Jesus de ‘cativar’. Escuto apenas a proposta de um caminho de vida que passa por ser capaz de dar a vida como Ele. Escuto apenas a clareza de Jesus que não quer enganar/seduzir ninguém com boas palavras, mas dizer, desde o princípio, o que espera quem se dispuser a segui-l’O e as condições desse seguimento.
Se escuto bem, até parece que Jesus faz tudo para desanimar aqueles três. Parece que a sua intenção é mais a de recusar do que atrair/cativar, desiludir mais do que iludir. A verdade é que Jesus não quer tirar o entusiasmo – Ele sempre deseja o nosso entusiasmo – o que quer é tirar-nos as ilusões e que tomemos consciência de que segui-l’O não é um passeio turístico. Por isso, tento dizer com a mesma clareza: a Catequese não é para ‘cativar’, a missa não é para ‘cativar’, a música na liturgia não é para ‘cativar’. Não é para ‘épater le bourgeois’, impressionar a malta, para entreter, numa tradução mais livre.
Claro que temos e saberemos ter em conta as idades e circunstâncias para anunciar o Evangelho e a pedagogia para o fazer, mas não podemos escamotear nunca, esconder que se trata sempre do seguimento radical de Jesus que nos faz mudar radicalmente a vida.
O que Jesus nos diz é aquilo que qualquer treinador ou o professor, seja do que for, diria a alguém que tem vontade de praticar a sério um qualquer desporto ou arte: só se chega lá com ‘sangue, suor e lágrimas’, ‘blood, sweat and tears’, para ser mais actual.
Para terminar, acrescento só que o Caminho Sinodal que estamos chamados a percorrer não é outra coisa senão esta decisão forte de caminharmos todos juntos atrás de Jesus, e não das nossas tradições ou hábitos, revivalismos ou restauracionismos, procurando apenas testemunhar a novidade sempre nova do Evangelho, a liberdade livre e libertadora para a qual Jesus nos libertou. São João Baptista, que pagaste caro o preço do compromisso pela verdade, ensina-nos a liberdade de dizermos e vivermos apenas Jesus e a sua Boa Nova salvadora. Ámen.


Homilia (19-06-2022)

12º DOMINGO COMUM/C
Homilia

Duas reflexões breves a partir das leituras que acabamos de escutar. Partamos da bela afirmação de São Paulo que nos recorda que somos baptizados, estamos revestidos de Cristo, somos filhas e filhos de Deus. Então, temos de viver como baptizados que somos. É esse um dos desafios do Caminho Sinodal: redescobrir e aprofundar o nosso Baptismo, vivendo a Comunhão, a participação e a Missão que decorrem precisamente de termos sido baptizados em Cristo. Ficamos enxertados em Cristo, unidos numa comunhão total de vida plena com Ele.
E, na passagem do Evangelho, Jesus diz-nos claramente – e cruamente – o que ser baptizado, estar enxertado n’Ele: “Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me”.
O baptizado é aquela e aquele que quer seguir Jesus – segui-l’O tem de ser sempre uma escolha livre do coração – e que quer aprender a renunciar a si mesmo, como fez Jesus. E que tem de fazer isso ‘todos os dias’. São Lucas é o único que acrescenta esta indicação ‘todos os dias’. Como comenta D. António Couto, seguir Jesus ‘coisa quotidiana, de todos os dias. Não é só para alguns dias de festa. Não pode ter pausas’. Ou seja, acrescenta ainda o mesmo bispo: ‘não se pode ser cristão, discípulo de Jesus, seguir Jesus, dizer Jesus, sem dar a vida. O discípulo de Jesus, à maneira de Jesus, tem de pôr em jogo a própria vida, e não simplesmente adereços. Tudo e não apenas o supérfluo. Aos olhos do mundo, o cristão é sempre um perdedor. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer verdadeira memória de Jesus, não é celebrar a Eucaristia. Seria apenas ‘vir assistir à missa’.
E como é que alguma vez seremos capazes deste seguimento e desta entrega? Só estando com Jesus na oração, como começava o evangelho: “Um dia, Jesus orava sozinho, estando com Ele apenas os discípulos”. E ‘orar’, volto a D. António Couto, que cita o papa Bento XVI na homilia aos jovens, na Jornada Mundial da Juventude de 2005, em Colónia: ‘Orar é, em sentido genuíno, beijar. A palavra latina para oração é oratio e a expressão latina para adoração é ad oratio, contacto boca a boca, beijo, abraço, coração a coração, e portanto, no fundo amor, ou seja, orientar a nossa vida toda para Deus, entregar a Deus a nossa vida toda’.
Orara é estar com Jesus, e estar com Ele é o lugar feliz do discípulo de todos os tempos, a escola onde podemos aprender a renunciar a nós mesmos, a tomar a cruz e a segui-l’O todos os dias.
‘Senhor, a minha alma tem sede de Vós. Por Vós suspiro, como terra árida, sequiosa, sem água’.


Homilia (12-06-2022)

11º DOMINGO COMUM/C
Homilia

Na Assembleia Paroquial da passada segunda-feira, a encerrar os Dia(s) da Paróquia, citei algumas palavras de uma religiosa francesa subsecretária do Sínodo 2023. Pergunta o jornalista, tendo presente que terminou a fase paroquial e diocesana de escuta:

7M – E o que se faz agora? Esperamos sentados dois anos para que o Papa escreva o documento final?
N.B. – Não, responde ela, objectivo deste sínodo é a conversão sinodal da Igreja, a esta maneira de viver a Igreja. É o trabalho de uma geração. Como se diz no último parágrafo do documento preparatório, o objectivo deste sínodo não é de produzir documentos, mas de fazer germinar sonhos, cicatrizar as feridas e voltar a dar esperança.
Deve ser um acontecimento de graça, uma experiência de renovação para um novo dinamismo missionário…
Não chega, como diz o Papa, fazer um sínodo. O que é preciso é tornar-se um sínodo: como continuo um caminho de conversão pessoal e comunitário, como me torno uma religiosa sinodal, um padre sinodal, um pai ou mãe sinodal, um leigo sinodal, um bispo sinodal – quer dizer, alguém com esse estilo de se pensar em interacção com os outros num “nós” eclesial; e a sinodalidade pretende reforçar esse “nós” e isso nunca está terminado.

7M – Podemos dizer então que é um fruto do Evangelho e da identidade evangélica?, pergunta o jornalista.
N.B. – Claro, responde ela. A sinodalidade está enraizada no mistério da Trindade e o primeiro modelo de sinodalidade é Jesus. Uma imagem para compreender o que é a sinodalidade e o estilo de uma Igreja sinodal é a de Jesus a caminhar com os discípulos de Emaús…
A sinodalidade funda-se no modo de ser de Deus, que se revela à humanidade como um Deus trinitário e que entra em diálogo com a humanidade. São raízes muito profundas, que temos de redescobrir para pôr em prática nas situações concretas do nosso mundo de hoje. É uma visão da Igreja encarnada, de uma Igreja em peregrinação na história, mas fundada sobre a Trindade.
Como se percebe, é por esta resposta que volto à entrevista: para vermos como a sinodalidade não é uma questão de opção, não facultativa, não é uma moda, é o único modo de ser Igreja, à luz do mistério da Trindade. Na sinodalidade, trata-se de pôr em prática o mistério da Trindade.
Este é o caminho que Deus espera da Igreja para este século XXI. É por este caminho que temos de seguir. Não há outro.
(Na Missa do Senhor das Febres, em Gondesende, a homilia continuou assim)

Vale a pena repetir que a Liturgia, de modo especial a Eucaristia, e não as devoções ou procissões, é que é o centro da nossa fé, da nossa vida em Cristo. Por coincidência, a Voz Portucalense da última semana, publicava na última página um artigo, da responsabilidade do Secretariado Diocesano da Liturgia, com este título: Liturgia e Devoções. A propósito, não do Senhor das Febres, naturalmente, mas do Sagrado Coração de Jesus que se celebra sempre em Junho – este ano será no dia 24 –; aí se voltava a afirmar, por um lado, a importância das devoções, certamente também das procissões, como a do Senhor das Febres que faremos logo, mas lembrando também que a Liturgia, a Eucaristia, é que é o cume para o qual se encaminha a ação da Igreja e, simultaneamente, a fonte de onde dimana toda a sua força. Cume e fonte: assim se deve equacionar o relacionamento simbiótico entre a vida litúrgica e a prática dos atos de piedade do povo cristão.
Falo disto porque, este ano, bem como ainda no próximo, celebramos a Festa do Senhor das Febres durante o Caminho Sinodal, dentro deste tempo em que somos chamados a caminhar juntos, a redescobrir o que significa ser baptizados, a construir, a fazer, uma Igreja, uma paróquia sinodal. E isto implica uma grande conversão da nossa mentalidade e da nossa pastoral.
Como sabemos, os três pilares da sinodalidade são a Comunhão, a Participação e a Missão. É para aqui que temos de caminhar, e tudo o que fizermos terá de ser pensado, inspirado, executado e avaliado a partir daqui. Todas as nossas actividades e propostas pastorais só serão válidas – só serão cristãs – se nos fizerem crescer na Comunhão, na Participação e na Missão. Se não forem nesse sentido não são obra do Espírito de Jesus.
Então, pensando na invocação Senhor das Febres, lembrei-me que, de facto, há algumas febres que nos impedem de caminhar juntos nesse sentido e das quais temos de pedir ao Senhor das Febres que nos cure.
Antes de mais, temos a febre do individualismo, seja a do ‘eu cá tenho a minha fé’, seja a que impede de me sentir pertença da paróquia de Esmoriz, de saber e viver que eu e o meu lugar só temos sentido na comunhão paroquial: sem a paróquia não seríamos, como não seríamos sem a nossa mãe. Não nos confundimos, mas ajudamo-nos a ser e a crescer mutuamente. Caminhando juntos. A Comunhão só crescerá e dará frutos se o Senhor das Febres nos curar desta febre individualista.
Depois, temos a febre que nos faz confundir a fé com o consumo de ritos religiosos, ocasionalmente, que nos faz fazer da paróquia uma estação de serviço onde vamos quando precisamos, como se fôssemos clientes e não filhas e filhos da Igreja, membros da família paroquial, e portanto chamados à Participação e à Missão. Esta febre do consumismo religioso, associada ao clericalismo é seguramente uma das maiores dificuldades para a renovação sinodal da Igreja, das paróquias. O clericalismo tem muitos rostos e expressões, mas estou convencido que o pior clericalismo não será tanto o de o padre dizer ‘eu é que mando’, ainda que lhe caiba a missão de coordenar e garantir a Comunhão e a fidelidade ao Evangelho e à Igreja, mas bem mais a atitude de muitos dizerem ‘o padre é que sabe’. O padre e os que ‘andam pela igreja’. Se eu não participar e deixar que sejam sempre os mesmos a fazer tudo, estes acabam por eternizar-se nos lugares e nos serviços, e não há renovação. Peçamos ao Senhor das Febres que nos cure destas febres para crescermos na Participação e na consciência de que a fé, a graça recebida no Baptismo não é para consumo próprio, mas para se tornar testemunho e vida fazendo crescer a Igreja, a paróquia, e o Mundo. Recebo o Evangelho para o anunciar; como o Corpo de Cristo, para me fazer alimento de vida para os outros, celebro e participo do amor da Trindade para ser fonte de comunhão, para participar da vida da comunidade e para ser discípulo missionário, enviado à cidade.
A sinodalidade funda-se no modo de ser de Deus, que se revela à humanidade como um Deus trinitário e que entra em diálogo com a humanidade.
A sinodalidade está enraizada no mistério da Trindade e o primeiro modelo de sinodalidade é Jesus. Que Jesus, invocado por nós, aqui, hoje, como Senhor das Febres, nos guie e mantenha nesse caminho sinodal, até nos tornarmos ‘naturalmente’ sinodais.


Homilia (05-06-2022)

PENTECOSTES
Orações

Saudação e monição inicial
Queridos irmãos e queridas irmãs, queridos amigos, que bom estarmos aqui todos reunidos, para celebrarmos o Pentecostes, o momento culminante da Páscoa. Sem dizermos qualquer palavra, ao juntarmo-nos à volta desta Mesa, já estamos a dizer quem somos: somos uma comunidade congregada pelo Espírito Santo para comer a Palavra e o Pão da vida eterna que é Jesus. Estamos aqui porque sabemos que precisamos de ser alimentados, porque estamos famintos e sedentos de comunhão e de alegria, de fraternidade e de amizade. É isto que o Espírito faz – se nós deixarmos; é esta a Igreja que o Espírito quer fazer, hoje e aqui, em Esmoriz, como nos dirão as leituras que vamos escutar. Se nós O deixarmos entrar, como um fogo, nos nossos corações.
Estamos em processo sinodal, estamos chamados pelo papa Francisco a caminhar juntos e a descobrir nesse caminho que Igreja renovada Deus espera de nós para este tempo e para esta cidade: “todos à escuta do Espírito Santo, o «Espírito da verdade», para conhecer aquilo que Ele «diz às Igrejas».”
Queridas irmãs e queridos irmãos, queridos amigos, queridos paroquianos: estamos a viver, à volta deste Dia de Pentecostes, O(s) Dia(s) da Paróquia. Para tomarmos ainda mais consciência da Comunhão que é a nossa identidade, da Participação que é o nosso modo de ser, da Missão que é a nossa tarefa.
Por isso, vem, Espírito Santo, e enche o coração dos teus fiéis. Vem, Espírito Santo e faz acontecer hoje, nesta celebração, um novo Pentecostes. Vem, Espírito Santo, e faz de nós uma paróquia verdadeiramente sinodal que procura os caminhos originais daquela Igreja sonhada por Jesus e pela qual Ele deu a vida.
Vem, Espírito Santo, e renova em nós a graça do Baptismo. Vem, e faz-nos cantar a glória do teu amor que une o Pai e o Filho, e é fonte de vida e de amor para nós.

PENTECOSTES
Homilia

Na leitura dos Actos dos Apóstolos, que marca e dá identidade a este Dia de Pentecostes, cinquenta dias depois da Páscoa, temos os elementos essenciais que definem a Igreja. O que é a Igreja? É uma comunidade de irmãos reunidos por causa de Jesus; é uma comunidade animada pelo Espírito do Senhor ressuscitado; é uma comunidade que testemunha na história o projecto libertador de Jesus. Desse testemunho resulta a comunidade universal da salvação, que vive no amor e na partilha, apesar de todas diferenças. Perguntemo-nos: a Igreja de que fazemos parte, a nossa paróquia, é uma comunidade de irmãos e irmãs que se amam, apesar das diferenças? Está reunida por causa de Jesus e à volta de Jesus? Tem consciência de que o Espírito está presente e que a anima? Testemunha, de forma efectiva e coerente, a proposta libertadora que Jesus deixou?
‘Na verdade, todos nós fomos baptizados num só Espírito, para formarmos um só Corpo’. Temos todos consciência de que somos membros de um único “corpo” – o corpo de Cristo – e que é o mesmo Espírito que nos alimenta, embora desempenhemos funções diversas, não mais dignas ou mais importantes, mas diversas. Os “dons” que recebemos não podem gerar conflitos e divisões, mas devem servir para o bem comum e para reforçar a vivência comunitária. Temos consciência da presença do Espírito e acreditamos mesmo que é Ele que alimenta, que dá vida, que anima, que distribui os dons conforme as necessidades. Temos consciência da presença do Espírito e procuramos ouvir a sua voz e perceber as suas indicações?
“Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.” A comunidade cristã só existe de forma consistente, se está centrada em Jesus. Jesus é a sua identidade e a sua razão de ser. É n’Ele que superamos os nossos medos, as nossas incertezas, as nossas limitações, para partirmos à aventura de testemunhar a vida nova do Homem Novo. É Ele o fundamento e a fonte da Comunhão, da Participação e da Missão: “Assim como o Pai Me enviou, também eu vos envio a vós”.
E termino com duas perguntas a que valia a pena responder:
Que dons do Espírito sou capaz de identificar e enumerar na nossa paróquia de Esmoriz? Estão todos realmente e retamente ao serviço do bem comum?
Reconheço a minha pertença à Igreja, à paróquia, e participo da sua vida e manifestações de fé? Colaboro na sua missão e contribuo para o seu crescimento?
Vem, Espírito Santo, e faz acontecer hoje, nesta celebração, um novo Pentecostes. Vem, Espírito Santo, e faz de nós uma paróquia verdadeiramente sinodal que procura os caminhos originais daquela Igreja sonhada por Jesus e pela qual Ele deu a vida. Ámen. Aleluia. Aleluia.


Homilia (29-05-2022)

ASCENSÃO
Homilia

São Lucas, autor da primeira leitura, dos Actos dos Apóstolos e também do evangelho que escutámos, quer avisar-nos, lembrar-nos, que o projecto de salvação e libertação que Jesus nos veio trazer, agora, depois da subida de Jesus para o Pai, passou para as mãos da Igreja animada, guiada, iluminada e fortalecida pelo Espírito; passou para as nossas mãos, para nós que estamos chamados a ser a Igreja do século XXI que Deus espera de nós.
A construção do Reino é uma tarefa que não está terminada, mas que é preciso concretizar na história, que nós temos de concretizar na nossa vida de cada dia, e que exige o empenho e trabalho contínuo de todos os crentes, de todos os baptizados. De modo ainda mais evidente neste tempo sinodal, chamados a caminhar juntos, os cristãos, os baptizados, somos convidados a redescobrir o nosso papel, a nossa Missão. “Vós sois testemunhas disso.”
Ser testemunhas do Evangelho, como nos pede hoje a nós Jesus, é, antes de mais, aprofundar a comunhão e a participação na vida da paróquia (a Igreja não é uma coisa abstracta e a paróquia é a Igreja que somos), para sermos mais capazes e eficazes na missão de levar à nossa cidade de Esmoriz a força ressuscitadora da Páscoa de Jesus, a força renovadora da manhã da nova criação.
E neste Domingo em que, para além de ser o Dia Mundial das Comunicações, também concluímos a Semana Laudato Si’, podemos dizer que a nossa missão é fazer chegar ao maior número possível dos nossos concidadãos e conterrâneos a necessidade de cuidarmos de toda a criação. Cito as palavras de um amigo, que podiam ter sido ditas na Conversa do Abade da passada segunda-feira:
‘Muitos desafios nos solicitam: combater bens mal adquiridos e não se aproveitar dos mecanismos de especulação; consumir menos, em particular energia; potenciar mais empregos a partir daquilo que temos e está ao nosso alcance; partilhar a vida com mais imigrantes e proporcionar a sua integração sem medos; procurar que o facto de serem mais caros os produtos isso reverta o mais possível para os produtores; em casa, aproveitar as sobras, para não deitar fora o que faz falta a outros; viver com menos, diminuir o nosso nível de vida e, simultaneamente, querer que os outros vivam melhor; promover e aceitar limites de ganhos e de enriquecimento; usar sacos de pano ou reutilizáveis para evitar o plástico; rezar às refeições para tomar consciência dos dons de Deus que nos chegam pelo trabalho de tantos irmãos e irmãs… Tantos desafios e caminhos. Sem esquecer o Jardim Laudato Si’
Claro que não se podem impor práticas solidárias aos outros, mas cada um pode realizar no seu quotidiano o desenho mais apropriado de um presente e de um futuro mais justo, mais ecológico, mais solidário. O que vale uma grande agitação, muitas devoções – vir à Missa – se esta não provocar uma mudança, se não ocorrer uma conversão no presente de cada um?
“Vós sois testemunhas disso”, diz Jesus. Ámen. Aleluia.


Homilia (22-05-2022)

6º DOMINGO DE PÁSCOA
Homilia

Nota prévia: A Missa não é uma devoção – muito menos uma devoçãozinha – nem um entretenimento; a Missa é um ‘combate’ entre a Palavra de Deus e nós, entre a Graça de Deus e nós. Deus, que nos quer converter e santificar, e nós, que resistimos como podemos a essa ‘poda’. Hoje, a homilia, tendo em conta a Sinodalidade e a escuta da leitura dos Actos, é um pouco mais longa.

Neste tempo e neste percurso sinodal que estamos a fazer – nesta exigente aprendizagem da sinodalidade que nos é pedida, e para a qual ainda não conseguimos trazer muitas pessoas, a começar pelos servidores da paróquia –, creio que hoje devemos prestar uma especial atenção à primeira leitura que escutámos, do livro dos Actos dos Apóstolos. Contava-nos como a Igreja foi capaz e soube ultrapassar o primeiro problema verdadeiramente difícil que enfrentou: o conflito aceso – muito acesos – entre os cristãos vindos do Judaísmo, agarrados às antigas práticas judaicas, e os cristãos vindos de fora, do paganismo, os sem religião (sem esquemas ou tradições impregnados nas suas cabeças), abertos à novidade, que perceberam – a começar por Paulo – que o caminho do Evangelho era outra coisa. O caminho do Evangelho é sempre outra coisa, para lá do que pensamos ou queremos.
Ao preparar este Domingo neste contexto, e com o entusiasmo sinodal que é o meu (acredito mesmo que estamos a viver um momento muito entusiasmante na Igreja), encontrei duas ideias interessantes que podem ajudar-nos a reflectir.
A primeira é esta: O livro dos Actos é uma escola de democracia? A Igreja é uma democracia? A sinodalidade é democracia? Claramente, não. Ainda que se trate de partilhar, decidir, participar, a verdade é que a Igreja sinodal é bem mais do que isso. A Igreja é comunhão. Não se trata de parlamentarismo, de maiorias ou minorias, de confrontação ideológica ou de gostos, mas de discernimento e de corresponsabilidade na fidelidade ao Evangelho, na fidelidade ao Espírito Santo. A Igreja é fidelidade e seguimento de Cristo e do Evangelho, guiada pelo Espírito Santo..
O próprio papa Francisco já o disse várias vezes, por exemplo no seu discurso à sua diocese de Roma (18 de Setembro de 2021): “Escutar-se, falar-se e escutar-se. Não, não se trata de coligir opiniões. Também não é um inquérito; trata-se antes de escutar o Espírito Santo, como encontramos no livro do Apocalipse: “Quem tem ouvidos escute o que o Espírito diz às Igrejas” (2,7). Ter ouvidos, escutar, é o primeiro compromisso. Trata-se de ouvir a voz de Deus, captar a sua presença, intercetar a sua passagem e o seu sopro de vida.
Se não houver o Espírito, será um parlamento diocesano, mas não um Sínodo. Não é um parlamento diocesano o que estamos a fazer, não estamos a fazer um estudo sobre isto ou aquilo; não: estamos a fazer um caminho de nos escutarmos e de escutar o Espírito Santo, de discutir e também discutir com o Espírito Santo, que é um modo de rezar.”
E isto leva-nos a uma das frases mais significativas da primeira leitura e que o papa também referiu nesse discurso tão importante: “O Espírito Santo e nós decidimos…”
“Não se esqueçam desta fórmula, diz o papa: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não lhes impor outra obrigação”: pareceu bem ao Espírito Santo e a nós. Assim vocês deverão tentar expressar-se, nesta estrada sinodal, neste caminho sinodal.
“O Espírito Santo e nós”. Em vez disso, haverá sempre a tentação de fazer sozinho, expressando uma eclesiologia substitutiva – existem muitas eclesiologias substitutivas – como se, tendo ascendido ao Céu, o Senhor tivesse deixado um vazio a ser preenchido, e nós o tivéssemos preenchido. Não, o Senhor deixou-nos o Espírito!
Este é o estilo do nosso caminho: as realidades, se não caminham, são como as águas. As realidades teológicas são como a água: se a água não corre e é imprópria é a primeira a entrar em putrefação. Uma Igreja imprópria começa a ficar putrefacta.
Vejam como a nossa Tradição é uma massa fermentada, uma realidade em fermento na qual podemos reconhecer o crescimento e, na massa, uma comunhão que se realiza em movimento: caminhar juntos realiza a verdadeira comunhão. É ainda o livro dos Atos dos Apóstolos que nos ajuda, mostrando-nos que a comunhão não suprime as diferenças.”
O problema é que, hoje como há dois mil anos, nem todos aceitam a novidade – a novidade sempre nova do Evangelho, a novidade da Sinodalidade –, há muitos que ficam ‘agarrados’ às coisas do passado, ao que era dantes, ao costume, ao que já se fez. Mas esta atitude, como disse o papa Francisco, leva à putrefação e à morte. Fechados à acção do Espírito, esses nostálgicos das coisas antigas, ainda por cima convencidos da sua superioridade, são, afinal, especialistas do acessório e do velho; desconhecem e desprezam o essencial, desconhecem e desprezam o caminho novo que a Igreja nos pede joje.
O seu pecado original – ainda que eles se considerem os maiores santos – é precisamente a incapacidade de estarem respaldados, apoiados, sustentados pelas iniciativas inovadoras do Espírito. Pensando que não, a verdade é que estão sempre atrasados em relação aos acontecimentos, ao hoje, e portanto sempre atrasados em relação à acção de Deus na história.
Diante de Cristo que pede uma mudança radical de mentalidade, de maneira de pensar, de atitude interior, eles só pensam em manter a circuncisão.
Diante de Cristo que, através do papa Francisco, nos chama a ser uma Igreja sinodal, marcada pela Comunhão, pela Participação e pela Missão, eles só pensam na minha capela, na minha missa, no meu grupo, na minha procissão…
A verdade é esta: na Igreja está proibida (devia estar proibida) a nostalgia, o estar voltados para trás, para o já feito. O Espírito é novidade, é futuro: “Um Anjo transportou-me em espírito ao cimo de uma alta montanha e mostrou-me a cidade santa de Jerusalém, que descia do Céu, da presença de Deus, resplandecente da glória de Deus… A cidade não precisa da luz do sol nem da lua, porque a glória de Deus a ilumina e a sua lâmpada é o Cordeiro”.
A sinodalidade – partilhar, decidir, construir sobre bases sólidas – é participar na missão confiada por Cristo: fazer do Mundo uma Jerusalém nova que a glória de Deus ilumina; fazer do Mundo a Casa Comum da fraternidade e da amizade nascidas do Espírito Santo que habita os nossos corações. Aleluia! Aleluia!


Homilia (15-05-2022)

SANTA MISSA E CANONIZAÇÃO DOS BEATOS:

Titus Brandsma - Lazzaro, detto Devasahayam - César de Bus - Luigi Maria Palazzolo - Giustino Maria Russolillo -
Charles de Foucauld - Maria Rivier - Maria Francesca di Gesù Rubatto - Maria di Gesù Santocanale - Maria Domenica Mantovani

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Praça São Pedro
Domingo, 15 de maio de 2022

Acabamos de ouvir algumas das palavras que Jesus confia aos seus discípulos, antes de passar deste mundo para o Pai, manifestando nelas o que significa ser cristão: «Assim como Eu vos amei, amai-vos também vós uns aos outros» (Jo 13, 34). Este é o testamento que Cristo nos deixou, o critério fundamental para discernir se somos verdadeiramente seus discípulos ou não: o mandamento do amor. Detenhamo-nos sobre os dois elementos essenciais deste mandamento: o amor de Jesus por nós – assim como Eu vos amei – e o amor que Ele nos pede para vivermos – amai-vos também vós uns aos outros.
O primeiro ponto: assim como Eu vos amei. E como nos amou Jesus? Até ao fim, até ao dom total de Si mesmo. Causa impressão vê-Lo pronunciar estas palavras numa noite tenebrosa, enquanto se respira no Cenáculo um ambiente denso de comoção e turbamento: comoção, porque o Mestre está prestes a despedir-Se dos seus discípulos; turbamento, porque anuncia que será precisamente um deles a traí-Lo. Podemos imaginar a tristeza que havia no íntimo de Jesus, a escuridão que se adensava no coração dos apóstolos, a amargura vivida ao ver que Judas, depois de receber o bocado de pão ensopado para ele pelo Mestre, saía da sala para adentrar-se na noite da traição. E é precisamente na hora da traição que Jesus confirma o amor pelos seus. Com efeito, nas trevas e tempestades da vida, o essencial é isto: Deus ama-nos.
Irmãos e irmãs, oxalá seja sempre central, na profissão da nossa fé e nas suas expressões, este anúncio: «Não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou» (1 Jo 4, 10). Nunca nos esqueçamos disto! No centro, não está a nossa capacidade, os nossos méritos, mas o amor incondicional e gratuito de Deus, que não merecemos. No início do nosso ser cristão, não estão as doutrinas e as obras, mas a maravilha de descobrir que se é amado, antes de qualquer resposta nossa. Enquanto o mundo quer muitas vezes convencer-nos de que só temos valor se produzirmos resultados, o Evangelho lembra-nos a verdade da vida: somos amados. E está nisto o nosso valor: somos amados. Assim escreveu um mestre espiritual do nosso tempo: «Ainda antes que nos visse qualquer ser humano, fomos vistos pelos olhos amorosos de Deus. Ainda antes que alguém nos ouvisse chorar ou rir, fomos escutados pelo nosso Deus que é todo ouvidos para nós. Ainda antes que alguém neste mundo nos falasse, já nos falava a voz do amor eterno» (H. Nouwen, Sentir-se amado, Brescia 1997, 50). Ele amou-nos primeiro, esteve à nossa espera. Ama-nos e continua a amar-nos. E esta é a nossa identidade: amados por Deus. Esta é a nossa força: amados por Deus.
Esta verdade pede-nos uma conversão da ideia de santidade que frequentemente possuímos. Às vezes, insistindo muito sobre o nosso esforço para praticar boas obras, criamos um ideal de santidade demasiado fundado em nós mesmos, no heroísmo pessoal, na capacidade de renúncia, nos sacrifícios feitos para se conquistar um prémio. Às vezes temos uma visão demasiado pelagiana da vida, da santidade. Deste modo fizemos da santidade uma meta inacessível, separamo-la da vida de todos os dias, em vez de a procurar e abraçar na existência quotidiana, no pó da estrada, nas aflições da vida concreta e – como dizia Teresa de Ávila às suas irmãs – «entre as panelas da cozinha». Ser discípulo de Jesus e caminhar pela via da santidade é, antes de mais nada, deixar-se transfigurar pela força do amor de Deus. Não esqueçamos o primado de Deus sobre o próprio eu, do Espírito sobre a carne, da graça sobre as obras. Às vezes damos mais peso, mais importância ao próprio eu, à carne e às obras. Não está certo, mas há de ser a primazia de Deus sobre o eu, a primazia do Espírito sobre a carne, a primazia da graça sobre as obras.
O amor que recebemos do Senhor é a força que transforma a nossa vida: dilata-nos o coração e predispõe-nos a amar. Por isso – e passamos ao segundo ponto – Jesus diz «assim como Eu vos amei, amai-vos também vós uns aos outros. Este assim como não é apenas um convite a imitar o amor de Jesus; mas significa que só podemos amar porque Ele nos amou, porque dá aos nossos corações o seu próprio Espírito, o Espírito de santidade, amor que nos cura e transforma. Por isso podemos decidir-nos a praticar gestos de amor em toda a situação e com cada irmão e irmã que encontramos, porque somos amados e temos a força de amar. Assim como sou amado eu, posso amar. Sempre, o amor que partilho está unido ao de Jesus por mim: «assim como». Assim como Ele me amou, assim também eu posso amar. A vida cristã é assim simples, tão simples! Nós tornamo-la mais complicada, com tantas coisas, mas é simples assim.
E que significa, concretamente, viver este amor? Antes de nos deixar este mandamento, Jesus lavou os pés aos discípulos; depois de o ter pronunciado, entregou-Se no madeiro da cruz. Amar significa isto: servir e dar a vida. Servir, isto é, não colocar os próprios interesses em primeiro lugar; desintoxicar-se dos venenos da ganância e da preeminência; combater o câncer da indiferença e o caruncho da autorreferencialidade, partilhar os carismas e os dons que Deus nos concedeu. Perguntando-nos o que fazemos em concreto pelos outros. Isto é amar: viver as tarefas de cada dia em espírito de serviço, com amor e sem alarde, sem nada reivindicar.
Primeiro servir, depois dar a vida. Aqui não se trata só de oferecer aos outros qualquer coisa, alguns bens próprios, mas dar-se a si mesmo. Gosto de perguntar às pessoas que me pedem conselho: «Diz-me uma coisa: tu dás esmola?» - «Sim, padre, eu dou esmola aos pobres» - «E quando dás esmola, tocas a mão da pessoa, ou deitas a esmola e fazes assim [esfrego as mãos uma na outra] para te limpares?». E elas coram: «Não, eu não toco». «Quando dás a esmola, fixas nos olhos a pessoa que ajudas, ou olhas para o outro lado?» - «Eu não olho». Tocar e olhar, tocar e olhar a carne de Cristo que sofre nos nossos irmãos e irmãs. Isto é muito importante. Dar a vida é isto. A santidade não se faz de alguns gestos heroicos, mas de muito amor diário. «És uma consagrada ou um consagrado [hoje aqui há muitos]? Sê santo, vivendo com alegria a tua doação. Estás casado [ou casada]? Sê santo [e santa], amando e cuidando do teu marido ou da tua esposa, como Cristo fez com a Igreja. És um trabalhador, [uma mulher trabalhadora]? Sê santo, cumprindo com honestidade e competência o teu trabalho ao serviço dos irmãos [e lutando pela justiça a favor dos teus companheiros, para que não fiquem sem trabalho, para que tenham sempre o salário justo]. És progenitor, avó ou avô? Sê santo, ensinando com paciência as crianças a seguirem Jesus. [Diz-me:] estás investido em autoridade? [Aqui temos muitas pessoas que têm autoridade – pergunto-vos: estás investido em autoridade?] Sê santo, lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais» (cf. Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 14). Esta é a estrada da santidade: ver sempre Jesus nos outros.
Servir o Evangelho e os irmãos, oferecer a própria vida sem retribuição – fazê-lo em segredo: oferecer sem esperar retribuição –, sem buscar qualquer glória mundana, mas escondido humildemente como Jesus: a isto somos chamados também nós. Os nossos companheiros de viagem, hoje canonizados, viveram assim a santidade: abraçando com entusiasmo a sua vocação – uns de sacerdote, outras de consagrada, e outros ainda de leigo –, gastaram-se pelo Evangelho, descobriram uma alegria sem par e tornaram-se reflexos luminosos do Senhor na história. Um santo ou uma santa é isto: um reflexo luminoso do Senhor na história. Tentemos fazê-lo também nós: não está fechado o caminho da santidade, é universal, é uma chamada para todos nós, começa com o Batismo, não está fechado o caminho. Tentemos também nós, porque cada um de nós é chamado à santidade, a uma santidade única e irrepetível. A santidade é sempre original, como dizia o Beato Carlos Acutis: não há santidade de fotocópia, a santidade é original, é a minha, a tua, a de cada um de nós. É única e irrepetível. Sim, o Senhor tem um plano de amor para cada um, tem um sonho para a tua vida, para a minha vida, para a vida de cada um de nós. E que posso dizer-vos eu? Levai-o para diante com alegria. Obrigado.


Homilia (08-05-2022)

4º DOMINGO DE PÁSCOA

Saudação e monição inicial
A paz e a alegria de Jesus, o Bom Pastor que deu a vida por nós e ressuscitou para nos dar a vida eterna, estejam convosco.

Desde há 59 anos que o quarto Domingo de Páscoa, Domingo do Bom Pastor, é também o Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Fique dito, desde já, que a questão ou problema da falta de vocações – da falta de crianças e de jovens não apenas na Eucaristia, mas na vida das paróquias, é um problema nosso, não é culpa de Deus. Temos de perguntar-nos sempre, sem medo: que comunidade somos? Somos uma paróquia dinâmica, criativa, sinodal, ou antes pelo contrário?
A primeira leitura pode ajudar-nos a responder.
Diante do novo anúncio e do novo caminho do Evangelho de Jesus, estão duas atitudes: de um lado, temos os judeus, que pensavam ter o monopólio de Deus, acomodados numa religião feita de hábitos, de leis, devoções, ritos exteriores para os outros verem; instalados nas suas certezas, no seu orgulho, na sua auto-suficiência. Recusavam a novidade que os obrigava a pôr-se em causa.
Do outro lado, temos os gentios, os de fora, os sem religião, certamente pouco exemplares, pecadores, excluídos pelos religiosos de serviço. Mas abertos á novidade do Evangelho, mas dispostos a questionarem-se e mudarem de vida, a acolherem a verdadeira vida.
De que lado é que eu estou? Na atitude de quem nasceu cristão sem ter feito muito para isso e que vive a sua religião sem riscos, sem exigências de radicalidade e autenticidade, agarrado ao passado e apenas disposto a repetir esse passado, ou na atitude de quem se deixa continuamente desafiar, de quem se deixa questionar por Deus, de quem aceita viver numa dinâmica contínua de conversão; na atitude sinodal de quem dá as mãos para caminhar juntos, encontrar caminhos novos, de quem sente uma imensa alegria por estar e rezar e dialogar com todos os irmãos e irmãs?
Qual é a minha atitude?
Ao acolher a água do Baptismo e cantar a glória do amor trinitário de Deus, fonte do amor e da vida nova, deixemo-nos renovar na alegria da nova Páscoa.

4º DOMINGO DE PÁSCOA
Homilia

Para que não nos aconteça a nós, hoje, aqui em Esmoriz, repetir aquela atitude fechada e arrogante dos judeus, em Antioquia da Pisídia, só há uma maneira: escutar. “As minhas ovelhas escutam a minha voz”. Escutar a voz de Jesus.
Escutar a voz é mais do que ouvir palavras. Pensemos no bebé que reconhece a voz da mãe ou do pai, no meio de tantas palavras; pensemos no amado e na amada e como se reconhecem na voz: ‘Eis a voz do meu amado, sussurra a amada do Cântico dos Cânticos.
A voz, muito mais do que as palavras, expressa um chamamento, um convite, com um timbre pessoal, inconfundível, capaz de fazer reconhecer a pessoa amada e de provocar um estremecimento interior, uma ressonância que faz sobressaltar o coração.
Ou seja, escutar a voz implica uma ligação, uma pertença recíproca, uma comunhão. Implica confiança, liberdade, alegria, espontaneidade. Por isso, quem escuta a voz, segue. E segue, não com palavras de circunstância, não com uma atitude meramente exterior para parecer bem, não para fazer de conta, mas entregando a vida, a vida toda e inteira.
E eu, escuto a voz de Jesus, o Bom Pastor? E eu, estou disposto a segui-l’O, hoje, pelos caminhos sempre novos e sinodais da comunhão, da participação e da missão?
“O Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água viva”. A voz do Bom Pastor é que nos guia, nos exercita e prepara, nos consola, nos chama. O lugar ideal para escutar esta voz é na Eucaristia. Então, como ovelhas do seu rebanho, ruminemos, ruminemos, não apenas a erva fresca, mas a Palavra de Deus, para que ela possa alimentar a nossa vida e nós possamos reconhecer cada dia o tom inimitável de Cristo quando nos fala. Ámen. Aleluia. Aleluia.


Homilia (01-05-2022)

3º DOMINGO DE PÁSCOA

Tendo presente o processo sinodal e a conversão sinodal que somos chamados a fazer, três coisas sobre este texto tão rico e denso de significado.
Primeira: a mensagem fundamental, naquele tempo, neste tempo e em todos os tempos, convida-nos a constatar – e acreditar – a centralidade de Cristo, vivo e ressuscitado, na missão que nos foi confiada. Podemos esforçar-nos imenso e dedicar todas as horas do dia e mais algumas ao esforço de mudar a Igreja e o Mundo; mas se Cristo não estiver presente, se não escutarmos a sua voz, se não ouvirmos as suas propostas, se não estivermos atentos à Palavra que Ele nos dirige, os nossos esforços não farão qualquer sentido e não terão qualquer êxito duradouro. Andaremos apenas à roda de nós, das nossas manias e gostos, das nossas tradições e costumes, mas não de Cristo, nem da sua Palavra, nem da sua Eucaristia. Precisamos de crescer, cada vez mais – é para isso que celebramos a Páscoa cada ano e cada Domingo – na consciência, na fé, de que o êxito da Missão, ainda que não passe sem o esforço humano (Jesus diz aos apóstolos para trazerem alguns dos peixes, quando Ele já tinha tudo preparado), não depende do esforço humano, mas da presença viva do Senhor Jesus ressuscitado.
Segunda: quando os pescadores discípulos chegam à praia já se encontra aceso o lume novo e a refeição nova, cuidadosamente preparada por Jesus. É Ele quem dá o peixe, quem o prepara, quem serve. Mas agora Pedro está no lugar certo, está com Jesus, e aquece-se no lume vivo que é Jesus – o lume novo da Páscoa que acendemos no início da Vigília Pascal. Pouco antes, aquando da prisão e paixão de Jesus, ele estava com os guardas e aquecia-se a outro lume, o lume da noite e da traição. E rompeu a sua intimidade e comunhão com Jesus, repetindo que não O conhecia. Mas agora conhece-O e arrasta a rede cheia com 153 grandes peixes. O narrador faz questão de nos dizer que, embora fossem muitos, a rede não se rompeu. Romper traduz o verbo que significa divisão, separação, como os cismas que aconteceram na história da Igreja.
É, portanto, de comunhão e de unidade, de comunidade, que se trata e nos fala também este texto, e não de divisões, dissensões e contendas. Fala-nos da comunhão que somos chamados a fazer crescer, da comunidade que somos chamados a construir, ainda mais neste processo e conversão sinodais. Fala-nos da comunhão da qual estivemos a falar na passada quinta-feira, na igreja de Gondesende.
Senhor, ensina a tua Igreja de hoje outra vez a ver e a ler os sinais da tua presença na madrugada, da praia, novo limiar de luz e de esperança que orienta para Ti a nossa vida toda. Para Ti que és a referência fundamental e a fonte do amor e da comunhão que deve unir como uma rede a tua Igreja, a nossa paróquia de Esmoriz.
Senhor, precede-nos e preside-nos sempre. Não nos deixes perdidos no nevoeiro e na confusão, na noite e no frio, a orientar-nos por outro farol, a aquecer-nos a outro lume.
Faz que reconheçamos sempre a tua voz de único e verdadeiro Pastor, e ampara o pastor desta paróquia e todos os pastores a quem incumbiste a missão de apascentar, em teu nome, as tuas ovelhas. Ámen. Aleluia. Aleluia.


Homilia (24-04-2022)

2º DOMINGO DE PÁSCOA

“Na Missa, dizia eu no início da longa Liturgia da Palavra, na Vigília Pascal, citando o pregador do Vaticano, as palavras e os episódios da Bíblia não são apenas narrados, mas revividos; a memória torna-se realidade e presença. O que acontece “naquele tempo”, acontece “neste tempo”, “hoje”, como gosta de dizer a liturgia. Nós não somos apenas ouvintes da palavra, mas interlocutores e atores nela. É a nós, aqui presentes, que é dirigida a palavra; somos chamados a assumir o lugar dos personagens evocados.”
Então, se é assim – e é – Jesus diz-nos, hoje e agora a nós, aqui reunidos: “Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos; aproxima a tua mão e mete-a no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente”.
E o que Jesus está a dizer é isto: Se queres ultrapassar a dúvida, as dúvidas de fé, como Tomé, e acreditar, mete as mãos nas feridas dos homens e mulheres e compadece-te do sofrimento dos outros, entra no sofrimento dos outros, seja os que sofrem na Ucrânia, ou ao teu lado, ou mesmo na tua casa. Nenhum caminho espiritual verdadeiro, nenhuma fé verdadeira em Cristo, pode passar ao lado do sofrimento dos outros e do mundo. Pelo contrário, a espiritualidade cristã, a espiritualidade que vem da Páscoa de Cristo e do Espírito que Ele nos deu ensina-nos a olhar o sofrimento dos outros, do mundo, e o nosso próprio sofrimento, com olhos novos e a meter as mãos nas suas chagas e feridas.
Obrigado Tomé por teres duvidado. Porque nós também duvidamos e queremos ver e tocar, porque ainda não cremos verdadeiramente.
O nosso problema é este: apesar de vermos as chagas e feridas das pessoas e do mundo, e da Igreja, e da paróquia, ainda assim somos incrédulos, preferimos não ver. Porquê? Porque não metemos os nossos dedos e as nossas mãos nelas, mas permanecemos fora, como se fosse um espectáculo e nós fôssemos apenas assistentes, não fosse connosco.
Quando, no aprofundar da sinodalidade, falamos de comunhão, participação e missão, é disto que estamos a falar: de uma fé que tem de nos transformar e comprometer, e assim renovar a Igreja e o Mundo; de uma fé que tem de levar a meter as mãos e os dedos, também nas feridas da paróquia (há muitas feridas abertas na paróquia: maledicências, divisões, deslealdades, individualismos, grupismos…), e trabalharmos para as sarar (deixarmos que o Espírito do Ressuscitado as sare), transformando-as em fonte de vida, de luz e de bênção, como as de Cristo. E então seremos capazes de anunciar e testemunhar a ressurreição, como manhã da nova criação, como possibilidade de uma Igreja renovada, sinodal, e de um Mundo novo, Casa comum da fraternidade e da paz.
Obrigado Tomé por teres duvidado. Ensina-nos como meter as mãos nas chagas de Cristo, abertas na Igreja e no Mundo de hoje, e aprender a dizer como tu: Meu Senhor e meu Deus. Ámen. Aleluia. Aleluia.


Homilia (17-04-2022)

QUINTA-FEIRA SANTA

Começámos o caminho para o Tríduo Pascal, no primeiro dia desta Semana Santa, escutando Jesus dizer-nos, logo no início da narração da Paixão: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de padecer”, como quem diz: ‘Eu desejei tanto comer esta Páscoa convosco antes do meu fim’. Eu desejei tanto comer esta Páscoa convosco. Pois bem, aqui estamos nós, hoje e agora, sentados à mesa com Jesus para comer com Ele esta Páscoa, antes de Ele ser crucificado.
Tudo começa, portanto, com o desejo de Jesus de se sentar à nossa mesa. E como nos faria bem ter isto bem presente: O último desejo de Jesus foi uma mesa e foi companhia. Continua a ser assim hoje. É por isso que a Eucaristia continua a ser o centro da nossa Fé; é por isso que não é possível ser cristão sem sentar-se, Domingo após Domingo, à sua mesa.
Pedindo desculpa por ser um puco mais demorado – mas estas celebrações do Tríduo não podem ser apressadas – gostaria de aprofundar esta centralidade da Eucaristia, deste ‘Drama da Eucaristia’, como diz um autor ao escrever sobre este sacramento que a Igreja faz, que a Igreja celebra, e que, ao ser feito, ao ser celebrado, faz a Igreja, nos faz a nós: A Igreja, que somos nós, faz a Eucaristia e a Eucaristia faz a Igreja, que somos nós. Isto é bem mais do que um jogo de palavras, joga-se aqui, ao redor desta Mesa para onde é sempre Cristo que nos convida para celebrarmos a sua Páscoa, a verdade da nossa fé.
Mas nós temos, hoje, não sei se cada vez mais, um grave problema. Vou dizê-lo assim, para simplificar:
Apesar de nos primeiros séculos, os cristãos pouco mais terem do que a Missa ao Domingo, e de muitos terem morrido por ir à Missa, a verdade é que nós banalizámos a Missa, tornámos a Missa em pouco mais do que uma devoção onde cabe quase tudo, até as nossas vaidades; em vez de celebrar a Missa de Cristo, o Drama da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, certamente porque é muito duro e exigente, queremos a ‘nossa misa’ ou mesmo ‘ a minha missa’, como se ouve tantas vezes. Hoje, a Eucaristia dominical é o sacramento onde muitos baptizados não vão, porque não descobriram que ‘não podemos passar sem a Missa do Domingo’ para termos a Vida de Cristo, e onde outros – talvez nós – vão por razões e convicções que não serão muito eucarísticas.
Hoje, continuo cada vez mais convencido – e já li isto há alguns anos – que temos ‘missas a mais e Missa a menos’. Insisto: fizemos da Missa uma devoção, ao lado de outras devoções, as minhas devoções, esquecendo-nos que a Eucaristia é o Sacramento dos sacramentos – o Santíssimo Sacramento – que nos transforma em Corpo de Cristo: comemos o Corpo de Cristo, não para Ele se transformar em nós, mas para nós sermos transformados n’Ele. A Eucaristia é o Sacramento dos sacramentos porque é o sacramento do Corpo de Jesus, da carne de Jesus, da vida de Jesus: é o único sacramento em que recebemos/comemos a sua vida. Não há nada igual.
Por isso vos peço que aceitem, mesmo sem entender algumas vezes, o meu zelo pela Eucaristia, o zelo pela Eucaristia que me devora.
Esta minha convicção e este meu zelo – e eu não sou melhor do que nenhum outro sacerdote – foi muito confirmado ao ler as meditações que o pregador oficial da Casa Pontifícia, o franciscano Raniero Cantalamessa, fez nesta Quaresma no Vaticano, a que ele chamou ‘revisitação do mistério eucarístico’. Mistério eucarístico, sublinho. Para mim, que já li tanto sobre a Eucaristia e que já celebrei tantas eucaristias são palavras verdadeiramente reveladoras. Só gostava de ser capaz de ajudar a entrar e compreender este ‘admirável mistério’, a todos, mas ainda mais aos mais jovens.
Ao falar da Oração Eucarística e do momento da consagração, diz ele:
“Quero dizer, a este propósito, a minha pequena experiência, isto é, como cheguei a descobrir o alcance eclesial e pessoal da consagração eucarística. Eis como eu vivia o momento da consagração na santa Missa nos primeiros anos do meu sacerdócio: eu fechava os olhos, inclinava a cabeça, buscava alienar-me de tudo o que me circundava, para me identificar em Jesus que, no Cenáculo, pronunciou pela primeira vez aquelas palavras: “Accipite et manducate: Tomai, comei...”. A própria liturgia inculcava esta postura, fazendo pronunciar as palavras da consagração a baixa voz e em latim, inclinado sobre as espécies.
Em seguida, houve a reforma litúrgica do Vaticano II. Começou-se a celebrar a Missa olhando a assembleia; não mais em latim, mas na língua do povo. Isto ajudou-me a entender que aquela minha postura, sozinho, não exprimia todo o significado da minha participação na consagração. Aquele Jesus do Cenáculo não existe mais! Existe o Cristo ressuscitado: o Cristo, para sermos exatos, que morreu, mas agora vive para sempre (cf. Ap 1,18). Mas este Jesus é o “Cristo total”, Cabeça e corpo inseparavelmente unidos. Portanto, se é este Cristo total que pronuncia as palavras da consagração, eu também as pronuncio com Ele. Eu as pronuncio, sim, “in persona Christi”, em nome de Cristo, mas também “em primeira pessoa”, isto é, em meu nome.
A partir daquele dia em que compreendi isso, comecei a não fechar mais os olhos no momento da consagração, mas a olhar – ao menos vez ou outra ‒ os irmãos que tenho diante de mim, ou, se celebro sozinho, penso naqueles que devo encontrar durante o dia e aos quais devo dedicar o meu tempo, ou penso mesmo em toda a Igreja e, voltado para eles, digo com Jesus: “Tomai, todos, e comei: isto é o meu corpo, que quero dar por vós... Tomai, todos, e bebei: isto é o meu sangue, que quero derramar por vós”.”
E acrescenta este exemplo, que me arrepia:
“Mais perto de nós, a mística mexicana Concepción Cabrera de Armida, familiarmente chamada Conchita, falecida em 1937 e beatificada pelo Papa Francisco em 2019, ao filho jesuíta, prestes a ser ordenado sacerdote, escreveu estas palavras: "Lembra-te, meu filho, quando tiveres na mão a Hóstia Sagrada, não dirás: 'Aqui está o corpo de Jesus, aqui está o seu sangue', mas dirás: 'Isto é o meu corpo, este é o meu sangue': isto é, a transformação deve acontecer em ti totalmente, tu deves perder-te n’Ele, ser outro Jesus”.”
E só mais estas palavras, neste dia da Ceia pascal de Jesus com os seus discípulos, que antecipa a sua entrega na cruz:
“Há dois corpos de Cristo sobre o altar: há o seu corpo real (o corpo “nascido da Virgem Maria”, morto, ressuscitado e subido ao céu) e há o seu corpo místico, que é a Igreja. Contudo, sobre o altar, está presente realmente o seu corpo real e está presente misticamente o seu corpo místico.
Dado que há duas “ofertas” e dois “dons” sobre o altar – o que deve se tornar o corpo e o sangue de Cristo (o pão e o vinho) e o que deve se tornar o corpo místico de Cristo –, assim há também duas “epicleses” na Missa, isto é, duas invocações do Espírito Santo.
Na primeira, reza-se: “Por isso, nós vos suplicamos: santificai pelo Espírito Santo as oferendas que vos apresentamos para serem consagradas, a fim de que se tornem o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo”; na segunda, que se recita após a consagração, reza-se: “sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito. Que ele faça de nós uma oferenda perfeita”.
Eis como a Eucaristia faz a Igreja: a Eucaristia faz a Igreja, fazendo da Igreja uma Eucaristia! A Eucaristia não é apenas, genericamente, a fonte ou a causa da santidade da Igreja; é também a sua “forma”, isto é, o modelo. A santidade do cristão deve realizar-se segundo a “forma” da Eucaristia; deve ser uma santidade eucarística. O cristão não pode limitar-se a celebrar a Eucaristia, deve ser Eucaristia com Jesus.”
Este é que é o Drama da Eucaristia, o drama de Jesus e o nosso. Havemos de voltar a estas meditações. Por agora, vamos continuar com o gesto do Lava-Pés que, sublinho, substitui o Cedo, nesta celebração.

Como escutámos na passagem do Evangelho que a Igreja nos oferece esta noite, João não narra propriamente a instituição da Eucaristia, mas ao pôr diante de nós o gesto de Jesus a lavar os pés aos seus discípulos, como se fosse um escravo, e um escravo estrangeiro, porque um escravo judeu não podia ser obrigado a fazer isso, quer fazer-nos ver as consequências que a Eucaristia deve ter na nossa vida.
Vai seguir-se o Lava-Pés. Não se trata de uma repetição teatral, mas de um gesto simbólico. Como Jesus, aquele que preside à celebração e à comunidade, em sinal da sua entrega e do seu serviço que, oxalá, possa servir de exemplo a alguns, vai lavar os pés a alguns servidores da paróquia. Este ano, como já foi dito, lavo os pés aos membros da Comissão Sinodal Paroquial. Não é um sinal de honra para eles, não é um agradecimento, não é um destaque. O Lava-Pés de Jesus não foi nada disso nem este pode ser isso. Trata-se de uma promessa e de um pedido neles e nelas significado. Da minha parte, tudo farei para ser o pastor que vai à frente, ao meio ou atrás para que caminhemos juntos, continuemos o Caminho Sinodal procurando crescer na Comunhão paroquial, numa melhor e mais alargada Participação na vida pastoral da paróquia, na concretização mais eficaz e renovada da Missão que Jesus nos deixou e deixa neste gesto de lavar os pés. O pedido que vos faço é que continueis entusiasmados, e a entusiasmar-me a mim, neste Processo sinodal que pode verdadeiramente renovar o modo de sermos paróquia.
Como podemos ver em Cristo, o amor cristão é a coisa mais concreta e palpável que existe. É por isso que é tão difícil.

 

VIGÍLIA PASCAL


Nesta noite mais bela e mais luminosa, porque anuncia a manhã da nova criação, a manhã da ressurreição de Cristo, não são precisas palavras humanas. Tudo é dito pela própria Palavra de Deus, a única Palavra capaz de criar e de salvar; tudo é dito pela preciosa liturgia que a Igreja prepara para nós e nos oferece, nesta noite. Não temos de inventar nada. A única coisa que faz falta é deixar-nos ir, levados pela música da graça de Deus, pelo vento do seu Espírito; não oferecer resistência, confiarmos e entregar-nos à dança da liturgia, como a esposa se entrega ao esposo e o esposo se entrega à esposa na maravilhosa dança do amor mais forte, mais feliz, mais fiel, mais encantado. E mais verdadeiro. No amor, só conta e só vale a verdade do coração, a verdade das palavras e dos gestos.
Acabamos de escutar: quando parecia que tudo tinha sido um fracasso, que tudo tinha acabado na cruz e no sepulcro, quando aquelas mulheres pensavam que iam cuidar de um morto, eis que recebem a notícia mais inesperada que, afinal, devia ser a mais esperada: «Porque buscais entre os mortos Aquele que está vivo? Não está aqui: ressuscitou. Lembrai-vos como Ele vos falou.» Sim, Jesus tinha dito muitas vezes que ressuscitaria três dias depois. Mas nem os discípulos nem as mulheres que acompanharam e ouviram Jesus tinham verdadeiramente acreditado. Ressuscitar dos mortos? Como é que isso é possível?
É possível a Deus e ao seu amor. E por isso aqui estamos nós nesta Vigília, para vermos e acreditarmos em Jesus ressuscitado, vivo e fonte de vida para nós, de modo especial na Eucaristia que vamos fazer e comer daqui a pouco, depois de termos renovado a nossa alegria de baptizados e o nosso compromisso de caminharmos juntos para renovar a Igreja e fazer dela a Igreja sinodal, já que é essa a Igreja que Deus espera para este século XXI no qual nos é dado viver.
É verdade que não se trata de nada especialmente novo. Mas, porque estava adormecido, o papa Francisco, inspirado por Deus, resolveu lembrar-nos e pedir-nos que vivamos uma verdadeira Comunhão – somos todos membros do único Corpo de Cristo, pedras vivas da única Igreja de Cristo –; que tomemos consciência de que só há uma maneira de renovar a Igreja, a Participação na vida pastoral da paróquia, servindo com humildade e qualidade nos serviços existentes e inventando os que fazem falta; cumprindo a Missão que Jesus nos deixou de anunciar a sua ressurreição, não como quem apenas ouviu dizer, mas como quem viu. E nós vimos o Senhor Jesus ressuscitado. Vimos o amor transbordante de Deus, vimos a vida que ultrapassa todos os limites, que vence todas as nossas incredulidades, medos e angústias. Vamos, então e vivamos como ressuscitados. E renovaremos a Igreja e o Mundo. Faremos a Igreja sinodal e construiremos um Mundo de fraternidade e de paz. Cristo ressuscitou. Aleluia.

DOMINGO DE PÁSCOA


Talvez pudéssemos fechar os olhos e tentar escutar o som dos passos nas ruas da corrida daqueles dois homens ao túmulo onde o corpo morto de Jesus tinha sido colocado. As mulheres tinham trazido uma notícia que podia ser a mais bela e fantástica de todas as notícias: o túmulo estava vazio! Por isso, Pedro e João correm como loucos, com o coração quase a explodir. Talvez fosse verdade aquilo que Jesus não se tinha cansado de anunciar: Ele iria ressuscitar ao terceiro dia.
É essa alegria que quase lhes rebenta o coração. Afinal, aquela horrível morte na cruz não teve a última palavra: o seu Senhor estava vivo, como tinha dito.
É essa alegria que enche o coração de Maria Madalena, de Pedro e de João. É a mesma alegria que enche, nesta manhã o nosso coração: Cristo ressuscitou! É essa alegria que a Eucaristia celebra, oferecendo-nos o Corpo de Jesus ressuscitado.
Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria. Não, a Páscoa não é fruto do sonho ou da nossa imaginação, nem mérito ou produto das nossas mãos. A Ressurreição do Senhor é obra do poder admirável de Deus, que remove para sempre a pedra do sepulcro e nos abre, de par em par, as portas da vida eterna.
O acontecimento da Ressurreição não é fruto nem projeção de um desejo, não é imaginação fértil de corações saudosos. A Ressurreição mostra que a Deus tudo é possível, que nada e ninguém pode deter o poder do Seu infinito amor por nós. A Ressurreição de Jesus mostra-nos que Deus atua na história e pode transformar a realidade, mesmo quando parece que restam apenas valas comuns, corpos mortos na estrada, cidades destruídas, onde não fica pedra sobre pedra. A vitória de Cristo, nossa vítima pascal, dá-nos a certeza de que o fio da história não é tecido apenas por mãos humanas. Se pensarmos que as coisas não vão mudar, recordemos que Ele triunfou sobre o pecado e a morte e possui todo o poder. Ele vive verdadeiramente.
É essa a alegria que vamos daqui a pouco anunciar, jubilosamente, pelas ruas da nossa querida cidade de Esmoriz. Como os discípulos Pedro e João, e Maria Madalena, que as casas da nossa cidade consigam escutar o som dos nossos passos felizes e das nossas campainhas pascais. Que nos abram as portas e cantemos juntos a ressurreição de Jesus, a alegria da Páscoa. Aleluia! Aleluia!


Homilia (10-04-2022)

DOMINGO DE RAMOS
Na Bênção dos ramos

O nosso longo caminho da Quaresma, caminho de conversão sinodal, fez-nos acompanhar Jesus na sua subida para Jerusalém, escutando as suas palavras e vendo os seus gestos, para aprender as suas atitudes. Agora, Jesus está às portas da cidade santa. Vai iniciar a sua Paixão, a parte mais difícil da subida: a sua morte, que acabará na sua ressurreição. Estamos mesmo dispostos a segui-l’O nesta última etapa do seu caminho? Vamos ter a coragem de permanecer fiéis ao seu lado?
Hoje, com a celebração dos Ramos, iniciamos a Semana mais importante da nossa fé, em cada Ano Litúrgico: a Semana Santa. Em comunhão com toda a Igreja e para fortalecer e fazer crescer a nossa comunhão paroquial, entramos com Jesus em Jerusalém para a celebração anual dos mistérios da sua Paixão e Ressurreição.

Levantemos então os nossos ramos, para que sejam benzidos, e pedir sobretudo que eles sejam, hoje e sempre, para nós, neste mundo de guerra e violência, sinal do nosso compromisso para sermos homens e mulheres de paz, verdadeiros discípulos do Príncipe da Paz.

Homilia

1. Jesus entra em Jerusalém montado num jumentinho. Sabeis o que é que isto significa?
Que Jesus é Rei, o Messias Rei, da descendência do rei David e das promessas feitas a David, como já se dizia no Antigo Testamento. O Messias entra montado num jumento, símbolo da humildade e da paz e não num cavalo, símbolo da riqueza e da guerra. O cavalo é símbolo dos poderosos, o jumento ou burro é o animal dos pobres.
Jesus não apoia a sua realeza na violência, porque a violência só destrói, como vemos agora na Ucrânia, por exemplo. Só o amor humaniza: nos torna humanos e nos faz respeitar todos os homens e mulheres…

2. O Domingo de Ramos não é coisa do passado. Não fazemos teatro, não representamos a fazer de conta, a lembrar a entrada de Jesus há dois mil anos, em Jerusalém. Por duas razões:
Porque continuamos dizer que somos cristãos, a aclamar Jesus, a fazer umas festas, mas depois continuamos a condená-lo à morte…
Mas sobretudo porque, assim como naquele tempo Jesus entrou na cidade santa, assim hoje a Igreja O vê entrar em cada Eucaristia: Quando fazemos a procissão de entrada, com a Cruz, o Evangeliário e cantamos o cântico de entrada, estamos a aclamar a entrada de Jesus que nos vai falar e que vai estar ‘escondido’, humilde, no pão e no vinho…

Esta procissão que faremos agora até à igreja (ao altar), acompanhando e aclamando Jesus, faça crescer em nós a alegria da fé, mas também o compromisso de vivermos e testemunharmos o seu Evangelho do amor, da fraternidade e da paz.
Imitemos a multidão que aclamava Jesus na cidade santa de Jerusalém, e caminhemos em paz, cantando o nosso Rei.


DOMINGO DE RAMOS
Na Bênção dos ramos

Acabamos de escutar a mais bela história de amor: a narração da paixão, do amor de Jesus por nós, ao ponto de morrer por nosso amor. Escutar a paixão é mergulhar o corpo e a alma – é mergulharmos inteiros – na última etapa da vida de Jesus que nos revela a sua profunda humanidade, o seu despojamento, o dom total da sua vida por nós e pela humanidade inteira. Jesus deu tudo, deu-Se todo, não tem mais nada para dar. Jesus morreu como viveu: amando, perdoando; não acusando-nos dos nossos pecados e ameaçando-nos porque o matamos, mas oferecendo-nos o seu perdão. Este ano, escutámos a narração segundo São Lucas, o evangelista da misericórdia de Deus. Duas coisas apenas:
1. “Hoje estarás comigo no paraíso”.
Hoje, não amanhã; hoje – agora – já estamos salvos. É o ‘hoje’ de Lucas: Hoje nasceu-vos um Salvador; hoje cumpriu-se esta palavra da Escritura que acabais de ouvir; hoje entrou a salvação nesta casa, hoje estarás comigo no paraíso. Hoje estamos salvos. Não temos direito a duvidar, temos apenas de acreditar, de repetir, cada dia da nossa vida: “Jesus lembra-Te de mim”, lembrando-nos nós de seguir pelo caminho do Evangelho, de fazermos como Jesus a vontade do Pai, como repetimos no Pai-nosso.
2. Como Jesus disse também: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”, quer dizer, a minha vida”. É a magnífica oração de confiança de Jesus. Ele sabe que a sua vida, mesmo diante da morte que vai sofrer, não está perdida nem é uma derrota. O Pai não permitirá que assim seja.
Por isso, como nos pedia o papa Francisco na sua Mensagem para esta Quaresma, ‘não nos cansemos de rezar’, de rezar como Jesus, de rezar como Jesus nos ensinou, de rezar para confiarmos cada vez mais em Deus e no seu amor, como Jesus, de rezar para irmos compreendendo sempre mais e melhor o seu caminho de entrega e de fidelidade.
Este ano, escutámos mais uma vez, a paixão de Jesus. Que palavras, que atitudes de Jesus me tocam mais, e também, que palavras e atitudes de Jesus são mais difíceis para mim, para eu pôr em prática?
Jesus – e nós estamos aqui por isso – não ficou na morte para sempre, ressuscitou. Que bom saber e acreditar que no mistério da sua ressurreição cada um de nós já está ressuscitado!


Homilia (03-04-2022)

5º DOMINGO DA QUARESMA

Do mesmo modo que, no passado Domingo, Jesus, no Evangelho São Lucas, na parábola do Pai pródigo de amor e de misericórdia, nos confrontava sobretudo com o filho mais velho, isto é, do lado dos escribas e fariseus, muito cumpridores e boas pessoas, mas de coração ressentido e amargo, também hoje, agora no Evangelho segundo São João, nos volta a confrontar com os escribas e fariseus, os ‘impecáveis do costume’, como escreve D. António Couto, mas que têm as mãos – e se calhar também os bolsos – cheias de pedras para atirar. Não é que nãos estejamos também, alguma vez do lado do ‘filho mais novo’ e da ‘mulher adúltera’, mas parece que, muito mais frequentemente, estamos do outro lado, o lado mais difícil para a conversão. Achamos que somos tão bons que nem precisamos dela.
De maneira breve, tendo em conta o momento sinodal que estamos a viver e recordando estas palavras dos nossos bispos na sua Mensagem para a Quaresma, onde escreviam: “A escuta não é para reivindicar, para acusar, para denunciar, mas para discernir caminhos novos para nós batizados, para as nossas comunidades eclesiais, para a Igreja e para o mundo”, pergunto-me e pergunto:
E se deixássemos de atirar pedras – de dizer mal – do padre e da paróquia e dos outros (sempre dos outros), e perguntássemos antes o que posso eu fazer, o que é que eu estou disponível e disposto a fazer para anunciar a Boa Nova deste amor excessivo de Deus; para caminhar, de facto, com os outros, para que a paróquia seja mais fiel e mais capaz de responder ao desafio de renovação, de mudança e de conversão que o papa Francisco nos faz? E se eu me perguntasse antes, porque é que falto aos meus compromissos, porque é que não valorizo a formação e a preparação para poder servir melhor; porque é que acho que não tenho nada a aprender; porque é que falto ao banquete dominical da minha família paroquial?
“Desta vez, escreviam também os nossos bispos, vamos “desmascarar-nos” a nós próprios! Para nos lançarmos num caminho novo!”
Ora, era precisamente dessa novidade que nos falavam as leituras de hoje.
“Não vos lembreis mais dos acontecimentos passados, não presteis atenção às coisas antigas. Olhai: Vou fazer uma coisa nova, que já começa a aparecer…”, dizia o profeta.
“Só penso numa coisa: esquecendo o que fica para trás, lançar-me para a frente, continuar a correr para a meta…”, dizia Paulo.
Senhor, ensina-me a humildade e guarda o meu coração e os meus lábios do julgamento implacável sobre os outros. Ensina-me, Senhor, a dar as mãos e a caminhar juntos em comunhão, participação e missão. Ámen.


Homilia (27-03-2022)

4º DOMINGO DA QUARESMA

Neste quarto Domingo da Quaresma e neste caminho sinodal que estamos a fazer, depois da Escuta, da Comunhão e da Participação, é dia para falar da outra dimensão fundamental desejada e sublinhada pelo papa Francisco: a Missão.
Começo por lembrar um acontecimento muito importante, mas que certamente passou despercebido a muitos. No passado dia 19 de Março, nono aniversário do início do seu pontificado e dia de São José – o papa Francisco escolhe sempre datas significativas para a assinatura dos seus documentos – foi tornada pública aquela que podemos chamar a nova constituição da Igreja, a forma como o Vaticano se vai organizar para ser o sacramento da salvação no meio do mundo, para ser capaz de cumprir a sua missão de anunciar o Evangelho no século XXI. Por isso, não é de estranhar que as primeiras palavras do documento sejam estas: “Pregai o Evangelho: esta é a tarefa que o Senhor Jesus confiou aos seus discípulos. Este mandato constitui o primeiro serviço que a Igreja pode prestar a cada pessoa e a toda a humanidade no mundo de hoje.” E ainda: “A conversão missionária da Igreja destina-se a renovar a Igreja segundo a imagem da própria missão do amor de Cristo”. E também: “Todo o cristão, em virtude do Baptismo, é discípulo-missionário na medida em que encontrou o amor de Deus em Cristo Jesus”. ‘Na medida em que encontrou o amor de Deus em Cristo Jesus’.
É precisamente deste amor que nos fala a parábola de hoje. Como diz um teólogo: “Em nenhuma outra parábola Jesus conseguiu fazer-nos penetrar tão profundamente no mistério de Deus e no mistério da condição humana como nesta”. No início já lembrei estas palavras de D. António Couto: “O evangelho deste quarto Domingo da Quaresma é uma janela sublime e sempre aberta com vista directa para o coração de Deus, exposto, narrado, contado por Jesus”.
De facto, o centro da parábola, ao contrário do que pensamos habitualmente com a nossa mania moralizante e beata, não é o filho mais novo, mas o pai, pródigo de amor, de misericórdia e de ternura; o pai bondoso, que ama sem medida, sem nenhuma lógica humana, que ama de tal modo que até parece injusto ao filho mais velho, e a nós; um amor tão forte que acredita que vale a pena esperar sempre e que, mal vislumbra ao longe o filho que regressa, sem esperar, corre ao seu encontro, feliz pelo abraço outra vez possível; esse abraço é a única coisa que lhe interessa e vale a pena.
Este é o Evangelho que temos para anunciar, o Evangelho do qual somos discípulos missionários. Evangelizar, como ouvíamos na última aula da Escola Vicarial, não é, em primeiro lugar, cristianizar, é levar ao mundo o sabor do Evangelho. Evangelizar não é, em primeiro lugar, fazer cristãos, é viver cristãmente, é testemunhar este amor e esta ternura, este coração misericordioso do Pai que Jesus veio revelar-nos.
Esta é a conversão que todos temos de fazer para sermos todos missionários, discípulos-missionários: os filhos mais novos que ainda estão afastados – é preciso que saibam(os) que o Pai continua à espera de todos e de cada um deles; mas sobretudo a conversão dos filhos mais velhos, que somos nós; nós que andamos sempre cá, que nunca saímos de casa, que vimos sempre à missa, mas que, tantas vezes, temos um coração tão amargo, tão ressentido e tão fechado que nos faz fechar a porta aos que não fazem como nós, aos que não são como nós nem dos nossos ou do nosso grupo; um coração tão ressentido, fechado e amargo que não nos deixa entrar para a festa, incapazes da alegria, incapazes de partilhar a alegria.
(Os estudiosos da Bíblia explicam que São Lucas não nos diz se o filho mais velho entrou ou não, porque somos nós – filhos mais velhos – que temos de decidir, hoje e agora, se nos deixamos converter ao modo de ser daquele pai…)
Estamos na Primavera e, como sabemos, ninguém pode parar a primavera depois de ela começar a florir. Esta é a primavera da Igreja, porque caminhamos para a Páscoa, uma festa associada à Primavera; e porque o Caminho ou Processo sinodal que estamos a fazer é uma verdadeira primavera da Igreja. E não vai parar mais.
E se nós, ao contrário do filho mais velho e como o mais novo, nos deixássemos converter e vivificar pelo Espírito da Páscoa e começássemos já a florescer uma Igreja sinodal, a florescer uma paróquia que gera a comunhão, cresce na participação e frutifica na missão?


Homilia (20-03-2022)

3º DOMINGO DA QUARESMA

Esta figueira tem muitos ramos por onde subir – mas com cuidado porque que a figueira é traiçoeira, os ramos partem muito facilmente – só não tem é figos saborosos para comer. E eu gosto muito de figos.
Começo assim: Como sabemos ao ler o início do Evangelho segundo São Marcos, o primeiro a ser escrito, a primeira preocupação e o primeiro objectivo de Jesus é a nossa conversão a Deus. A nossa conversão é a verdadeira paixão de Jesus. Mas nós, hoje como há dois mil anos, continuamos a fazer ‘orelhas moucas’.
É tão fácil deixar-se levar por uma religião que não muda os corações, por uma prática religiosa que nos tranquiliza e sossega a consciência, por uma religião que não nos incomoda nem nos dói e que nós adaptamos como nos dá jeito.
Primeiras perguntas: Como é o nosso cristianismo? Convertemo-nos ou limita-nos a achar bem a conversão?
Estamos em Processo sinodal, mas ainda falta convencer muitos de algumas coisas. Por exemplo: o fim da Igreja – a Igreja não existe – para conservar o que está a desaparecer. Como diz o papa Francisco com graça, a Igreja não é um museu para conservar relíquias, ou um parque de estacionamento. Ou, como dizem os nossos bispos, a Igreja tem de ser “mais gerada que gerida, mais caminho que estacionamento, mais casa do Povo de Deus em saída que clube de praticantes”.
O que é pedido à Igreja – a todos nós, baptizados – é que seja o que diz ser: a Igreja de Jesus, fiel ao Evangelho de Jesus. Por isso, a parábola da figueira estéril dirigida por Jesus a Israel, há dois mil anos, é hoje dirigida a nós e é uma clara advertência para a Igreja que somos chamados a renovar. Não adianta perder-nos em lamentações estéreis, o decisivo é arregaçar as mangas, enraizar a nossa vida em Cristo e dar frutos de conversão. O decisivo é agarrar esta oportunidade do Caminho sinodal. O decisivo – é a atitude deste Domingo da nossa Páscoa sinodal – é participarmos, é termos consciência que todos somos membros do único Corpo de Cristo, que somos todos pedras vivas da Igreja e não consumidores mais ou menos ocasionais de serviços ou ritos religiosos.
Mais perguntas: Para que é que eu vou outra vez pôr-me a caminho se isto não vai levar a lado nenhum, se já falhou tantas vezes? Para quê continuar a esperar e acreditar naquela pessoa que falha tantas vezes? Para quê apostar na sinodalidade se a maior parte não liga nem aparece quando é convidada?
Mas faltam as perguntas mais difíceis: Porque é que nós que estamos aqui, que vimos à missa, que somos servidores da paróquia estamos satisfeitos com a paróquia? Será que somos nós que, afinal, ocupamos os lugares e não deixamos lugar para mais ninguém? Será que não andamos há demasiado tempo a fazer as mesmas coisas e da mesma maneira e é isso que impede a nossa renovação e a da Igreja, da paróquia? Será que, afinal, somos a figueira estéril que não tem figos saborosos para oferecer? Perguntado de outra maneira: será que aquilo que oferecemos tem a qualidade e o sabor suficientes para que alguém se dê ao trabalho de vir cá? O problema não está lá fora, está em nós. o problema não é da missa é do modo como não celebramos a missa.
“Numa orquestra há muitos instrumentos com timbres diferentes, mas sob a orientação de um diretor de orquestra e executando a mesma partitura produzem uma harmonia que supera a qualidade de cada instrumento. Aquele que dirige não toca, mas orienta os diferentes instrumentos a executar uma única partitura.”
Podíamos tentar acreditar nestas palavras e não deixar também que a paróquia se pareça, segundo a imagem de um dos nossos bispos auxiliares, a um estádio de futebol, onde há apenas 22 a correr como loucos e milhares a assistir’.
“Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo. Talvez venha a dar frutos.”
Obrigado, Senhor, por seres um Deus assim paciente e cheio de bondade e de misericórdia. Ámen.


Homilia (13-03-2022)

2º DOMINGO DA QUARESMA

Podemos dizer que a experiência da Transfiguração que nos é narrada no Evangelho é a experiência da comunhão plena, aquela comunhão que nós, alguma vez pelo menos, deveríamos experimentar, como Pedro, Tiago e João, na celebração da Eucaristia, a culminar na comunhão do Corpo de Cristo. Cada Domingo, é para nós, reunidos por Jesus e para O contemplar, uma experiência de transfiguração. Uma experiência de comunhão, com Deus e com os outros. É por isso que ninguém pode dizer-se cristão se não for um cristão eucarístico.
Diz um documento a propósito da sinodalidade: “A Eucaristia «cria comunhão e propicia a comunhão» com Deus e com os irmãos. Gerada por Cristo mediante o Espírito Santo, a comunhão é participada por homens e mulheres que, possuindo a mesma dignidade de baptizados, recebem do Pai e exercem com responsabilidade diversas vocações – que brotam do Baptismo, da Confirmação, da Ordem sacra e de específicos dons do Espírito Santo – para formar um só Corpo de muitos membros.”
A comunhão nasce e cresce da alegria de subirmos juntos ao monte da Eucaristia para celebrar, de estarmos uns com os outros, de estarmos juntos, de descermos depois, como Cristo nos manda, para que outros possam experimentar a alegria dessa comunhão que vivemos e nos encheu o coração.
Bem sei que não é este o sentimento e a experiência mais comum, mas a verdade é que ninguém é cristão sozinho. Ninguém entrará no Céu – o Céu é a plenitude da comunhão – sozinho. É por isso que precisamos de nos encorajar e apoiar uns aos outros, para vivermos a nossa fé e sermos fiéis, unidos no amor e na comunhão fraterna. Para que a fé seja viva, criativa, activa, dinâmica, missionária, temos de unir as mãos e os corações.
A comunhão nasce e cresce quando eu ponho os outros, a começar por Deus, claro, em primeiro lugar; quando saio de mim, me esqueço de mim para fazer o que é preciso para bem dos outros.
Comunhão é a palavra que define e diz a Igreja. A Igreja ou é comunhão ou não é Igreja. Não passará de um conjunto, maior ou mais pequeno, mais ou menos eficaz, de pessoas, de grupos, de serviços, mas não será Igreja de Cristo, não será Corpo de Cristo. Se eu sou catequista, mas só sei trabalhar com o meu grupo, não participo nos encontros com todos, na formação, na vida da comunidade, na Eucaristia da comunidade; se eu sou leitor ou acólito ou cantor, mas não estou presente nos momentos comuns de formação e de celebração; se eu sou zelador e me preocupo e olho apenas para o meu altar; se sou Ministro da Comunhão e nem conheço bem os que exercem o mesmo serviço que eu, porque não apareço quando sou convocado; se pertenço a um Movimento e isso me impede de estar e servir a paróquia, então não estou em comunhão, não estou a fazer a Igreja, a construir a comunidade. Se sou pároco e não ponho acima de tudo – mesmo que seja contra alguns – a comunhão paroquial, se não sou a primeira referência dessa comunhão, então não estou a ser fiel ao sacramento e à missão que me foi confiada.
A mim, parece-me que a comunhão começa na presença, em estar presente, para sentir o pulsar da comunidade, para entrar na dinâmica da comunidade. Num certo sentido, a paróquia deve ser como uma equipa de futebol, por exemplo, ter uma mística, um espírito de comunhão inabalável, fruto do Espírito Santo, fruto da comunhão eucarística, fruto da contemplação do rosto luminoso de Cristo na Eucaristia.
“A maior dificuldade de hoje – diz o papa Francisco – é que muitos não querem sentir-se parte de um povo. O caminho sinodal visa exatamente esta responsabilidade comum de todo um povo ao redor de Cristo. É assim que nos poderemos chamar cristãos.”


Homilia (06-03-2022)

1º DOMINGO DA QUARESMA

“Uma Igreja sinodal, disse o papa Francisco, já em Outubro de 2015, é uma Igreja da escuta, ciente de que escutar «é mais do que ouvir». É uma escuta recíproca, onde cada um tem algo a aprender… todos à escuta do Espírito Santo, o Espírito da verdade, para conhecer aquilo que Ele diz às Igrejas.”
Como Jesus, também nós estamos aqui, hoje, neste primeiro Domingo da Quaresma, cheios do Espírito Santo que recebemos e para nos deixarmos conduzir por Ele no caminho da conversão sinodal que nos é pedida. “O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio”, disse também o papa Francisco no mesmo discurso.
Tudo começa pela escuta, essa arte tão exigente e tão difícil de pôr em prática. Seja porque o que ouvimos nos incomoda e nos põe em causa; seja porque não nos apetece mudar; seja porque não gostamos de ouvir algumas coisas; seja porque não temos paciência; seja porque estamos convencidos de que já não temos nada a aprender ou não temos a humildade de reconhecer e escutar quem sabe mais do que nós: aquela ignorância arrogante que tantas vezes toma conta de nós. Não faltam razões – ou desculpas – para não nos dispormos a escutar. Preferimos ouvir-nos a nós mesmos, ouvir os nossos, os que pensam como nós.
De facto, no centro da sinodalidade e de todas as dimensões que iremos abordar está sempre o outro: o Outro que é Deus, em primeiro lugar, o outro que são os outros, o outro que é a Igreja, o outro que é o mundo. Trata-se sempre de sairmos de nós e das nossas rotinas e hábitos e maneiras de fazer e de pensar, para nos deixarmos desinstalar e mudar.
Mas a escuta, para nós, também tem sempre a ver, começa na fidelidade à Palavra de Deus, ao Evangelho; na fidelidade à Igreja e ao que ela nos ensina e nos pede em cada tempo; na fidelidade ao Mundo em que vivemos e aonde somos enviados. Fidelidade a Deus, à Igreja, ao Mundo, e não a nós. É isso que nos ensina hoje Jesus. O Diabo também conhecia as Escrituras, mas usava-as em seu favor e dos seus interesses e objectivos. A sua escuta era interesseira, parcial, mentirosa. Jesus, não. Jesus não partia de si, mas da Missão, do Baptismo que tinha recebido e ao qual queria ser fiel, custasse o que custasse. Jesus partia do bem dos outros.
Quais as tentações que me impedem de escutar verdadeiramente, de me deixar mudar pela escuta da Verdade que é Cristo? Porque é que eu não participei nos encontros de escuta que me foram propostos? E se participei, qual foi a minha atitude, como foi a minha escuta?
“Na reunião eucarística, escuta-se a Palavra para acolher a sua mensagem e com esta iluminar o caminho… A estrutura dialógica da liturgia eucarística é o paradigma do discernimento comunitário: antes de se escutarem uns aos outros, os discípulos devem escutar a Palavra”.


Homilia (27-02-2022)

8º DOMINGO DO ADVENTO/C

«O homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem; e o homem mau, da sua maldade tira o mal; pois a boca fala do que transborda do coração».
Fiquemo-nos por estas palavras da conclusão do evangelho sobre a bondade do coração, do coração bom peneirado pelo crivo da Palavra de Deus, forjado e modelado em nós pelo fogo do Espírito Santo.
Já sabemos que, para Jesus, o decisivo é o coração, esse lugar secreto e íntimo da nossa liberdade onde não podemos enganar-nos a nós mesmos nem a Deus, esse lugar da verdade sem máscaras. Não tanto o coração como sede dos sentimentos e das emoções, mas como centro vital da pessoa, o lugar secreto do recolhimento e da oração.
Numa sociedade que parece viver cada vez das aparências, onde se vive uma vida programada desde fora, a partir da publicidade e das imagens falseadas para impressionar os outros, a mensagem de Jesus é mais actual do que nunca e o nosso testemunho de autenticidade mais urgente do que nunca também.
Só temos uma saída: parar e deixar-nos olhar; deixar-nos olhar, sem medo, pelo olhar bondoso de Deus e escutar a Palavra do seu amor, para sermos libertados do ruído e do assédio constante de todo o tipo de mensagens e palavras enganadoras. A começar nas nossas casas e a culminar na Eucaristia dominical, precisamos de silêncio, de recolhimento e de oração, para nos encontrarmos connosco mesmos, com os outros e com Deus; para nos encontrarmos com Deus e assim podermos encontrar-nos connosco e com os outros oferecendo a bondade do nosso coração. E nos perguntarmos nestes dias que vivemos: Que podemos fazer para sarar, mesmo que seja só um pouco, as relações tão agressivas e violentas, entre nós e no mundo? Para além de rezarmos, como nos pede o papa Francisco, podemos começar por não tornar a vida mais difícil e pesada a ninguém; esforçar-nos, ao menos à nossa volta, para que a vida seja mais humana e fraterna e pacífica; não envenenar o ambiente com a nossa amargura; criar relações feitas de confiança, bondade e cordialidade.
A Páscoa, que vai começar na próxima Quarta-feira de Cinzas, com o apelo à conversão quaresmal, é uma boa oportunidade para esse caminho interior. Termino com estas palavras do papa Francisco, há três anos, a propósito deste evangelho: “A tentação é sermos indulgentes connosco, benevolentes connosco, e duros com os outros… Se penso que não tenho defeitos, não posso condenar nem corrigir os outros. Todos temos defeitos: todos… Pensemos um momento neste ensinamento de Jesus e façamo-nos uma pergunta: eu falo mal dos outros? Procuro manchar os outros? Procuremos corrigir-nos pelo menos um pouco: far-nos-á bem a todos.”


Homilia (20-02-2022)

7º DOMINGO DO ADVENTO/C

De facto, o Evangelho é mesmo de loucos e para loucos. Só pode ser. Como é possível corresponder a tantas exigências, e ainda por cima acreditar que é este o caninho da felicidade proposto nas bem-aventuranças? Será que Jesus nos quer ‘anjinhos’ e ‘morcões’, como se dizia na Lectio Divina? Será que acreditar e seguir Jesus Cristo é para masoquistas, para homens e mulheres que acham que sofrer é que é bom?
Não, claramente, que não. No entanto, a verdade é que são estas palavras que Jesus nos dirige hoje e é com elas que cada um de nós – e todos nós como irmãos que formamos um só corpo –, é com elas que temos de nos haver, é a elas que temos de responder, de ir tentando responder cada dia nas opções que fazemos. A verdade é que a Palavra de Deus vai muito para além do que nós achamos que já sabemos e põe em causa aquilo que pensamos e fazemos habitualmente, humanamente.
Depois de ficarmos chocados com a radicalidade das palavras de Jesus – o que é bom e fundamental, é sinal que as ouvimos – temos de tentar entendê-las bem. Deixo apenas duas reflexões: “Amai os vossos inimigos”. Parece demais e mesmo impossível. Procuremos então entender o que Jesus diz. Talvez ajudem estas palavras que li há tempos: “Uma mulher agredida que perdoa ao seu marido violento em nome do perdão cristão não compreendeu o que é o perdão; a primeira urgência para ela é pôr-se em segurança. Amara certamente o seu marido, mas como se amam os inimigos, ao longe.” Sim, Jesus não nos pede que fiquemos, ainda por cima em seu nome, ali a apanhar uma e outra vez. Isso seria, aliás, tornar-se cúmplice do mal que nos é feito. Não tem nada de cristão, bem pelo contrário. A primeira coisa é afastar-nos do mal.
E isto liga-se com a outra reflexão: “Perdoai e sereis perdoados.”
Perdoar não é fazer de conta que a ofensa não existiu, muito menos desculpá-la, e ainda menos esquecê-la. Como se diz em bom português, ‘é preciso chamar aos bois pelo nome’. E o mal e a ofensa são mesmo mal e ofensa. O amor aos inimigos e o perdão passam sempre – têm de passar sempre – pela verdade. Só assim são libertadores e caminho de felicidade. O que deve ficar claro é que o perdão ou o amor aos inimigos não podem ser vingança, nem ressentimento, nem ódio, nem renunciar à justiça ou aos seus direitos. Insisto: Jesus não nos manda ser anjinhos, nem morcões, nem masoquistas. Quer que sejamos homens e mulheres tão livres que sejamos capazes de perdoar e amar como Ele, para não sermos destruídos ou escravizados pelo mal alojado no nosso coração.
Mas isso é dom de Deus, milagre da sua graça; Mas isso requer um longo caminho e deixar-se trabalhar continuamente pelo amor de Deus e pelo Espírito Santo que habita os nossos corações. É por isso e para isso que estamos aqui a celebrar a Páscoa de Cristo. Ámen.


Homilia (13-02-2022)

6º DOMINGO DO ADVENTO/C

Alguns talvez conheçam Carmen Garcia, do blogue ‘Mãe imperfeita’. Eu apenas costumo ler a sua crónica no Público. E lembrei-me de um texto que ela escreveu por altura do Natal, a pensar no que devia dizer a propósito das Bem-aventuranças segundo Lucas, sobretudo porque temos uma tentação terrível de espiritualizar e ser moralizantes, como se se tratasse de bons conselhos ou de bons valores que devemos seguir. É muito mais do que isso, mas mesmo muito mais do que isso. As bem-aventuranças não são prescrições morais, são leis de vida; não são conselhos morais, são opções de vida: ‘faz isso e viverás, disse Jesus ao jovem rico, neste mesmo evangelho de Lucas.
Mas vamos ao tal texto, e peço desde já desculpa pela sua frontalidade. Disse ela: “Hoje, enquanto tomava o pequeno-almoço, o meu filho João disse-me: «Não te esqueças que tens de mandar a comida para o cabaz dos pobrezinhos». E eu, que não suporto a palavra ‘pobrezinhos’, porque tresanda a falsa piedade, tive uma espécie de calafrio. «O que são pobrezinhos, João?» - perguntei. E ele, muito despachado, respondeu-me que os pobrezinhos eram os meninos que não tinham brinquedos nem comida. E depois acrescentou: «Mas não te preocupes, porque Jesus gosta muito deles, ok?»
E continua mais adiante: “Mas o que sei é que não quero que os meus filhos falem da pobreza de uma forma condescendente. Não quero que mergulhem no imenso mar do ‘coitadinhos dos pobrezinhos, vamos lá dar-lhe uma lata de atum e um pacote de massa duas vezes por ano e dormir descansados’. A pobreza incomoda-me até ao âmago, caramba. E nenhum de nós devia dormir descansado por saber que, um pouco por todo o mundo, a pobreza ronda. Não sei como é que posso fazer isto, não acho sequer que seja muito boa a educar crianças, mas não quero que os meus filhos engrossem as fileiras dos conformados, dos que têm muita pena dos ‘pobrezinhos’, enquanto ostentam opulência.
E depois de contar uma experiência concreta diz: “E foi aí que percebi que há uma parte da sociedade que ainda tem muito que crescer no que toca à forma como vê a pobreza. Bonecas sem braços, carrinhos sem rodas, roupas com buracos das traças ou sapatos com a sola a descolar, comida fora da validade… ‘Para mim, já não presta, mas para ‘os pobrezinhos’ é bom.”
Sei bem que é radical este discurso, mas não tão radical como as palavras de Jesus. As bem-aventuranças não são conselhos morais, são opções de vida. Por isso, como escreve o papa Francisco na sua Exortação sobre a santidade: “Voltemos a escutar Jesus, com todo o amor e respeito que o Mestre merece. Permitamos-Lhe que nos fustigue com as suas palavras, que nos desafie, que nos chame a uma mudança real de vida. Caso contrário, a santidade não passará de palavras.” (GE, 66)
‘Felizes os que sabem ser pobres e partilhar o pouco que têm com os seus irmãos. Malditos os que apenas se preocupam com as suas riquezas e interesses.
Felizes os que conhecem a fome e a necessidade, porque se recusam a explorar, oprimir ou calcar os outros. Malditos os que são capazes de viver tranquilos e satisfeitos, sem se preocuparem com os necessitados.
Felizes os que choram as injustiças, as mortes, as torturas, os abusos e o sofrimento dos débeis. Malditos os que se riem da dor dos outros enquanto gozam do seu bem-estar.
Eu raramente sei o que dizer a partir das bem-aventuranças, de tal modo as sinto incómodas e difíceis. Por isso me servi das palavras de outros. Mas sei que os pobres somos nós, os que têm fome somos nós, os que choram somos nós; mas somos nós também os ricos, os que estão saciados, os que rimos. E só quando soubermos isto, só quando acreditarmos nisto poderemos viver as bem-aventuranças, poderemos ser salvos. Outra vez palavras do papa Francisco para terminar: “Jesus explicou, com toda a simplicidade, o que é ser santo; fê-lo quando nos deixou as bem-aventuranças. Estas são como que o bilhete de identidade do cristão. Assim, se um de nós se questionar sobre «como fazer para chegar a ser um bom cristão», a resposta é simples: é necessário fazer – cada qual a seu modo – aquilo que Jesus disse no sermão das bem-aventuranças. Nelas está delineado o rosto do Mestre, que somos chamados a deixar transparecer no dia-a-dia da nossa vida. (GE, 66)
Lucas não fala duma pobreza «em espírito», mas simplesmente de ser «pobre», convidando-nos assim a uma vida também austera e essencial. Desta forma, chama-nos a compartilhar a vida dos mais necessitados, a vida que levaram os Apóstolos e, em última análise, a configurar-nos a Jesus, que, «sendo rico, Se fez pobre». (GE, 70)
Feliz o homem que pôs a sua esperança no Senhor. Ámen.


Homilia (06-02-2022)

5º DOMINGO DO ADVENTO/C

Naquela manhã de há dois mil anos, no lago de Genesaré, aconteceu algo de extraordinário, um verdadeiro milagre. E não, não foi aquela grande quantidade de peixes que apanharam. Não, o verdadeiro milagre foi aqueles três pescadores deixarem tudo para seguir Jesus. Tal como tinha feito Jeremias, tal como há-de fazer Paulo. E tal como nos é pedido a nós, hoje. A cada um de nós: ‘Deixar tudo para seguir Jesus’. Será que vamos confiar em Jesus e deixar tudo para O seguir? O mar, o caminho, está aberto diante de nós. e só de pende de nós segui-lo ou não.
Hoje, aqui em Esmoriz, nesta tarde/nesta manhã, em tempo sinodal, Jesus chama-nos a deixar tudo aquilo que nos amarra, nos prende e enreda, para seguirmos juntos o caminho sinodal, sendo e fazendo uma Igreja que seja mais comunhão, mais participação e mais missão. ‘Daqui em diante, sereis pescadores de homens e mulheres’, disse Jesus há dois mil anos e diz-nos a nós, hoje. Trata-se apenas e só do meu baptismo, da minha vocação, de encontrar o meu lugar na vida e na construção desta comunidade a que pertenço e que me pertence. É isso ser baptizado: pertencer a uma comunidade e saber que a comunidade me pertence também a mim.
Deixem-me recordar estas palavras do papa Francisco, no seu discurso à sua diocese de Roma e que eu recordo também no convite aos servidores para os encontros de escuta que começam na próxima quarta-feira: “Gustav Mahler – já disse isto noutras ocasiões – defendia que a fidelidade à tradição não consiste em adorar as cinzas, mas em conservar o fogo. Eu pergunto: antes de começarem este caminho sinodal, a que é que vocês estão mais inclinados: a conservar as cinzas da Igreja, isto é, da vossa associação, do vosso grupo, ou a conservar o fogo? Têm mais tendência a adorar as coisas que vos encerram – sou de Pedro, sou de Paulo, sou desta associação, tu és da outra, sou padre, sou bispo – ou sentem-se chamados a guardar o fogo do Espírito?”
Será que vamos confiar em Jesus e deixar tudo para O seguir? Acreditar na mudança, acreditar que podemos fazer melhor, trabalhar mais e melhor, mudar hábitos e rotinas, pensar mais na vida da paróquia e no bem da comunidade? Somos capazes desta atitude?
Todos somos precisos; todos estamos chamados a ser protagonistas. E se há coisa que as leituras de hoje nos ensinam é que Deus quando chama (e chama-nos hoje a nós) e quer enviar alguém (e envia-nos a nós hoje), não faz o exame das minhas virtudes e qualidades ou capacidades. Só pergunta pela minha disponibilidade. É a única coisa que Ele quer de mim.
Senhor, eis-me aqui, com toda a alegria e entusiasmo, apesar das minhas limitações e pecados. Podeis enviar-me. Ámen.


Homilia (30-01-2022)

4º DOMINGO DO ADVENTO/C

O que está em causa neste texto, como já acontecia com Jeremias na primeira leitura, é o facto de Jesus ser profeta. Um profeta é sempre incómodo, seja Jeremias, Jesus, o papa Francisco, Luther King, Nélson Mandela ou outra pessoa que vive tão livre e tão fiel que nos desafia a viver de outra maneira, segundo o Evangelho, no caso dos cristãos.
Mas é precisamente essa dimensão profética, com todos os riscos que ela acarreta – sabemos o que aconteceu a Jeremias e a Jesus, por exemplo – que o Evangelho nos convida a tentar viver; e que o papa Francisco nos pede, em nome de Jesus e do seu Evangelho, ao convidar-nos a entrar no Caminho sinodal, vivendo cada vez mais em comunhão, comunhão paroquial; e mais participação na vida da paróquia, para darmos hoje continuidade à missão de Jesus. O hoje das nossas comunidades é procurar viver com verdade e guiadas pelas Escrituras e pelo sopro do Espírito Santo, respondendo à convocação do papa Francisco: fazer crescer a Igreja na comunhão, na participação e na missão, insisto.
Ao contrário do que acontece às vezes com os políticos, mas todos devemos estar gratos pelo seu serviço ao país e ao bem comum, o profeta, isto é, nós, cristãos – como Jesus ou Jeremias – não podemos preocupar-nos em dizer o que as pessoas querem ouvir, para angariarmos simpatizantes ou votos, a nossa única preocupação é tentar ser fiéis ao Evangelho, dando à nossa vida a forma de Cristo. É isso que significa conformar-nos com Cristo, como rezamos numa das orações eucarísticas.
Algumas provocações proféticas, espero eu:
O profeta confronta-nos com a verdade de Deus, põe a descoberto as nossas mentiras e cobardias, e chama-nos a uma mudança de vida. Não é fácil escutar a sua mensagem. É mais fácil expulsá-lo e fazer ouvidos de mercador.
Não é fácil viver contra a corrente. Temos medo de ser diferentes: ‘tu não te fiques; não sejas lorpa; não deixes que te passem à frente; os outros também fazem assim; quem não se sente não é filho de boa gente; a mim, quem mas fizer paga-mas…’ É mais fácil ‘ir na onda’, estar na moda. E não estou a falar só das roupas ou dos sapatos, mas das ideias, maneiras, gestos, atitudes, opções. É mesmo preciso uma grande dose de liberdade e de coragem para ser fiel a Cristo e provocar, de alguma forma, a crítica e a maledicência.
“A caridade é paciente, a caridade é benigna; não é invejosa, não é altiva nem orgulhosa; não é inconveniente, não procura o próprio interesse; não se irrita, não guarda ressentimento; não se alegra com a injustiça, mas alegra-se com a verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”
Aqui está um magnífico caminho – é o próprio Paulo que diz que é um caminho de perfeição que ultrapassa tudo – para vivermos profeticamente; para vivermos cristãmente. Ámen.


Homilia (23-01-2022)

3º DOMINGO DO ADVENTO/C
DOMINGO DA PALAVRA DE DEUS

Como aconteceu com a assembleia do povo de Israel, narrada na primeira leitura, e como aconteceu na assembleia de Nazaré, também hoje nos reunimos aqui para celebrar a Páscoa de Jesus, sentando-nos à Mesa da Palavra e, daqui a pouco, à Mesa da Eucaristia.
Também para nós ‘é no Domingo, o Dia consagrado a Deus que cada homem e cada mulher compreendem o sentido da sua vida, do seu trabalho, do seu tempo’. E o texto lido por Jesus, em Nazaré, é uma Palavra de alegria e de libertação, uma Palavra que ilumina e cura, uma Palavra que encoraja e consola.
Depois, em Nazaré, Jesus faz o que nós devemos fazer depois das leituras, cada Domingo, aqui em Esmoriz e em cada lugar: Fecha o livro e senta-se, para meditar, para relacionar aquela Palavra escutada com Ele, com a Sua vida, com a Sua missão, no Seu «hoje» e no Seu «aqui». Jesus sabe que essa Palavra tem tudo a ver com Ele. Ele próprio é aquela Palavra que anuncia. Ele é a Palavra em carne viva, que se pode ouvir e ver. Jesus, ao citar Isaías e ao afirmar «cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura» ajuda-nos a perceber como também hoje a mesma Palavra tem tudo a ver com a nossa vida, a vida concreta de cada um de nós, a vida diferente de cada um de nós. Para isso, temos mesmo de escutar, meditar, rezar e praticar a Palavra, como Jesus, como Maria.
À luz desta Palavra, perguntemo-nos, hoje, Domingo da Palavra de Deus:
Valorizamos o nosso encontro, na igreja paroquial, cada domingo, dia consagrado ao Senhor, para escutarmos juntos a Palavra de Deus? Procuramos, ao menos, gravar no coração uma imagem, uma mensagem, um sentimento, um propósito, uma atitude, para viver durante a semana?
Temos verdadeiro afeto pela Palavra de Deus? Será que já alguma vez nos emocionamos, choramos ou alegramos, ao escutar a Palavra de Deus? Temos o ouvido afinado para a escuta desta Palavra ou ela passa-nos ao lado, ou passamos ao lado d’Ela?
A escuta da Palavra, na Eucaristia, na Catequese, em família, «entra por um ouvido e sai pelo outro» ou tem consequências práticas na transformação da nossa vida, da nossa família e do mundo à nossa volta?
Ainda que, brevemente, fiquemos agora em silêncio. Repassemos os olhos, os ouvidos, a memória, o coração, por esta Palavra. Deixemo-nos guiar pelo Espírito Santo, como Jesus, para que esta Palavra nos toque, transforme e alegre a nossa vida…
E agora rezemos juntos a Oração do Sínodo, para que seja a Palavra de Deus a iluminar-nos e guiar-nos no caminho sinodal de renovação da Igreja:


Homilia (16-01-2022)

II DOMINGO COMUM

O evangelista São João, como Marcos, e de modo diferente de Mateus e Lucas, não narra nenhum episódio da infância de Jesus. Quase no início do seu evangelho, conta-nos este episódio das Bodas de Caná, onde Jesus realiza o seu primeiro sinal – o seu primeiro milagre –, e manifesta qual é a sua missão. Ou seja, a primeira coisa que deve dizer-se desta passagem das Bodas de Caná é que ela resume toda a missão de Jesus e indica, desde logo, toda a força da ressurreição de Jesus: Acontecido ao terceiro dia, como a ressurreição, o sinal de Caná mostra que Ele veio e vem para transformar a nossa vida humana, simbolizada na água, em vida eterna, simbolizada no vinho mais excelente; Ele veio para transformar a solidão em comunhão, a tristeza em alegria, a morte em vida. veio transformar o amor humano em participação e sinal do amor divino, como nos sugere o casamento em Caná, juntamente com a primeira leitura de Isaías, e nos pede que lembremos o Ano da Família Amoris Laetitia que estamos ainda a viver.
Em toda a Bíblia, o vinho é símbolo do amor, da festa, da aliança. O vinho que falta, em Caná, é a nossa experiência de tantos dias em que nos falta a alegria e o entusiasmo, em que a fé vacila, o coração está cansado, o amor sabe a pouco, a rotina toma conta de nós. Quantas vezes, insisto, nos falta aquele vinho que dá qualidade à vida, enchendo-a de alegria, de paixão, de amizade, de entusiasmo, de confiança, de vitalidade, de força; aquele vinho que enche de perfume e de calor os dias e os acontecimentos.
Como sair desta situação? O milagre de Caná indica-nos dois caminhos:
Primeiro: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. É o caminho simples, mas exigente, da escuta e da obediência. Escuta das palavras de Jesus e obediência ao Evangelho de Jesus; e não escuta dos nossos medos e desconfianças, e não obediência ao nosso comodismo ou ao nosso convencimento arrogante.
Escutar e obedecer, mas também fazer: ‘Fazei’, diz-nos aquela que respondeu ao Anjo: ‘Faça-se em mim, segundo a tua Palavra’. Oxalá a nossa devoção e amor a Maria comece e acabe sempre aqui: “Fazei tudo o que Ele vos disser”.
Segundo: ‘Encher as talhas até acima”. A única coisa que podemos levar a Cristo é a nossa água, a nossa vida, com a sua pobreza, as suas limitações, o seu cansaço, os seus pecados. Se, e quando, lha oferecermos, Ele há-de transformar toda essa água em vinho excelente. É isso que fazemos sempre – e faremos daqui a pouco – na apresentação dos dons, no ofertório. Juntamente com o pão e o vinho, e também as nossas ofertas, devemos oferecer toda a nossa vida, oferecer-nos a nós mesmos, para que também nós sejamos transformados em Corpo e Sangue de Cristo, em vida de Cristo. Para sairmos, depois, do banquete da Eucaristia cheios da vida e da graça de Cristo e a levarmos e darmos a beber aos nossos irmãos e irmãs. Oxalá eles e elas, como o chefe de mesa daquele tempo, pudessem, hoje, notar essa diferença, essa transformação que a graça de Cristo operou em nós. Ámen.


Homilia (09-01-2022)

BAPTISMO DO SENHOR

Por obra e graça do papa Francisco, estamos a viver um momento muito entusiasmante em Igreja: o caminho sinodal; a redescoberta do que é a Igreja, do que é que a Igreja está chamada a ser; qual o lugar de todos e de cada um de nós na construção da Igreja.
E hoje é a festa do Baptismo de Jesus, aquele momento em que o Pai proclama solenemente que o Menino nascido em Belém é o seu Filho muito amado e faz descer sobre Ele o Espírito, que nos ensina e nos mostra o que é e donde parte o caminho sinodal. Do nosso Baptismo. Assim como Jesus iniciou a partir do Baptismo no Jordão a sua missão libertadora e salvadora, assim também nós, porque fomos baptizados em Cristo, porque somos habitados pelo mesmo Espírito recebemos a missão de continuar a missão de Cristo: continuar a levar e fazer chegar a todos a Boa Nova da salvação, a alegria do Evangelho, a certeza de que todos são filhos e filhas muito amados do Pai de Jesus e nosso Pai.
Caminhar juntos, comunhão, participação, missão, tudo isto nasce do Baptismo. Mais ainda, foi para isto que fomos baptizados, para sermos capazes de, ao longo da nossa vida, irmos crescendo e pondo em prática estas atitudes. São elas os frutos que o Baptismo deve produzir em nós, sempre e em toda a parte, sempre e ao longo de toda a vida e em todas as situações. Em todos nós.
O Papa Francisco no seu discurso à sua diocese de Roma disse: “Todos são protagonistas, ninguém pode ser considerado simples figurante. É preciso entender bem isto: todos são protagonistas. O papa, o cardeal vigário, os bispos auxiliares não são os protagonistas. Não: todos somos protagonistas e ninguém pode ser considerado simples figurante.” Para isso, disse ele ainda: “É preciso sentir-se parte de um único grande povo destinatário das divinas promessas, abertas a um futuro que espera que cada um possa participar do banquete preparado por Deus para todos os povos.
Não se trata de um privilégio – ser povo de Deus – mas de um dom que alguém recebe. Para si mesmo? Não: para todos; o dom é para doar: essa é a vocação. É um dom que alguém recebe para todos, que nós recebemos para os outros, é um dom que é também uma responsabilidade. A responsabilidade de testemunhar nos factos e não só com palavras as maravilhas de Deus, que, se conhecidas, ajudam as pessoas a descobrirem a sua existência e a acolherem a sua salvação. O impulso e a capacidade vêm do Espírito. Receber a força do Espírito Santo para ser testemunhas: esse é o nosso caminho, Igreja, e nós seremos Igreja se andarmos nesse caminho.”
Aqui, diante de nós, estão as caixas dos sapatos que trouxemos desde o primeiro Domingo do Advento até hoje, convidando-nos a algumas atitudes fundamentais para caminharmos juntos até Jesus.
Mas hoje, ao terminar o tempo da manifestação de Jesus, o tempo de Natal, com esta Festa do Baptismo de Jesus, não podemos tirar os sapatos e calçar as pantufas, sentar-nos no sofá, como se o caminho tivesse acabado. Não tudo começa, tudo continua, agora. Por isso, temos é de ‘dar corda aos sapatos e continuar a caminhar atrás de Jesus.
Então, ‘dá corda aos sapatos’ e caminha e cresce na Comunhão: Experimenta a alegria de seres e fazeres parte desta comunidade paroquial de Esmoriz, onde vives e convives, onde celebras, rezas e escutas a Palavra, com os outros e como os outros.
Então, ‘dá corda aos sapatos’ e caminha e cresce na Participação: Experimenta a alegria de seres um membro activo desta comunidade paroquial de Esmoriz, contribuindo, à tua maneira e medida, para a construção de uma paróquia viva, dinâmica, criativa, audaz e sonhadora.
Então, ‘dá corda aos sapatos’ e caminha e cresce na Missão: Experimenta a alegria de Deus confiar em ti e enviar-te a dar testemunho, apaixonadamente, do Evangelho, aqui na paróquia e cidade de Esmoriz, na tua casa, na tua família, na tua escola, na tua empresa, no teu lugar ou no teu bairro.
É a esta missão e a esta corresponsabilidade que nos chama o nosso Baptismo, a ser absoluta e totalmente generosos. Como disse a teóloga espanhola que já tenho citado: ‘Ou levamos a sinodalidade a sério e aprendemos a ser Igreja de outra maneira ou seremos responsáveis perante as gerações futuras por não termos sido capazes de mudar o ponto de referência da Igreja’, de não termos arriscado sonhar e construir uma Igreja mais centrada em Jesus e mais capaz de se preocupar apenas e só com anunciar e testemunhar a alegria do Evangelho. Temos mesmo de deitar fora toda ‘a tralha’ dos costumes e hábitos e grupinhos…
Hoje, como há dois mil anos, aqui, nesta celebração da Eucaristia, faz-se ouvir a voz de Deus e o Espírito desce sobre o pão e o vinho para os transformar no Corpo e Sangue de Cristo, e desce também sobre nós todos para nos tornar e transformar a nós, cada vez mais, em Corpo de Cristo, para sermos capazes de continuar, hoje, aqui e em cada lugar, a sua missão. Ámen.


Homilia (26-12-2021)

NATAL/SAGRADA FAMÍLIA

Neste Natal, descalçamos os sapatos aos pés do Presépio, diante da Sagrada Família de Jesus, Maria e José, como quem pisa a terra sagrada do mistério inexcedível de Deus, que Se manifesta na carne viva da nossa humanidade, nascendo no seio de uma família.
Por isso, neste Domingo da Sagrada Família, somos convidados a olhar e agradecer o dom das nossas famílias: toda e qualquer família humana é lugar da presença de Deus e do seu amor. Hoje, somos convidados a ver, mais uma vez, como também a nossa família é sagrada. Sim, não há famílias perfeitas, nem sequer a Sagrada Família, se até Maria e José ‘perderam’ o filho e o filho adolescente reclamou a sua autonomia para seguir o seu próprio caminho.
Hoje, neste Domingo das famílias que são sagradas, somos convidados a descalçar os sapatos e a permanecer descalços. Quer dizer, somos chamados a prestar a máxima atenção e a ter o máximo respeito pelo mundo interior de cada um, a máxima delicadeza e gentileza nas palavras e nos gestos. A Festa da Sagrada Família não é a apresentação de um modelo para reproduzirmos hoje. É sim a garantia de acção salvadora de Deus no coração de todas as realidades humanas, a começar pela nossa vida em família. Nós somos verdadeiramente filhos e filhas de Deus porque o poder de Deus, o poder do seu amor, atravessa, desde dentro, a nossa condição humana. E o tempo de Natal é o momento privilegiado e oportuno para descobrirmos os caminhos novos que Deus quer abrir nos nossos corações.

Há dias, o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida lançou um Decálogo para as crianças, com 10 conselhos para crescer juntos – pais e filhos – colocando em prática o que o Papa Francisco diz na sua Exortação Apostólica sobre a Alegria do amor em família. Eles podem ajudar-nos a descalçar os sapatos. Aqui ficam de maneira breve:
I. Um olhar amável faz com que nos detenhamos menos nos defeitos dos outros. Na família amamo-nos, respeitando e valorizando as diferenças de cada um.
II. O amor deve ser colocado mais nas obras que nas palavras. Na família, cada um contribui para responder às necessidades, segundo a sua idade e capacidade.
III. É bom experimentar a felicidade de dar e de se dar, sem calcular nem reclamar nada em troca, mas apenas pelo prazer de dar e servir. Na família, cada um está ao serviço dos demais, mas ninguém é criado de ninguém.
IV. Pai e mãe devem ajudar os filhos a fazer as coisas pelas próprias mãos: isso é expressão de autonomia e maturidade, sinal de que se está a crescer bem.
V. Renunciar a algo que se deseja pode ser bom para fortalecer a personalidade e aprender a dar o devido valor às coisas pouco importantes.
VI. Reservar tempo de qualidade permite escutar, com paciência e atenção, até que o outro tenha manifestado tudo o que precisa de comunicar. Na família, é bom perguntar «como vais?» e sentar-se ao lado do outro para o escutar.
VII. Na família, há três palavras mágicas que nunca podem faltar: “por favor”, “obrigado/a” e “desculpa”.
VIII. A pessoa que ama é capaz de dizer palavras de incentivo, que reconfortam, fortalecem e estimulam. Quando há um problema, é preciso falar sobre ele com a mãe, o pai, entre irmãos, ou com outra pessoa da família. Enfrentamos os problemas juntos, em família, nunca sozinhos!
IX. Ter irmãos é um bem e uma força. É a forma mais direta de aprender a aceitar e a respeitar o outro e de o amar nas coisas pequenas de cada dia.
X. A família deve ser o lugar onde uma pessoa, quando consegue algo de bom na vida, sabe que alguém se vai congratular com ela. É bom elogiar e dar presentes, dizer ao outro «obrigado/a», «parabéns» ou «admiro-te», ou simplesmente «amo-te muito».

Portanto, pés descalços ao caminho! E continuemos juntos, na pequena igreja que é a família e na grande família que é a Igreja, por um Natal verdadeiro, o Natal da comunhão, da participação e da missão.


Homilia (19-12-2021)

4º DOMINGO DO ADVENTO/C

«Cristo pode nascer mil vezes em Belém, mas se não nasce em mim, nasceu em vão».
Por obra e graça do papa Francisco, estamos a viver um momento muito entusiasmante em Igreja: o caminho sinodal. “Nunca na história os cristãos tiveram uma oportunidade como neste Sínodo”, diz a teóloga espanhola que faz parte da Comissão Sinodal e que falou na sessão de abertura do Sínodo, em Roma, no passado dia 9 de Outubro. E acrescentou: “Estamos a jogar o futuro da Igreja. Pela primeira vez os leigos não são um preâmbulo, mas são protagonistas de um sínodo”.
De facto, para quem não faz da Igreja – da paróquia – uma ‘estação de serviço’ ou um ‘supermercado’ onde se vai apenas quando se precisa de missas e de sacramentos, mas vive a alegria da comunhão, a alegria da participação e a alegria da missão, este é um momento entusiasmante. Ainda que vá dar muito trabalho e muito que fazer, e haver muito que mudar.
«Cristo pode nascer mil vezes em Belém, mas se não nasce em mim, nasceu em vão». É disto que estamos a falar: como é que a celebração do Mistério do nascimento de Cristo, Filho de Deus Salvador, marca e altera a minha vida, me faz viver o Baptismo e viver a minha condição de filho ou filha de Deus?
Hoje, Maria e Isabel ensinam-nos algumas atitudes importantes para Cristo nascer em mim e transformar a minha vida, a começar precisamente pela alegria, pelo entusiasmo diante do Salvador que vai nascer, mas também como somos importantes uns para os outros, no que diz respeito à celebração e vivência da fé.
Sobre este encontro e o seu significado, um autor espiritual escreveu: “Que acontece quando Maria recebe as palavras da promessa? Põe-se a caminho para casa de Isabel. Estava a acontecer a Isabel o mesmo que a Maria. Como poderiam vivê-lo até ao fim? Julgo muito importante o encontro destas duas mulheres, porque Isabel e Maria se encontraram ajudando cada uma a espera da outra. A visita de Maria tornou Isabel mais consciente daquilo que estava à espera: o menino suscitou a sua alegria. Maria confirmou a espera de Isabel. Então Isabel disse a Maria: «Feliz de ti que acreditaste, porque se cumprirá o que o Senhor te disse». E Maria responde: «A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador». Maria, depois das palavras de Isabel, transborda, exultante, de alegria.
Estas duas mulheres criaram reciprocamente uma à outra o espaço para esperar e perceber melhor o que estava a acontecer com elas, o que Deus estava a fazer através delas. Confirmaram-se mutuamente que algo estava a acontecer e que valia a pena esperar e acreditar.
Aqui temos um modelo da comunidade cristã. É uma comunidade de apoio mútuo, de celebração e proclamação, de crescimento do que começou em nós. A visita de Maria a Isabel é uma das expressões mais belas do que significa formar comunidade, estar juntos, reunidos à volta de uma promessa, proclamando o que acontece e nós”.
Foi por isto que comecei por dizer que vivemos um tempo muito entusiasmante na Igreja e em Igreja. Quem dera que Maria e Isabel nos ensinassem, quer dizer, quem dera que nós aprendêssemos com Maria e Isabel o que é viver em comunhão, ser comunidade, alegrar-nos uns com os outros, alegrar-nos uns aos outros, confirmando-nos na fé e na alegria. É isto o caminho sinodal.
Maranathá! Vem, Senhor Jesus. Aleluia!


Homilia (12-12-2021)

3º DOMINGO DO ADVENTO/C

«Cristo pode nascer mil vezes em Belém, mas se não nasce em mim, nasceu em vão». E hoje, João Baptista dá-nos indicações preciosas de como deixarmos que Cristo nasça em nós, se tivermos a humildade de perguntar: “E nós, que devemos fazer?” Ou então perguntar como nos sugere a dinâmica sinodal deste Advento: Que pedra, que pedras tenho de tirar do sapato, do coração, para que Cristo possa nascer em mim?
Talvez não saibam, mas as palavras de João Baptista a respeito das sandálias e de ele não ser digno de desatar as correias, aparece em Mateus, Marcos, Lucas, João e em São Paulo. É mesmo o único versículo do Novo Testamento comum aos quatro evangelistas e ainda a Paulo. Porque é que os cinco terão ficado tão impressionados e marcados por aquela imagem, aparentemente tão banal da correia desapertada da sandália?
Talvez nós também – oxalá também nós – nos deixemos impressionar, se soubermos o seguinte: No tempo de Jesus, os discípulos que escolhiam entrar para a escola de um rabino, de um mestre, faziam com ele esta espécie de contrato: ‘Rabino, se tu aceitares ensinar-me, eu comprometo-me a lavar a tua loiça, a fazer limpeza da tua casa, a cuidar da tua roupa e das tuas compras. Mas, quando chegares das tuas caminhadas, não contes comigo para me ajoelhar e lavar-te os pés. Como bom judeu, não quero ser escravo de ninguém’.
Então as palavras de João Baptista, para não falar da resposta de Maria ao anjo que escutámos no dia 8, nem do gesto de Jesus na Última Ceia, iluminam-se. Ao dizer aquelas palavras – ‘não sou digno de desatar as correias das suas sandálias’ – é como se ele dissesse: Aquele que eu acabo de baptizar era um dos meus discípulos, estava atrás de mim, mas era eu que devia ser seu discípulo. Mas eu não sou digno. Mais do que ser seu discípulo, eu devia ser seu escravo, depender inteiramente dele, pôr-me de joelhos diante dele. Mas nem disso eu sou digno, nem sequer sou digno de desatar as correias das suas sandálias. Era tal a luz, era tal a esperança e a alegria de João ao reconhecer em Jesus o Enviado de Deus que até se sentia indigno de ser seu escravo. Talvez agora compreendamos melhor aquelas palavras e a impressão que elas causaram aos quatro evangelistas e a São Paulo.
E nós? Como é que nós, hoje, escutamos, acolhemos e pomos em prática essas palavras? Eu, pároco, cantor, leitor, catequista, ministro da comunhão, acólito, zeladora, eu que estou aqui na celebração, faço tudo para brilhar a Luz que é Cristo? Faço apenas e só aquilo que ajude os outros a ver e seguir Cristo? Como é que eu exerço o meu ministério ou serviço?
Que pedras dos sapatos, do coração, preciso de tirar para aprender a humildade de João?
Maranathá! Vem, Senhor, Jesus.


Homilia (05-12-2021)

2º DOMINGO DO ADVENTO/C

«Cristo pode nascer mil vezes em Belém, mas se não nasce em mim, nasceu em vão».
Portanto, ‘usa os sapatos que calçaste no Domingo passado e desbrava caminhos’, propõe a dinâmica deste Advento sinodal. Vejamos como podemos fazer isso, a partir da figura de João Baptista.
Não sabemos nem quando nem como foi. Mas, um dia, um sacerdote, chamado João, filho de Zacarias, abandonou as suas obrigações no Templo, afastou-se de Jerusalém e foi para o deserto, nas proximidades do Jordão, procurando silêncio e solidão para escutar Deus. Ali, não chegavam as intrigas de Pilatos nem as maquinações de Antipas, nem se ouvia o ruído dos negócios, no Templo, à volta da religião.
O deserto, como ensinam os profetas é o melhor lugar para se abrir a Deus e iniciar a conversão. No deserto vive-se do essencial, não há lugar para o supérfluo. A verdade de Deus, a Palavra de Deus, escuta-se melhor no deserto do que nos centros comerciais ou nas redes sociais.
D. António Couto, a propósito desta passagem de Lucas, que pode parecer tão estranha por causa de todos aqueles nomes, escreve assim: “Sempre considerei este texto como um das páginas mais admiráveis e, ao mesmo tempo, mais implacáveis que me vieram ter à mão. À primeira vista, parece que o narrador pretende apenas situar as principais figuras e os principais acontecimentos da salvação bem no coração da história e geografia humanas”. Mas não é só isso, é muito mais do que isso. O que está aqui em causa é precisamente a questão da Palavra de Deus e quem está disponível para a acolher. Escreve D. António: ‘é este mapa civil e religioso que é aberto ao meio de forma clara e impiedosa pela Palavra de Deus que veio como um acontecimento sobre João Baptista, no deserto. Este texto, com a precisão do bisturi quer dizer-nos que a Palavra de Deus passa ao lado dos senhores deste mundo, ocupados e deslumbrados com as luzes da ribalta, e, para espanto nosso, vai cair sobre um pobre, João Baptista, que não mora em palácios, mas no deserto’.
E hoje, e agora, a Palavra de Deus vai passar-me ao lado, ou eu vou criar condições e deixar que ela caia sobre mim como um acontecimento? Hoje, neste Advento a caminho do Natal de 2021, aqui em Esmoriz, eu estou disposto a ir para o deserto para poder escutar Deus e perceber quais são os caminhos de conversão que sou chamado a percorrer? Hoje, aqui na paróquia de Esmoriz, neste tempo em que o papa Francisco nos convida a construir uma Igreja sinodal, eu vou deixar-me converter à comunhão, à participação e à missão? Vou fazer tudo para que o Evangelho tome conta de mim, do meu coração, até se tornar normal como o pão, como a respiração? Neste Advento, a caminho do Natal de 2021, vou deixar que o Menino, a Palavra de Deus feita carne, chegue ao coração da minha família para fazer dela lugar de oração, de alegria, de comunhão e partilha?
Maranathá! Vem, Senhor Jesus.


Homilia (28-11-2021)

1º DOMINGO DO ADVENTO/C

«Cristo pode nascer mil vezes em Belém, mas se não nasce em mim, nasceu em vão», disse um mestre da espiritualidade.
‘Portanto, diz Jesus, estai sempre despertos, pedindo força para escapar a tudo que está para vir’; portanto, estai sempre atentos’; ‘portanto, vigiai e orai’. É o grande apelo que Ele nos faz, hoje, ao começarmos o caminho do Advento para celebrar a sua vinda salvadora, no Natal.
Fiquemos apenas por aqui: o que significa viver despertos, estar atentos, vigiar?
‘Viver despertos’ significa não cair no cepticismo e na indiferença diante da história do mundo que nos rodeia; significa não se deixar dominar pela preguiça e pela rotina, como se este Advento fosse apenas mais um, igual a todos os outros.
‘Viver despertos’ significa não deixar que o nosso coração se torne pesado e duro, tão azedo que a única coisa que fazemos é queixar-nos, dizer mal, deitar abaixo e condenar tudo e todos.
‘Viver despertos’ significa viver de maneira mais lúcida, sem nos deixarmos arrastar pela insensatez ou pelo desânimo. Significa sermos capazes de ver a realidade à luz do Evangelho, com discernimento, e ousar ser diferentes. Significa não deixar que se apague em nós o desejo de procurar o bem de todos, de caminhar lado a lado com todos, ao encontro com todos, sinodalmente, em comunhão.
‘Viver despertos’ significa viver com paixão – apaixonadamente – a pequena aventura de cada dia, sendo felizes e fiéis ao serviço ou compromisso que assumimos, seja ele mais visível ou menos. Estar presentes e participar.
‘Viver despertos’ significa não ficarmos indiferentes aos outros que precisam de mim, continuando a fazer esses ‘pequenos gestos’ que aparentemente não servem para nada, mas que são capazes de sustentar e manter viva a esperança das pessoas, que tornam a vida de todos mais amável e agradável, e a vida da comunidade mais dinâmica e missionária.
‘Viver despertos’ significa acordar e robustecer a nossa fé. Procurar Deus na vida e a partir da vida real e concreta que vivemos cada dia, com as suas alegrias e tristezas, derrotas e sucessos. Significa intuir essa presença de Deus no coração da nossa vida. Significa descobrir como Ele não quer outra coisa senão a nossa felicidade e nos atrai para ela. Significa viver não a partir dos nossos pequenos projectos, mas atentos ao grande projecto de Deus.
‘Viver despertos’ é estar atentos como Maria e como José, e acolher o Deus que nos visita. Estamos prontos a calçar os sapatos e seguir com eles pelo caminho do Advento? Maranathá! Vem, Senhor Jesus.


Homilia (21-11-2021)

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo - domingo, 21 de novembro de 2021- Dia Mundial da Juventude

Duas imagens, retiradas da Palavra de Deus que ouvimos, ajudam-nos a aproximar-nos de Jesus Rei do Universo. A primeira, retirado do Apocalipse de São João e antecipada pelo profeta Daniel na primeira leitura, é descrito pelas palavras: "Ei-l’o que vem entre as nuvens" ( Ap 1,7; Dn 7,13). Refere-se à vinda gloriosa de Jesus como Senhor e ao fim da história. A segunda imagem é a do Evangelho: Cristo estando diante de Pilatos e dizendo-lhe: "Eu sou rei" ( Jo 18,37). Faz-nos bem, queridos jovens, parar e contemplar estas imagens de Jesus, no momento em que iniciamos o nosso caminho para a Jornada Mundial de 2023, em Lisboa.
Detenhamo-nos então na primeira: Jesus que vem entre as nuvens . É uma imagem que fala da vinda de Cristo na glória no fim dos tempos: faz-nos compreender que a última palavra da nossa existência será de Jesus, não nossa! Ele - continua a Escritura - é Aquele que "cavalga as nuvens" ( Sl 68.5) e manifesta o seu poder nos céus ( cf.ibid., v. 34-35): é o Senhor, o Senhor que vem do alto e nunca se põe, é Aquele que resiste ao que passa, é a nossa confiança eterna inabalável. É o Senhor. Esta profecia de esperança ilumina as nossas noites. Diz-nos que Deus vem, que Deus está presente, que Deus está a trabalhar e que Deus dirige a história para Ele, para o bem. Ele vem "entre as nuvens" para nos tranquilizar, como se dissesse: "Não vos deixarei sós quando a vossa vida estiver envolta em nuvens negras. Eu estou sempre convosco. Venho para iluminar e fazer brilhar a calma”.
O profeta Daniel, porém, especifica que viu o Senhor vindo entre as nuvens "olhando para as visões noturnas" ( Dn 7,13). Em visões noturnas: isto é, Deus vem à noite, entre as nuvens muitas vezes escuras que cobrem a nossa vida. Cada um de nós conhece esses momentos. Precisamos reconhecê-lo, olhar além da noite , olhar para cima para vê-l’O no meio da escuridão.
Queridos jovens, olhai para as visões noturnas! O que isto significa? Tende olhos luminosos, mesmo dentro das trevas, não pareis de procurar a luz no meio das trevas que muitas vezes carregamos nos nossos corações e vemos ao nosso redor. Olhemos do chão para o alto, não para fugir, mas para vencer a tentação de permanecer deitados no chão dos nossos medos. Este é o perigo: que os nossos medos persistam. Não fiqueis presos nos vossos pensamentos chorando por vós. Olha para cima, levantai-te! Este é de convite: olha para cima, levantai-te! É o convite que o Senhor nos dirige e que quis fazer eco na Mensagem que vos dediquei a vós, jovens, para acompanhar este ano de caminhada. É a tarefa mais árdua, mas é a tarefa fascinante que vos é dada: ficar de pé enquanto tudo parece desmoronar; ser sentinelas que sabem ver a luz em visões noturnas; ser construtores no meio dos escombros - há tantos neste mundo hoje, tantos! -; ser capaz de sonhar. E esta é para mim a chave: um jovem que não consegue sonhar, coitado, envelheceu antes do tempo! Poder sonhar, porque assim faz o sonhador: não se deixa levar pela noite mas acende uma chama, acende uma luz de esperança que anuncia o amanhã. Sonhai, sede rápidos e olhai para o futuro com coragem.
Eu gostaria de vos dizer o seguinte: nós, todos nós, agradecemos quando vós sonhais. "Fala a sério? Quando os jovens sonham, às vezes fazem barulho… ”. Fazei barulho, porque o vosso barulho é fruto dos vossos sonhos. Significa que vós não quereis viver na noite, quando fazeis de Jesus o sonho da vossa vida e o abraçais com alegria, com um entusiasmo contagiante que é bom para nós! Obrigado, obrigado, pelas vezes em que sois capazes de continuar a sonhar com valentia, pelas vezes em que não deixais de acreditar na luz mesmo no meio das noites da vida, pelas vezes em que vos comprometeis a trabalhar com paixão para tornar o nosso mundo mais belo e humano. Obrigado pelas vezes em que cultivais o sonho da fraternidade, pelas vezes em que vos preocupais com as feridas causadas à criação, pelas vezes em que lutais pela dignidade dos mais frágeis e difundis o espírito da solidariedade e da partilha. E acima de tudo obrigado porque num mundo, reduzido ao lucro que tende a sufocar os grandes ideais, vós não perdeis a capacidade de sonhar. Não vivais adormecidos ou anestesiados. Não: sonhai vivos. Isso ajuda-nos a nós, adultos, e à Igreja. Sim, como Igreja, nós também precisamos de sonhar, precisamos do entusiasmo, precisamos do ardor dos jovens para ser testemunhas de Deus que é sempre jovem!
E gostaria de dizer-vos mais uma coisa: muitos dos vossos sonhos correspondem aos do Evangelho. Fraternidade, solidariedade, justiça, paz: são os mesmos sonhos de Jesus para a humanidade. Não tenhais medo de vos abrirdes ao encontro com Ele: Ele ama os vossos sonhos e ajuda-vos a realizá-los. O cardeal Martini dizia que a Igreja e a sociedade precisam de "sonhadores que nos mantenham abertos às surpresas do Espírito Santo" ( Conversas noturnas em Jerusalém. Sobre o risco da fé , p. 61). Sonhadores que nos mantenham abertos às surpresas do Espírito Santo. Que belo! Desejo que vós estejais entre esses sonhadores!
E agora vamos à segunda imagem, a de Jesus que diz a Pilatos: "Sou rei". A sua determinação, a sua coragem, a sua liberdade suprema são impressionantes. Tinha sido preso, levado ao pretório, interrogado por quem podia condená-l’O à morte. E em tal circunstância, Ele poderia ter deixado prevalecer o direito natural de se defender, talvez tentando "consertar as coisas", encontrando um compromisso. Em vez disso, Jesus não escondeu a própria identidade, não disfarçou as suas intenções, não tirou partido de um vislumbre de salvação que Pilatos deixou em aberto. Não, não aproveitou. Com a valentia da verdade respondeu: "É como dizes: Sou rei". Assumiu a responsabilidade da sua vida: vim para uma missão e vou até ao fim para testemunhar o Reino do Pai. Diz Ele: «Para isso nasci e vim ao mundo: para dar testemunho da verdade» ( Jo 18,37). Jesus é assim. Veio sem duplicidades, para proclamar com a sua vida que o seu Reino é diferente dos do mundo, que Deus não reina para aumentar o seu poder e esmagar os outros; Ele não reina com exércitos e com força. O seu Reino é do amor: "Sou rei", mas deste reino do amor; “Sou rei” de quem dá a própria vida pela salvação dos outros.
Queridos jovens, a liberdade de Jesus atrai! Deixemos vibrar dentro de nós, deixemos que nos sacuda, que desperte em nós a valentia da verdade. E podemos perguntar-nos: se eu estivesse aqui, agora, no lugar de Pilatos diante de Jesus, olhando-O nos olhos, de que teria vergonha? Diante da verdade de Jesus, da verdade que é Jesus, quais são minhas falsidades que não subsistem, as minhas duplicidades de que Ele não gosta? Cada um de nós tem-nas. Procura-as, procura-as. Todos nós temos algumas dessas duplicidades, desses compromissos, de "consertar as coisas" para que a cruz se afaste. Precisamos de nos colocar diante de Jesus para reconhecer a nossa própria verdade. Precisamos de adorá-l’O para sermos interiormente livres, para iluminar a vida e não nos deixarmos enganar pelas modas do momento, pelos ‘fogos-de-artifício’ do consumismo que deslumbra e paralisa. Amigos, não estamos aqui para nos deixarmos encantar pelo canto das sereias do mundo, mas para tomar as rédeas da própria vida, para ‘gastar a vida’, para a viver plenamente.
Desse modo, também encontraremos na liberdade de Jesus a valentia de ir contra a maré. E esta é uma palavra que gostaria de sublinhar: ir contra a corrente, ter a coragem de ir contra a corrente, não contra alguém - que é a tentação de todos os dias - como fazem os que se vitimizam e os conspiradores, que sempre atiram a culpa aos outros; não, contra a corrente doentia do nosso eu egoísta, fechado e rígido, que muitas vezes busca acordos para sobreviver. Não, não é isso. Ir contra a corrente significa ir atrás dos passos de Jesus. Ele ensina-nos a ir contra o mal com a única força mansa e humilde do bem. Sem atalhos, sem falsidades, sem duplicidades. O nosso mundo, ferido por tantos males, não precisa de outros compromissos ambíguos, de gente que vai daqui para ali como as ondas do mar, para onde o vento os leva, para onde os próprios interesses os levam, dos que estão um pouco à direita e um pouco à esquerda depois de terem cheirado o que lhes convém. Os "equilibristas". Um cristão que age assim parece ser mais equilibrado do que um cristão. Os equilibristas estão sempre a procurar uma maneira de não sujar as mãos, de não comprometer a vida, de não jogar a sério. Por favor, tende medo de ser jovens equilibristas.
Sede livres, sede autênticos, sede uma consciência crítica da sociedade. Não tenhais medo de criticar! Precisamos da vossa crítica. Muitos de vós estão a criticar, por exemplo, a poluição ambiental. Nós precisamos disso. Sede livres nas críticas.
Tende paixão pela verdade, para que possais dizer com os vossos sonhos: a minha vida não é escrava da lógica deste mundo, porque reino com Jesus pela justiça, pelo amor e pela paz! Caros jovens, desejo que cada um de vós sinta a alegria de dizer: “Também eu sou rei com Jesus”. Sou rei: sou um sinal vivo do amor de Deus, da sua compaixão e da sua ternura. Sou um sonhador deslumbrado pela luz do Evangelho e olho com esperança nas visões noturnas. E quando caio, encontro em Jesus a coragem para lutar e ter esperança, a coragem para voltar a sonhar. Em qualquer idade da vida.


Homilia (14-11-2021)

33º DOMINGO COMUM/B

Jesus não nega nem esconde as dificuldades e angústias que nos assaltam a vida tantas vezes e de modos muito diferentes. Ele próprio as sentiu e viveu, até ser pregado na Cruz. Mas, ao contrário da tentação de enterrar a cabeça na areia e fecharmos os olhos, Jesus convida-nos a levantar a cabeça para ver como Ele veio, vem e virá salvar-nos.
Como disse o papa Francisco, ao falar destas leituras, ‘não é um discurso sobre o fim do mundo mas, pelo contrário, é o convite a viver bem o presente, a estarmos vigilantes e sempre prontos’. Prontos para quê? Para sermos capazes de transformar o nosso presente, transformarmos este nosso mundo, ainda tão desumano, desigual, injusto; ainda tão falto de fraternidade e de solidariedade, de dignidade, de partilha. De facto, estas palavras de Jesus são mais dirigidas ao presente do que ao futuro. O futuro consiste em viver e assumir o presente.
Por isso, o papa Francisco nos convoca a celebrar o 5º Dia Mundial dos Pobres: para nos sabermos pobres e pormos a nossa confiança apenas em Deus e no seu amor; e para cuidarmos dos muitos pobres e das muitas pobrezas que enchem o mundo. Para fazermos da nossa vida, como Cristo fez para nós, um dom para os outros, para todos os que precisarem de nós.
Escreveu ele na sua Mensagem para este ano:
“Toda a obra de Jesus afirma que a pobreza não é fruto duma fatalidade, mas sinal concreto da sua presença no meio de nós. Não O encontramos quando e onde queremos, mas reconhecemo-Lo na vida dos pobres, na sua tribulação e indigência, nas condições por vezes desumanas em que são obrigados a viver.”
Como alguém escreveu: ‘Os pobres são a linguagem de Deus, são a sua catequese, o toque da sua presença, são o sacramento da sua graça’.
E o papa continua:
“Jesus não só está do lado dos pobres, como partilha com eles a mesma sorte. Isto constitui também um forte ensinamento para os seus discípulos de todos os tempos. As suas palavras – “Sempre tereis pobres entre vós” – pretendem indicar também isto: a sua presença no meio de nós é constante, mas não deve induzir àquela habituação que se torna indiferença… Os pobres não são pessoas “externas” à comunidade, mas irmãos e irmãs cujo sofrimento se partilha, para abrandar o seu mal e a marginalização, a fim de lhes ser devolvida a dignidade perdida e garantida a necessária inclusão social.”
E conclui:
“Faço votos de que o Dia Mundial dos Pobres possa enraizar-se cada vez mais nas nossas Igrejas locais e abrir-se a um movimento de evangelização que, em primeira instância, encontre os pobres lá onde estão. Não podemos ficar à espera que batam à nossa porta; é urgente ir ter com eles às suas casas, aos hospitais e casas de assistência, à beira da estrada e aos cantos escuros onde, por vezes, se escondem… É importante compreender como se sentem, o que estão a passar e quais os desejos que têm no coração.”
Não, nós não podemos ficar tolhidos, paralisados ou encontrar desculpas porque não podemos fazer nada. O convite de Jesus à vigilância, ao discernimento, à esperança, à oração e à perseverança na fé não é senão o convite para trabalharmos e construirmos todos juntos a Casa Comum. Deus é o Senhor da história e garante-nos que caminhamos para um mundo novo, para a plenitude da vida, da comunhão, do amor. Mas conta com a nossa colaboração, com o nosso trabalho. Somos nós, cristãos, que estamos chamados a anunciar e a construir, com a nossa vida, as nossas palavras e os nossos gestos, desde agora, esse mundo novo. É essa a nossa missão. Ámen.


Homilia (01-11-2021)

TODOS OS SANTOS

A primeira coisa que precisamos de fazer é deixar de pensar que a santidade é só para alguns, reservada apenas para super-homens ou super-mulheres. Não, é para todos. O próprio papa Francisco, no seguimento de santa Teresinha do Menino Jesus – a santa das pequenas coisas, da vida mais banal do dia-a-dia – faz questão de dizer que a santidade não está reservada só para alguns e algumas, não depende de grandes feitos ou sucessos, mas é vivida e alcançada na nossa vida de cada dia, quando deixamos que essa vida de todos os dias seja habitada pela presença de Deus, tenha sabor de evangelho.
Mergulhados, um dia, na morte e ressurreição de Cristo pelo Baptismo, nós fomos tornados santos, pela água e pelo Espírito Santo. Quer dizer, enraizamos a nossa vida no céu, ganhamos raízes no céu. Passamos a viver da seiva de vida nova que corre em nós vinda do céu. Uma seiva, uma fonte, que nos quer fazer participar numa nova vida de amor, de ternura, de misericórdia, afastando-nos, separando-nos dos nossos ídolos, que nos agarram a esta terra, seja o dinheiro, o poder ou outro qualquer.
Por isso se diz que a santidade é separação e comunhão: separação de tudo o que nos fecha em nós mesmos, isolando-nos e fazendo-nos acreditar que somos como deuses, e comunhão de amor com Deus e com todos os homens e mulheres, porque todos somos irmãos e irmãs.
A santidade é uma dinâmica de relações de qualidade com Deus e com os irmãos e irmãs, que nos libertam do medo de Deus e do medo dos outros, como se Deus fosse um tirano e os outros inimigos que temos de aniquilar.
Neste caminho sinodal que estamos chamados a fazer juntos, podemos dizer que a santidade é o desejo forte de comunhão, de viver e crescer na comunhão; é o compromisso fiel de participação na vida da comunidade, a participação na construção da paróquia, seja de que modo for; e é também a consciência da missão, a consciência de que a nossa vida em Cristo é para ser um dom para os outros como a d’Ele é para nós.
A santidade é, por isso, um mistério de conversão e um dom da graça. É a certeza de que, sempre e em toda a parte, em todos os momentos, circunstâncias e situações da nossa vida, mais felizes ou dolorosas, Deus está sempre connosco, estamos sempre acompanhados, abraçados e iluminados pelo Espírito de Deus que nos abre os olhos e o coração, os ouvidos e as mãos para iniciativas e gestos de atenção aos outros e a tudo o que nos rodeia nesta casa Comum que habitamos, nesta Terra que temos de transformar cada vez mais em Céu, pelas nossas opções de fraternidade, de amizade e de cuidado com toda a criação.
São Francisco de Assis e todos os santos e santas, rogai por nós; e ensinai-nos o caminho da Vida. Ámen.


Homilia (31-10-2021)

31º DOMINGO COMUM/B

Neste contexto da sinodalidade e do caminho sinodal que estamos chamados a fazer juntos, creio que devemos guardar no coração, para ver se chega à prática, a palavra que ouvimos repetir algumas vezes, hoje, na primeira leitura e no evangelho: Escuta. Escuta, Israel.
A Fé nasce da escuta da Palavra de Deus, mas também a sinodalidade – aquela que o papa Francisco diz que é a qualidade, a marca que Deus quer para a Igreja deste milénio – nasce da escuta.
Lembro estas palavras do papa Francisco: «Uma Igreja sinodal é uma Igreja da escuta, na consciência que escutar “é mais que ouvir”. “Escutar-se, falar-se e escutar-se. Não, não se trata de coligir opiniões. Também não é um inquérito; trata-se antes de escutar o Espírito Santo, como encontramos no livro do Apocalipse: “Quem tem ouvidos escute o que o Espírito diz às Igrejas”. Ter ouvidos, escutar, é o primeiro compromisso. Trata-se de ouvir a voz de Deus, captar a sua presença, intercetar a sua passagem e o seu sopro de vida.”
Já sabemos por experiência como tantas vezes é difícil escutar Deus e a Palavra que Ele nos dirige, porque ela nos incomoda e pede a conversão, a mudança de atitudes e opções. Mas talvez possamos dizer que ainda é mais difícil escutar-nos uns aos outros. A escuta é, de facto, uma arte muito difícil. A escuta tem de ser recíproca, cada um tem sempre alguma coisa a aprender, mas nem sempre estamos para aí virados.
Mas talvez a escuta seja mesmo o primeiro acto ou gesto de amor, seja para com Deu seja para com os irmãos e irmãs. “Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças.” E Jesus acrescenta, como escutámos: ‘Deus é o único e não há outro. Amá-l’O com todo o coração, com toda a inteligência e com todas as forças e amar o próximo como a si mesmo, vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios’.
Quando todos acreditarmos nisto e tentarmos pôr em prática estas palavras – e não atirarmos aos outros os anos que já fizemos isto ou aquilo, o quanto somos católicos por isto ou por aquilo, os cursos que já fizemos e os terços que já rezámos – talvez possamos então escutar verdadeiramente a Deus e ao seu Espírito, antes de tudo; e escutar-nos uns aos outros, para caminharmos juntos e renovarmos a Igreja pela nossa comunhão, participação e missão. Saberemos quanto caminho nos falat ainda fazer atrás de Jesus.
Começa hoje a Semana de Oração pelos seminários diocesanos, as casas onde estão aqueles que procuram escutar Deus e perceber a sua vocação. Rezemos ao longo desta semana para que eles cultivem e cresçam nessa difícil arte da escuta da voz de Deus, da Igreja e do Mundo.


Homilia (24-10-2021)

30º DOMINGO COMUM/B

“O caminho da sinodalidade é precisamente o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio”, disse o papa Francisco, já em 17 de Outubro de 2015, ao comemorar os cinquenta anos da instituição do Sínodo dos Bispos e que tem sido repetido muitas vezes nestes dias em que estamos a iniciar o caminho para o Sínodo de 2023, e que eu recordo de novo ao iniciarmos nós, aqui, na nossa paróquia de Esmoriz, o novo Ano Pastoral.
Sinodalidade, como já ouvimos muitas vezes, significa ‘caminhar juntos’, fazer caminho juntos.
A existência e trabalho do Conselho Paroquial de Pastoral, a elaboração e aprovação do Calendário Pastoral e o Encontro de Abertura do Ano Pastoral são exercício e experiência concretos de sinodalidade, de aprendizagem do que é a sinodalidade e da dificuldade que é compreendê-la e pô-la em prática. Mas é assim que se faz caminho, como ouvimos ao senhor cardeal D. António Marto, na Conversa do Abade que fizemos sobre este convite tão desafiante: Por/Para uma Igreja sinodal: Comunhão, Participação e Missão. Modéstia à parte, creio que estamos no bom caminho.
Aproveitando as leituras de hoje, neste contexto, sobretudo a primeira e o evangelho, gostava de sublinhar algumas condições para que possamos, de facto, caminhar juntos, crescermos como paróquia sinodal, seguindo Jesus. Seguir Jesus tem de ser o nosso primeiro e último objectivo. É isso que significa ‘ser cristão’: discípulo missionário de Jesus.
O caminho sinodal, como sugeria a primeira leitura, tem de ser um regresso à alegria do amor de Deus, um regresso à alegria de sermos baptizados e reencontrarmos a fonte de vida nova que jorra no nosso coração, mas que, tantas vezes, está atafulhada de lixo; um regresso à alegria de sabermos que Deus confia tanto em nós que nos confia a missão de anunciarmos e testemunharmos o seu amor.
Depois, com o cego Bartimeu, devíamos aprender três coisas:
Primeira: todos somos mais ou menos cegos no caminho do seguimento fiel de Jesus. E só reconhecendo essa nossa cegueira é que seremos capazes de gritar e de receber a cura. Se nos mantivermos sentados a ver passar as coisas, indiferentes, a manter o que sempre se fez, incapazes de nos pormos em causa, convencidos de que não precisamos de mudar, Jesus não pode fazer nada por nós e nós não faremos caminho.
Por isso, como Bartimeu, é preciso deitar fora a capa e dar um salto. A cura do cego, depois de gritar a sua confiança em Jesus, começa quando ele deita fora a capa, símbolo de tudo aquilo que pesa e atrapalha o caminhar. Para seguir Jesus é precisa uma grande liberdade e agilidade. Deixem-me voltar a lembrar as palavras do papa Francisco na Alegria do Evangelho e que eu já citei aquando da minha entrada como pároco de Esmoriz: “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo actual que à auto-preservação. A reforma das estruturas, que a conversão pastoral exige, só se pode entender neste sentido: fazer com que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as suas instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes pastorais em atitude constante de «saída» e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece a sua amizade.” (EG, 27)
Se eu já sei bem o que é que estas palavras significam? Claro que não, mas iremos aprender caminhando juntos atrás de Jesus. Era a segunda coisa.
A terceira é mesmo a questão do seguimento. Como Bartimeu, ver Jesus é segui-l’O, é pôr-se a caminho com Ele que vai sempre à frente.
E termino, pedindo desculpa por ter sido um pouco mais longo – mas hoje é um dia importante – com estas palavras do papa Francisco no seu discurso à sua diocese de Roma:
“Gustav Mahler – já disse isto noutras ocasiões – defendia que a fidelidade à tradição não consiste em adorar as cinzas, mas em conservar o fogo. Eu pergunto: antes de começarem este caminho sinodal, a que é que vocês estão mais inclinados: a conservar as cinzas da Igreja, isto é, da vossa associação, do vosso grupo, ou a conservar o fogo? Têm mais tendência a adorar as coisas que vos encerram – sou de Pedro, sou de Paulo, sou desta associação, tu és da outra, sou padre, sou bispo – ou sentem-se chamados a guardar o fogo do Espírito?”
E mais estas da sua homilia ao abrir o caminho sinodal, a dez de Outubro: “Nestes dias, Jesus chama-nos – como fez com o homem rico do Evangelho – a esvaziar-nos, a libertar-nos daquilo que é mundano e também dos nossos fechamentos e dos nossos modelos pastorais repetitivos, a interrogar-nos sobre aquilo que Deus nos quer dizer neste tempo e sobre a direção para onde Ele nos quer conduzir.”
Senhor, que o teu Espírito venha e incendeie os nossos corações, para que nós, como Maria, como o cego Bartimeu, nos levantemos e sigamos juntos pelo caminho novo da comunhão, da participação e da missão, testemunhando o que vimos e ouvimos. Ámen.


Homilia (17-10-2021)

29º DOMINGO COMUM/B

«Não deve ser assim entre vós: quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos; porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos».
«Não deve ser assim entre vós: quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos; porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos».
Não é ‘o disco que está riscado’. Eu que é que li, uma vez, que uma das maneiras de aprendermos de cor o Evangelho, de metermos no coração o Evangelho, para que o Evangelho seja a nossa vida, seja a nossa maneira de viver, é repetir e repetir e voltar a repetir as vezes que for preciso, para que fique gravado em nós, como ficou por exemplo em São Francisco de Assis, ao ponto de ficarem gravadas no seu corpo as mesmas feridas do Corpo de Cristo crucificado.
Não vou fazer isso, mas vou repetir ainda outra vez. Se não for para vocês é para mim:
«Não deve ser assim entre vós: quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos; porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de todos».
«Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o baptismo com que Eu vou ser baptizado?» pergunta-nos Jesus, agora.
O baptismo de Jesus é o mergulho do Filho de Deus nas águas da nossa humanidade, do nosso ser homens e mulheres nesta terra. Assumiu tudo, carregou tudo, viveu tudo. Não se valeu da sua igualdade com Deus, fez a experiência total da nossa humanidade. Feliz, algumas vezes. Sofredora, algumas vezes. Luminosa e dolorosa uma e outra vez. Mortal também, como cada homem e cada mulher.
Seguir Cristo é segui-l’O no caminho do seu baptismo. Crescer, amar, rir e chorar. Ter fome e comer, ficar zangado, acalmar-se. Enfrentar os demónios. Sonhar, rezar, celebrar, pregar, esperar, sofrer e morrer. E, finalmente, erguer a cabeça da água e respirar de novo para sempre. Ressuscitar.
Estamos a seguir Jesus, atrás d’Ele, no Caminho. E Jesus apresenta-se mais uma vez como o Mestre que sabe o Caminho, ensina o Caminho e faz o Caminho: veio para servir e dar a vida por amor.
E nós, vamos continuar a seguir com Jesus ou vamos querer sentar-nos, como Tiago e João, nos lugares importantes?
«Não deve ser assim entre vós». «Não deve ser assim entre vós». «Não deve ser assim entre vós». «Não deve ser assim entre vós». Ámen.


Homilia (10-10-2021)

28º DOMINGO COMUM/B

De facto, a Palavra de Deus feita carne em Jesus Cristo e na sua vida é mesmo cortante como uma espada de dois gumes: “vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me”.
Muitos foram capazes dessa radicalidade. São Francisco de Assis, por exemplo. E nós, o que é que eu, o que é que nós que não somos monges nem freiras a viver num Mosteiro ou num Convento, o que é que nós somos chamados a fazer? Como é que sou, como é que somos chamados a acolher esta Palavra e a deixá-la converter a nossa vida? Ou será que vamos embora, como o homem do Evangelho, porque temos medo e não queremos deixar nada? Aquele homem percebeu muito o que Jesus lhe pedia. Por isso, foi embora. Não era capaz de acolher tamanha conversão. Foi coerente. E nós? Ficamos e estamos aqui porque percebemos e queremos mesmo seguir Jesus, apesar das nossas fragilidades e limitações? Ou estamos aqui e ficamos porque sim, porque nem sequer temos consciência do caminho que somos chamados a seguir?
Como escreve um autor: ‘Atrevo-me a dizer que este chamamento recusado é menos perigoso do que outros chamamentos sofridos, aguentados ou vividos nas meias tintas e em águas mornas’. Vou tentar perceber qual a minha situação.
Mas não ficando limitados à riqueza e bens materiais, para não arranjarmos desculpa, dizendo que não somos ricos, e tendo em conta o apelo sinodal de comunhão, participação e missão que nos é feito pelo papa Francisco, talvez tenhamos todos muito que deixar.
Que estou disposto a deixar para servir o Reino de Jesus, na nossa paróquia de Esmoriz?
Que estou disposto a deixar para me converter à comunidade, a pôr sempre à frente o bem da paróquia, e não o meu bem ou o bem do meu grupo?
Que estou disposto a deixar para não ficar sentado ‘na bancada lateral’ e participar e fazer caminho com todos?
Que estou disposto a deixar para ser fiel e coerente com as minhas grandes, românticas e beatas declarações de amor a Deus, a Cristo, à Igreja, à Catequese, à Missa, à Caridade, mas sem consequências?
Dizia Florence Nightingale: “Os sentimentos perdem-se nas palavras. Todos deveriam ser transformados em acções que tragam resultados”. E nós dizemos que, ‘de boas intenções está o inferno cheio’.
Creio que tenho de pensar nisto. Para não ser um camelo diante do buraco da agulha. Talvez o nosso maior problema seja o de não acreditarmos mesmo em Jesus e não estarmos dispostos a pensar a nossa vida de uma maneira nova, à maneira do Evangelho.
Senhor, dá-me a sabedoria do teu Espírito. Será ela a minha alegria. Ámen.


Homilia (03-10-2021)

27º DOMINGO COMUM/B

“Não é bom que o homem esteja só”. Estas palavras ditas pelo Deus que é amor e comunhão do Pai, do Filho e do Espírito, no início da história humana, estão inscritas no mais fundo de cada homem e de cada mulher, e marcam a sua/a nossa vocação mais profunda: todos estamos marcados e, portanto, chamados a viver a comunhão e a fraternidade, a ajudar-nos uns aos outros. Sem o outro, sem a outra, sem os outros, nós não seríamos, não teríamos sido, nós não somos. O Senhor deu-me irmãos, deu-me muitos irmãos, deu-me o cuidado dos irmãos, disse São Francisco de Assis.
Como sabemos por experiência, não pode haver verdadeira felicidade, quando se está sozinho na ilusão da felicidade. Nenhum homem, nenhuma mulher é uma ilha.
O ser humano – homem e mulher – em estado de separação, não conseguirá saborear a própria felicidade.
Cada um de nós encontra a felicidade apenas na relação com outro. A nossa humanidade – o nosso ser homens e mulheres – realiza-se plenamente e manifesta-se completamente com outro ser.
Por isso, como escreve o papa Francisco na Amoris Laetitia – a Alegria do Amor – “Com este olhar, feito de fé e amor, de graça e compromisso, da família humana e da Trindade divina, contemplamos a família que a Palavra de Deus confia nas mãos do marido, da esposa e dos filhos, para que formem uma comunhão de pessoas que seja imagem da união entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Por sua vez, a atividade geradora e educativa é um reflexo da obra criadora do Pai. A família é chamada a compartilhar a oração diária, a leitura da Palavra de Deus e a comunhão eucarística, para fazer crescer o amor e tornar-se cada vez mais um templo onde habita o Espírito.” (29)
Por isso também “O Evangelho da família atravessa a história do mundo desde a criação do homem à imagem e semelhança de Deus até à realização do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro”. (63)
Por isso ainda, a Igreja é e só pode ser comunhão, é família de famílias que se reúne, cada Domingo, à volta da Mesa da Eucaristia, a Mesa da máxima e inigualável comunhão com Deus e com os irmãos e irmãs.
“Não é bom que o homem esteja só”. Que os que são casados em Cristo vivam e cresçam este sacramento de amor e comunhão sonhado por Deus para eles. E que esta experiência de amor e comunhão vivida em família seja fonte de amor e de comunhão para a família que é a Igreja de Cristo.
O Senhor nos abençoe em toda a nossa vida. Ámen.


Homilia (26-09-2021)

26º DOMINGO COMUM/B

Estas palavras de Jesus deviam provocar em nós um sobressalto, deviam escandalizar-nos e fazer-nos ficar de boca aberta. Se é para nós que Jesus está a falar, então o que é que Ele nos quer dizer? Cortar a mão? Cortar o pé? Arrancar um dos olhos?
Claro que Jesus não nos quer todos estropiados. Mas quer-nos a todos de coração inteiro e aberto aos outros. A solução não está na mão cortada, mas na mão que oferece um copo de água, o pão que falta, na mão que ajuda a pôr de pé. A solução não está no pé cortado, mas nos pés que caminham ao encontro dos outros, que caminham ao lado dos outros, nos pés que visitam quem está só ou quem sofre. A solução não está em arrancar um dos olhos, mas no olhar que vê em cada homem e mulher um irmão e uma irmã.
Como lembrei no início, a Igreja celebra hoje o 107º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. O papa Francisco, desde o início do seu pontificado, quando foi a Lampedusa, onde tantos migrantes e refugiados morriam e morrem, trouxe um apelo muito maior, sintetizado na Fratelli Tutti, Todos irmãos. São de lá estas palavras:
“Desejo ardentemente que, neste tempo que nos cabe viver, reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, possamos fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade. Entre todos: «Aqui está um ótimo segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode enfrentar a vida isoladamente; precisamos duma comunidade que nos apoie, que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente. Como é importante sonhar juntos!». Sonhemos como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.” (FT,8)
E mais estas da Mensagem para este Dia: “Para os membros da Igreja Católica, este apelo traduz-se num esforço por se configurarem cada vez mais fielmente ao seu ser de católicos, tornando realidade aquilo que São Paulo recomendava à comunidade de Éfeso: «Um só corpo e um só espírito; um só Senhor, uma só fé, um só batismo» (Ef 4, 4-5).
A todos os homens e mulheres da terra, apelo a caminharem juntos rumo a um nós cada vez maior, a recomporem a família humana, a fim de construirmos em conjunto o nosso futuro de justiça e paz, tendo o cuidado de ninguém ficar excluído.
A todos os homens e mulheres da terra, peço que empreguem bem os dons que o Senhor nos confiou para conservar e tornar ainda mais bela a sua criação.”


Homilia (19-09-2021)

25º DOMINGO COMUM/B

Afinal, não era só Pedro que não tinha entendido quase nada acerca de ser discípulo de Jesus, de ser cristão. Como acabamos de ouvir, quando Jesus anuncia pela segunda vez a sua paixão e ressurreição, os outros também não foram capazes – ou não quiseram – compreender. Continuam preocupados com os lugares importantes.
Nem sabemos se havemos de rir ou de chorar. Talvez nos apeteça rir daqueles discípulos insensatos que ouviram as palavras do Mestre, mas continuaram preocupados com os lugares importantes. Eu acho que devemos é chorar por nós, porque nos acontece o mesmo. A conversão do coração é mesmo muito difícil. Entrar na lógica de Jesus, num caminho de entrega, sem fazer contas, em que o maior é quem serve, em que o que mais ganha é o que mais der, é um convite difícil de acreditar e de aceitar.
Hoje, nós continuamos a fugir da cruz – do caminho da cruz – como o Diabo. Continuamos sem entender.
Por isso, como diz D. António Couto, ‘este texto intenso e sublime cai sobre nós como uma faca de dois gumes’. Oxalá nos deixemos ‘ferir’ por ele. Aqueles discípulos não queriam compreender as palavras de Jesus e até tinham medo de as compreender, não fossem aquelas palavras ‘obrigá-los’ a mudar a sua vida. E nós? Qual é a nossa atitude diante destas palavras? Ao menos escutamo-las, para ver se entendemos alguma coisa? Para ver aprendemos a lição da criança?
“Quem quiser ser o primeiro será o último de todos e o servo de todos”.
Algumas perguntas para ajudar a entender:
Na minha vida concreta, assumo habitualmente atitudes de serviço aos outros? Ou sirvo-me dos outros para os meus interesses pessoais?
Na comunidade paroquial, procuro participar em algum serviço dentro das minhas possibilidades e capacidades? Ou estou apenas à espera que ela corresponda às minhas necessidades e interesses?
O sentido da vida de Jesus passa pela entrega total de si mesmo na cruz, pela qual se abre, para a humanidade e para nós, o horizonte da esperança da ressurreição. É este dom de vida plena que agradecemos e acolhemos em cada Eucaristia. Em cada Eucaristia anunciamos a sua morte, proclamamos a sua ressurreição, esperamos a sua vinda gloriosa. Em cada Eucaristia, Jesus convida-nos a partilhar e acolher a sua lógica de amor e de serviço, no dom de nós mesmos.
Acolho, em cada Eucaristia, o dom da vida de Jesus que se oferece como fonte de esperança e de vida eterna?
Encontro, na Eucaristia, o apelo a fazer da minha vida, como Jesus, Pão repartido para a vida do mundo, num caminho de serviço aos outros?
Senhor Jesus, Tu que te fizeste servo de todos
entregando-te, por nós, na cruz,
para dares a todos a vida plena da ressurreição,
ajuda-nos a compreender e viver a vida numa atitude de serviço aos outros.
Acolhendo a oferta da tua vida no alimento da Eucaristia,
sejamos, também nós, pão partido e repartido para a vida da Igreja
e da Casa Comum que habitamos. Ámen.


Homilia (12-09-2021)

24º DOMINGO COMUM/B

Estamos exactamente a meio do Evangelho segundo São Marcos, Jesus vai a caminho de Jerusalém – é muito importante sublinhar isto de estar em caminho, é assim que todos nós, discípulos devemos estar: Juntos por um caminho sempre novo e renovador; não é possível ser discípulo de Jesus parado ou voltado para trás – e Jesus faz uma espécie de sondagem junto dos seus discípulos, não certamente para avaliar da sua popularidade e passar a dizer o que as pessoas gostariam de ouvir, mas para ver se eles não estavam enganados a seu respeito; e poder dizer, uma vez mais, quem é que Ele é e o caminho que propõe, mesmo que seja impopular e não renda votos.
E Jesus coloca aquela que é a pergunta fundamental, daquele tempo, deste tempo e de todos os tempos: E vós, quem dizeis que Eu sou?
Pedro deu uma boa resposta, mas afinal não passou no exame. Não tinha entendido grande coisa de Jesus e do seu Evangelho. Por isso, quando Jesus desmonta as ideias erradas que eles tinham acerca d’Ele, acerca do Messias, Pedro volta-se contra Jesus, põe-se à frente d’Ele, e vai ouvir aquela tremenda reprimenda: Vai-te, Satanás.
Felizmente, parece que essas palavras de Jesus dizem apenas: não te ponhas à minha frente a impedir-me de continuar a missão que o Pai me confiou e eu aceitei com toda a liberdade de coração, não estejas a tentar-me, vai para trás de mim para continuares a aprender o que significa ser meu discípulo, o que significa ser cristão.
E nós? E eu? Qual é a imagem que faço de Deus? Qual é a imagem que faço de Cristo? É aquela imagem infantil do super-herói que magicamente me safa das situações difíceis e resolve os meus problemas; ou a imagem adulta, lentamente construída pela escuta da Palavra, pela participação na Eucaristia, pela oração, pela prática do amor aos outros, que me lembra que ser cristão é seguir pelo caminho da cruz, da entrega, do perdão, da fidelidade…
Será que eu acredito mesmo que a Fé que professo e tento viver está fundada num fracasso, numa derrota: naquele Homem pregado e morto na cruz? Sim, é um fracasso e uma derrota que, contra tudo e contra todos, contra toda a esperança, foram transformados na maior vitória: a ressurreição que é fonte de vida eterna para todos os que olham a cruz e a acolhem como estilo de vida, como modo de viver.
E será que eu acredito mesmo que essa ressurreição aconteceu e acontece quando Jesus diz: Tomai e comei, isto é o meu Corpo entregue por vós? Será que eu acredito mesmo que, ao comer o Corpo de Cristo, como a sua vida, sou cheio da sua vida, já participo da sua ressurreição e sou chamado a viver como ressuscitado? Será que eu acredito mesmo que é essa palavra de Jesus que enche de sentido a minha vida e a vida do mundo?
Para mim, quem é Cristo? E como é que eu desenvolvo e faço crescer a minha história de amor com Ele?


Homilia (05-09-2021)

23º DOMINGO COMUM/B

Terminei a homilia do passado Domingo, lembrando a advertência de São Tiago, na segunda leitura: “Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes, pois seria enganar-vos a vós mesmos”. E pedi para não esquecermos que, para cumprir a Palavra é preciso, primeiro, ouvi-la.
Pois bem, o gesto e a palavra de Jesus, ao abrir os ouvidos do surdo que mal podia falar e ao soltar-lhe a língua, que ouvimos no evangelho de hoje, têm precisamente a ver com isso.
Como acontece na nossa vida humana – só falamos porque ouvimos os outros a falar, porque os outros falam connosco, e assim nós aprendemos a falar também – também na vida de fé acontece o mesmo: somos cristãos porque alguém nos falou de Jesus, somos cristãos porque escutamos o Evangelho e a Palavra de Deus, só podemos anunciar, falar e praticar o Evangelho se primeiro o ouvirmos bem fundo no nosso coração, por mais que nos incomode. E, como sabemos, muitas vezes incomoda mesmo.
Escreve um teólogo: ‘não é casual que os evangelhos narrem tantas curas de cegos, de surdos e de mudos. Estes relatos são um convite a deixarmo-nos trabalhar por Jesus para abrirmos bem os nossos olhos e os nossos ouvidos à sua pessoa e à sua Palavra’.
Discípulos de Jesus surdos à sua mensagem serão ‘tartamudos’ a anunciar o Evangelho, não saberão nem terão nada para dizer, ou dirão apenas aquilo que acham, as suas opiniões. Ora o Evangelho não é nada disso. Não se trata de uma opinião. O Evangelho é uma proposta de vida e de salvação. Cabe-me a mim escutá-lo e tentar pô-lo em prática, se acredito que vale a pena segui-lo. O Evangelho é sempre um tremendo e incómodo convite a descentrarmo-nos de nós e a centrar-nos em Jesus: a fazer de Jesus o centro da nossa vida; a fazer de Jesus o Caminho, a Verdade e a Vida, como Ele disse noutra passagem. Quando fomos baptizados, em bebés, foi feita esta oração sobre nós: O Senhor te dê a graça de, em breve, poderes ouvir a sua palavra e professar a fé, para louvor e glória de Deus Pai.
Mas quando o Baptismo é em idade de catequese ou em adulto, este gesto ainda é mais significativo. Ao fazer a cruz sobre os ouvidos, diz-se: Recebe o sinal da cruz nos ouvidos, para ouvires as palavras de Cristo. E sobre a boca: Recebe o sinal da cruz nos lábios para falares como Cristo falou. Está aqui bem resumida a dinâmica do cristão, a dinâmica da pessoa que decide seguir Jesus e viver em Cristo: ouvir as palavras de Cristo para falar como Ele falou.
Ou seja, o cristão é aquele que vive aberto a Cristo e ao seu Evangelho que nos fala na História. Por isso, o cristão vive de ouvidos, boca, mãos, pés e coração abertos aos irmãos e irmãs que sofrem, no Afeganistão, no Haiti e em tantos outros lugares e ouve aí o grito do Crucificado; aberto também aos gritos da criação desrespeitada pelo nosso consumismo desenfreado, injusto, indiferente e egoísta (estamos a viver o Tempo da Criação, de 1 de Setembro a 4 de Outubro, 34 dias para rezar pelo cuidado da Casa Comum); aberto ainda e comprometido com a Igreja sinodal, como pede o papa Francisco: uma Igreja que é mais comunhão, mais participação e mais missão porque todos e cada um de nós abraça este caminho.
Abertos a uma Igreja que se deixa renovar continuamente pelo Evangelho de Jesus e pelos desafios da Terra que habitamos.
Será que vou deixar Jesus curar-me das minhas ‘surdezes’? Ámen.


Homilia (29-08-2021)

22º DOMINGO COMUM/B

Como escreveu um padre amigo, ‘vamos lá ver se algum(a) influencer não nos vai acusar de desobediência civil, neste domingo, por causa da ordem de Nosso Senhor para retirar a máscara... a máscara do fingimento, da hipocrisia...’, entenda-se.
De facto, é da verdade e da autenticidade da fé que professamos que tratam as leituras de hoje, centradas no acolhimento e na prática da Palavra de Deus.
Relacionado com isto, na passada quarta-feira, a propósito da Carta de São Paulo aos Gálatas, e como que antecipando a homilia de hoje, a Catequese do Papa Francisco é uma preciosa inspiração – uma incómoda interpelação – para meditarmos e nos deixarmos aguilhoar pelas leituras que acabamos de escutar.
Disse ele:
“Na sua repreensão – aos gálatas – Paulo usa um termo que permite entrar nos méritos da sua reação: hipocrisia. Esta é uma palavra que se repete muitas vezes: hipocrisia. Penso que todos nós compreendemos o que significa. A observância da Lei por parte dos cristãos levou a este comportamento hipócrita, que o Apóstolo pretende combater com força e convicção. O que é a hipocrisia? Quando dizemos: estai atentos que aquele é um hipócrita: o que queremos dizer? O que é hipocrisia? Pode-se dizer que é o medo da verdade. A hipocrisia tem medo da verdade. As pessoas preferem fingir do que ser elas mesmas. É como pintar a alma, como pintar as atitudes, o modo de proceder: não é a verdade. “Tenho medo de proceder como sou e disfarço-me com estas atitudes”. Fingir impede a coragem de dizer a verdade abertamente, e assim facilmente se evita a obrigação de a dizer sempre, em todo o lado e apesar de tudo. Fingir leva-te a isto: às meias-verdades. E as meias-verdades são uma ficção: pois a verdade ou é verdade ou não é verdade. Mas as meias-verdades são este modo de agir não verdadeiro. Prefere-se, como disse, fingir em vez de ser como se é, e a ficção impede aquela coragem, de dizer abertamente a verdade. Num ambiente em que as relações interpessoais são vividas sob a bandeira do formalismo, o vírus da hipocrisia propaga-se facilmente. Aquele sorriso que não vem do coração, aquele procurar estar bem com todos, mas com ninguém…
O hipócrita é uma pessoa que finge, lisonjeia e engana porque vive com uma máscara no rosto, e não tem a coragem de enfrentar a verdade. Por isso, não é capaz de amar verdadeiramente – um hipócrita não sabe amar – limita-se a viver pelo egoísmo e não tem a força para mostrar o seu coração com transparência. Há muitas situações em que a hipocrisia pode ocorrer. Muitas vezes esconde-se no local de trabalho, onde se procura parecer amigos dos colegas enquanto a competição leva a golpeá-los pelas costas. Em política, não é raro encontrar hipócritas que vivem uma vida dupla entre a esfera pública e a privada. A hipocrisia na Igreja é particularmente detestável, e infelizmente existe a hipocrisia na Igreja, há muitos cristãos e ministros hipócritas. Irmãos e irmãs, pensemos hoje no que Paulo condena e que Jesus condena: a hipocrisia. E não tenhamos medo de ser verdadeiros, de dizer a verdade, de ouvir a verdade, de nos conformarmos com a verdade.”
A estas palavras do Papa acrescento duas notas:
Ao discípulo de Jesus, não é permitido uma escuta da Palavra descomprometida, como se não fosse comigo. Não é possível uma Palavra que não influencie a conduta, que não dê um sentido novo à vida, que não determine uma mudança radical na orientação da minha existência.
E também não basta sentir-se de bem com Deus porque se cumprem os rituais e as práticas religiosas. É necessário – para não dizer obrigatório – prolongar, praticar, a liturgia celebrada na igreja, na liturgia da solidariedade, da fraternidade, da justiça, da misericórdia, da ecologia, do cuidado com o ambiente.
Já o sabemos, mas Jesus volta a lembrar: Deus não se contenta com a fachada, com o nosso teatro de faz de conta, com uma espreitadela de vez em quando à missa dominical. Ele vê e faz sempre um diagnóstico do coração.
Guardemos a advertência de São Tiago: “Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes, pois seria enganar-vos a vós mesmos”. Mas não esqueçamos que para cumprir a palavra é preciso, primeiro, ouvi-la. Que Maria, nossa padroeira e Senhora da Boa Viagem nos ensine a ser bons ouvintes da Palavra que ela mesma nos trouxe. Ámen.


Homilia (22-08-2021)

21º DOMINGO COMUM/B

Como certamente percebemos, a razão pela qual muitos vão embora é porque, afinal, Jesus não servia para grande coisa: não satisfazia as suas necessidades, não dizia aquilo que eles queriam ouvir e, sobretudo, propunha um caminho de conversão e de mudança muito complicado: fazer-se pão para os outros, viver a vida como partilha. E eles não estavam para aí virados. E foram-se embora, certamente à procura de algum ídolo a quem eles pudessem fazer umas promessas e acender umas velinhas, ou sacrifícios, para lhes resolver, magicamente, os problemas.
Disse o papa Francisco (01 de Agosto), partindo de umas das passagens anteriores deste discurso de Jesus sobre o Pão da Vida:
“A multidão vai à procura de Jesus. Poderíamos pensar que isto é uma coisa muito boa, mas o Evangelho ensina-nos que não basta procurar Deus, devemos também perguntar porque O procuramos. De facto, Jesus diz: «buscais-me, não porque vistes os milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes saciados». Com efeito, as pessoas tinham testemunhado o milagre da multiplicação dos pães, mas não compreenderam o significado do gesto: pararam no milagre exterior e no pão material: unicamente, sem ir mais longe, ao significado disso.
Eis então uma primeira pergunta que todos podemos fazer a nós mesmos: por que procuramos o Senhor? Por que procuro o Senhor? Quais são as motivações da minha fé, da nossa fé? Precisamos de discernir isto, porque entre as muitas tentações que temos na vida, há uma que poderíamos definir tentação idólatra. É o que nos leva a procurar Deus para o nosso próprio uso, para resolver problemas, para obter d’Ele o que não podemos obter por nós mesmos, por interesse. Mas desta forma a fé permanece superficial e até – se me é permitido dizê-lo – a fé permanece milagreira: procuramos Deus para nos alimentarmos e depois esquecemo-nos d'Ele quando estamos satisfeitos. No centro desta fé imatura não há Deus, há as nossas necessidades. É correto apresentar as nossas necessidades ao coração de Deus, mas o Senhor, que age muito para além das nossas expectativas, deseja viver connosco, antes de mais, numa relação de amor. E o verdadeiro amor é abnegado, é gratuito: não amamos para depois receber um favor em troca! Isto é interesse, e muitas vezes na vida somos interesseiros.
Então, “Como podemos purificar a nossa busca de Deus? Como podemos passar de uma fé mágica, que pensa apenas nas próprias necessidades, para uma fé que agrade a Deus?”. E Jesus indica o caminho: responde que a obra de Deus é acolher Aquele que o Pai enviou, ou seja, acolher a Ele, Jesus. Não significa acrescentar práticas religiosas nem observar preceitos especiais; mas acolher Jesus, acolhê-lo na vida, viver uma história de amor com Jesus. É responder como Pedro, ir aprendendo a responder como Pedro: “Para quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna.”
O convite do Evangelho é este: em vez de nos preocuparmos apenas com o pão material que nos alimenta, aceitemos Jesus como o Pão da vida. Mas, a partir da nossa amizade com Ele, aprendamos também a amar-nos uns aos outros. Com gratuidade e sem cálculos.
E peçamos agora a Maria, a mulher eucarística por excelência e o primeiro sacrário da história, a Ela que viveu a mais bela história de amor com Deus, que nos conceda a graça de nos abrirmos ao encontro com o seu Filho.
Saboreai e vede como o Senhor é bom. Ámen.


Homilia (15-08-2021)

ASSUNÇÃO

A pensar já nesta festa que estamos a celebrar hoje, a Assunção de Maria ao Céu, e por causa do discurso do Pão da Vida que temos vindo a ouvir nos últimos três domingos, terminava a homilia do passado Domingo com uma referência a Maria, dizendo que ela é a mulher eucarística por excelência e que foi o primeiro sacrário da história.
Por isso, começo de novo por aí, lembrando as palavras do papa João Paulo II, na sua encíclica ‘A Igreja Vive da Eucaristia’. Escreve ele no capítulo intitulado ‘Na Escola de Maria, Mulher Eucarística’:
“Se quisermos redescobrir em toda a sua riqueza a relação íntima entre a Igreja e a Eucaristia, não podemos esquecer Maria, Mãe e modelo da Igreja. Na carta apostólica O Rosário da Virgem Maria, depois de indicar a Virgem Santíssima como Mestra na contemplação do rosto de Cristo, inseri também entre os mistérios da luz a instituição da Eucaristia. Com efeito, Maria pode guiar-nos para o Santíssimo Sacramento porque tem uma profunda ligação com ele.”
E depois de dizer que Maria esteva certamente presente nas celebrações eucarísticas dos fiéis da primeira geração cristã, escreve: “Maria é mulher «eucarística» na totalidade da sua vida… De certo modo, Maria praticou a sua fé eucarística ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a encarnação do Verbo de Deus. Existe, pois, uma profunda analogia entre o fiat – o Sim – pronunciado por Maria, em resposta às palavras do Anjo, e o Ámen que cada fiel pronuncia quando recebe o corpo do Senhor. A Maria foi-Lhe pedido para acreditar que Aquele que Ela concebia «por obra do Espírito Santo» era o «Filho de Deus». Dando continuidade à fé da Virgem Santa, no mistério eucarístico é-nos pedido para crer que aquele mesmo Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria, Se torna presente nos sinais do pão e do vinho com todo o seu ser humano-divino… Maria antecipou, no mistério da encarnação, a fé eucarística da Igreja. E, na visitação, quando leva no seu ventre o Verbo encarnado, de certo modo Ela serve de «sacrário» – o primeiro «sacrário» da história –, para o Filho de Deus, que, ainda invisível aos olhos dos homens, Se presta à adoração de Isabel, como que «irradiando» a sua luz através dos olhos e da voz de Maria.”
Creio que podemos dizer que a sua Assunção, a sua glorificação à direita de Deus que hoje celebramos, é o culminar da sua permanente e mais profunda comunhão de Cristo e com Cristo ao longo de toda a sua vida. Foi a sua comunhão com Cristo que lhe abriu a porta do Céu. Assim acontecerá connosco, como Cristo prometeu: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna.”
Comecemos então por purificar a nossa devoção a Maria: deixemos de correr atrás dela ou de lhe rezarmos e fazermos promessas à procura de milagres (o papa Francisco falava há dias nessa ‘fé milagreira’), mas peçamos-lhe sim que ela nos ensine a ver, a participar e a saborear o milagre da Eucaristia, o milagre da comunhão da vida de Cristo que acontece em cada Eucaristia. Peçamos-lhe que nos ensine a ser como ela, cristãos eucarísticos: cristãos que vivem da Eucaristia e cristãos que lutam todos os dias para viver, para pôr a Eucaristia em prática no dia-a-dia. Como? Fazendo-nos pão para os outros, fazendo-nos alimento e vida para os outros.
E neste Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, como nos pede o papa Francisco, peçamos-Lhe ainda que nos ensine como fazer desta Mesa fraterna da Eucaristia a fonte da Casa Comum, onde ‘possa florescer o milagre de um nós cada vez maior’.
Maria, mulher eucarística, roga por nós. Ámen.


Homilia (08-08-2021)

19º DOMINGO COMUM/B

Jesus, a Palavra feita carne e enviada pelo Pai do Céu, continua a instruir-nos sobre o Pão da Vida, o Pão que é Ele e que nos faz viver ressuscitados, o Pão que é Ele e que temos de comer para termos a vida eterna.
Uma vez que, no próximo Domingo, interrompemos este discurso de Jesus para celebrar a Assunção de Maria, optei por proclamar a continuação das palavras de Jesus, precisamente aquelas em que Ele repete dez vezes o verbo comer ou palavras a ele ligadas: “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente… Se não comerdes a carne do Filho do Homem não tereis a vida em vós. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna…”
Os judeus, como ouviremos depois vão ficar escandalizados com estas palavras. Quem dera que elas também nos escandalizassem a nós, hoje, a ver se reparávamos nelas e acreditávamos nelas. Há tantos baptizados que dispensam a Eucaristia e, portanto, o Corpo de Cristo; há tantos baptizados que, mesmo vindo à Eucaristia, quando chega o momento da Comunhão não comem o Corpo de Cristo. Estou também a pensar nos funerais em que todos fazem questão que se celebre a Eucaristia, mas depois não comungam. Sem duvidar das razões que cada um pode ter – e é verdade que há situações que nos impedem de comungar, por exemplo, faltar à Missa ao Domingo de forma sistemática ou vir apenas quando apetece ou se pode –, parece-me que falta sobretudo compreender o que é a Fé e o que é a Eucaristia. Falta sobretudo sentir fome da Eucaristia, sentir que, se não comemos o Corpo de Cristo – e o Corpo de Cristo que é também a comunidade, que é também os irmãos e irmãs que celebram connosco, e que às vezes nos custam muito a engolir – morremos, não temos a vida verdadeira.
Não esqueçamos: salva-nos a nossa fome, é a nossa fome que nos salva; é a nossa fome que nos alimenta o desejo de vir e comer Cristo, o Pão da Vida.
Acreditamos num Deus que habita a nossa fome? Acreditamos num Deus que só Se faz nosso alimento se tivermos fome d’Ele e da sua vida? E que, portanto, se nós não tivermos fome, não nos pode saciar?
Só se senta à mesa quem tem fome. Quem anda empanturrado, sabe-se lá de quê, ou enfastiado, sabe-se lá porquê, nem sequer se aproxima da mesa, está enjoado.
É a nossa fome que nos ergue, que nos levanta e faz caminhar, como ouvimos na primeira leitura de Elias.
Crer em Cristo é comer o Corpo de Cristo. Não há Fé em Cristo sem o Corpo de Cristo que, repito, também é esta comunidade à qual eu pertenço.
Para entender melhor estas afirmações, deixem-me acrescentar o seguinte: para não escandalizar, falando dos amantes e dos apaixonados que desejam intensamente o corpo do outro, falo das mães – e talvez de alguns pais – que ao brincar com o seu bebé dizem tantas vezes: eu como-te ou vou comer-te, enquanto trincam o pé ou a mão, por exemplo. O que é que essas palavras são? Uma profundíssima declaração de amor, como quem diz: sem ti não vivo, tu fazes-me viver, tu és a minha vida. Quero estar em comunhão contigo, viver em intimidade contigo, farei tudo para que tu vivas e sejas feliz. Nada nos separará.
Façamos este pequenino exercício de transferir para a nossa relação com Cristo esta imagem e experiência familiar e perguntemo-nos como vivemos a Eucaristia, como vivemos a nossa relação com Cristo, com que desejo queremos Cristo e o seu Corpo que Ele nos oferece na Eucaristia? É que este verbo comer, que é central no Cristianismo e apenas no Cristianismo, acontece na Eucaristia, na Missa. Não se esgota aqui, mas tem aqui a sua fonte e a sua máxima expressão. Como no amor!
Comer o Corpo ou a carne de Cristo significa tão só comer a pessoa de Jesus, isto é, a sua identidade, o seu modo de viver, pôr em prática o seu Evangelho que ‘comemos’ da Mesa da Palavra, acreditar no caminho de vida que Ele é para nós.
Se ao menos ouvíssemos, hoje, o anjo do Senhor a dizer-nos: Levanta-te e come!
Se ao menos aprendêssemos com Maria, a Mulher eucarística por excelência e o primeiro sacrário da história, a viver da Eucaristia, a acreditar que é a Eucaristia que nos dá a vida!
Saboreai e vede como o Senhor é bom! Ámen.


Homilia (01-08-2021)

18º DOMINGO COMUM/B

Como se percebia no domingo passado, ao escutarmos aquele sinal impropriamente chamado da multiplicação dos pães – vale a pena relembrar que se trata de partilha, de divisão, de com-divisão – havia já um piscar de olhos para a Eucaristia. É para a Eucaristia que João quer apontar, ao dar-nos a informação de que estava próxima a Páscoa dos judeus, que vai passar a ser a Páscoa de Jesus, essa Páscoa que celebramos e que acontece como o grande milagre, cada Domingo.
A este propósito ouvi esta provocadora reflexão que cito, acrescentada de algumas palavras minhas. Abramos bem os ouvidos do coração. Dizia o seu autor: ‘nós não vimos à Eucaristia para nos sentirmos bem com Deus; nós não vimos à Eucaristia para esquecer as exigências e dificuldades de cada dia da semana; nós não vimos à Eucaristia para uma relação pessoal – eu prefiro dizer individual – com Deus, para isso cada um ficava em casa, no seu quarto, como muitos fazem, aliás. Dizer isto significa que tem consequências. Por exemplo, é também por isto que não se pode cantar na Eucaristia seja o que for, o que calha ou o que eu mais gosto.
Nós vimos à Eucaristia porque não desistimos de ver Deus na comunidade, nos laços que nos unem. Quer seja por causa dela ou por consequência, a vinda a esta mesa, a participação nesta mesa de Páscoa é um treino para praticarmos a justiça. Vimos aqui – à Eucaristia – não para nos darmos bem com Deus mas para nos darmos bem, para nos amarmos uns aos outros; vimos aqui para nos perdoarmos, para arranjar forças para pedir perdão e para perdoar, para revermos os nossos preconceitos, para reconhecer que ainda condenamos muitas pessoas, que ainda não nos diz nada o desconforto e o sofrimento dos outros.
Vimos porque estamos em caminho e em processo (como o antigo Israel no deserto) – e a Eucaristia é o alimento para o caminho (como foi o Maná caído do céu) – e queremos dar forma ao sonho de Jesus, ajudar a que se torne realidade o sonho de Deus. É por isso que a Eucaristia é um sacramento perigoso, muito perigoso para mim, para cada um de nós. Não posso/podemos comer o Corpo de Cristo e continuar a atirar pedras aos outros, a dizer mal dos outros, a caluniar os outros, a manter-nos indiferentes às necessidades dos outros e da paróquia, também as necessidades económicas.
Possa este texto fazer em nós alguma coisa, iluminar o nosso olhar; possa este evangelho evangelizar-nos; possa manter-nos no caminho e no sonho de Jesus de sentar todos e todas à sua mesa, para que a Mesa da Eucaristia seja verdadeiramente a Mesa da Comunhão.
Eu sou o Pão da vida, diz Jesus.
Será que nós, como aquela multidão no tempo dele, também não temos fome do verdadeiro alimento, e queremos apenas ‘encher a barriga’? (vir à Missa por tradição ou ‘pelas minhas intenções’, por exemplo)
Senhor, dá-nos sempre desse pão e faz que ele acenda em nós o desejo do pão da justiça, do pão da comunhão, do pão da participação, do pão da partilha. Ámen.


Homilia (25-07-2021)

17º DOMINGO COMUM/B

Para dar continuidade à passagem do evangelho segundo São Marcos que escutámos no Domingo passado, e que terminava a dizer que Jesus se compadeceu de toda aquela gente porque eram como ovelhas sem pastor, a Igreja foi buscar, hoje e durante mais quatro domingos, passagens do evangelho segundo São João, todas elas centradas naquilo que costuma chamar-se o ‘Discurso sobre o Pão da Vida’.
Como no passado Domingo propus uma reflexão que respondesse à pergunta: o que é uma paróquia? O que é uma comunidade dos discípulos de Jesus? Hoje vou continuar nesse sentido, dizendo, desde já, que a comunidade dos discípulos de Jesus é a comunhão daqueles que se sentam e partilham a mesma mesa e o mesmo pão; uma comunidade de discípulos de Jesus, uma paróquia, é a comunhão daqueles que celebram juntos a Eucaristia e que saem da celebração para testemunhar juntos essa comunhão que partilharam, para que todos sejam saciados de pão, de trabalho, mas também da palavra que salva e dá a vida, da espiritualidade que eleva cada homem e cada mulher para encontrar a sua dignidade e o verdadeiro sentido para a sua vida; uma comunidade de discípulos de Jesus – uma paróquia – é uma comunidade capaz de ter catequistas que distribuem o pão da Palavra, às crianças, aos jovens e aos adultos; é uma comunidade que tem leitores, cantores e acólitos que servem a Eucaristia para que ela seja mesa abundante de comunhão, de alegria e de festa; é uma comunidade que tem Ministros da Comunhão, vicentinos, mas também visitadores de doentes para fazerem chegar aos mais pobres, doentes e sós o pão da Vida que é Jesus Cristo.
Comecemos por reparar num verbo raríssimo na boca de Jesus e quase sempre para ser recusado, o verbo comprar: onde vamos comprar pão para toda esta gente.
Jesus parece estar a provocar Filipe para encontrar uma solução para matar a fome àquela multidão. Mas Filipe faz as contas e conclui que não é possível. André também propõe outra tentativa de solução: havia um rapazito que tinha cinco pães e dois peixes. Mas também André conclui rapidamente que é inútil, dada a desproporção da oferta em relação à necessidade daquela multidão. Mas Jesus, como diz o próprio evangelista, bem sabia o que ia fazer.
E a solução que Jesus tinha para oferecer não estava nem na compra nem na quantidade de pão. A solução para alimentar e saciar, a ponto de não faltar e ainda sobrar, está na PARTILHA. Naquele cenário, Jesus, sem dizer nada, mostra quem é e para o que vem. Jesus é aquele cuja única forma de agir que conhece e pode viver é a lei da doação livre e total de si mesmo. Jesus faz acreditar na força do dom. Como escreve D. António Couto, “aos olhos atónitos dos discípulos e dos nossos, Jesus não fez uma operação de ‘multiplicação’ dos pães, mas de ‘divisão’ e ‘com-divisão’, ‘partilha’ dos pães. O milagre de Jesus – aquilo que suscita surpresa e maravilha – não consiste em aumentar a quantidade do pão (que permanece a mesma), mas em abrir os olhos aos seus discípulos e a nós que, como cegos, só conhecemos e pensamos na lógica do vender e do comprar, e não chegamos a saborear a lógica da gratuidade, que é a do nosso Pai celeste. Entrar nesta lógica é acreditar na força do dom.
Dito isto, acrescento só duas frases. Cada um que se deixe interpelar por elas. A desproporção é anulada, é vencida, quando o pouco que se tem, o nada que se é, se converte no tudo que se dá, no tudo que se põe à disposição.
Ter fé não significa acreditar nos milagres, mas acreditar que Cristo, para fazer o milagre, precisa de nós, precisa do nosso cesto quase vazio. Ter fé não significa pedir a Jesus que transforme pedras em pão – já sabemos como Ele recusou essa tentação – mas aceitar que Cristo transforme o nosso coração de pedra, sempre tentado a fazer contas e a não se aleijar muito, num coração de carne capaz da loucura de arriscar perder e servir.
Vós abris, Senhor, a vossa mão e saciais a nossa fome. Ámen.


Homilia (18-07-2021)

16º DOMINGO COMUM/B
Orações

Hoje, tendo presente os encontros de servidores propostos pelo Conselho Paroquial de Pastoral, no sentido de caminharmos e aprofundarmos o sonho de uma paróquia mais sinodal, marcada pela comunhão, pela participação e pela missão, como nos pede o papa Francisco, vou seguir um comentador, nem sempre muito consensual, mas que costuma pôr ‘o dedo na ferida’.
Partindo desta passagem do Evangelho que acabamos de escutar, tentemos responder à pergunta: o que é uma paróquia, o que é uma comunidade paroquial?
Para muitos, como ainda dizia no Domingo passado, não passa de ‘mercado religioso’ onde se vem quando se precisa de alguma coisa, seja um Baptismo, um casamento, um funeral, uma missa por determinada intenção, por exemplo; para outros, não será mais do que uma igreja onde se vai, sozinho, para rezar e estar em silêncio, alimentando uma visão individualista da fé e da relação com Deus; para alguns pouco mais será do que cumprir os preceitos que aprenderam e estão mandados e aos quais, por convicção ou por medo, se vão mantendo fiéis, mas sem nunca entrar ou comprometer verdadeiramente com a vida da comunidade.
Qualquer uma destas atitudes terá a sua validade, até porque mantém a ligação – mesmo que frágil – com Deus e a fé, através da Igreja. Mas é urgente ir mais longe e mais fundo. É preciso ‘envolver-se’, entrar na vida paroquial.
Então, o que é uma paróquia?
Diz esse tal teólogo, comentando a passagem de hoje do Evangelho: a cena está carregada de ternura. Os discípulos chegam cansados do trabalho realizado. A actividade é tão intensa que ‘nem sequer tinham tempo para comer. E Jesus faz-lhes este convite: “Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco”.
E acrescenta: nós, os cristãos, esquecemos com demasiada frequência que um grupo de seguidores de Jesus (paróquia) não é só uma comunidade de oração, reflexão e trabalho, mas também uma comunidade de descanso e de experiência da alegria que é estar uns com os outros, aproveitar a companhia dos outros. E vai até buscar estas palavras de Santo Agostinho, do século IV, bem antigas, portanto: ‘Um grupo de cristãos (comunidade) é um grupo de pessoas que rezam juntas, mas também conversam juntas. Riem em comum e ajudam-se mutuamente. Brincam juntas e juntas falam a sério. Às vezes estão em desacordo, mas sem animosidade, como acontece às vezes connosco, utilizando esse desacordo para reforçar sempre o acordo habitual. Aprendem alguma coisa uns dos outros ou ensinam alguma coisa uns aos outros. Sentem-se tristes pelos ausentes e acolhem com alegria os que chegam.”
E o autor sublinha essa capacidade (necessidade) de saber rezar mas também de saber rir, dizendo: ‘Há um humor e um saber rir que é sinal de maturidade e de sabedoria. É o riso, o bom humor, do crente que sabe relativizar o que é relativo, sem dramatizar desnecessariamente os problemas. É um riso, um bom humor, que nasce da confiança nesse Deus que nos olha com piedade e ternura. Um riso, bom humor, que distende, liberta e dá forças para continuar a caminhar. Os que riem juntos não se atacam nem fazem mal uns aos outros, porque o riso, o bom humor, verdadeiramente humano nasce de um coração que sabe compreender e amar.’
Que falta nos fazem, de facto, alguns encontros de convívio e de festa. E não é só por causa da pandemia. A verdade é que nós fomos perdendo essa dimensão e já não estamos muito habituados nem disponíveis para isso, tantas são as nossas ocupações, afazeres e pressas. Fazemos o que temos a fazer – e isso já é bom – e vamos embora a correr. Até o ‘pobre’ do pároco tem de correr de missa em missa.
É uma reflexão que precisamos de fazer, mas é sobretudo um caminho que temos de iniciar. E é também por causa disto que os espaços (igreja, salão paroquial, jardim) são importantes, porque ajudam ou desajudam, favorecem ou limitam essas oportunidades. Lá para Outubro, espero, havemos de começar a falar disso. Oxalá possamos todos dar as mãos e trabalhar nesse sentido.
Por agora, disfrutemos e saboreemos a Eucaristia como esse lugar para onde Cristo nos convida, para estarmos com Ele e com os outros, e restaurarmos as forças para semana que começa.
O Senhor é meu pastor, leva-me a descansar em verdes pardos, conduz-me às águas refrescantes e reconforta a minha alma. Ámen.


Homilia (11-07-2021)

15º DOMINGO COMUM/B

Há uma profunda alegria que deve habitar os nossos corações: apesar das nossas fragilidades e poucas habilitações, Deus precisa de nós e quer envolver-nos na sua missão. Como nos testemunhava já o profeta Amós e depois a passagem do Evangelho, Deus chama e envia, Jesus chama e envia. Desde Abraão que nós sabemos que os dois verbos que resumem e definem a identidade dos filhos e filhas de Deus e dos discípulos de Jesus são chamar e enviar. ‘Ai de mim, se não evangelizar’, há-de dizer o chamado Paulo, profundamente agradecido pelo imenso dom de Deus, como nos testemunhava hoje na segunda leitura.
Por isso, o papa Francisco, ao apontar o caminho da Igreja para este tempo que vivemos, insistindo que só pode ser uma ‘Igreja em saída’, diz que não há discípulos e missionários, mas apenas discípulos missionários: a missão de anunciar o Evangelho, ainda que realizada de modos diferentes, é responsabilidade e está confiada a todos os baptizados. A Igreja não é o supermercado da religião, não é o centro dos serviços religiosos onde se vem quando se precisa, onde se vem pagar promessas ou missas ou comprar favores, ou onde se vem cumprir preceitos.
A Igreja é a comunidade dos discípulos chamados e enviados, daqueles que estão sempre em caminho, em saída, para levar a Boa Nova. E que sabem que só têm duas coisas para levar: o bastão do Evangelho e as sandálias da misericórdia. Não é uma doutrina que nós temos para levar. Quem nós temos para levar é Jesus Cristo. É Ele o Evangelho, é Ele a alegria do Evangelho, é Ele o rosto da misericórdia. É por isso que não se pode ir carregado com muitas coisas. Para evangelizar, para testemunhar o Evangelho que habita as nossas vidas e delas transparece não é preciso muita coisa: só interessa e importa a mensagem que é Cristo. O discípulo, como diz um teólogo, é como uma mulher grávida: não se leva a si mesmo, leva outro, leva Cristo. Como Maria, quando foi visitar a sua prima Isabel. Quem dera que nós, como ela, fizéssemos dançar de alegria aqueles a quem somos enviados. A começar pelas nossas próprias casas e famílias e comunidade paroquial. ‘Levanta-te – Juntos por um caminho novo’, é o lema da nossa diocese, de olhos postos em Maria, discípula missionária.
E porque o papa Francisco assim nos pede, e porque será esse o lema orientador do nosso próximo Ano Pastoral, sublinho o envio ‘dois a dois’, não um a um. Porquê? Porque a primeira pregação é sem palavras, é feita pelo testemunho de comunhão, pelo caminhar ao ritmo do outro, pela alegria da partilha. Não esqueçamos: ninguém se salva sozinho, ninguém entra no Céu sozinho. Quando ouvirmos falar de sinodalidade, de comunhão, de participação e de missão é deste evangelho que estamos a falar.
‘Bendito seja Deus que do alto dos céus nos abençoou, escolheu e marcou com o Espírito Santo’. Ámen.


Homilia (04-07-2021)

14º DOMINGO COMUM/B
Palavras do papa Francisco no Angelus

Sem abertura à novidade, ao espanto e à surpresa, a fé torna-se uma litania que lentamente se extingue

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!
O Evangelho que lemos na liturgia deste domingo ( Mc 6,1-6) fala-nos da incredulidade dos conterrâneos de Jesus que, depois de ter pregado noutras aldeias da Galileia, regressa a Nazaré, onde cresceu com Maria. e Joseph; e, em um sábado, começa a dar aulas na sinagoga. Muitos, ouvindo-o, se perguntam: “De onde vem toda essa sabedoria? Mas não é filho do carpinteiro e de Maria, isto é, dos nossos vizinhos que conhecemos bem? " (cf. vv. 1-3). Diante dessa reação, Jesus afirma uma verdade que também se tornou parte da sabedoria popular: "O profeta não é desprezado senão na sua pátria, entre os seus familiares e em sua casa" (v. 4). Dizemos isso muitas vezes.
Detenhamo-nos na atitude dos outros moradores de Jesus: podemos dizer que eles conhecem Jesus, mas não o reconhecem. Existe uma diferença entre saber e reconhecer. Na verdade, essa diferença nos faz entender que podemos saber várias coisas sobre uma pessoa, ter uma ideia, confiar no que os outros falam, talvez encontrá-los de vez em quando na vizinhança, mas tudo isso não basta. É um conhecimento comum e superficial que não reconhece a singularidade dessa pessoa. É um risco que todos corremos: pensamos que sabemos muito sobre uma pessoa e o pior é que a rotulamos e prendemos em nossos preconceitos. Da mesma forma, os vizinhos de Jesus na aldeia o conhecem há trinta anos e acham que sabem tudo! “Mas não é esse o menino que vimos crescendo, o filho do carpinteiro e de Maria? Mas de onde vêm essas coisas?”. Desconfiança. Na verdade, eles nunca perceberam quem Jesus realmente é, eles param no exterior e rejeitam a novidade de Jesus.
E aqui entramos no cerne do problema: quando fazemos prevalecer o conforto do hábito e a ditadura do preconceito, é difícil se abrir para a novidade e se surpreender. Verificamos, com o hábito, os preconceitos. Acaba que muitas vezes da vida, das experiências e até das pessoas buscamos apenas a confirmação de nossas ideias e nossos esquemas, para nunca termos que nos esforçar para mudar. E isso também pode acontecer com Deus, precisamente a nós crentes, a nós que pensamos conhecer Jesus, que já sabemos tanto sobre ele e que nos basta repetir as coisas de sempre. E isso não basta, com Deus, mas sem abertura ao novo e sobretudo - ouça com atenção - abertura às surpresas de Deus, sem espanto, a fé torna-se uma ladainha cansada que vai morrendo aos poucos e se torna um hábito, um hábito social. Eu disse uma palavra: espanto. O que é isso, espanto? O espanto é precisamente quando acontece o encontro com Deus: "Encontrei o Senhor". Lemos o Evangelho: muitas vezes, quem encontra Jesus e o reconhece fica pasmo. E nós, com o encontro com Deus, devemos trilhar este caminho: maravilhar-se. É como o certificado de garantia de que aquele encontro é verdadeiro, não é rotineiro.
No final, por que os outros moradores de Jesus não o reconhecem e acreditam nele? Por quê? Qual é o motivo? Podemos dizer, em poucas palavras, que eles não aceitam o escândalo da Encarnação. Eles não conhecem este mistério da Encarnação, mas não aceitam o mistério. Não sabem, mas desconhecem a razão e sentem que é escandaloso que a imensidão de Deus se revele na pequenez da nossa carne, que o Filho de Deus é filho do carpinteiro, que a divindade se esconde na humanidade, que Deus você vive no rosto, nas palavras, nos gestos de um homem simples. Aqui está o escândalo: a encarnação de Deus, sua concretude, sua "vida cotidiana". E Deus se concretizou num homem, Jesus de Nazaré, tornou-se companheiro de estrada, fez-se um de nós. “Tu és um de nós”: rezar para Jesus é uma bela oração! E por ser um de nós, ele nos entende, nos acompanha, nos perdoa, nos ama muito. Na verdade, um deus abstrato, distante, que não se envolve nas situações e que aceita uma fé longe da vida, dos problemas, da sociedade está mais confortável. Ou gostamos de acreditar em um deus dos "efeitos especiais", que só faz coisas excepcionais e sempre dá grandes emoções. Em vez disso, queridos irmãos e irmãs, Deus se encarnou: Deus é humilde, Deus é terno, Deus está oculto, ele se aproxima de nós habitando a normalidade de nossa vida diária. E então, acontece a nós como aos companheiros aldeões de Jesus, corremos o risco de que, quando isso passar, não o reconheçamos. Volto a dizer aquela bela frase de Santo Agostinho: “Tenho medo de Deus, do Senhor, quando ele passa”. Mas, Agostinho, por que você está com medo? “Tenho medo de não reconhecê-lo. Timaeus Dominum transeuntem”. Não o reconhecemos, ficamos escandalizados por Ele. Pensamos como está o nosso coração em relação a esta realidade.
Agora, em oração, pedimos a Nossa Senhora, que acolheu o mistério de Deus na vida quotidiana de Nazaré, que tenha olhos e coração livres de preconceitos e olhos abertos ao espanto: "Senhor, te encontres!" E quando encontramos o Senhor, temos essa surpresa. O encontramos na normalidade: os olhos abertos às surpresas de Deus, à sua humilde e oculta presença na vida quotidiana.


Homilia (27-06-2021)

13º DOMINGO COMUM/B

Os dois milagres que acabamos de escutar, como o próprio evangelista diz, vêm na continuidade da travessia do lago e da tempestade que fez os discípulos temer pela vida: “Mestre, não te importas que vamos morrer?”, gritaram aflitos.
Por isso, os dois milagres de hoje continuam a falar-nos da fé e da vida: da fé que é fonte de vida, de vida eterna, de vida para sempre.
Comecemos então por sublinhar essa afirmação de fundo: Deus é autor da vida e inimigo da morte. A Deus só Lhe interessa uma coisa: que vivamos, como afirmava a primeira leitura: “Não foi Deus quem fez a morte, nem Ele se alegra com a perdição dos vivos”. Portanto, confiar em Deus, confiar-se a Deus, como nos mostram os dois milagres relatados, significa escolher a vida: a glória de Deus é que o ser humano viva, agora e para sempre. Por isso, Ele nos fez à sua imagem e semelhança.
Mas Deus tem necessidade da nossa fé, Deus precisa da nossa fé. Se não acreditarmos, Deus nada pode fazer por nós. Como fez aquela mulher que acreditou que bastava tocar o manto de Jesus para ser curada. E foi: “Minha filha, foi a tua fé que te salvou”. Se pensarmos que a doença daquela mulher a tornava impura e que por isso não podia tocar nem ser tocada por ninguém; se pensarmos que esta é a única vez que esta expressão, dita assim, no feminino: “Minha filha”, carregada de imensa ternura, proximidade e familiaridade, talvez comecemos a compreender um pouco mais quem é Jesus e qual a sua missão: Ele é o Senhor da vida.
Mas também como o chefe da sinagoga que vem ter com Jesus porque a sua filha de doze anos está a morrer e ele acredita que Jesus a pode salvar. E quando lhe vêm dizer que já não vale a pena estar a incomodar Jesus porque a menina tinha morrido, parece que é o próprio Jesus que implora a Jairo para não perder a fé, quando lhe diz: “Não temas; basta que tenhas fé”. É a fé do pai que salva a filha.
Se pensarmos que, segundo a lei, era proibido tocar num morto para não se ficar impuro, e repararmos naquele gesto de ternura de Jesus que pega na mão da menina, poderemos compreender mais profundamente como Deus se aproxima de cada um de nós para nos levantar, como Deus é sempre uma mão estendida que me toma pela mão para me levantar e não um dedo apontado para me condenar.
São muitas e difíceis as questões colocadas por este texto: Como é e como vivo eu a fé? Até que ponto confio e me confio a Deus?
Mas também: Como é que a Igreja é sacramento desta vida de Deus? Como é que na família se vive e se faz crescer para esta atitude?
Como a menina, também nós precisamos de comer. Por isso, nos vamos sentar à mesa da Eucaristia, a mesa do pão da vida. Talitha Kum. Ámen.


Homilia (20-06-2021)

12º DOMINGO COMUM/B

Pelo menos para mim, nunca mais vai ser possível escutar esta passagem do Evangelho segundo Marcos sem que não volte a passar diante dos olhos aquela imagem impressiva e forte do papa Francisco, na praça de São Pedro, naquela tarde de 27 de Março de 2020, debaixo de uma chuva, a caminhar, curvado, como se carregasse todo o peso da angústia do mundo, para rezar por essa tremenda tempestade provocada pela pandemia da COVID 19 e que ainda não nos deixou.
Se fosse possível, o que eu faria era pôr-nos a escutar, de novo, as palavras do Papa, para vermos mais uma vez como o Evangelho – a Boa Nova de Jesus – ilumina e enche de força a nossa vida, a vida de todos os homens e mulheres.
O que é a fé? É confiar que Deus está sempre connosco e nunca nos abandona, mesmo que nos pareça que dorme.
O que é a fé? É gritar para Ele a nossa angústia. Não para O acordar a Ele, mas para acordar no nosso coração a confiança no seu amor, no poder do seu amor.
O que é a fé? É deixar que Jesus nos pergunte porque temos tanto medo, porque temos tantos medos; é deixar que Jesus nos pergunte pela nossa fé e pela nossa confiança.
O que é a fé? É acreditar que Deus está presente na nossa vida, não como eu gostaria, mas como Ele próprio quer; não para Ele fazer a minha vontade, mas para eu fazer a vontade d’Ele.
O que é a fé? É esse temor que se apodera do coração dos discípulos, mas que não tem a ver com o medo mas com a admiração e gratidão diante das maravilhas de Deus. O “temor de Deus”, que é um dos sete dons do Espírito Santo, significa que os discípulos – nós – reconhecem que Jesus é o Deus presente no meio dos homens e a quem os homens são convidados a aderir, a confiar, a obedecer com total entrega. Como Maria. Como José.
O que é a fé? É saber que a nossa vida, a vida de todos os homens e mulheres, a vida da Igreja, da nossa paróquia, do nosso trabalho pastoral, é muitas vezes açoitada pelos ventos fortes e pelo mar bravo da solidão, da incompreensão, da oposição, da fragilidade, da desorientação… Mas nós, como disse o papa Francisco nessa tarde de Março do ano passado, ‘sabemos que fomos convidados para a barca de que Ele é o Timoneiro. Por isso, confiamos-Lhe os nossos medos, para que Ele os vença. Com Ele a bordo, experimentaremos – como os discípulos – que não há naufrágio. Porque esta é a força de Deus: fazer resultar em bem tudo o que nos acontece, mesmo as coisas ruins. Ele serena as nossas tempestades, porque, com Deus, a vida não morre jamais.’
Cantai ao Senhor, porque é eterno o seu amor. Ámen.


Homilia (13-06-2021)

11º DOMINGO COMUM/B
Festa do Senhor das Febres

Como alguns se lembrarão, no Domingo passado, por causa daquilo que os parentes de Jesus diziam dele, que estava louco, que se tinha passado, eu perguntava: E se a Igreja, mais concretamente a nossa paróquia de Esmoriz fosse a ‘casa dos loucos’ de Jesus, a ‘casa dos loucos’ como Jesus, capaz de praticar e testemunhar a comunhão, a amizade, a partilha, a entreajuda, a colaboração, a capacidade e a alegria de trabalhar juntos?
E se a Igreja, a começar pela nossa paróquia de Esmoriz, fosse a ‘casa dos loucos’ de Jesus, a ‘casa dos loucos’ como Jesus, incapazes de dizer mal uns dos outros, incapazes de passar as culpas, preocupados apenas no crescimento e construção de uma paróquia que seja cada vez mais comunidade, cada vez mais participativa, cada vez mais missionária?
De facto, por mais estranho que nos pareça, a loucura evangélica – é dessa que estou a falar, daquela mania de Jesus de ser e fazer diferente – devia ser a doença hereditária e contagiosa – uma espécie de vírus de amor – da nova família de Cristo. A loucura devia ser um carisma – uma qualidade especial e própria – essencial e natural a uma Igreja, a uma paróquia, que queira ser fiel ao paradoxo do Evangelho. Porque, o Evangelho é paradoxal, não é um ‘tratado de boas maneiras’. E, sem loucura – a loucura da Cruz, a loucura do amor até ao fim – a fé em Cristo fica reduzida a uma ética ou, pior ainda, a um moralismo, o moralismo daqueles que têm sempre o dedo apontado aos outros e sabem sempre o que é que os outros deviam fazer, mas que não mexem uma palha, nem com um dedo são capazes trabalhar. Ou então confunde-se com aquele activismo centrado em mim para todos verem como sou eu o protagonista.
Sem essa loucura – a loucura que nos olha e nos fala da cruz, e que nós contemplamos na cruz – a liturgia, a Eucaristia, a festa do Senhor das Febres ou outra, não passa de uma repetição, do cumprir da tradição ou do preceito, mas que não conseguem mudar nada em nós.
Parece-me que é também dessa loucura, quero dizer, da força desse amor louco de Jesus, que nos falam as leituras de hoje, sobretudo o evangelho.
A primeira coisa em que é preciso reparar é na pequenez da semente: uma pequenez que tem uma força tal que produz por si só, automaticamente, como diz o texto; uma pequenez que é capaz de se tornar uma árvore.
Numa sociedade que privilegia e em que tudo é medido pela produtividade e pela eficácia – e até numa Igreja onde tantas vezes caímos na tentação do activismo, mesmo na Eucaristia queremos é acção e fazer muitas coisas – estas duas parábolas deviam ensinar-nos algumas coisas importantes: o decisivo é a atitude sublime da admiração, da contemplação, da gratidão, da acção de graças, do louvor, do silêncio… Sem medo de me enganar, podia dizer assim: não é preciso fazermos nada, precisamos apenas de acolher a semente e deixar que ela trabalhe, germine e cresça em nós. Só era preciso que não atrapalhássemos, que nãos estorvássemos o dinamismo da semente em nós. Estarmos mais centrados em Deus do que em nós. E isto não tem nada a ver com preguiça nem com passividade. Tem a ver apenas com a confiança na força do amor de Deus e da sua graça, se nos deixarmos dinamizar por Ele.
Muitas vezes, na nossa oração, um tanto ou quanto infantil, nós acabamos a pedir a Deus que faça isto ou aquilo que faça desta ou daquela maneira. Mas Deus dá-nos apenas uma mão cheia de sementes para as deixarmos florescer e frutificar.
A semente é a Palavra de Deus, a semente é o Reino de Deus, a semente é Cristo. Hoje, estamos aqui a celebrar a festa do Senhor das Febres, voltamos o olhar para Aquele que morre na cruz, completamente impotente, para desaparecer de vez. Cristo é essa semente mais pequena do que todas. E, como a semente de mostarda, não morreu, mas transformou-se em árvore – a árvore da Cruz – que abre os ramos para abraçar e abrigar todos. Para salvar a todos. Será que temos consciência de que a nossa primeira atitude é essa de contemplarmos a Cruz donde o Ressuscitado continua a semear a sua palavra e a sua vida no nosso coração e no coração do nosso mundo? Será que somos capazes dessa atitude tão simples de ficar em silêncio e escutar e acolher a força dessa palavra de amor? Será que confiamos nessa árvore da vida e da salvação levantada diante de nós?
A Cruz, aqui na igreja de Gondesende como em qualquer outra igreja, como a semente de que nos falava o Evangelho, dia e noite está aqui a velar por nós, a fazer crescer no mundo o Reino. Mesmo que não façamos nada, mesmo que não venhamos aqui, mesmo que a igreja esteja fechada, a Cruz está sempre aqui, com a força irresistível da semente, sempre a fazer-se pão. Da semente à Paixão e ao Pão. O Pão da vida eterna, da comunhão e da fraternidade.
A Eucaristia é a expressão mais clara e evidente desse modo simples e silencioso de Deus actuar, dessa força que transforma o coração de cada um e transforma a Igreja e transforma o mundo.
Deixo-me maravilhar pela simplicidade da Eucaristia, através da qual o próprio Senhor vem a mim e me alimenta? Reconheço o ‘Deus escondido’ presente na Eucaristia? Como é que eu participo na Eucaristia e deixo que ela tome conta de mim? Como é que eu habito a Eucaristia e deixo que ela me habite?


Homilia (06-06-2021)

10º DOMINGO COMUM/B

Esta passagem do evangelho de Marcos que nos foi proposta este Domingo, pensando sobretudo naquilo que dizem de Jesus os seus parentes, mas também os escribas: ‘Está tolo; Não está bom da cabeça’, contém uma grande provocação para nós, que eu traduzo desta maneira:
E se a Igreja, mais concretamente a nossa paróquia de Esmoriz fosse a ‘casa dos loucos’ de Jesus, a ‘casa dos loucos’ como Jesus, e fosse capaz de pôr em prática e testemunhar a comunhão, a amizade, a partilha, a entreajuda, a colaboração, a capacidade e a alegria de trabalhar juntos?
E se a Igreja, a começar pela nossa paróquia de Esmoriz, para não ‘fugirmos com o rabo à seringa’, e como insiste tantas vezes o papa Francisco – este é um problema global –, fosse a ‘casa dos loucos de Jesus’, a ‘casa dos loucos como Jesus, incapazes de dizer mal uns dos outros, incapazes de passar as culpas, preocupados apenas no crescimento e construção de uma paróquia que seja cada vez mais comunidade, cada vez mais participativa, cada vez mais missionária?
E se fôssemos mesmo capazes de nos deixarmos converter a uma Igreja, a uma paróquia que seja verdadeira família de filhos e filhas de Deus, de irmãos e irmãs? Como nas nossas famílias não acabariam as tensões, as diferenças e até as zangas, mas saberíamos que nos pertencemos uns aos outros e que podemos contar uns com os outros.
“Queres uma Igreja profética? Perguntava o papa numa homilia na festa de São Pedro e São Paulo, dois apóstolos muito diferentes um do outro e que se zangaram um com o outro. E respondia: “Muito bem! E que fazes para que a Igreja seja profética?
Queres uma Igreja profética? Começa a servir, e não digas nada. Não teoria, mas testemunho. Precisamos não de ser ricos, mas de amar os pobres; não de ganhar para nós, mas de gastarmos pelos outros”.
Que Pedro e Paulo, Maria e José, e tantos outros e outras nos ensinem a não ter medo de seguir o caminho da loucura do Evangelho. Ámen.


Homilia (30-05-2021)

SANTÍSSIMA TRINDADE

O tempo litúrgico que se segue ao tempo pascal – que concluímos no passado Domingo com a celebração de Pentecostes – chama-se tempo ordinário ou tempo comum. Trata-se de um tempo para escutar e saborear textos do Antigo e do Novo Testamento e deixar-nos acompanhar, na nossa vida de cada dia, pelo mistério de Cristo e acolher a salvação que Ele nos oferece em cada momento, cada situação, cada circunstância melhor ou mais difícil da nossa vida, da vida daqueles que nos rodeiam, da vida deste mundo que habitamos.
E retomamos o tempo comum, cuja cor é o verde, ainda de branco e com esta festa da Santíssima Trindade. A Santíssima Trindade é o mistério que constitui o coração da fé cristã: Deus é um só, mas em três pessoas: o Pai criador, o Filho salvador e o Espírito Santo vivificador. Cada um dessas pessoas, à sua maneira, isto é, de um modo próprio a cada um, ama-nos: o Pai ama-nos porque nos criou e criou para nós este mundo grande e belo que nos confiou para transformarmos na Casa comum da fraternidade e da amizade; o Filho ama-nos porque deu a vida por nós e ressuscitou para nos salvar; o Espírito Santo ama-nos porque nos faz acreditar e noa torna participantes da vida e do amor divinos.
Então, esta festa da Santíssima Trindade é, antes de mais, um convite a celebrar, acolher e agradecer este amor sem limites de Deus.
Mas esta festa da Santíssima Trindade também nos faz contemplar a Igreja, a comunidade dos crentes, que nasceu como fruto do amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e que, por isso, é chamada a ser e viver a mesma comunhão e unidade. Não uma comunhão ou unidade de iguais, mas de diferentes. Como o Pai é diferente do Filho e ambos são diferentes do Espírito, mas são uma comunhão vital de amor, são um amor que gera vida, também nós, a Igreja, somos chamados a ser uma comunhão vital de amor: a viver as nossas diferenças numa dinâmica de comunhão que gere e frutifique vida comunitária, que gere e frutifique participação e trabalho comum, que gere e frutifique vida missionária capaz de levar o Evangelho a todos: “Ide e fazei discípulos de todas as nações, baptizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei.”
Do Pentecostes nasce esta Igreja como um povo que fala claramente e com convicção a nova linguagem do amor e da justiça, da paz e da fraternidade. Salvação não quer dizer outra coisa senão comunhão com Deus e com os irmãos.
Dizia o papa Francisco na sua mensagem à Vigília ecuménica de Pentecostes: «E o povo dizia deles: vede como se amam. O amor fraterno identifica-os. Como é triste quando se diz dos cristãos: “vede como discutem”.
Pode o mundo de hoje dizer dos cristãos: “vede como se amam” ou podem realmente dizer: “vede como se odeiam” ou “vede como lutam”? O que nos aconteceu?»
Deixemos então que esta festa da Santíssima Trindade que nos faz contemplar o amor de Deus seja fonte de amor e de comunhão entre nós, na nossa paróquia, para que seja uma verdadeira ‘comum unidade’, uma comunidade. Ámen.


Homilia (23-05-2021)

PENTECOSTES/B

A primeira coisa que é preciso dizer é que Jesus cumpre as suas promessas – oxalá tivéssemos a coragem audaz de acreditar n’Ele! Tinha prometido o Espírito Santo e aí está Ele, como acabamos de ouvir no Evangelho e já antes na leitura dos Actos: cinquenta dias depois da Páscoa, todos ficaram cheios do Espírito. Eles e nós, hoje, só se não deixarmos ou não quisermos. Mas temos de pensar bem, porque o Espírito, como ouvimos, não deixa pedra sobre pedra. Refiro-me às pedras do que é costume, do sempre se fez assim, do conformismo, da rotina, e outras que tais.
Abramos bem os ouvidos e o coração: O que é o Espírito Santo? É Deus em liberdade. Que inventa, abre, sacode, faz coisas que ninguém espera. Que dá a Maria um filho fora-da-lei e a Isabel um filho profeta que vai acabar de cabeça cortada por ousar denunciar o que estava mal, e que em nós cumpre incansavelmente a mesma obra de então: torna-nos ventres do Espírito, faz de nós, hoje, ventres do Espírito, para darmos dão carne e sangue e história à Palavra: para tornarmos realidade o Evangelho na nossa vida e no nosso mundo.
O Espírito é uma força dinâmica – vento, fogo, água são os seus símbolos – que actua de maneira invisível e transforma a pessoa a partir de dentro; é a Palavra divina que penetra o coração e nos faz falar uma nova linguagem: a linguagem que faz a comunhão daquilo que é diferente. Não, o Espírito não torna tudo igual, o Espírito fortalece a diferença e é das diferenças que faz a comunhão. Uma linguagem que me compromete – que nos compromete a todos – na transformação da Igreja e do Mundo: uma Igreja e um Mundo onde nos cintamos e vivamos todos como irmãos e irmãs; uma Igreja onde trabalhemos todos juntos na mesma missão; um Mundo onde todos nos sintamos cuidadores e construtores da Casa Comum que o Deus criador nos confiou. Lá fora, as árvores estão cheias de apelos do Espírito. Podíamos tentar ‘ouvir’ um ou dois.
Por isso e para isso, precisamos do Espírito; por e para isso, precisa do Espírito o nosso mundo estagnado, sem impulsos, para que deixemos de ver imagens como as daqueles chegaram a Ceuta ou as imagens de morte e destruição que nos chegam da Palestina. Precisamos do Espírito para esta Igreja que tem dificuldade em sonhar e dar passos para diante; para este Mundo que tem dificuldade em fazer a paz e a justiça. O Espírito com os seus dons dá a cada cristão uma genialidade que lhe é própria. E a humanidade tem necessidade extrema de discípulos geniais.
Vem, Espírito Santo, e acende em nós o fogo do teu amor que renova e enche de alegria. Ámen. Aleluia. Aleluia.


Homilia (16-05-2021)

ASCENSÃO/B

Ao contemplar aquela atitude dos Apóstolos a olhar para o céu, sem saber o que fazer, como ouvimos na primeira leitura, há uma pergunta que nos vem à cabeça: A Ascensão é fim ou é princípio?
E temos de responder – e oxalá compreender – que é as duas coisas, isto é, ser cristão, ser discípulo de Jesus, é perceber que tudo está cumprido – já fomos salvos na Páscoa de Cristo –, mas está tudo por fazer – nós, hoje, temos a missão de ir e continuar a anunciar a ressurreição de Cristo.
Voltados para o Céu – para onde caminhamos – estamos situados na Terra, neste tempo que nos é dado viver, onde temos de trabalhar afincadamente para que seja cada vez mais a Casa Comum da fraternidade, da paz e da justiça.
Dito ainda de outra maneira: temos o coração ancorado no Céu, nessa realidade definitiva que é a nossa salvação, mas temos de navegar através do provisório e do frágil que constitui os nossos dias. Equipados com a força que vem do alto, temos de lutar ainda na vida de todos os dias, feita de fracassos e derrotas. Encarregados de proclamar o Evangelho, de falar em nome de Deus e realizar os sinais do seu amor, temos de confessar que não temos a resposta para todas as perguntas, as soluções para todos os problemas.
Existe, portanto, sempre o risco de nos equivocarmos, de nos enganarmos quanto à atitude que Jesus nos manda. E o equívoco é este: olhar para o céu e apontar para Deus, quando, afinal, o que é preciso é olhar a Terra e destapar a presença escondida de Deus. Porque Ele não foi embora, ficou e está no meio de nós.
Existe sempre o risco de nos enganarmos: viver um espiritualismo desincarnado e estéril, de facto não habitado pelo Espírito de Cristo; ou cair num apostolado sem alma de tipo administrativo, exterior e ritualista – portanto, também sem o Espírito de Cristo; deixar correr, sem estar para se incomodar, ou cair numa impaciência desenfreada que leva tudo à frente e acaba num rasto de destruição; adaptar-se a todas as modas, como quem não tem rumo, ou cair no integrismo ou fanatismo mais obtuso e sectário.
Não é fácil, mas é esta a beleza do ser cristão. Nada está decidido de antemão, nenhum programa está definido de uma vez por todas. O que há é um caminho diante de nós que é preciso inventar todos os dias: o caminho do Evangelho, sempre novo: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura”, é o que Jesus continua a dizer a cada um de nós. A nós que somos pecadores, frágeis, cheios de dúvidas, inconstantes. A nós que temos de fazer milagres. Que milagres? Falar a linguagem do céu: já imaginamos o que seria se eu nunca dissesse mal de ninguém! Expulsar demónios: já imaginamos o que seria se eu não deixasse crescer no coração a vingança, o ódio, a divisão, a inimizade!
Jesus não nos pede para ser perfeitos, isso só acontecerá quando chegarmos co Céu, mas pede-nos que lutemos, cada dia, com a força do Espírito Santo que está em nós, para seguir pelo caminho do Evangelho que Ele nos anunciou e que nos envia agora a nós a pregar.
Vem, Espírito Santo, e renova os nossos corações.
Vem, Espírito Santo, e renova a face da Terra. Ámen. Aleluia.


Homilia (2-05-2021)

5º DOMINGO DE PÁSCOA/B

O segredo do Evangelho, o segredo da fé, do ser cristão, não é uma doutrina que se aprende ou um conjunto de ideias, opiniões ou de alguns ritos cumpridos com fastio, por medo ou obrigação. O segredo do Evangelho é uma comunicação de vida: é uma vida que se recebe e uma vida que se faz chegar aos outros, é uma vida que se recebe para fazer viver os outros. É uma vida que frutifica.
“Eu sou a videira, vós sois os ramos. Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em Mim”, dizia Jesus.
Como é que eu – cada um de nós que está aqui a celebrar o sacramento da Eucaristia, o sacramento da comunhão mais íntima e profunda com Cristo e com os irmãs e irmãs – como é que eu escuto e acolho estas palavras tão fortes e evidentes de Jesus, nesta ‘passagem estupenda de João, onde Jesus deita por terra tanta sucata bafienta, tantos pesos inúteis carregados às costas, para nos anunciar o Evangelho do amor absoluto, do amor indissolúvel? Cristo, vide, eu, ramo: eu e Ele, a mesma coisa – a videira! A mesma planta, a mesma vida, a única raiz, uma única seiva. Ele em mim e eu nele, como filho dentro da mãe, como mãe dentro do filho’, como escreve um autor.
Permaneço verdadeiramente n’Ele? Produzo verdadeiramente frutos de Evangelho e de Páscoa? Estou disposto a deixar-me podar pelo Pai para que os frutos sejam mais abundantes e saborosos?
Como é que eu escuto e acolho estas palavras de Jesus?
‘Permanecer’ e ser podado, ser limpo, é para frutificar. Por isso, Jesus diz quais são as duas condições para dar fruto: permanecer n’Ele e aceitar a poda. Em relação a permanecer, percebemos bem que não se trata de uma relação superficial e episódica: porque vou casar, porque vou baptizar, porque é um funeral, porque tenho uma intenção, porque é a comunhão de um filho ou filha… Permanecer não pode ser de vez em quando, quando se pode, quando dá jeito… Permanecer é, cada Domingo e todos os domingos, comer a sua Palavra e o seu Corpo, receber a sua vida.
Em relação à questão difícil e dolorosa da poda, também não nos enganemos. A poda é um dom, é uma graça, é a possibilidade de produzir melhor. Não se trata de amputar, de castigar, mas de dar vida, de criar condições para dar bom fruto. A poda é um acto de amor de Deus que nos quer ramos fortes e frutuosos.
O cristão vive de Cristo, vive com Cristo e vive para Cristo. Ámen. Aleluia.


Homilia (25-04-2021)

4º DOMINGO DE PÁSCOA/B

Mesmo que esta imagem do pastor provavelmente já não seja entendida por muitos – alguém perguntava como fazer entender esta imagem, por exemplo às crianças, que só conhecem os animais de peluche e de estimação –, a verdade é que não podemos fugir nem deixar de propor aquela que é uma das imagens mais fortes na Bíblia para nos dizer quem é Deus, quem é Jesus, mas também quem somos nós.
E a única ideia que eu quero sublinhar hoje é esta: todos nós, desde o Baptismo e porque somos baptizados, somos pastores, temos a mesma missão pastoral de Jesus, o Bom Pastor, ainda que a vivamos e ponhamos em prática de modos diferentes. Todos somos pastores. Todos somos chamados a dar a vida, como Cristo. Dar a vida entende-se no sentido da videira que dá seiva, que dá vida aos ramos, que faz os ramos terem vida – essa outra imagem que até nos está proposta pela diocese e que nós continuamos a cantar como resposta à oração universal. Dar a vida é dar as coisas que fazem viver. É como se Jesus nos dissesse: dou-vos o meu modo de amar, de lutar, de sentir, porque só com um suplemento de vida poderemos afastar os lobos que trazem a morte, todos esses sinais e marcas do mal e da violência que nos rodeiam.
Num tempo de lobos que roubam e destroem e de mercenários – entre eles os falsos profetas que enganam a tantas pessoas no mundo –, nesta sociedade de uma imensa indiferença e do salve-se quem puder, como não se cansa de repetir o papa Francisco, Jesus pede-nos uma nova paixão, a sua paixão: dar a vida, ser como Ele pastores da multidão de hoje.
Todos nós somos pastores, embora de um pequeno rebanho: a nossa família, os amigos, aqueles que confiam em nós e nos são confiados, por exemplo, as crianças e jovens da catequese, e os pobres, e os que estão sós, e os que não têm esperança, e os habitantes desta nossa cidade de Esmoriz… Para lhes dizermos e repetirmos, mais com gestos do que com palavras: tu és importante, tu importas-me, tu és meu irmão, minha irmã, meu companheiro de caminho… E eu quero que tu tenhas vida, e vida abundante. E assim construiremos juntos uma cidade mais fraterna e solidária, e uma paróquia mais dinâmica e missionária.
Não é fácil esta missão, nem para mim nem para nenhum de nós certamente, a não ser que vivamos iludidos ou sejamos inconscientes ou indiferentes. Mas é esta a missão que recebemos do Bom Pastor.
Não resisto a citar mais estas palavras do papa Francisco na Fratelli Tutti: «Digamos que crescemos em muitos aspectos, mas somos analfabetos no acompanhar, no cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades desenvolvidas». Temos então de sonhar e caminhar juntos, e ajudar-nos uns aos outros, como único rebanho do único Pastor, seguindo cada um a sua vocação. São José, homem capaz de sonhar a vocação, rogai por nós. Ámen. Aleluia.


Homilia (18-04-2021)

3º DOMINGO DE PÁSCOA/B

Com esta passagem que acabamos de escutar, neste terceiro domingo de Páscoa, estamos na última página do evangelho segundo São Lucas. São praticamente as últimas palavras que Jesus dirige aos seus discípulos de todos os tempos, a nós, hoje. Assim como se fosse a sua última vontade.
E qual é essa vontade? “Vós sois testemunhas de todas estas coisas.” A última vontade de Jesus, o que Jesus deseja e espera de nós é que sejamos suas testemunhas. É a primeira vez que os discípulos são designados como testemunhas. E aqui é que ‘a porca torce o rabo’. É que a palavra grega que nós traduzimos por testemunha é a palavra ‘mártir’. Portanto, é como se Jesus estivesse a dizer-nos: ‘Vós sois mártires de todas estas coisas’.
Como nós sabemos o que é um mártir, impõe-se a pergunta: Estou disposto a dar a vida por Cristo?
Pelos vistos, ser cristão, ser baptizado, é estar disposto a dar a vida por Cristo. O que é bem mais, muito mais, do que ‘ter feitos as comunhões’ ou ‘ter casado na igreja’ ou ‘ter sido ordenado padre’ ou vir à missa quando se pode ou não há outra coisa mais interessante para se fazer ou vir à missa porque é o dia da festa… Os exemplos podiam multiplicar-se.
A verdadeira questão é esta? Estou disposto a dar a vida por Cristo?
Escreve a este propósito D. António Couto: “A linguagem corrente cataloga-nos mais depressa como «praticantes» ou «não-praticantes». Mas aqui somos designados como «testemunhas» dos acontecimentos de Cristo”. E lembra como quando foi necessário substituir Judas para completar o colégio dos Doze, um dos requisitos necessários era que se ‘tornasse com eles testemunha/mártir da ressurreição de Cristo. “Somos, portanto – escreve D. António Couto – chamados a envolver-nos de tal modo na história e na vida de Jesus, a ponto de a fazermos nossa – de fazermos nossa a vida de Cristo, como diz Paulo: Para mim, viver é Cristo – para então, e só então, a transmitirmos aos outros, transmitirmos aos outros a vida de Cristo. Não com discursos inflamados ou esgotados – para não dizer descomprometidos ou apenas cheios de boas intenções – mas com a vida. Sim, aquela história e aquela vida – a história e a vida de Cristo crucificado e ressuscitado, que entregou a sua vida por fidelidade ao Pai e por nosso amor – são a nossa história e a nossa vida. Têm de ser, cada vez mais, a nossa história e a nossa vida. É isso ser cristão.
Ou seja, ser cristão não se trata apenas de vir à Eucaristia – de ‘picar o ponto’, ser praticante – mas de pôr em prática a Eucaristia celebrada.
Eu, muitas vezes, sinto-me como os discípulos perturbado, cheio de dúvidas e de medo, incrédulo. Dar a vida por Cristo? Dar a vida como Cristo? Sim, com a graça de Deus, a força do Espírito Santo e sonhando como São José, mesmo que pareça um sonho impossível. Ámen. Aleluia.


Homilia (11-04-2021)

2º DOMINGO DE PÁSCOA/B

“Na tarde daquele dia, o primeiro da semana… Oito dias depois…”
O Domingo – primeiro e oitavo dia, alfa e ômega, princípio e plenitude – é o Dia do Senhor e Dia dos cristãos, seus seguidores; é o dia da Eucaristia e Dia da festa e da alegria; é o dia da comunhão, da fraternidade e da missão.
Por isso, hoje, oito dias depois da ressurreição, escutámos a narração de duas aparições de Cristo ressuscitado aos seus discípulos: a primeira foi logo na tarde do primeiro Domingo de Páscoa, a segunda, oito dias depois. Da primeira vez, Tomé não estava, da segunda, já estava reunido com a comunidade dos discípulos.
Mas este ano, não vamos falar da dúvida de Tomé nem da sua determinação de ver para crer. Também não vou dizer – ainda que seja verdade – que todos nós somos um pouco como Tomé, que também nós precisamos de ver para crer, que também nós faltamos à comunidade. Não, hoje, proponho que prestemos atenção e reparemos na atitude dos outros Apóstolos. Porque ela nos ensina e ilumina sobre quem é Cristo, quem somos nós e sobre aquilo que nós temos de fazer enquanto cristãos.
O que aconteceu aos apóstolos depois de verem Jesus ressuscitado no meio deles, em que é que eles foram transformados?
Receberam o Espírito Santo e foram transformados em mensageiros; foram enviados para continuar a missão que o Pai tinha confiado ao seu Filho e que, agora, o Filho confia aos seus seguidores.
E o que fizeram eles depois de terem experimentado a presença do Ressuscitado?
Realizaram esta missão: testemunharam a sua fé a Tomé que estava ausente: ‘Vimos o Senhor!’ Este testemunho vai suscitar o encontro pessoal de Tomé com Cristo, seu Senhor e seu Deus; é este testemunho vai preparar o coração de Tomé para ser capaz de acreditar.
Também nós, do mesmo modo e a exemplo dos Doze, deixemo-nos transformar pela ressurreição de Jesus, sejamos apóstolos e testemunhas. Aproveitemos este tempo pascal para dar a ver a alegria pascal e suscitar a fé e o encontro pessoal com Cristo ressuscitado junto dos que nos são próximos e dos que se cruzam nos caminhos da vida – não a partir dos nossos cansaços, rotinas, mesquinhices ou mesmo maledicências – mas da mais profunda alegria que nos habita e entusiasma.
Ousemos dizer a todos, talvez começando logo em nossa casa, como escreveu o papa Francisco na sua carta aos jovens: ‘Cristo, nossa esperança, está vivo e é a mais formosa juventude deste mundo. Tudo aquilo que Ele toca torna-se jovem, faz-se novo, enche-se de vida. Ele vive e quer-te vivo’. Aleluia.


Homilia (04-04-2021)

VIGÍLIA PASCAL

Vale a pena repetir que esta é a mais santa de todas as vigílias, a mais santa das noites, porque anuncia a manhã da ressurreição, a manhã da nova criação.
“Procurais a Jesus de Nazaré, o Crucificado? Ressuscitou: não está aqui.”
Aleluia! Cristo ressuscitou!
A Luz com que iniciámos esta Vigília é a luz do primeiro dia da criação, mas é ainda mais a Luz esplendorosa e redentora de Jesus quando afirmou: Eu sou a luz do mundo, quem me segue não anda nas trevas, é a luz da ressurreição. Foi esta luz que recebemos no Baptismo e que acenderemos de novo, daqui a pouco, como acontece todos os anos nesta Vigília, para que nunca esqueçamos com que luz somos iluminados, com que luz somos chamados a iluminar.
Aleluia! Cristo ressuscitou!
A Palavra que escutámos esta noite, mais longamente do que é habitual, mas não tão longamente como é proposto, é a Palavra criadora de Deus na primeira criação, mas é ainda mais a Palavra incarnada, Jesus Cristo, a Palavra última e definitiva do amor salvador de Deus, a Palavra da nova criação que vence a morte e o pecado e nos faz nascer para a vida eterna, a Palavra que ressuscita.
Aleluia! Cristo ressuscitou!
O túmulo, que guardou durante dois dias o corpo morto de Jesus, qual Arca da Aliança que durante três dias guardou Jesus, abriu-se para nos revelar e oferecer o tesouro mais precioso, como mostra a nossa pagela da Páscoa: Cristo ressuscitado, vivo para sempre e fonte de vida, Palavra criadora, Luz Redentora, Pão e Vinho de vida eterna, para quem ousar acreditar neste mistério.
Ele é o Cordeiro da nova e eterna Aliança, o Cordeiro da nova Páscoa, de que a Eucaristia é memorial e sacramento: Sempre que comemos o pão e bebemos deste vinho anunciamos ao mundo a ressurreição do Senhor. Por isso, dizia aqui, na Missa da Ceia do Senhor, citando os papas João Paulo II e Bento XVI: A Igreja vive da Eucaristia, a Igreja é Eucaristia.
A Eucaristia é a Páscoa sempre actualizada e renovada para nós, para vivermos uma vida ressuscitada.
Aleluia! Cristo ressuscitou! Celebremos à mesa do Senhor. Aleluia!


Homilia (02-04-2021)

CELEBRAÇÃO DA PAIXÃO E ADORAÇÃO DA CRUZ

Como acabamos de escutar, a Sexta-feira Santa assistiu à desintegração da comunidade de Jesus: Judas vendeu-O; Pedro negou-O e a maior parte dos discípulos fugiu. Parecia que todos os esforços de Jesus para reunir e construir uma pequena comunidade tinham falhado, e Ele estava a morrer.
Mas é precisamente neste momento mais sombrio que vai manifestar-se a hora de Jesus, o poder criador daquela entrega, daquela morte. E junto à Cruz, quando tudo parecia perdido, afinal, essa comunidade vai continuar e renascer: “Mulher, eis o teu filho… Filho, eis a tua mãe.”
Eis o nascimento da Igreja.
João nunca diz o nome ‘Maria’, diz mãe ou mulher. Porquê? Porque ela é a nova Eva, a mãe da nova humanidade nascida da Cruz, do lado aberto de Cristo. Ela é, portanto, a nossa mãe, a mãe de todos os que vivem pela fé. E esta é a nossa família. Está ali, junto à cruz, a nossa mãe e o nosso irmão.
Ser cristão é reconhecer que a nossa família nasceu naquele momento, aos pés da Cruz, de onde ninguém pode ser tirado: Todos Família, todos irmãos, como insiste o lema da nossa diocese e também o papa Francisco.
Em Cristo, nós somos carne da mesma carne, partilhamos o mesmo sangue, o sangue da Cruz.
O que nos atrai e reúne é o amor a Cristo, ainda que o vivamos de maneiras diferentes. O que nos atrai e reúne é a mesma missão de fazer de toda a humanidade a família dos filhos e filhas de Deus.
Por isso, logo nos primeiros domingos da Quaresma, ao abrirmos a Arca da Aliança, encontrámos os tesouros dessa Casa Comum que habitamos e somos chamados a construir como casa de irmãos e irmãs, e da família, da nossa família de sangue, mas também desta família nascida do sangue de Cristo que é a Igreja, a começar logo na nossa comunidade paroquial.
Que esta Páscoa sirva também para nos levar a tomar consciência destes tesouros que Deus nos confia.
Que a celebração da Paixão e a Adoração da Cruz nos levem a olhar cada homem e cada mulher como nosso irmão e nossa irmã, vencendo a tentação do discurso do ódio e da indiferença, da xenofobia e do racismo, do egoísmo e do individualismo, do medo e da violência.
Que esta Páscoa desperte em nós, especialmente nos jovens, a paixão pelo Reino de Cristo, tal como Ele o anunciou e viveu. Ámen.


 SEXTA-FEIRA SANTA
Oração diante da Cruz

Doce Jesus que nos resgataste com o teu Sangue, hoje queremos pôr a teus pés a nossa fragilidade mas também os nossos dons, as nossas misérias mas também os nossos anseios, os nossos erros mas também as nossas boas opções.
Doce Jesus que nos resgatas com o teu sangue, hoje queremos pôr a teus pés as pessoas das nossas famílias que sofrem de doenças, de desânimo ou de frustração.
Doce Jesus que nos resgataste com o teu Sangue, hoje queremos pôr a teus pés todas as pessoas que sofrem à nossa volta, especialmente por causa da pandemia e das suas terríveis consequências, e as que sofrem a tragédia em cabo Delgado, Moçambique: todas têm nome e rosto, ainda que às vezes, de maneira egoísta, nos esqueçamos delas e sejamos um tanto indiferentes.
Doce Jesus que nos resgataste com o teu Sangue, hoje queremos pôr a teus pés o nosso planeta, a Casa Comum que o teu Pai e nosso Pai nos confiou como um dom e uma tarefa, mas que nós nem sempre cuidamos como devíamos com as nossas opções de cada dia.
Doce Jesus que nos resgataste com o teu Sangue, hoje queremos pôr a teus pés os projectos e os sonhos dos noivos que se preparam para o Matrimónio, dos casais que esperam um filho ou uma filha, das crianças e jovens da nossa cidade, dos que encontram trabalho pela primeira vez ou depois de muita espera, dos estudantes que avançam felizes nos seus estudos, das famílias que procuram viver cada dia o Evangelho, dos mais velhos que continuam a testemunhar a esperança e a confiança.
Doce Jesus que nos resgataste com o teu Sangue, hoje queremos pôr nas tuas mãos abertas num abraço todas as pessoas que lutam por uma vida melhor para si e para os seus e se deixam animar pela força do amor que não desiste.
Doce Jesus que nos resgataste com o teu Sangue, hoje queremos pôr nas tuas mãos abertas num abraço todas as associações da nossa terra que procuram ajudar os outros no seu caminhar de cada dia; todos os voluntários e voluntárias que gastam o seu tempo, os seus conhecimentos e as suas capacidades ao serviço dos que precisam; os trabalhadores dos serviços essenciais – a começar pelos do campo da saúde e da solidariedade – que testemunham a sua competência profissional e também a sua ternura junto daqueles que servem; os ‘santos de ao pé da porta’, na expressão do papa Francisco que, discretamente e sem fazer barulho, dão um pouco de tranquilidade e trazem consolação aos sofrimentos dos outros.
Doce Jesus que nos resgataste com o teu Sangue, hoje queremos pôr nas tuas mãos abertas num abraço todos os seus filhos e filhas, em qualquer lugar do mundo, porque somos todos irmãos e irmãs, para que os leves até ao coração do Pai.
Doce Jesus que nos resgataste com o teu Sangue, hoje queremos cantar a nossa gratidão pela tua ressurreição e salvação que é promessa, fonte e certeza da nossa ressurreição.
(Oração feita a partir de uma publicação da Cáritas de Espanha)

 


Homilia (01-04-2021)

MISSA DA CEIA DO SENHOR

Como judeu fiel às tradições que tinha aprendido na casa de Nazaré com Maria e José, mais uma vez, ao chegar a Páscoa, Jesus reuniu-se com os seus amigos mais próximos para celebrar a Ceia Pascal. Mas este ano, tudo vai ser diferente. Ao celebrar a sua última Páscoa judaica, Jesus inaugura e inicia a celebração da sua Páscoa: Tomai e comei, isto é o meu Corpo; Tomai e bebei, isto é o meu Sangue. Fazei isto em memória de Mim.
A partir daquela noite, é Ele o Cordeiro da nova Páscoa. A partir daquela noite a Eucaristia é que é o memorial da passagem da escravidão do pecado à liberdade definitiva dos filhos e filhas de Deus, da passagem da morte à vida que não terá fim no coração do amor de Deus. A partir daquela noite, Cristo pede aos seus seguidores que nunca mais deixem de celebrar, cada ano, o Domingo da sua Páscoa, e de a celebrar, cada Domingo, na Eucaristia.
Por isso, como escreveu o papa João Paulo II, numa breve mas importante carta, ‘a Igreja vive da Eucaristia’. E o papa Bento XVI escreveu que a Igreja é Eucaristia, porque como único corpo, todos participamos do único pão: Formamos um só corpo, em Cristo Jesus, todos nós que comungamos o mesmo Senhor.
Mais: o corpo dos cristãos – pessoalmente, mas ainda mais como Igreja – dá corpo e corporeidade ao Ressuscitado no seio do mundo. quer dizer, Cristo tem corpo no mundo graças ao corpo dos cristãos que são membros do seu corpo. É este realismo – esta realidade concreta da Eucaristia – que levava, já nos primeiros tempos, a falar da Igreja como Corpo de Cristo, enquanto que a Eucaristia é o corpo místico ou espiritual. É este o sentido da invocação do Espírito Santo sobre a assembleia. Depois de invocar o Espírito Santo sobre o pão e o vinho para que sejam transformados no Corpo e Sangue de Cristo, invocamos o mesmo Espírito para que transforme a assembleia em autêntico Corpo de Cristo mediante a participação no pão consagrado.
Dito ainda de outra maneira, o Corpo de Cristo somos cada um de nós, pessoalmente, e em comunhão fraterna, enquanto Igreja e sociedade. A dimensão baptismal ganha maior intensidade quando é complementada com a comunhão eucarística; o sacerdócio baptismal de todos os cristãos culmina, alcança a sua plenitude e perfeição na comunhão eucarística, cada Domingo, na Eucaristia, memorial da Páscoa de Cristo.
Ser cristão não é, em primeiro lugar, uma questão de doutrina, de saber umas orações ou umas coisas acerca de Jesus: é entrar em comunhão com Ele, comendo o seu Corpo, como Ele desejou naquela noite, para ser o seu Corpo eclesial.
Como estamos a viver esta comunhão, para a podermos testemunhar, sobretudo às crianças e jovens que fazem catequese connosco?

 

 

 

 


 MISSA DA CEIA DO SENHOR
No momento que seria do Lava-Pés, mas que este ano não pode realizar-se

Segundo a carta aos Hebreus, na Arca da Aliança, para além das Tábuas da Lei, estaria também um vaso com um pouco do Maná que caía do Céu para matar a fome do povo, durante a longa e difícil caminhada pelo deserto.
Também nós, que somos o novo Israel, na caminhada que é a nossa vida nesta Terra, tantas vezes difícil e pesada, precisamos de alimento para o caminho, precisamos do pão que restaure as nossas forças. Esse alimento é a Eucaristia, o pão que comemos na Eucaristia. É esse o nosso maior tesouro: somos alimentados pelo próprio Cristo que Se faz pão de vida eterna para nós.
Por isso, como ainda acabei de lembrar, a Igreja – nós – vive da Eucaristia, a Igreja é Eucaristia.
Precisamos de duas coisas:
Redescobrir este tesouro e fazer o que for preciso para nunca o perdermos;
E deixar a Eucaristia germinar, florir e frutificar em nós, isto é, precisamos de viver eucaristicamente, de compreender as consequências que a Eucaristia tem de ter na nossa vida. Como Pedro, que primeiro se recusava, mas que acabou a dar a vida por Cristo. Como dizia na homilia do passado Domingo de Ramos, precisamos de passar de discípulos a apóstolos.
Como sabemos e escutámos há pouco, São João, não relata a instituição da Eucaristia, mas coloca, em vez disso, esse inaudito gesto do Mestre ajoelhado diante dos discípulos a lavar-lhes os pés, um gesto que só podia ser exigido aos escravos não judeus, de tão humilhante que era.
Este ano, não podemos fazer fisicamente esse gesto. Mas não podemos esquecê-lo nem passar à frente, como se esta fosse uma missa normal. Neste dia, esse gesto toma o lugar do Credo, é a nossa Profissão de Fé.
Por isso, vamos cantar um cântico para professar a nossa Fé na Eucaristia e na Igreja que é feita, que nasce da Eucaristia. Para que a Eucaristia não se reduza a uma devoção ou um hábito; para que ir à Missa não se confunda com as intenções dos que morreram; para que os pais, crianças e jovens compreendam que a Eucaristia não pode ficar na Primeira Comunhão, ou na Profissão de Fé ou no Crisma. Para que todos compreendamos que ser cristão é participar na Eucaristia e deixar que essa comunhão faça de nós servidores e construtores da Igreja, Corpo de Cristo, para cumprirmos a missão de anunciar e testemunhar o Ressuscitado.


Homilia (28-03-2021)

DOMINGO DE RAMOS

Hoje começa a ‘Semana Santa’, que as Igrejas do Oriente chamam ‘Semana Grande’, um antigo rito da Igreja de Milão ‘Semana Autêntica’, e que os nossos vizinhos espanhóis ‘Semana Maior’.
Qualquer um destes nomes (Santa, Grande, Autêntica, Maior) nos faz perceber – ou deveria ajudar a perceber – como esta Semana é decisiva e fundamental para nós que somos discípulos de Jesus e que queremos ser seus apóstolos: discípulos, porque queremos aprender os seus ensinamentos, porque é Ele o Mestre; apóstolos, porque queremos dar a nossa vida ao serviço da Boa Nova como Ele deu a sua.
Hoje começa a Semana Santa ou da Paixão. Santa porque o centro é o Senhor Jesus, da Paixão porque contemplamos o seu amor apaixonado por nós, até ao fim, até à cruz.
Ao longo dos dias que nos trouxeram até aqui, Domingo a Domingo, semana após semana, fomos acompanhados, como o antigo Israel, pela Arca da Aliança, e convidados a descobrir os tesouros preciosos que ela guarda, os tesouros que nos farão viver e ser felizes, segundo o sonho grande e infinito do amor de Deus.
Começámos com Noé e o Arco-íris, sinal que nos lembra como Deus nos quer a todos irmãos e irmãs nesta Casa Comum que habitamos e que Ele nos confia. Hoje, depois de todos os outros tesouros: a família onde nascemos e crescemos, a educação que nos faz ser quem somos, o perdão que sempre nos renova, o amor tornado aliança conjugal pelo sacramento do Matrimónio, ergue-se diante de nós o novo e definitivo sinal da Aliança de amor entre Deus e a Humanidade: o sinal da Cruz. A Cruz é agora o Arco da Nova Aliança que une a terra e o céu.
Erguida entre o céu e a terra, a Cruz é o sinal da comunhão de vida e de amor mais plena e perfeita entre Deus e nós, homens e mulheres, e toda a criação. A Cruz é o amor de Deus que, em Cristo, verdadeiro Deus, desce à terra, e é o nosso amor que, em Cristo, verdadeiro Homem, sobe até aos céus. A partir de agora, não há outro sinal na terra ou no céu pelo qual possamos ser salvos.
Escreveu um dos maiores teólogos do século XX: ‘Se queres entender quem é Deus, basta que te ajoelhes junto à cruz’. (Karl Rahner)
Será que somos capazes de oferecer a Jesus o melhor e mais precioso que temos, toda a nossa vida, como fez aquela mulher que não hesitou em comprar o melhor e mais caro perfume, para o ‘desperdiçar’, segundo alguns, derramando-o sobre a cabeça de Jesus?
Será que somos capazes de ver em Jesus o Filho de Deus e confessar a nossa fé, como viu e confessou o centurião romano, aquele homem estrangeiro e pagão, diante do escândalo da cruz?: ‘Este homem era verdadeiramente Filho de Deus’.
Como vamos viver e celebrar a Semana que hoje começa?
Hoje começa a Semana Santa. Ámen.


Homilia (21-03-2021)

V DOMINGO DA QUARESMA/B

Continuamos a nossa caminhada quaresmal para a Páscoa, guiados pela experiência da Aliança, no Antigo e Novo Testamento, e pela Arca da Aliança, onde estão guardados os mais belos tesouros.
A Aliança de Deus com a humanidade foi iniciada na Criação, continuada com Abraão, depois com Moisés e todo o povo de Israel. Mas nem sempre o povo de Israel foi capaz de ser fiel a essa Aliança. Por isso, os profetas, como hoje ouvíamos em Jeremias, começaram a falar de uma nova Aliança, que já não tinha tanto a ver com a terra, com o povo, com um conjunto de leis, mas que aconteceria e se estabeleceria no coração, na verdade e no amor do coração de cada homem e de cada mulher. O coração novo – puro, como cantava o salmista – é afinal a grande arca do tesouro: «Onde estiver o teu tesouro aí estará o teu coração», como dirá Jesus.
Essa Nova Aliança vai ser cumprida e plenamente realizada em Cristo, selada pelo seu sangue derramado, na Cruz, por nosso amor.
E Deus não encontrou melhor imagem para nos revelar e fazer ver o seu amor do que a imagem do matrimónio, da família. Bastariam estas palavras do papa Francisco na Exortação ‘A Alegria do Amor’: “Não esqueçamos que a Aliança de Deus com o seu povo se exprime como um desposório, e a nova Aliança é apresentada também como um matrimónio” (AL, 318). Mas o papa diz mais. Escreve também isto: “O casal que ama e gera a vida é a verdadeira ‘escultura’ viva capaz de manifestar Deus criador e salvador”… a relação fecunda do casal torna-se uma imagem para descobrir e descrever o mistério de Deus” (AL, 11). E ainda: “O matrimónio é um sinal precioso, porque, «quando um homem e uma mulher celebram o sacramento do Matrimónio, Deus, por assim dizer, ‘espelha-se’ neles, imprime neles as suas características e o carácter indelével do seu amor. O matrimónio é o ícone do amor de Deus por nós” (AL, 121).
É por isso muito feliz a proposta da nossa caminhada diocesana que nos convida a descobrir e aprofundar, neste Domingo, na Arca da Aliança, o tesouro preciso da Aliança conjugal, do amor livre, fecundo e eterno que une a esposa e o esposo.
Como estamos a viver e a testemunhar a alegria deste tesouro? O que precisamos de fazer para ajudar os jovens a acreditar que vale a pena confiar em Deus e arriscar entrar nesta aventura de viver o amor com este selo de Deus, fortalecidos pela graça que Deus concede aos que se amam?
«Querer formar uma família é ter a coragem de fazer parte do sonho de Deus, a coragem de unir-se a Ele nesta história de construir um mundo onde ninguém se sinta só» (AL, 321), escreve de forma tão entusiasmada e desafiante o papa Francisco.
Na nossa paróquia, temos o Projecto Nazaré para ajudar neste trabalho e nesta missão. Peço ao Senhor que nos ilumine para sermos capazes de mostrar esta alegria do amor, deste sacramento da nova Aliança, que é o Matrimónio.


Homilia (14-03-2021)

IV DOMINGO DA QUARESMA/B

O exílio de Israel, de que nos falava a primeira leitura, não foi um castigo de Deus. Como o próprio povo reconhece, quando se põe a meditar e a rezar, o exílio resultou da sua infidelidade à aliança, dos ouvidos fechados à Palavra de Deus, da indiferença à mensagem dos profetas.
Somos sempre nós que nos afastamos de Deus e Lhe viramos as costas. Mas Deus é tão bom e rico de misericórdia, quer tanto o nosso bem e a nossa vida e salvação, que sempre que nos arrependemos, convertemos e voltamos para Ele, o que Ele tem para nos oferecer é uma palavra de perdão, o abraço de Pai feliz pelo regresso dos filhos e filhas, a força transformadora da sua graça. Mesmo sabendo que, mais dia, menos dia, voltaremos a cair e a afastar-nos d’Ele a pensar que os nossos caminhos são melhores e mais felizes. Não faz mal, se voltarmos e quando voltarmos, Ele acolher-nos-á da mesma maneira, com a mesma alegria e felicidade pelo nosso regresso.
Como nos dizia a segunda leitura e também a passagem do Evangelho, foi para isso que Ele enviou ao mundo o seu Filho Unigénito: não para nos condenar, mas para nos salvar.
O problema é que Deus pede-nos para fazermos o mesmo na nossa vida e relações de todos os dias. por isso, é tão importante este tesouro que hoje vamos buscar à Arca da Aliança: o tesouro do perdão. Do perdão que recebemos de Deus, mas também do perdão que temos de oferecer e receber dos outros, dos irmãos e irmãs.
E nós sabemos como esse é um caminho difícil. Tão difícil que um dos sete pedidos que fazemos no Pai-nosso diz precisamente respeito ao perdão: Perdoai-nos assim como nós perdoamos. Para que rezando todos os dias e várias vezes ao dia essa oração cresçamos nessa capacidade de perdoar.
Como o povo de Israel e também sem ser castigo de Deus, mas antes fruto das opções e desequilíbrios que também nós provocamos, estamos a viver uma espécie de exílio com esta pandemia e confinamento.
Estarmos juntos, assim por tanto tempo, fechados em casa, em regime de confinamento, é um teste de resistência e de resiliência. Mas deve ser, ainda mais, uma oportunidade para encontrar, trabalhar e praticar esse tesouro do perdão.
Podia ser um belo desafio e uma boa conversão, em tempo de confinamento: os casais e pais entre si, os pais e os filhos, não perderem a graça deste tempo: partilhemos as nossas aventuras e desventuras; purifiquemos a memória das nossas falhas e recomeços; limpemos do coração velhas mágoas e ressentimentos; lembremo-nos das nossas faltas e perdoemo-nos uns aos outros, de todo o coração. Tendo presente duas coisas: “O perdão é necessário para permanecer apaixonado, para permanecer cristão”, como disse o papa no Iraque; “O perdão não implica esquecimento”. Perdoar não é esquecer. “Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo vicioso, travam o avanço das forças da destruição, como escreve também o papa na Fratelli Tutti. Ou como disse p residente dos Estados Unidos na sua tomada de posse: para sarar, para curar é preciso lembrar. Não como quem está a atirar à cara do outro esta ou aquela verdade, mas como quem dá as mãos para continuar a caminhar e crescer juntos. Se é verdade que Deus escreve direito por linhas tortas, e é, desde que nós saibamos ler e acolher a graça que Ele nos dá, então, este é um tempo em família para ler, à luz da Cruz, o que Deus escreveu na nossa vida pessoal e familiar. O Seu perdão oferece-nos sempre oportunidades de voltar e de recomeçar.
Ainda ‘exilados’ em nossas casas, e a maior parte ainda privados da celebração presencial da Eucaristia, deixemos que o nosso coração seja cheio e habitado pela oração, o arrependimento, o perdão; e façamos da família uma Igreja doméstica, onde a fé se transmite, porque se reza e escuta a Palavra, porque se pratica a verdade, porque se faz memória da bondade de Deus, na vida de cada um, oferecendo aos outros o perdão que se recebe de Deus.
Vamos então à Arca da Aliança e reencontremos o precioso e belo tesouro do perdão. Como cantava o salmista: apegue-se-me a língua ao paladar, que a minha língua perca todo o sabor se eu me esquecer deste dom que vem de Deus.


Homilia (07-03-2021)

III DOMINGO DA QUARESMA/B

A Quaresma, como sabemos e nos é recordado, cada ano e muitas vezes, é um tempo de conversão, de mudança de mentalidade, de modo de ver e de fazer. É um tempo de purificação, se pensarmos neste gesto de Jesus que acabamos de ouvir da expulsão dos vendilhões e que significa a purificação do Templo.
E aquilo que precisamos de converter e purificar, antes de mais, é a imagem que temos ou fazemos de Deus, deixando-nos confrontar pela Palavra de Deus, ouvindo com ouvidos de ouvir a Palavra de Deus. As três leituras de hoje oferecem-nos precisamente essa oportunidade.
Como diz várias vezes o papa Francisco, não basta crer, acreditar, é preciso darmo-nos conta em quem acreditamos, sabermos o que estamos a dizer quando dizemos ‘Deus’. Escreve o papa na Fratelli Tutti comentando a parábola do bom samaritano: “As pessoas que passaram ao lado eram pessoas religiosas, um sacerdote e um levita. Isto é uma forte chamada de atenção: indica que o facto de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus.” Os fanatismos – não os dos outros, os nossos –, as intolerâncias – não as dos outros, as nossas –, as superstições mais estranhas – não as dos outros, as nossas – e as instrumentalizações justificadas pela religião nascem da nossa incapacidade ou recusa de deixar que a própria Palavra de Deus nos ponha em crise, isto é, nos abane nas nossas falsas seguranças ou falsas ideias de Deus. Ao fazermos assim, continuamos tranquilamente como os vendilhões no Templo, a julgar que está tudo bem, quando, afinal, está tudo mal. Só se nos deixarmos confrontar por Jesus, pela Palavra de Deus, é que a nossa fé e a nossa prática será purificada.
Comecemos pela primeira leitura: “Naqueles dias, Deus pronunciou todas estas palavras…” Parece que a tradição hebraica nunca fala de ‘dez mandamentos’, mas de ‘dez palavras’. Porquê? Porque não se trata de um código fechado e estrito, de um conjunto de normas jurídicas para cumprir cheios de medo. As ‘dez palavras’ são uma revelação, são abertas, são um dom que nos revelam Deus e nos revelam o caminho da vida feliz e abundante. Por isso, estas ‘dez palavras’ são o centro da revelação e da aliança. E por isso, elas estavam guardadas na arca da aliança como sinal da presença forte, amorosa e libertadora de Deus no meio do seu povo, no meio de nós. As ‘dez palavras’ são o estatuto dos homens e mulheres livres. Infelizmente, não é assim, creio eu, que acolhemos os mandamentos.
Quais são então os grandes princípios da pedagogia de Deus, do esforço que Deus faz para nos convencer e guiar pelo caminho da autêntica liberdade? Apresento alguns deles:
Deus educa o seu Povo, amando-o (Ex 20,2). Deus nunca nos pede nada, sem que primeiro nos dê tudo. Aprendamos da pedagogia divina isto mesmo: educar é um ato de amor. É a experiência do amor e não do medo que dá autoridade verdadeira ao educador.
Deus educa dialogando e não «mandando» (Ex 20,1; Ex 34,28; Dt 4,13; 10,4). Como disse, a Escritura fala em «dez palavras» e não em “dez mandamentos”. Aprendamos da pedagogia divina este diálogo educativo.
Deus educa o seu Povo na liberdade e para a liberdade. Primeiro, está a relação de amor com Deus e só depois o cumprimento da lei. Também nós devemos educar sempre na liberdade e para a liberdade.
Deus educa-nos, como povo, chamado a viver em aliança. Educa-nos através da transmissão da fé e da cultura em família e na comunidade. Mas hoje vivemos num contexto de emergência educativa, porque se abriu uma ruptura entre família, sociedade e escola. Precisamos de um pacto educativo global para e com as novas gerações, que empenhe as famílias, as comunidades, as escolas e universidades, as instituições, as religiões, os governantes, a humanidade inteira na formação de pessoas adultas e maduras. Para educar alguém, como diz o provérbio africano, é mesmo preciso uma «aldeia inteira», uma comunidade unida e a trabalhar em comum.
O projecto Natanael, um dos projectos da nossa paróquia de que se falou hoje no programa ‘Paróquia FM’, na Rádio Voz de Esmoriz, também quer fazer algumas propostas neste sentido. Tínhamos mesmo agendado para o passado mês de Janeiro um encontro com os professores das escolas da nossa freguesia para conversarmos juntos. Infelizmente, a pandemia não nos deixou avançar. Vamos ver quando é possível. Está só adiado. Também digo que um dos membros que compõem o nosso Conselho Paroquial de Pastoral é uma professora da nossa Escola Secundária. Para trazer a escola até nós e para nos ajudar a chegar à escola. Há muito diálogo e caminho que devemos fazer em conjunto.
Hoje, tirámos da arca da aliança o tesouro da educação. O que somos também o devemos muito a quem nos ensinou e fez crescer, humanamente e cristãmente. Aprendamos a cuidar deste tesouro e nunca deixemos de estar gratos. A Deus e aos outros.


Homilia (28-02-2021)

II DOMINGO DA QUARESMA/B

Abraão, reconhecido e venerado também pelos judeus e pelos muçulmanos, tornou-se pai de uma multidão de crentes, pai de uma descendência incontável, de que todos fazemos parte; de que faz parte Jesus Cristo, que é novo Abraão, fiel até ao fim à vontade do Pai, o novo Isaac que Se oferece no altar da Cruz, para nos salvar.
Cristo, como todos e cada um de nós, tem uma ascendência, insere-se numa história, a história do seu povo, a história da sua família.
Isto e a promessa da descendência feita a Abraão, na qual são abençoadas todas as nações da Terra, permite-nos lançar hoje um olhar sobre os nossos ascendentes, sobre os nossos maiores, sobre as nossas raízes familiares e sobre os que nos precederam na fé e nos transmitiram e testemunharam fielmente essa fé. Sem eles, não seríamos o que somos, nem sequer existiríamos.
Podíamos começar por abandonar aquele preconceito mútuo, aquela estranheza recíproca, que leva os mais velhos a dar como perdidos os mais novos e os mais novos a rotular os mais velhos como um produto fora de prazo de validade. Como nos pede e sugere o papa Francisco, estabeleçamos uma verdadeira aliança entre gerações. “A Igreja – escreve o papa, mas podia dizer-se também do nosso mundo e da nossa família – é uma canoa, na qual os idosos ajudam a manter a rota, interpretando a posição das estrelas, e os jovens remam com força, imaginando o que os espera mais além” (CV,201). É importante, pois, que os avós se encontrem com os netos e que os netos se encontrem com os avós, porque os avós diante dos netos sonharão, e os jovens, guiados pela sabedoria dos avós, seguirão em frente e profetizarão.
Numa outra passagem da belíssima Exortação Cristo Vive, escrita aos jovens e a todo o povo de Deus, o papa Francisco cita estas palavras de uma mulher, órfã de pai desde recém-nascida, que foi mãe, apesar de a relação não ter durado, e agora é avó: «Aquilo que eu sei é que Deus criou histórias. Na sua genialidade ena sua misericórdia, Ele toma os nossos triunfos e fracassos e tece belas tapeçarias, cheias de ironia. O avesso do pano pode parecer desordenado, com os seus fios ensarilhados – os acontecimentos da nossa vida – e talvez seja esse lado que nos deixa obcecados quando temos dúvidas. No entanto, o lado bom da tapeçaria mostra uma história magnífica, e esse é o lado que Deus vê.» (CV, 198)
Nesta segunda semana da Quaresma, vamos à arca da aliança descobrir e valorizar o tesouro das nossas raízes, das nossas histórias.
Aos mais novos, sugiro, seguindo a proposta de um padre amigo: acolhei a palavra sábia dos idosos e as suas histórias, porque a vida não começou em vós, mas chegou-vos através deles; e aprendei a cuidar deles com amor e generosidade.
Aos mais velhos, sugiro também: contai aos vossos netos e bisnetos as vossas histórias de vida, as alegrias e dificuldades do casamento, os sacrifícios que suportastes, para que percam o medo de se entregarem, de se casarem em Cristo, e desafiem o futuro com a coragem da esperança. Dizei-lhes como superastes, com a ajuda de Deus, as diversas provações da vida e da fé, para que sintam cada vez mais sede de Deus. Rezai com eles, ensinai-os a rezar e rezai por eles. Os bons frutos que sonhais ver nos mais novos dependem das boas raízes, que sois vós, os mais velhos. Procurai gerar, pelo testemunho da vossa fé provada, uma incontável descendência espiritual. Todos juntos na Arca da Aliança.


Homilia (21-02-2021)

I DOMINGO DA QUARESMA/B

Escreve o papa Francisco nesse grande documento que é a Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum:
«Se, pelo simples facto de serem humanas, as pessoas se sentem movidas a cuidar do ambiente de que fazem parte, “os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio da criação e os seus deveres para com a natureza e o Criador fazem parte de sua fé”. Por isso é bom para a humanidade e para o mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções.» (64)
Bem vistas as coisas, a aliança com Noé e a sua descendência ajuda-nos a tomar consciência do valor que o mundo, a nossa Casa Comum, tem aos olhos de Deus. A aliança com Noé mostra-nos como tudo está interligado: o cuidado dos irmãos, o cuidado da família e o cuidado da Terra, nossa Casa Comum (cf. LS 70). A própria narração de São Marcos das ‘tentações’ de Jesus (na verdade, Marcos apenas nos diz que Jesus era tentado) nos falava dessa harmonia de todos os seres, ao dizer-nos que Ele vivia com os animais selvagens, como se fosse no princípio, no jardim do Paraíso, ou na profecia de Isaías, ou na arca de Noé. Jesus vem refazer a eterna Aliança de amor e de salvação de Deus com a sua Criação.
Mas não esqueçamos: é a partir da nossa casa familiar que aprendemos a cuidar da Casa Comum. É também o papa Francisco que escreve: “Na família, cultivam-se os primeiros hábitos de amor e cuidado da vida, como, por exemplo, o uso correto das coisas, a ordem e a limpeza, o respeito pelo ecossistema local e a proteção de todas as criaturas” (LS 213).
E ele próprio acrescenta bons exemplos de para concretizar esse cuidado:
“Evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias” (LS 211).
Tudo isto pode fazer parte de um programa de “jejum e abstinência”, de poupança e moderação, nos consumos de comida, água, luz, em tempo de quarentena. Não precisamos de perder tempo à procura de coisas para fazer. Basta que escolhamos alguma destas propostas e as ponhamos em prática.
Durante esta semana, procuremos valorizar este tesouro da nossa Casa Comum que nos foi confiado por Deus e rezemos em família: “Senhor, ensinai-nos a guardar com amor este tesouro da nossa Casa Comum. Fazei de nós um arco-íris de harmonia e de paz, entre nós e entre todas as criaturas. Ele será o sinal promissor da vossa eterna aliança”!


 Homilia (17-01-2021)

II DOMINGO COMUM

Na liturgia deste segundo Domingo do Tempo Comum, sobressai a questão da vocação, do chamamento: de Samuel, na primeira leitura; e dos primeiros discípulos de Jesus, na versão do evangelho segundo São João. Um dos aspectos comuns é a necessidade de mediadores: o sumo-sacerdote Eli, que ajuda o pequeno Samuel a perceber a voz de Deus; e João Baptista que reconhece e indica aos seus discípulos o Cordeiro de Deus, Jesus, para eles O poderem seguir.
É uma dimensão importante da nossa fé: todos somos chamados e todos somos mediadores; todos precisamos de mostrar aos outros Jesus e o seu Evangelho, através da nossa alegria e testemunho, e todos precisamos que os outros nos ajudem a descobrir e seguir Jesus, através da sua vida e compromisso.
Mas hoje eu queria sublinhar sobretudo a questão do chamamento. A que é que nós, baptizados, cristãos, discípulos de Jesus, neste século XXI e neste tempo de pandemia que estamos a viver, somos chamados?
De facto, a atitude do crente é estar continuamente aberto ao chamamento do Senhor e perceber, em cada tempo e em cada circunstância, a missão que nos é pedida.
Tendo em conta os apelos do papa Francisco, creio que somos chamados a duas coisas:
Em primeiro lugar, a tecer redes de solidariedade, de fraternidade. A pandemia, como repete o papa, fez-nos descobrir que estamos todos no mesmo barco, no sentido de estarmos todos na mesma situação; e que não conseguiremos responder e ultrapassar bem este enorme problema a não ser dando as mãos, deitando abaixo os muros que dividem, encontrando caminhos de solução para a solidão, a indiferença, a fome a falta de trabalho. Este é um tempo favorável e oportuno para sentirmos que precisamos uns dos outros, que somos responsáveis uns pelos outros e por este mundo que Deus criou para nós e que Ele tanto ama, e que nós devemos ser capazes de transformar na Casa Comum de todos e para todos.
Em segundo lugar, somos chamados à conversão ecológica. A crise que vivemos fez-nos tomar consciência de que aquilo que nos afecta a nós afecta a todos, por mais longe que estejam. Por isso, e esse podia ser um dos frutos destes tempos de pandemia, somos chamados também a mudar os nossos hábitos de consumo e a apostar naquilo que conduza à sustentabilidade de toda a vida, da vida de todos e da vida do planeta, criando uma unidade de destino com a nossa irmã Terra, como disse São Francisco de Assis e o papa Francisco repete. A nossa vida está unida à da Terra, o nosso destino está unido ao destino da Terra. Não podemos comportar-nos como depredadores dos bens da criação que nos foram confiados pelo Pai Criador.
Não deixemos que a nossa vocação cristã, a nossa fé, caia num espiritualismo estéril e desincarnado, mas procuremos retirar as consequências concretas que decorrem da nossa fé e viver o mais de acordo com elas, cada dia e todos os dias.
Eu venho, Senhor, para fazer a vossa vontade. Ámen.


Homilia (03-01-2021)

EPIFANIA

A celebração do Natal, do nascimento de Jesus, o Filho de Deus nosso Salvador, como aconteceu com os pastores primeiro e agora com os magos, deve provocar sempre em nós uma conversão, uma mudança. Para que o Natal ou o Presépio não seja meramente decorativo, exterior e ritual, temos de estar sempre dispostos a seguir por outro caminho, para levar a todos o mesmo presente que recebemos: Jesus Cristo, fonte de alegria, de comunhão, de paz, de fraternidade, de gratuidade.
Como disse o papa Francisco na homilia deste dia, no ano passado, temos de adorar verdadeiramente, de passar da falsa adoração de Herodes e outros, à adoração verdadeira dos magos, e que é a capacidade de pôr Deus no centro para deixarmos de estar centrados em nós mesmos. Este descentramento de nós para nos centrarmos em Cristo e no seu Evangelho não é fácil. Cada um de nós fará a sua reflexão.
Eu proponho uma carta dirigida aos reis magos:
Queridos reis magos:
Este ano quero pedir-vos para não trazerdes nada para mim. Todos os anos me ponho a pensar, uma e outra vez, naquilo que quero, inventando novas necessidades e multiplicando os meus caprichos para aproveitar esta espécie de obrigação que temos de dar e receber coisas. Mas este ano vou pedir-vos que me descentreis de mim mesmo, que me ajudeis a sair deste egoísmo que me envolve, para escutar apenas e estar atento ao que se passa à minha volta. Este ano podíeis trocar o ouro, o incenso e a mirra por outras coisas mais urgentes, por exemplo:
Trazei trabalho para os que não o têm e tirai trabalho àqueles que trabalham tanto que nem tempo têm para a família e para Deus.
Trazei sensibilidade de coração para adivinharmos aquilo de que precisa a pessoa que está ao nosso lado.
Trazei paz, para sabermos ultrapassar os pequenos ou grandes conflitos, na família, no trabalho, na paróquia, seja onde for.
Trazei sossego, para não andarmos todos como loucos a correr sem saber atrás de quê.
Trazei equilíbrio, para encontrarmos a maneira mais feliz de viver.
Trazei serenidade, para sabermos aceitar as dificuldades da vida.
Trazei escuta, a capacidade de escutar, para darmos lugar aos outros no nosso coração.
Trazei encontros, para reaprendermos a alegria de estar juntos.
Trazei abraços para os podermos oferecer e receber, porque eles são capazes de curar muitas feridas e distanciamentos.
Trazei belas histórias de amor e de amizade, para não deixarmos que a rotina apague o fogo do nosso entusiasmo.
Trazei austeridade, para aprendermos a viver na liberdade de não termos nem desejarmos tudo e mais alguma coisa, para vivermos com simplicidade.
Trazei paciência, para sabermos respeitar os ritmos da vida sem a apressar, sem a acelerar.
Trazei ressurreição, para nos convencermos ainda mais profundamente de que não há morte que possa vencer-nos.
Trazei ternura, para enchermos o mundo do amor do Presépio e vivermos todos como irmãos e irmãs.
Trazei a alegria das festas, para vivermos a apaixonante aventura da vida com entusiasmo e bom humor.
Trazei intimidade, para cuidarmos dos momentos especiais com Deus e com os irmãos, a começar na Eucaristia e na oração, no diálogo em família.
E trazei-nos Deus, melhor, pensando bem, afinal, não tragais nada do que pedi antes, trazei-nos apenas esse Deus que encontrastes em Belém, guiados pela Estrela, porque, com Ele na nossa vida conseguiremos tudo o que pedimos.

(Traduzida e adaptada de Cáritas Española)


Homilia (25-12-2020)

NATAL/B - Vigília

Em Abril passado tivemos a Páscoa em pandemia e ficámos impossibilitados de celebrar em comunidade a festa maior da nossa Fé. Agora, este é também e ainda o Natal ainda da pandemia, apesar de felizmente já podermos reunir-nos para celebrar o mistério do nascimento do nosso Salvador, pesem embora as restrições.
E nós precisamos, mais do que nunca, de celebrar o Natal, no meio destas trevas: do isolamento, da distância física, das máscaras e sei lá mais o quê que provoca tristeza, solidão, desânimo e angústia em tantos e em tantas situações.
Mas continua a ser Natal! Como nos fazia cantar o cântico de entrada: Ergue os teus olhos, a luz surgiu. Hoje nasceu o nosso Deus. Dias de paz amanheceram, hoje nasceu o nosso Deus.
Será que acreditamos que Deus é capaz de fazer deste Natal tão diferente um Natal ainda mais luminoso?
Deus é o mesmo. O Menino é o mesmo. A luz tem a mesma intensidade. A Palavra tem o mesmo poder. Não fechemos os nossos olhos, nem os nossos ouvidos, nem os nossos corações, e acolhamos maravilhados o Menino de Belém que hoje renasce em nós e na nossa paróquia: ‘O presépio somos nós; é dentro de nós que Jesus nasce. Cada homem é o presépio onde Deus nasce.’
Como é que isso acontece? Praticando, vivendo cada dia as atitudes que nos fizeram chegar aqui este ano: a Fraternidade, a Amabilidade, a Proximidade, a Solidariedade.
Mas o caminho não acaba em Belém, recomeça em Belém, como nos ensinam os pastores, os magos e todos os que se puseram a caminho para adorar o Deus feito carne, no ventre de Maria, Jesus, nosso Salvador.
E o papa Francisco continua a apontar-nos esse caminho que somos chamados a continuar. Escreve ele na Fratelli Tutti: “Se a música do Evangelho parar de vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a ternura que nasce da confiança… Se a música do Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher.”
Ergue os teus olhos, a luz surgiu. Dias de paz amanheceram, hoje nasceu o nosso Deus.

 


Homilia (20-12-2020)

4º DOMINGO DO ADVENTO/B

Todos irmãos, todos de casa, diz a dinâmica diocesana para este Advento e Natal, assinalada diante de nós pela estrela-coroa do Advento e as velas que iluminam e lembram atitudes: Fraternidade, Amabilidade, Proximidade, Alegria, Solidariedade.
O Senhor anuncia que te vai fazer uma casa, diz Deus através do profeta Natã, exactamente ao contrário do que David pretendia. E também Maria, como imaginamos, foi visitada pelo Anjo em sua casa, para se tornar a primeira casa, a primeira morada do Filho de Deus no meio de nós.
Podemos então dizer que a palavra casa, mas sobretudo o que ela pode significar, é a palavra fundamental para celebrarmos este quarto Domingo do Advento e entrarmos na gruta de Belém, para celebrarmos o Natal de Jesus, nosso Salvador.
A primeira reflexão que devemos fazer é esta: o evangelho apresenta-nos Maria, a mãe do Menino, como a primeira de todas as crentes. Ela, ao escutar a voz do Anjo, apesar de todas as dúvidas, abriu o seu coração e o Senhor fez dela a sua primeira casa. Então, hoje, Maria exorta-nos a acolher o Natal, a deixarmos de nos fechar nas nossas preocupações habituais, comodismos ou individualismos, e fazermos caminho – é isso que chamamos conversão – para habitarmos com toda a alegria na casa que o Senhor construiu para nós, essa casa que assenta no alicerce sólido que é a alegria de nos sabermos filhos e filhas de Deus. Maria, imagem da Igreja, está à nossa frente e perto de nós para aprendermos a dizer com ela e como ela: Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim, segundo a tua palavra.
Deste modo, habitaremos, antes de mais, este mundo que o Senhor criou para nós, e tentaremos fazer dele a Casa Comum de todos os homens e mulheres, a Casa Comum da Fraternidade.
Depois, habitaremos a Igreja, a casa da qual todos somos pedras vivas. A Igreja universal, mas a começar por esta igreja que é a nossa paróquia. Para fazermos dela Casa da Comunhão, do serviço, do trabalho, da partilha…
Se habitarmos assim a Casa que o Senhor construiu para nós, converter-nos-emos nós, pessoalmente mas também como comunidade paroquial, em casa do Senhor, lugar de fraternidade, de amabilidade, de proximidade, de alegria, de solidariedade para todos aqueles com quem partilhamos ou cruzamos a vida.
Como reza o cardeal Tolentino Mendonça: Cada homem é o presépio onde Deus nasce. O presépio somos nós. É dentro de nós que Jesus nasce.
Como Maria e como José, vou abrir a vida e o coração de deixar Jesus nascer dentro de mim, ou como Herodes e os fariseus vou manter o coração fechado – vou manter a fachada, as aparências – e fazer de conta que é Natal?
Maranathá! Vem, Senhor Jesus, desarruma a minha vida e faz a tua casa no meu coração.


Homilia (22-11-2020)

CRISTO-REI/A
Se calhar, não Me expliquei bem, ou então não entendestes…

No número 57 da Fratelli Tuti, Todos Irmãos, o papa Francisco, depois de lembrar aquela pergunta terrível e incómoda de Deus a Caim: "Onde está Abel, teu irmão?", escreve: «A resposta é a mesma que costumamos dar: "Por acaso sou eu o guarda do meu irmão?". Com sua pergunta, Deus questiona qualquer tipo de determinismo ou fatalismo que pretenda justificar a indiferença como a única resposta possível. Pelo contrário, permite-nos criar uma cultura diferente, que nos orienta para ultrapassar inimizades e cuidar uns dos outros.»
É precisamente isto, digo eu agora, que está em causa na festa de hoje, marcada, todos os anos, pela escuta da passagem do Juízo final, em São Mateus.
Seguindo de perto as palavras de um comentador (Alessandro Pronzato), imaginemos Jesus aqui e agora a dizer-nos, com uma pontinha de ironia:
Se calhar não me expliquei bem, ou então não me entendestes.
Não percais tempo a imaginar o que acontecerá naquele dia fatídico. Preferia que vos concentrásseis neste dia que tendes a graça de viver. Não no futuro, mas no presente. É hoje que tenho fome, que estou sem trabalho, que estou doente e sozinho, e deprimido por toda esta situação que estamos a viver. Depois, Já não podereis dar-me nada. Já não haverá nada para fazer. Naquele dia, já estará tudo decidido.
Se calhar não me expliquei bem, ou então não me entendestes.
O julgamento não vai ser feito no céu, entre as nuvens, rodeado de anjinhos. O julgamento será na terra. Cada dia é o juízo final. O julgamento não virá depois de fechardes os olhos. Será enquanto tendes os olhos bem abertos. Mais, o imperdoável será mesmo o não terdes aberto os olhos e o coração e as mãos de para em par. Depois de fechardes os olhos, já será tarde demais para o julgamento.
Se calhar não m expliquei bem, ou então não entendestes.
Ao dar-vos todas estas pistas eu pensava que estava a facilitar-vos as coisas e a tirar-vos o medo do julgamento final. Afinal, é tão fácil passar no exame, basta pôr em prática estas coisas. Mas, se calhar não me expliquei bem, ou vós não entendestes. Dou-me conta de que continuais a caminhar para a salvação com o passo pesado dos condenados.
Se calhar não me expliquei bem, Ou então, vós não percebestes que Eu, vosso rei e juiz, vos abria todas as portas, vos mostrava todos os caminhos, vos oferecia todas as possibilidades…
No fim, mas sobretudo agora, cada dia, a pergunta é sempre a mesma: que fizeste a esse irmão que encontraste a sofrer no teu caminho?


Homilia (8-11-2020)

32º DOMINGO COMUM/A (1ª parte)
“A MISSA É O CÉU NA TERRA!”

Volto à pergunta que fiz logo ao iniciarmos esta celebração: Será que acreditamos mesmo que a Eucaristia, cada Domingo, é esse banquete nupcial que Deus prepara para nós? Quem de nós pensa na vida cristã como participação feliz na boda que o próprio Cristo nos oferece? E quem de nós vive e testemunha a Eucaristia como o banquete que é sinal e antecipação do banquete eterno no Céu? Um antigo pastor calvinista que se converteu à fé católica por causa da sua experiência e descoberta do dom precioso da Eucaristia escreveu estas palavras: “De todas as coisas católicas, não há nada tão familiar quanto a Missa. Com as suas orações, hinos e gestos sempiternos, a Missa é como um lar para nós. No entanto, a maioria dos católicos pode passar a vida inteira sem ver nada além da superfície de preces memorizadas. Poucos vão vislumbrar o poderoso drama sobrenatural do qual participam todos os domingos. O Papa João Paulo II chamou à Missa o “céu na terra”, explicando que a liturgia que celebramos na terra é uma misteriosa participação na liturgia celeste” (Scott Hahn, O Banquete do Cordeiro, 17).
O problema é que nós temos um dom preciosíssimo – a Eucaristia – que nos é dado, mas como não sabemos lidar com ele, como temos dificuldade em aceitá-lo e acolhê-lo na sua simplicidade, na sua ‘nudez’, celebramos mal e acabamos a acrescentar coisas e mais coisas, ruído e mais ruído nosso à Eucaristia. E também por isso, ela não nos transforma nem converte nem muda. Mas é esse o objetivo de Jesus: fazer-nos ver que é uma insensatez continuar a escutar o Evangelho sem fazer esforço para o converter em vida; é uma insensatez dizer que somos cristãos e viver uma vida apagada, vazia do seu espírito e da sua verdade; é uma insensatez esperar Jesus com as lâmpadas apagadas.


 

 Homilia (01-11-2020)

TODOS SANTOS/TODOS FIÉIS DEFUNTOS

Creio que a melhor maneira de vivermos estes dias – Todos os Santos e Todos os Fiéis Defuntos – é ‘entrar na dança de Deus’. Quero dizer, é deixar-se envolver pela música do amor de Deus que nos chega pela sua Palavra, pelas orações da Igreja, pela Esperança que alarga o coração. Todos os Santos são fiéis e todos os fiéis são chamados à santidade. Está – sempre – do nosso lado confiar no Amor.

Escreveu Isaac da Estrela (século XII): “Acreditemos na Verdade que nos indica o Caminho para a Vida. É árduo, mas curto; a Bem-aventurança, essa, é eterna”.

Acreditemos, então: nós e os nossos irmãos e irmãs que já partiram fazemos parte daquela incontável multidão que caminha, com a veste nupcial e as palmas da alegria, para plenitude da comunhão e da vida, a plenitude do amor, a felicidade eterna.

Rezemos com esta confiança: já somos filhos e filhas de Deus; o Amor e a Vida já enchem o nosso coração e os nossos dias.


Homilia (18-10-2020)

DAR A DEUS O QUE LHE PERTENCE

“A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Poucas palavras de Jesus terão sido tão citadas como estas, mas também nenhumas outras foram e são tão mal entendidas e distorcidas por interesses completamente alheios a Jesus e ao seu Evangelho, ao anúncio do seu Reino que Ele veio trazer. Importa por isso tentar compreender bem as palavras de Jesus.
Antes de mais, vale a pena reparar como o acento das palavras de Jesus está na parte final. Perguntam a Jesus sobre o problema dos tributos a César, mas o que Jesus quer, mesmo sem eles perguntarem, é ensinar-nos sobre o lugar de Deus na nossa vida e na vida do mundo.
A imagem da moeda pertence a César, então há que aceitar as consequências disso. Mas muito mais importante é não nos esquecermos que trazemos em nós mesmos a imagem de Deus – somos feitos à sua imagem e semelhança – e portanto é a Deus e só a Ele que pertencemos. Nós, e todos os homens e mulheres, como não se cansa de repetir o papa Francisco na sua nova encíclica.
O que está em causa para nós então é sabermos o que é de César e o que é de Deus. A César pertence apenas e só aquela moeda. A Deus pertencem todos os homens e mulheres, sobretudo os pobres e todos os que sofrem, os refugiados sem eira nem beira recusados em toda a parte, os que são vítimas de guerras, injustiças e perseguições. Porque neles está gravada a imagem divina, que não pode ser desfigurada nem ofendida, seja em que circunstância for. A Deus pertence também toda a criação que nos foi confiada. Também ela não pode ser maltratada nem explorada nem esgotada em nome de interesses egoístas que só pensam no lucro, mas transformada na casa comum da fraternidade e da amizade social.
Dar a Deus o que é de Deus significa reconhecer que não somos donos de nós mesmos nem dos outros nem da criação. Somos sempre devedores: recebemos muito, recebemos tudo, e devemos devolvê-lo multiplicado pelo nosso trabalho em favor do Reino.
A mensagem de Jesus é esta: se entramos no Reino, se somos baptizados, se somos cristãos, não podemos consentir que nenhum César sacrifique o que só pertence a Deus, mas temos de lutar e ser profetas de um mundo novo.
Cada um de nós, cada homem e cada mulher, é chamado a passar por este mundo como uma moeda preciosa de ouro que traz em si a inscrição e a imagem divina. É essa a nossa missão.


Homilia (04-10-2020)

SOMOS A VINHA E OS TRABALHADORES

Este Domingo, ouvimos aquela que é certamente a parábola mais dura contada por Jesus. Uma parábola que, por um lado, faz uma síntese da história do povo de Israel e das suas relações muitas vezes complicadas com Deus: um Deus extremamente cuidadoso que oferecia o melhor, mas que, como resposta, só recebia agraços. E uma parábola que, por outro lado, já anuncia a morte de Cristo. É Ele o filho enviado e que é morto pelos vinhateiros.
A parábola é tão dura que nos custa pensar que se dirige, hoje, a nós. Mas dirige. É hoje e agora a nós que Jesus está a falar. Por isso, pelo menos, não façamos ouvidos de mercador pensando que ela é para os outros. Não é. É para nós, para cada um de nós. É a cada um de nós, pessoalmente, mas também à paróquia que somos – e que é a vinha onde somos trabalhadores – que Jesus pergunta pelos frutos que produzimos ou não produzimos e que, como vimos no Domingo passado, têm de ir muito mais além das boas e piedosas intenções. Por isso, a questão é sempre a maneira como escutamos – como nos deixamos incomodar, para usar a expressão do papa Francisco – pela Palavra que ouvimos.
Pode ajudar-nos a perceber o que é essa escuta o santo que a Igreja celebra hoje: São Francisco de Assis.
Percebendo isto, Francisco, um dia, já depois d ter ouvido o apelo do Crucifixo, em São Damião, diante do Pai, despiu as vestes ricas, ficou nu, e revestiu-se de serapilheira. Quer dizer, mudou a sua vida, o seu caminho para escolher o caminho de Cristo, o caminho do Evangelho.
Tinha percebido que se tratava de dar uma nova dinâmica à Igreja, de a tornar mais fiel ao Evangelho, para ela ser capaz de anunciar o rosto misericordioso de Deus que ama a todos e de todos cuida com infinita ternura. Que se tratava de produzir frutos de Evangelho: fraternidade, perdão, justiça, liberdade, partilha, serviço aos pobres… São estes frutos que Jesus nos pede na parábola de hoje, lembrando-nos que não basta estar na vinha, ser baptizado, fazer as comunhões, vir à missa, casar na igreja, ser padre, ser catequista, acólito, cantor…; não basta fazer grandes declarações de amor. Não somos fiéis quando estamos dentro, somos fiéis quando produzimos frutos.
E eu, o que é que vou mudar para ser a vinha cuidada pelo Senhor para produzir bons e saborosos frutos? Para ser um trabalhador feliz e generoso nesta vinha que é a nossa paróquia?


Homilia (13-09-2020)

O 'tema' do perdão é fundamental para os discípulos de Cristo, mas também é certamente dos mais difíceis de praticar... O Domingo passado 'não nos deixou sossegados'...
(a partir das minhas leituras:)

“Como leitor assíduo das Sagradas Escrituras frequento o hebraico antigo das primeiras histórias, dos profetas e dos salmos recolhidos no Antigo Testamento. Este uso quotidiano não fez de mim um crente. A experiência de leitor acampado fora dos muros da cidade decorre, para mim, de dois obstáculos.
O primeiro é a oração, este poder e possibilidade de o crente se dirigir, chamar ‘tu’ a Deus.
O outro obstáculo é o perdão. Não sei perdoar e não posso admitir ser perdoado”.
São palavras de um não crente, Erri de Luca, como ele mesmo diz, apesar de escrever magnificamente sobre textos da Bíblia que ele lê, religiosamente, para começar o dia.
Lembrei-me destas palavras por causa desta proposta inconcebível e inimaginável de Jesus de perdoar setenta vezes sete, isto é, perdoar sempre, tudo e em todas as circunstâncias independentemente da gravidade das ofensas. Convenhamos que não é nada fácil. Eu digo que é mesmo impossível, se não for a graça de Deus a agir em nós. Sim, o perdão é um dom de Deus e da força do Espírito Santo que nos foi dado.
A verdade é esta: se queremos ser discípulos de Jesus, se queremos ser cristãos, temos de estar disponíveis, temos de trazer no coração esse desejo de perdoar sempre.
Eu perdoo, mas não esqueço, dizemos ou ouvimos dizer muitas vezes. E é verdade. O perdão de que nos fala de Jesus não é esquecimento. Aliás, seria impossível esquecer as ofensas graves que sofremos ou fazemos. O perdão de que nos fala Jesus é outra coisa: é uma opção, é um modo de estar na vida, é uma maneira de reagir ao mal. Perdoar é acreditar que o perdão não é um peso, mas uma libertação; é acreditar que o perdão não é uma humilhação, mas uma magnífica possibilidade; é acreditar que o perdão não nos encerra no passado, mas nos abre o futuro; é acreditar que o perdão não é uma obrigação, mas um gesto completamente gratuito, louco mesmo, fora de todas as regras. Porque o perdão é a oportunidade de mudar as regras do jogo, desse estúpido pingue-pongue em que a bola envenenada da ofensa e da violência é devolvida ao adversário com uma força aumentada pelo ódio, pela vingança, pelo rancor, pelo ressentimento.
O perdão é a possibilidade de fazer acontecer no mundo – nas nossas relações de todos os dias – algo de novo e nunca visto. O perdão é por isso um acto criativo, surpreendente, que põe fim à cadeia interminável do mal. O perdão não é a indiferença ou impotência dos fracos, é a fé, a grandeza e a escolha dos fortes, dos que se deixam fortalecer pela graça do perdão recebido do próprio Deus.
Será que consigo acreditar que é ao ofendido que o perdão faz mais bem, pois liberta-o do mal e faz crescer a sua dignidade, nobreza e humanidade, dando-lhe forças para recriar a sua vida?
Mas então, não podemos reagir e zangar-nos diante das ofensas? Não só podemos como devemos. É importante sabermos que perdoar não significa reprimir ou não sentir cólera e zanga. A cólera, a zanga fazem parte e são uma reacção saudável e libertadora diante da ofensa, da agressão ou da injustiça sofrida. Até alguns salmos nos testemunham isso. Não podemos é confundir essa reacção ou deixar que essa reacção primeira se transforme em vingança, em ódio ou ressentimento. Esses são sentimentos que nos destroem a nós mesmos.
Não é nada fácil escutar este convite de Jesus ao perdão, nem retirar todas as implicações que pode ter o aceitar que uma pessoa é mais humana quando perdoa e não quando se vinga. Mas não temos outro caminho.
“Queres ser feliz um momento? Vinga-te. Queres ser feliz sempre? perdoa.”
Senhor, faz-me acreditar na tua Palavra e ‘perdoa-nos assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido’. Ámen.