Tempo da Criação
VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A PORTUGAL
POR OCASIÃO DA
XXXVII JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
[2 - 6 DE AGOSTO DE 2023]
ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, COM A SOCIEDADE CIVIL E COM O CORPO DIPLOMÁTICO
DISCURSO DO SANTO PADRE
Centro Cultural de Belém, Lisboa
Quarta-feira, 2 de agosto de 2023
Senhor Presidente da República,
Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro,
Distintos membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Ilustres Autoridades, representantes da sociedade civil e do mundo da cultura,
Senhoras e Senhores!
Saúdo-vos cordialmente e agradeço ao Senhor Presidente o acolhimento e as amáveis palavras que me dirigiu. O Senhor Presidente sabe acolher bem. Obrigado! Estou feliz por estar em Lisboa, cidade do encontro que abraça vários povos e culturas e que, nestes dias, se mostra ainda mais universal; torna-se, de certo modo, a capital do mundo, a capital do futuro, porque os jovens são o futuro. Isto condiz bem com o seu caráter multiétnico e multicultural (penso, por exemplo, no bairro da Mouraria, onde convivem pessoas provenientes de mais de sessenta países) e revela os traços cosmopolitas de Portugal, que afunda as suas raízes no desejo de se abrir ao mundo e explorá-lo, navegando rumo a novos e amplos horizontes.
Não muito longe daqui, no Cabo da Roca, está gravada a frase dum grande poeta desta cidade: «Aqui... onde a terra se acaba e o mar começa» (L. Vaz de Camões, Os Lusíadas, canto III, 20). Durante séculos, acreditou-se que lá estivessem os confins do mundo. E em certo sentido é verdade, porque este país confina com o oceano, que delimita os continentes. E, do oceano, Lisboa conserva o abraço e o perfume. Faço meu, com muito gosto, aquilo que os portugueses costumam cantar: «Lisboa tem cheiro de flores e de mar» (A. Rodrigues, Cheira bem, cheira a Lisboa, 1972). Muito mais do que um elemento paisagístico, o mar é um apelo que não cessa de ecoar no ânimo de cada português, podendo uma vossa poetisa celebrá-lo como «mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim» (S. de Mello Breyner Andresen, Mar sonoro). À vista do oceano, os portugueses são levados a refletir sobre os imensos espaços da alma e sobre o sentido da vida no mundo. Nesta linha, gostaria também eu de partilhar convosco algumas reflexões, deixando-me levar pela imagem do oceano.
Segundo a mitologia clássica, Oceano é filho do céu (Urano): a sua vastidão leva os mortais a olharem para cima elevando-se para o infinito. Ao mesmo tempo, porém, Oceano é filho da terra (Gea) que abraça, convidando assim a envolver de ternura todo o mundo habitado. Com efeito, o oceano não liga apenas povos e países, mas também terras e continentes; por isso Lisboa, cidade do oceano, lembra a importância do conjunto, a importância de conceber as fronteiras, não como limites que separam, mas como zonas de contacto. As grandes questões hoje, como sabemos, são globais e já muitas vezes tivemos de fazer experiência da ineficácia da nossa resposta às mesmas, precisamente porque o mundo, diante de problemas comuns, se mantém dividido ou pelo menos não suficientemente unido, incapaz de enfrentar juntos aquilo que nos põe em crise a todos. Parece que as injustiças planetárias, as guerras, as crises climáticas e migratórias correm mais rapidamente do que a capacidade e, muitas vezes, a vontade de enfrentar em conjunto tais desafios.
Lisboa pode sugerir uma mudança de ritmo. Em 2007, foi assinado aqui o homónimo Tratado de reforma da União Europeia. Nele se lê que «a União tem por objetivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos» (Tratado de Lisboa que altera o Tratado da União Europeia e o Tratado que institui a Comunidade Europeia, art. 1.4/2.1); mas vai mais longe afirmando que, «nas suas relações com o resto do mundo (...), contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável do planeta, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e equitativo, a erradicação da pobreza e a proteção dos direitos humanos» (art. 1,4/2.5). Não se trata apenas de palavras, mas de marcos miliários no caminho da comunidade europeia, esculpidos na memória desta cidade. Aqui temos o espírito do conjunto, animado pelo sonho europeu dum multilateralismo mais amplo do que o mero contexto ocidental.
Segundo uma etimologia, que é objeto de discussão, o nome Europa derivaria duma palavra que indica a direção do ocidente. O certo é que Lisboa constitui a capital mais ocidental da Europa continental, lembrando a necessidade de abrir caminhos de encontro mais vastos, como aliás Portugal está a fazer sobretudo com os países de outros continentes irmanados pela mesma língua. Espero que a Jornada Mundial da Juventude seja, para o «velho continente» – poderíamos dizer o continente “ancião” –, um impulso de abertura universal, isto é, um impulso que o torne mais jovem. Na verdade, o mundo tem necessidade da Europa, da Europa verdadeira: precisa do seu papel de construtora de pontes e de pacificadora no Leste europeu, no Mediterrâneo, na África e no Médio Oriente. Assim poderá a Europa trazer, para o cenário internacional, a sua originalidade específica; vimo-la delineada no século passado quando, do crisol dos conflitos mundiais, fez saltar a centelha da reconciliação, tornando verdadeiro o sonho de se construir o amanhã juntamente com o inimigo de ontem, o sonho de abrir percursos de diálogo, percursos de inclusão, desenvolvendo uma diplomacia da paz que extinga os conflitos e acalme as tensões, capaz de captar o mais débil sinal de distensão e de o ler por entre as linhas mais distorcidas da realidade.
No oceano da história, estamos a navegar num momento tempestuoso e sente-se a falta de rotas corajosas de paz. Olhando com grande afeto para a Europa, no espírito de diálogo que a carateriza, apetece perguntar-lhe: Para onde navegas, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra na Ucrânia e com tantos conflitos que ensanguentam o mundo? E ainda, alargando o campo: Que rota estás a seguir, Ocidente? A tua tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, sozinha não basta; e muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimento do verdadeiro capital humano que é a educação, a saúde, o estado social. Fica-se preocupado ao ler que, em muitos lugares, se investem continuamente os recursos em armas e não no futuro dos filhos. Isto é verdade. Ainda há alguns dias, dizia-me o ecónomo que o investimento que rende melhor é na fabricação de armas. Investe-se mais em armas do que no futuro de nossos filhos. Sonho uma Europa, coração do Ocidente, que use o seu engenho para apagar focos de guerra e acender luzes de esperança; uma Europa que saiba reencontrar o seu ânimo jovem, sonhando a grandeza do conjunto e indo além das necessidades imediatas; uma Europa que inclua povos e pessoas com a sua própria cultura, sem correr atrás de teorias e colonizações ideológicas. E isto ajudar-nos-á a pensar nos sonhos dos pais fundadores da União Europeia: eles sonhavam em grande!
Com a sua imensa vastidão de água, o oceano recorda as origens da vida. No mundo evoluído de hoje, paradoxalmente, tornou-se prioritário defender a vida humana, posta em risco por derivas utilitaristas que a usam e descartam: a cultura do descarte da vida. Penso em tantas crianças não-nascidas e idosos abandonados a si mesmos, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às nossas portas, no desamparo em que são deixadas muitas famílias com dificuldade para trazer ao mundo e fazer crescer os filhos. Também aqui apetece perguntar: Para onde navegais, Europa e Ocidente, com o descarte dos idosos, os muros de arame farpado, as mortandades no mar e os berços vazios? Para onde navegais? Para onde ides se, perante o tormento de viver, vos limitais a oferecer remédios rápidos e errados como o fácil acesso à morte, solução cómoda que parece doce, mas na realidade é mais amarga que as águas do mar? Penso em tantas leis sofisticadas sobre a eutanásia!
Mas Lisboa, abraçada pelo oceano, oferece-nos motivos para esperar; é cidade da esperança. Há uma maré de jovens que se espraia sobre esta cidade acolhedora. Quero agradecer o grande trabalho e generoso empenho empreendidos por Portugal para acolher um evento tão complexo de gerir, mas fecundo de esperança, pois – como se diz por aqui – «ao lado dos jovens, não se envelhece». Jovens provenientes de todo o mundo que cultivam anseios de unidade, paz e fraternidade, jovens que sonham desafiam-nos a realizar os seus sonhos bons. Não andam pelas ruas a gritar sua raiva, mas a partilhar a esperança do Evangelho, a esperança da vida. E se, em muitos lugares, se respira hoje um clima de protesto e insatisfação, terreno fértil para populismos e conspirações, a Jornada Mundial da Juventude é ocasião para construir juntos. Reaviva o desejo de criar coisas novas, fazer-se ao largo e navegar juntos rumo ao futuro. Vêm à mente algumas palavras ousadas de Fernando Pessoa: «Navegar é preciso; viver não é preciso (...); o que é necessário é criar» (Navegar é preciso). Trabalhemos, pois, com criatividade para construirmos juntos! Imagino três estaleiros de construção da esperança onde podemos trabalhar todos unidos: o ambiente, o futuro, a fraternidade.
O ambiente. Portugal partilha com a Europa muitos esforços exemplares na defesa da criação. Mas o problema global continua extremamente grave: os oceanos aquecem e, das suas profundezas, sobe à superfície a torpeza com que poluímos a nossa casa comum. Estamos a transformar as grandes reservas de vida em lixeiras de plástico. O oceano lembra-nos que a existência humana é chamada a viver de harmonia com um ambiente maior do que nós; este deve ser guardado; deve ser guardado com cuidado, tendo em conta as gerações mais novas. Como podemos dizer que acreditamos nos jovens, se não lhes dermos um espaço sadio para construir o seu futuro?
O futuro é o segundo estaleiro de obras. E o futuro são os jovens. Mas muitos fatores os desanimam, como a falta de trabalho, os ritmos frenéticos em que se veem imersos, o aumento do custo de vida, a dificuldade de encontrar uma casa e, ainda mais preocupante, o medo de constituir família e trazer filhos ao mundo. Na Europa e em geral no Ocidente, assiste-se a uma fase descendente na curva demográfica: o progresso parece ser uma questão que diz respeito ao desenvolvimento técnico e ao conforto dos indivíduos, enquanto o futuro pede para se contrariar a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver. A boa política pode fazer muito neste sentido; pode gerar esperança. Com efeito, não é chamada a conservar o poder, mas a dar às pessoas a possibilidade de esperar. É chamada, hoje mais do que nunca, a corrigir os desequilíbrios económicos dum mercado que produz riquezas mas não as distribui, empobrecendo de recursos e de certezas os ânimos. É chamada a voltar a descobrir-se como geradora de vida e de cuidado da criação, a investir com clarividência no futuro, nas famílias e nos filhos, a promover alianças intergeracionais, onde não se apague o passado mas se favoreçam os laços entre jovens e idosos. É preciso retomar o diálogo ente jovens e idosos. A isto mesmo faz apelo o sentimento da saudade portuguesa, que exprime nostalgia, desejo dum bem ausente, que só renasce em contacto com as próprias raízes. Os jovens devem encontrar as suas próprias raízes nos idosos. Neste sentido, é importante a educação, que não pode limitar-se a fornecer noções técnicas para se progredir economicamente, mas destina-se a introduzir numa história, transmitir uma tradição, valorizar a necessidade religiosa do homem e favorecer a amizade social.
O último estaleiro de esperança é o da fraternidade, que nós, cristãos, aprendemos do Senhor Jesus Cristo. Em muitas partes de Portugal, está ainda muito vivo o sentido de vizinhança e solidariedade. Contudo, no contexto geral duma globalização que nos aproxima mas não nos dá uma proximidade fraterna, somos todos chamados a cultivar o sentido da comunidade, começando por ir ter com quem vive ao nosso lado. Com efeito, como observou Saramago, «o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a busca; e é preciso andar muito, para se alcançar o que está perto» (Todos os nomes, 1997). Como é bom voltar a descobrir-nos irmãos e irmãs, trabalhar pelo bem comum, deixando para trás contrastes e diferenças de perspetiva! Também aqui servem de exemplo os jovens que nos levam, com o seu grito de paz e ânsia de vida, a derrubar as rígidas divisórias de pertença erguidas em nome de opiniões e crenças diversas. Soube de muitos jovens que cultivam, aqui, o desejo de se fazerem próximo dos outros; penso na iniciativa «Missão País», que leva milhares de jovens a viver no espírito do Evangelho experiências de solidariedade missionária em zonas periféricas, sobretudo nas aldeias do interior, indo ao encontro de muitos idosos sozinhos, e isto é uma “unção” para a juventude. Quero agradecer e encorajar a tantos que na sociedade portuguesa se preocupam com os outros, nomeadamente a Igreja, e que fazem tanto bem mesmo longe dos holofotes.
Irmãos e irmãs, sintamo-nos chamados, todos juntos fraternalmente, a dar esperança ao mundo em que vivemos e a este magnífico país. Deus abençoe Portugal!
Tempo da Criação
OPINIÃO
Vai de Férias? Leve Humor!
Artur Ilharco Galvão | 28 Julho 202 3| in Ponto SJ
O remédio para uma mente cansada é o deleite resultante da produção e da prática de ditos e feitos proporcionadores de diversão ou jogos.
A relação do ser humano com o humor é no mínimo ambivalente. Os ditados populares portugueses ecoam bem esta ideia ao ensinarem que “rir é o melhor remédio” e que “muito riso, pouco siso”. Uma ambivalência patente na história da filosofia. Se, por um lado, Aristóteles considerava o ser humano o “único animal que ri”, por outro, alertava para o problema do humor envolver um sentimento de superioridade face à ‘feiura’ (física, moral, social, etc.) do outro. Nesse sentido, o riso seria a expressão do nosso sentimento de superioridade, consoante Thomas Hobbes defenderia séculos mais tarde. Rirmo-nos dos outros e não com os outros, eis a raiz da dificuldade moral do humor.
Uma dificuldade que explica uma certa ausência de estudos filosóficos sistemáticos sobre assunto até ao século XVII. Os filósofos e moralistas tratavam-no com um misto de cuidado e desprezo e, por isso, classicamente, tenderam a predominar apontamentos, mais ou menos soltos, nos quais as reflexões visavam principalmente alertar para os perigos do humor e para as cautelas a empregar no seu uso.
Platão é a este propósito exemplar. O riso, defende, envolve malícia, perca do controle pessoal e decaimento na nossa dimensão inferior. Deve ser evitado, pois há nele algo de animal e hostil. Mostram-se os dentes, lançam-se ruídos perturbadores, o corpo convulsiona-se e quando é violento, o riso causa em nós uma mudança igualmente violenta e capaz de nos afastar da racionalidade e do autoconhecimento. Logo, o humor é um vício. Porém apesar desta conclusão, Platão não o pretende rejeitar ou proibir liminarmente. As formas cómicas de diversão têm lugar na polis, mas deverão estar a cargo exclusivo dos estrangeiros e dos escravos. Os homens e as mulheres livres de Atenas devem abster-se de as aprender e de estarem demasiado familiarizados com elas de forma a não conspurcarem o processo social e o crescimento moral.
Esta imagem tão depreciativa do humor poderá, nos dias de hoje, causar estranheza. No entanto, as razões que a suportam são inegáveis e justificativas dos cuidados assumidos. O humor dessacraliza, ridiculariza as autoridades e pode contribuir para a dissolução das crenças tidas por mais importantes na sociedade. Conforme afirmou Jean-Baptist de Santeul, “a rir corrigem-se os costumes”. O riso expressa o lado ligeiro da vida, questiona muitas das práticas, costumes e crenças vigentes. Quando expostas à luz do ridículo, por exemplo por meio de personagens-tipo (pense-se em Gil Vicente), determinadas classes sociais, profissões, personalidades e ações revelam-se patéticas e absurdas. Consequente, os malefícios do cinismo estão sempre à espreita. Quem vê tudo com ligeireza, banaliza tudo. Nada tem peso, nem valor, nem é merecedor do nosso compromisso.
Para lançar uma luz positiva sobre o humor, pode regressar-se à definição aristotélica do ser humano enquanto animal que ri. Johan Huizinga acolheu de tal modo esta ideia que viu nela um modo mais absoluto de distinguir o ser humano dos restantes animais. Aquele, mais do que um homo sapiens é um animal ridens, quer porque o riso aqui referido ser especificamente o humorístico, quer porque o riso não tem de envolver sempre uma sensação de superioridade face ao outro. Pode desempenhar a função de reação perante o absurdo ou incongruência da existência. Um tipo de humor (incongruente) popularizado por grupos como os Monty Python e os Gato Fedorento.
O humor tem um lado benigno. A psicologia, a biologia, as neurociências e as reflexões filosóficas contemporâneas congregam-se em torno dos benefícios do humor e do riso para o corpo, a mente e a sociedade. Eles contribuem para a diminuição do stress, da ansiedade e da tensão arterial. Diminuem as tensões sociais entre familiares, amigos e colegas, constituindo um autêntico lubrificante social acolhedor do diferente, do ambíguo e do incongruente. Promove, ainda, as virtudes intelectuais da abertura de espírito, do pensamento criativo e do pensamento crítico, tal como as virtudes morais da paciência, da tolerância para com as nossas limitações e da graciosidade.
Tendo em conta este pano de fundo, proponho no restante texto defender o humor enquanto virtude com duas funções articuláveis: Descansar a mente e tornar-nos pessoas mais agradáveis e sociáveis. A este respeito, São Tomás de Aquino tem muito a ensinar-nos. É usualmente considerado o percursor mais importante da chamada teoria do jogo. Esta tem por tese a ideia de que o riso resulta da libertação do peso das atividades quotidianas que sobrecarregam a alma ou a mente.
Similarmente ao corpo, a alma ou a mente precisa de descanso, carece de momentos de relaxamento. Ora, o remédio para uma mente cansada é o deleite resultante da produção e da prática de ditos e feitos proporcionadores de diversão ou jogos. Estes assentam na categoria aristotélica da eutrapelia ou ‘boa mudança’, a capacidade de entrarmos num modo de jogo quando um acontecimento da nossa vida não requer uma ação imediata ou quando não há nada a fazer. Resta-nos apenas tentar desenvencilharmo-nos emocionalmente delas. Pense-se em São Lourenço a ser martirizado na grelha e a recomendar ao carrasco: “Vira-me, que já estou bem passado desse lado!” Ou, nas últimas palavras atribuídas a Oscar Wilde no seu leito de morte: “Este papel de parede é atroz. Um de nós tem que ir.”
A eutrapalia constitui a virtude dos jogos, ao “converter os ditos ou feitos em motivos de recreio” (Summa Teológica, II-II. Q168. A2). Uma das vantagens desta viragem reside em permitir transcender as respostas estritamente emocionais e focadas exclusivamente na situação concreta. Favorece-se, em vez disso, um modo de pensar e agir mais orientado pela razão. Contrariamente a Platão, São Tomás não vê no humor nada de intrinsecamente irracional ou imoral. Pelo contrário, condenar o humor é ir contra a razão. Não só porque a mente precisa de descanso, como também é irracional e imoral “mostrar-se pesado para com os outros, isto é, não lhes proporcionar nada de agradável e impedir o deleite dos outros” (Summa Teológica, II-II. Q168. A4). Quem peca por defeito, não profere nenhuma graça e torna-se uma pessoa dura ou rústica; quem o faz por excesso, vê em tudo uma paródia e converte-se num bufão. A estratégia para viver bem e ter um bom caracter é, portanto, a versatilidade.
Assim, caro leitor, já sabe. Se quer ter uma mente descansada e tornar-se uma pessoa melhor, nestas férias deixe o humor entrar na sua vida. Lembre-se do homem que ao entrar na pizzaria disse: “corte-me a pizza em quatro pedaços, em vez dos habituais oito, pois estou de dieta.” Ou no caso de uma situação de saúde grave, desejo que se possa dizer de si: “apesar de todos os esforços dos melhores médicos da Europa, o paciente sobreviveu.”
Tempo da Criação
OPINIÃO
CONCILIAÇÃO TRABALHO E FAMÍLIA
“O tempo perguntou ao tempo…”
Maria Eugénia Mascarenhas | 18 Julho 2023 | in Ponto SJ
O tema da conciliação família trabalho é, provavelmente, um dos mais “quentes” para pais com filhos pequenos. A nossa geração padece de um mal de querer fazer tudo bem – queremos ser bons profissionais, subir na carreira e ter sucesso, chegar a cargos de responsabilidade enquanto somos igualmente excelentes líderes, e ao mesmo tempo queremos ser pais e mães ultra dedicados, sempre presentes e atentos aos seus filhos, sem falhar nenhuma reunião da escola, festa ou momento importante das suas vidas.
O justo equilíbrio entre o tempo que investimos no nosso trabalho e o tempo que dedicamos aos nossos filhos e família é dos malabarismos mais complexos que temos de executar nas nossas vidas. Mas, ao menos, sabemos que uma coisa é certa: não há fórmulas exatas e não há modelos perfeitos.
Na nossa família temos um pequeno laboratório de experiências onde pudemos e quisemos testar vários formatos. Nos últimos 10 anos, e com o nascimento de cada um dos nossos filhos, experimentámos ter uma pessoa contratada em casa para cuidar de um, uma ida para a escola mais cedo de outro, pousámos um tempo no formato “mãe a tempo inteiro” (à falta de melhor expressão, porque todas as mães são mães o tempo todo), depois foi modelo de mãe em part-time, até voltar ao mercado de trabalho e estar agora como a maioria das mães, a trabalhar a full-time e a gerir as mil-e-uma tarefas de casa e da escola, além do trabalho. E a pergunta que não quer calar é: qual correu melhor? Pois bem, nem eu sei responder.
Acontece que acredito em soluções à medida de cada momento, do que me é pedido e da situação que vivo. Nem a vida é estanque nem as nossas decisões têm de o ser. Nos vários momentos experimentei grande felicidade e encontro, mas também me questionei muito sobre as decisões tomadas, sobretudo a de deixar de trabalhar para acompanhar durante um tempo os meus filhos. A sociedade é dura com quem sai do percurso normativo e a solidão de quem está em casa pode ser avassaladora. Acabei por perceber que uma mãe desencontrada, com muito tempo e disponibilidade, era pior que uma mãe feliz e realizada com pouco.
Decidi regressar ao trabalho, arregaçar mangas e encontrar o meu lugar no mundo profissional. E, quando começaram a surgir dúvidas se conseguiria acompanhá-los da mesma maneira e ter a mesma disponibilidade para as necessidades deles, tropecei num estudo que me apaziguou e fez perceber que estava no caminho certo.
O artigo “Como as nossas carreiras afetam as nossas crianças”, publicado na Harvard Business Review por Stewart D. Friedman, fala-nos sobre o impacto das nossas carreiras na saúde mental e, consequentemente, na felicidade dos nossos filhos.
Grande parte da investigação avalia aspetos relativos à vida profissional dos pais: se trabalham ou não, se trabalham a full ou part-time, quanto tempo passam no trabalho, entre outros. No entanto, também foram avaliadas questões como a importância dada pelos pais à carreira e à família, a interferência psicológica do trabalho na vida familiar (ou seja, os pais estarem a pensar em trabalho enquanto estão com os seus filhos), o envolvimento emocional nas suas carreiras e o controlo que os pais têm acerca das suas condições de trabalho. Todos estes aspetos se relacionam com problemas comportamentais que as crianças podem apresentar, indicadores chave da sua saúde mental.
De entre várias descobertas e informação relevante, referem que a saúde emocional das crianças é maior quando os pais e mães acreditam que a sua prioridade é a família, independentemente da quantidade de tempo que passam no trabalho. O mesmo acontece quando os pais acreditam que o trabalho é uma fonte de desafios, criatividade e prazer, novamente independentemente do tempo que passam a trabalhar. E, não surpreendentemente, indicam que as crianças também apresentam melhores avaliações quando os pais são capazes de estar fisicamente com elas. Ou seja, pais que conseguem estar presentes, sem distrações e sem interferências externas.
Percebeu-se que as crianças têm, no entanto, maior probabilidade de apresentar problemas de comportamento quando os seus pais estão muito envolvidos psicologicamente nas suas carreiras, trabalhem ou não muitas horas. Também a indisponibilidade cognitiva durante os tempos de família e de descanso – ou a distração digital com dispositivos que nos ligam ao trabalho – foi relacionada com crianças com maiores problemas emocionais e comportamentais.
Por último, o estudo refere a importância de outros aspetos, como a satisfação e bom desempenho dos pais no trabalho ou o tempo que dedicam ao autocuidado, que têm mais relevância e impacto no bem estar dos seus filhos do que necessariamente o tempo que lhes dedicam.
Nem sempre nos sentimos realizados nos nossos trabalhos. Muitas vezes os problemas ou preocupações absorvem-nos e é difícil desligar quando estamos com os nossos filhos. Há dias em que a exigência da responsabilidade absorve-nos tanto que confundimos o que é prioritário. Mas podemos e devemos lembrar-nos que a família é a nossa maior missão e os nossos filhos o maior e melhor legado que deixamos no mundo. O resto é apenas a espuma dos dias. Concentremo-nos, por isso, em dar a importância adequada às nossas carreiras, a investir em formas criativas de estarmos com os nossos filhos e de nos fazermos verdadeiramente presentes.
Tempo da Criação
MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
POR OCASIÃO DO
III DIA MUNDIAL DOS AVÓS E DOS IDOSOS
XVI Domingo do Tempo Comum – 23 de julho de 2023
«De geração em geração, a sua misericórdia» (cf. Lc 1, 50)
Queridos irmãos e irmãs!
«De geração em geração, a sua misericórdia» (cf. Lc 1, 50): assim reza o tema do III Dia Mundial dos Avós e dos Idosos. O tema leva-nos a um encontro abençoado: o encontro entre Maria, jovem, e sua parente Isabel, idosa (cf. Lc 1, 39-56). Esta, cheia de Espírito Santo, dirige à Mãe de Deus palavras que, dois milénios depois, cadenciam a nossa oração diária: «Bendita és Tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre» (1, 42). E o Espírito Santo, que já tinha descido sobre Maria, sugere-Lhe como resposta o Magnificat, onde proclama que a misericórdia do Senhor se estende de geração em geração. O Espírito Santo abençoa e acompanha todo o encontro fecundo entre gerações diversas, entre avós e netos, entre jovens e idosos. De facto, Deus quer que os jovens, como fez Maria com Isabel, alegrem os corações dos anciãos e extraiam sabedoria das suas experiências. Mas o primeiro desejo do Senhor é que não deixemos sozinhos os idosos, que não os abandonemos à margem da vida, como hoje, infelizmente, acontece com demasiada frequência.
Neste ano, regista-se uma proximidade estupenda entre a celebração do Dia Mundial dos Avós e dos Idosos e a Jornada Mundial da Juventude; no tema de ambas, sobressai a «pressa» de Maria (cf. 1, 39) quando visita Isabel, levando-nos assim a refletir sobre a ligação entre jovens e idosos. O Senhor espera que os jovens, ao encontrar os idosos, acolham o apelo a guardar as memórias e reconheçam, graças a eles, o dom de pertencerem a uma história maior. A amizade duma pessoa idosa ajuda o jovem a não cingir a vida ao presente e a lembrar-se que nem tudo depende das suas capacidades. Por sua vez, aos mais velhos, a presença dum jovem abre à esperança de que não se perderá tudo aquilo que viveram e se vão realizar os seus sonhos. Em resumo, a visita de Maria a Isabel e a consciência de que a misericórdia do Senhor se transmite duma geração à outra mostram que não podemos avançar – nem salvar-nos – sozinhos, e que a intervenção de Deus se manifesta sempre no conjunto, na história dum povo. É precisamente Maria quem no-lo diz no Magnificat, alegrando-Se em Deus, que, fiel à promessa feita a Abraão (cf. 1, 51-55), realizou maravilhas novas e surpreendentes.
Para melhor captar o estilo do agir de Deus, recordemos que o tempo deve ser vivido em plenitude, porque as realidades maiores e os sonhos mais belos não acontecem num instante, mas através dum crescimento e duma maturação: em caminho, em diálogo, no relacionamento. Ora, quem se concentra apenas no imediato, nas próprias vantagens que se hão de conseguir rápida e sofregamente, no «tudo e já», perde de vista o agir de Deus. Diversamente, o seu projeto de amor atravessa o passado, o presente e o futuro, abraça e põe em ligação as gerações. É um projeto que nos ultrapassa a nós mesmos, mas no qual cada um de nós é importante e, sobretudo, é chamado a ir mais além. Para os mais jovens, trata-se de ir mais além do imediato em que nos confina a realidade virtual, que muitas vezes nos desvia da atividade concreta; para os mais velhos, trata-se de não se deterem no debilitar-se das forças nem no lamento pelas ocasiões perdidas. Olhemos para a frente! Deixemo-nos plasmar pela graça de Deus, que, de geração em geração, nos liberta do imobilismo no agir e das lamúrias voltadas para o passado!
No encontro entre Maria e Isabel, entre jovens e idosos, Deus dá-nos o seu futuro. Na realidade, o caminho de Maria e o acolhimento de Isabel abrem as portas à manifestação da salvação: através do seu abraço, a misericórdia irrompe, com alegre mansidão, na história humana. Por isso, quero convidar cada um a pensar naquele encontro; mais ainda, a fechar os olhos e imaginar, como numa foto instantânea, aquele abraço entre a jovem Mãe de Deus e a mãe idosa de São João Batista; representá-lo na mente e visualizá-lo no coração, para o fixar na alma como um luminoso ícone interior.
E convido depois a passar da imaginação à vida concreta, fazendo algo para abraçar os avós e os idosos. Não os deixemos sozinhos; é preciosa a sua presença nas famílias e nas comunidades: dá-nos a noção de partilhar a mesma herança e de fazer parte dum povo em que se preservam as raízes. Sim! São os idosos que nos transmitem a pertença ao santo Povo de Deus. A Igreja e de igual modo a sociedade precisam deles. É que os idosos entregam ao presente um passado necessário para construir o futuro. Honremo-los, não nos privemos da sua companhia nem os privemos da nossa. Não permitamos que sejam descartados.
O Dia Mundial dos Avós e dos Idosos pretende ser um pequeno e delicado sinal de esperança para eles e para a Igreja inteira. Por isso renovo o meu convite a todos – dioceses, paróquias, associações, comunidades – para o celebrarem, colocando no centro a alegria transbordante dum renovado encontro entre jovens e idosos. A vós, jovens, que estais a preparar-vos para partir para Lisboa ou que vivereis a Jornada Mundial da Juventude na própria localidade, quero dizer: antes de sair para a viagem, ide visitar os vossos avós, fazei uma visita a um idoso sozinho. A sua oração proteger-vos-á e levareis no coração a bênção daquele encontro. A vós, idosos, peço para acompanhardes com a oração os jovens que estão prestes a celebrar a JMJ. Aqueles jovens são a resposta de Deus aos vossos pedidos, o fruto daquilo que semeastes, o sinal de que Deus não abandona o seu povo, mas sempre o rejuvenesce com a criatividade do Espírito Santo.
Queridos avós, queridos irmãos e irmãs idosos, chegue até vós a bênção do abraço entre Maria e Isabel, e encha de paz os vossos corações. Com afeto, vos abençoo. E vós, por favor, rezai por mim.
Roma – São João de Latrão, na Festa da Visitação da Virgem Santa Maria, 31 de maio de 2023.
FRANCISCO
Tempo da Criação
OPINIÃO CONFIANÇA EM DEUS
O gozo da alegria da comunhão a partir do medo
Inês Barreiros Mota | 30 Junho 2023 | in Ponto SJ
No evangelho do passado domingo, Jesus dirige-se aos apóstolos, advertindo: “Não tenhais medo dos homens (…)”. Cada um de nós vive, de diferentes formas, condicionado pelos seus medos, e ao ler este evangelho perguntava-me: “De que tenho medo, realmente? Tenho medo de não chegar onde quero? De não conseguir estar à altura do que os outros esperam de mim? De falhar perante as ‘normas’ pautadas pela sociedade?” Muitas outras perguntas foram levantadas e cada um terá as suas. Contudo, diante de toda esta interrogação, foi sendo evidente que na origem estava o alheamento de Jesus, a confiança deposta exclusivamente nas minhas capacidades, a sobrevalorização das necessidades e interesses dos demais desconsiderando a Sua vontade.
Por vezes, não reconhecemos que somos amados por Ele. Pomos toda a confiança em nós, apesar de termos mais ou menos consciência da nossa pequenez, fragilidade e impotência. Naturalmente, os medos surgem; porque muitas vezes o desejo é maior que a capacidade – que temos ou somos capazes de ver.
Sendo isto parte integrante da nossa humanidade, tão bem relatada por aqueles que mais perto de Jesus estiveram como Maria que se perturba perante o anúncio do anjo Gabriel (Lc 1,29-30); ou Pedro (Mt 14, 30) quando Jesus caminha sobre as águas e lhe pede que vá ter com Ele e que ao duvidar pela sua falta de fé começa a afundar-se. Com estes exemplos, podemos entender que é no temor – no desejo de não querer nada mais que a vontade de Deus que o Espirito Santo afina o nosso olhar e vontade. Assim, o surgimento de medos pode ser, um sinal de alerta da possibilidade de nos estarmos a afastar da Sua vontade. Perante este reconhecimento e confronto com a nossa humanidade, o caminho passa pela adjudicação, que com a humildade que implica nos aproxima de Jesus, criando-se espaço em nós para sentir que também é nossa vontade só n’Ele confiar. É um caminho desafiante, parece que nem todos conseguem passar pela sua estreiteza, mas é a confiança num Pai que não se cansa de esperar com os braços abertos para nos acolher, sempre, mesmo quando nos afastamos (“Parábola dos dois filhos” – Lucas 15:11-32) que nos pode conduzir.
No princípio do evangelho já citado, Jesus acrescenta: “Temei antes Aquele que pode lançar na geena a alma e o corpo. (…). Portanto, não temais.” O medo com que nos deve deter será o de desperdiçarmos a nossa vida com coisas que não nos dão a verdadeira Vida, mas que antes a consomem. O temor a Deus para que somos advertidos, passa por não sabermos gozar das oportunidades de escolher o que mais nos aproxima de Deus, deixando-nos escravos das necessidades, carências, vulnerabilidade ao material. Coisas que roubam o espaço necessário à nossa relação com Deus.
Olhemos uma vez mais para Maria no canto do Magnificat – “E o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na humildade da Sua serva’” É este caminho de libertação que permite a comunhão com Deus e com os irmãos que nos acompanham. E é a fidelidade e compromisso a este desejo de comunhão que nos faz gozar da verdadeira alegria.
Tempo da Criação
OPINIÃO
O direito à felicidade
Joana Bacelar Virgy | 27 Junho 2023 | in Ponto SJ
“É oficial, o meu irmão nunca vai andar nem nunca vai ser um ‘menino normal’ como os outros. Hoje é, provavelmente, o dia mais triste da minha vida. Chegou a casa a cadeira de rodas que confirma o maior medo da minha vida: o meu irmão não vai andar. Hoje é o primeiro de muitos dias desafiantes que se avizinham para todos nós, irmãos, pais e família.”
Quinze anos mais tarde, depois deste fatídico dia, quando o João tinha 5 e eu 15, muito mudou. No seu desenvolvimento, e por conta da doença que tem, ao invés de conseguir pôr-se de pé agarrado, como ainda conseguia fazer anteriormente, hoje não move sequer as pernas, nem escreve, nem lê, pouco vê, precisa de ajuda para todas as tarefas (ir à casa-de-banho, comer, lavar os dentes), e as suas conversas infantis são praticamente as mesmas que tinha desde então. O seu desenvolvimento físico regrediu e o mental pouco se desenvolveu.
A realidade deste desafio, que nos foi apresentado a todos, desde ao próprio João, até à família, pouco mudou. Mas houve algo que se alterou, e é sobre isso que me quero debruçar: a percepção da realidade, a forma como olhamos para ela e como a mesma pode alterar o nosso caminho para a felicidade.
Lembro-me, ainda que tenha sido há 20 anos, de os meus pais nos juntarem aos 3 (a mim e aos meus irmãos) para nos dar a boa-nova de que teríamos mais um irmão. Tratámos do João com uma alegria imensa, nunca pensando que o continuaríamos a fazer até sempre desta forma tão protetora e cuidadosa. Passado uns anos de o nosso irmão nascer, percebemos que não ia andar como nós, que não ia aprender na escola como nós e que a sua vida seria bem diferente da nossa. Mas quisemos sempre dar-lhe a vida mais parecida e feliz que pudemos, tal como os pais, avós e família nos ensinaram e deram também. E hoje o João está crescido, com 20 anos. Cresceu conosco e nós com ele.
Mentiria se dissesse que a minha vida foi sempre feliz e positiva, porque não foi. Privei-me do direito à felicidade por não saber lidar com a infelicidade que sentia por não entender o porquê de Deus nos ter dado este ‘fardo’, ao João e a nós. A adolescência foi provavelmente a fase mais complicada porque, para além das hormonas aos saltos, não aceitava o facto de ter um irmão tão diferente que não ia poder ter as mesmas oportunidades que eu, privando-se delas e privando-me a mim de tantas outras, pois tinha de dar um apoio muitíssimo maior em casa do que os meus amigos davam (ou, pelo menos, que eu achava que davam). E pior, sentia-me culpada por pensar em mim e nas minhas privações quando as do João eram (e são) muitíssimo maiores.
A espiral de infelicidade não tinha fim e eu não fazia ideia de como sair dela. O escutismo foi o meu porto de abrigo, o lugar seguro onde sempre pude ser eu, onde comecei a olhar para o mundo com uma visão diferente e, muito provavelmente, a escola da vida que me “salvou”. Nos escuteiros aprendi a ver oportunidades onde muitas pessoas viam problemas, a ver soluções onde tantas outras identificavam desafios e, sobretudo, a dar valor e a encontrar a felicidade nas coisas mais pequenas.
Com esta experiência, e depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que tinha dois caminhos para a mesma realidade que me era apresentada: o da felicidade ou o da infelicidade. Graças a Deus escolhi o da felicidade. Escolhi o copo meio cheio, escolhi percepcionar a realidade de uma forma diferente de como tinha feito até então.
Agradeço sobretudo aos meus pais e chefes de escuteiros por me terem feito ver a realidade de forma diferente. Hoje consigo perceber e guiar-me pelas palavras que a nossa Mãe sempre nos transmitiu: Deus deu as cruzes mais pesadas a quem as pode suportar, e foi por isso que confiou em nós para carregar a do João. A partir daí, percebi que o João não é a sua cadeira, nem tão pouco a sua doença. O João Maria tem uma doença, mas não é a sua doença. É um ser humano amoroso que não consegue ver ninguém triste, que quer ser amigo de todos e que não dispensa uma boa gargalhada, fazendo rir todos os que o rodeiam. E é fruto do amor que todos lhe deram, especialmente os nossos pais, uns verdadeiros heróis como não conheço iguais, que fazem tudo para que cresça o mais saudável e feliz possível, que garantem todas as terapias e logísticas para que não passe um segundo sozinho, pois as suas necessidades são bem maiores do que alguém que não conhece esta realidade possa pensar.
Dando Deus as suas maiores cruzes aos seus maiores guerreiros, esta foi a luta que nos foi confiada, e hoje estou grata pela confiança, na linha da frente da batalha. Muitos outros guerreiros sofrem hoje por não terem ainda percebido que foram escolhidos para esta ou outras batalhas. E esses precisam, como eu precisei também, de desafiar a infelicidade e pô-la à prova, pois todos nós temos o direito de encontrar o caminho para a nossa felicidade, aceitando a realidade e percecionando-a da forma mais positiva possível, alterando o que pode ser alterado e aceitando com um sorriso o que não depende de nós alterar.
Tempo da Criação
Violência sem fim…
ESPECIAL VIOLÊNCIA RELIGIOSA
Paulo Aido | 23 Junho 2023 | in Ponto SJ
Os números são gritos. Escondem uma realidade de que mal se fala, mas que está presente todos os dias na vida da maioria da humanidade. Cerca de 62 por cento da população mundial vive em países com violações graves ou muito graves da liberdade religiosa. E os cristãos são uma das comunidades mais atingidas. O mais recente Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, produzido pela Fundação AIS, só nos pode deixar desassossegados…
Os números não permitem segundas leituras. A perseguição religiosa aumentou, os fiéis, em todas as regiões do mundo são cada vez mais ameaçados, e a impunidade está a aumentar. O resultado de tudo isto é dramático e afecta a vida concreta de milhões de seres humanos. Quase cinco mil milhões de pessoas vivem em países onde a liberdade religiosa é fortemente restringida. África é disso um grande exemplo. “Explosão de violência.” É assim que no mais recente Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, lançado pela Fundação AIS dia 22 de Junho, se refere ao que ocorreu no continente africano ao longo dos últimos dois anos. Devido à expansão da actividade jihadista, este continente tem vindo a transformar-se num dos lugares mais perigosos para os cristãos. Os exemplos abundam. Durante o período em análise – 2021 e 2022 – em 37 por cento dos 54 países de África, registaram-se níveis perigosos ou mesmo extremos de perseguição e discriminação. Mali, Nigéria, Líbia, Moçambique, República Democrática do Congo, Eritreia, Burkina Faso e Sudão são alguns dos países que lideram esta lista negra. Mas, infelizmente, a violência contra as comunidades religiosas é comum a muitas outras regiões e a muitos outros países do Planeta. A China e a Índia, ambos na Ásia e os dois países mais populosos do mundo, são também uma fonte de preocupação, tal como a Nicarágua, no continente americano, onde a Igreja Católica tem vindo a ser perseguida de forma violenta pelas autoridades do país. Os exemplos, infelizmente, abundam.
Autocratas e fundamentalistas
O Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, que a Fundação AIS edita de dois em dois anos, mostra que as minorias são cada vez mais reprimidas e são cada vez mais os pretextos para isso acontecer. Desde ataques terroristas, com uma frequência alarmante em África, à implementação de leis anti-conversão na Ásia, à vigilância em massa na China, com recurso, por exemplo, a câmaras de recolha de imagem com tecnologia de ponta – calcula-se que haverá só neste país cerca de 540 milhões destes aparelhos –, são muitos os instrumentos usados para a repressão das comunidades religiosas. A violência com a marca da religião mede-se também no número de países em que, desde 2021, há registo de pessoas que são assassinadas ou raptadas por causa da sua fé. Foram 40 países. E mede-se também na constatação de que, na esmagadora maioria destes casos, “os agressores raramente ou nunca são processados pelo sistema judicial”. O sentimento de impunidade que isto produz alimenta a própria agressividade contra as minorias religiosas. Em 34 países registaram-se também ataques a locais de culto ou propriedades religiosas. Mas quem são os agressores? Quem está por trás da esmagadora maioria dos ataques, da violência que atinge tantas pessoas, tantas comunidades religiosas no mundo? O extremismo islâmico e os governos autoritários lideram esta lista, representando, no conjunto, 70 países. O relatório da Fundação AIS, produzido a nível internacional por uma equipa pluridisciplinar, além de documentar inúmeras situações de violência, procura também dar respostas que ajudem a perceber como este fenómeno tem vindo a escalar ao longo dos últimos anos. “A manutenção e a consolidação do poder nas mãos de autocratas e de líderes de grupos fundamentalistas conduziu a um aumento das violações de todos os direitos humanos, incluindo a liberdade religiosa”, pode ler-se no documento.
Violência com impunidade
Há uma frase que sobressai nas conclusões: “a impunidade aumentou”. Isto significa que os casos de raptos, de violência sexual, incluindo a escravatura sexual e a conversão religiosa forçada, continuaram a verificar-se e permanecem em grande parte fora da jurisdição dos tribunais. Mas há também, no período em análise no Relatório da Fundação AIS, a ascensão dos “califados oportunistas”, em que grupos radicais islâmicos ligados a redes internacionais da ‘jihad’ procuram submeter cada vez mais populações aos seus reinos de terror, alimentando a pilhagem também de recursos naturais e forçando os povos locais a uma vida de medo e de pobreza generalizada. O sentimento de impunidade que toda esta violência tem gerado, é também um sinal de preocupação. Marcela Szymanski, a editora-chefe do Relatório, afirma-o de forma clara. “Existem 61 países onde a discriminação e a perseguição são claramente evidentes, onde o direito fundamental à liberdade de pensamento, de consciência e de religião está a ser pressionado ou restringido através de novas leis. Como consequência, os cidadãos são perseguidos pelo seu próprio Governo ou são assassinados, muitas vezes com pouca ou nenhuma reacção da comunidade internacional.”
Rezar pelas vítimas
Este silêncio cúmplice diz também muito da forma como o mundo tem lidado com estas questões, como se a perseguição religiosa não fosse um atropelo aos direitos humanos mais básicos. O Relatório, que a Fundação AIS divulgou esta semana e que é produzido de dois em dois anos, é um instrumento de trabalho que permite conhecer, em detalhe, como vai o mundo no que respeita ao artigo décimo-oitavo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É também o primeiro Relatório divulgado já com Regina Lynch como a nova directora executiva internacional da Fundação AIS. No Relatório, logo na Introdução, Regina explica a importância do trabalho desenvolvido pela AIS, com milhares de projectos apoiados todos os anos em 132 países e com a sensibilização diária da opinião pública para a realidade, tão desconhecida ainda, da perseguição aos cristãos e a outras minorias religiosas no mundo. E sugere várias iniciativas que se podem realizar a partir do Relatório, que deve ser visto como uma “ferramenta” de trabalho. A primeira, diz quase tudo sobre a gravidade do que é abordado neste documento. “Reze pelas vítimas da discriminação e violência”, pede Regina Lynch. Não é preciso dizer mais nada…
*Em contexto da apresentação do Relatório sobre a Liberdade Religiosa no Mundo, da Fundação AIS ontem dia 22 de Junho 2023
Tempo da Criação
Semana Laudato Si’ (IV)
Uma causa, uma orientação de vida
Manuel José Marques | 22 Mai 2023 | in 7 Margens
Guiado pela luz e força do Espírito Santo, o Movimento Laudato Si’ “une-se em torno da visão de um mundo baseado no desenvolvimento sustentável e integral, em que seres humanos de todos os cantos do planeta cuidem da nossa Casa através de ações individuais e coletivas, em que o compromisso individual crie sementes de consciência também para outros, e gere comportamentos colectivos que permitam influenciar os centros de decisão, de forma a reduzir a contribuição humana nas mudanças climáticas que afectam dramática e diariamente a vida de milhões de pessoas”.
Por vezes, as informações não conseguem alterar e consolidar hábitos, assim como as leis existentes. A carta do Papa Francisco (LS 211), refere que “para produzirem efeitos importantes e duradouros, é preciso que a maior parte dos membros da sociedade as tenham acolhido, com base em motivações adequadas, e se reaja com uma transformação pessoal. A doação de si mesmo num compromisso ecológico só é possível a partir do cultivo de virtudes sólidas. Se uma pessoa habitualmente se agasalha um pouco mais em vez de ligar o aquecimento, embora as suas economias lhe permitam consumir e gastar mais, isso supõe que adquiriu convicções e modos de sentir favoráveis ao cuidado do ambiente. É muito nobre assumir o dever de cuidar do planeta com pequenas acções diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de motivar até dar forma a um estilo de vida. A educação na responsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos que têm incidência directa e importante no cuidado do meio ambiente, tais como evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, separar o lixo, reduzir o desperdício alimentar, reutilizar materiais, tratar com respeito os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias… Tudo isto são exemplos de uma criatividade generosa e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano”.
“E não se pense que estes esforços são incapazes de mudar o mundo”, como também acrescenta o Papa Francisco (Ls212). “Estas acções espalham, na sociedade, um bem que frutifica sempre para além do que é possível constatar; provocam, no seio desta terra, um bem que sempre tende a expandir-se, por vezes invisível. Além disso, o exercício destes comportamentos restitui-nos o sentimento da nossa dignidade, leva-nos a uma maior profundidade existencial, permite-nos experimentar que vale a pena a nossa passagem por este mundo”. Uma causa, uma orientação de vida.
Manuel José Marques é animador de encontros sobre a encíclica Laudato Si’ na paróquia de Valongo do Vouga (Águeda).
Tempo da Criação
Semana Laudato Si’ (III)
Lembrar ao nosso coração aquilo que importa
Manuel José Marques | 22 Mai 2023 | in 7 Margens
Foi por causa do presépio do último Natal que esta ideia nasceu: um presépio (o nascimento) no centro do do mundo e do globo, a nossa casa comum. Foi isso que a paróquia de Valongo do Vouga (Águeda, diocese de Aveiro) quis marcar com essa proposta, depois retomada em cada um dos domingos da Quaresma, entre Fevereiro e Abril. Uma reflexão animada por Manuel José Marques, que fez o curso de animador Laudato Si’, do Movimento com o mesmo nome da encíclica do Papa Francisco sobre o cuidado da casa comum e que o 7MARGENS publica a propósito e durante a Semana Laudato Si’, iniciada no domingo, 21, como forma também de desafiar outros grupos, comunidades e paróquias a debater a encíclica do Papa e agir em favor da Criação e da casa comum. Este é o texto correspondente ao II Domingo da Quaresma (5 Março) e sucede à reflexão do I Domingo da Quaresma.
Na segunda semana da Quaresma [2023], durante uma celebração da palavra, reflectimos e dialogámos sobre esse período de preparação para a Páscoa. Um tempo de reflexão, caridade, oração e penitência, onde a abstinência e o jejum podem ser práticas comuns.
Para o Papa Francisco, na sua homilia da Quarta-feira de Cinzas, a “Quaresma é o tempo propício para reavivar as nossas relações com Deus e com os outros e isso pode ser feito através da oração, esmola e jejum”.
Assim, a Quaresma torna-se também um tempo de renovação, de mudança, de conversão. E quando se inicia este processo de profunda interiorização que nos transforma o coração e a mente, existe um objectivo definido, que não tem de ser grande ou vistoso, importa é que seja alcançável. Sem dúvida, são mudanças pessoais que afectam a particular sensibilidade de cada um com diferentes intensidades. Apelam à nossa motivação, à determinação e ao compromisso e podem levar o seu tempo.
Mas, tal como referido no livro de orações do Movimento Laudato Si, “a conversão não é real nem verdadeira se não tiver um impacto directo no cuidado com o nosso mundo. Esse impacto é baseado em pequenas acções que, realizadas repetidamente pela convicção de muitas pessoas, são capazes de gerar grandes mudanças. E essas pequenas acções, como desligar uma luz desnecessária, não são muito difíceis de realizar. Basta começar com uma delas: então, a força do hábito fará com que sejam realizadas com naturalidade e, assim, aumentarão em número, intensidade e eficácia.”
Efectivamente, no decurso normal da mesma reflexão dessa celebração da palavra, tratando-se também de conversões ou abstinências, partilhámos algumas acções que cada um realiza em prol do ambiente, em prol da casa comum. São testemunhos que manifestam passos de uma conversão ecológica, inimagináveis há uns anos.
[Em 5 de março] assinala-se o Dia Mundial da Eficiência Energética, que tem como objectivo sobretudo consciencializar a população sobre a importância de reduzir o consumo energético através da utilização mais consciente e sustentável dos recursos.
Pela nossa factura de electricidade, sabemos que cerca de 63 % da energia eléctrica ainda é proveniente de combustíveis fósseis, tais como o gás, carvão e o petróleo.
Ao optarmos por comermos o pão simples em vez de ser torrado, já estamos a contribuir para reduzir o uso de combustíveis poluentes, sem que de modo algum, comprometamos a nossa alimentação. Uma simples acção e, sem dúvida, uma abstinência de enorme valor. Uma mera sugestão.
Em tempos, os sinos tocavam a assinalar a aproximação da celebração da missa. E as pessoas, com muito ou pouco tempo, com ou sem chuva, com frio ou sem frio, individualmente ou em grupo, tal como numa pequena peregrinação ou romaria, a caminhar ou de bicicleta, dirigiam-se, determinadas, dos diferentes lugares, para participar naquela celebração. Um saudosismo nostálgico.
Tal como noutros tempos, os sinos tocam para o mesmo efeito. Tal como noutros tempos, podemos realizar a mesma viagem sem usar o carro, podendo ser mais uma oportunidade de fazer abstinência. É para quem pode, claro, e para quando é possível. Cada um saberá optar, respeitando pacificamente a sua decisão.
Será, contudo, uma viagem realizada de consciência mais tranquila. Não tem de ser penitência, muito menos castigo, bem pelo contrário. Podemos aproveitar para exercitar o corpo, melhorando a nossa saúde. Podemos aproveitar para meditar, para contemplar uma ave que passa, uma flor, uma nuvem, o sol. Podemos acenar, saudar, sorrir, e naturalmente, evidenciar o nosso testemunho de fé perante outros. Podemos ter a companhia de uma outra pessoa e conversar. Podemos aproveitar o momento para uma oração, podemos fazer dessa poupança uma esmola, e fazemos caridade porque estamos a cuidar da casa de todos nós. Podemos fazer jejum também, “não como um simples sacrifício, mas como uma atitude forte para lembrar ao nosso coração aquilo que importa”, como referido pelo Papa naquela homilia quaresmal.
Tenhamos, pois, o impulso, a coragem, a ousadia e a alegria de experimentar essa viagem. Que seja sugestão para a realização de outras viagens. Que seja Quaresma, que seja Ressurreição!
Manuel José Marques é animador de encontros sobre a encíclica Laudato Si’ na paróquia de Valongo do Vouga (Águeda).
Tempo da Criação
Dispostos a mudar o nosso modo de vida
Manuel José Marques | 21 Mai 2023 | in 7 Margens
Em 2015, o Papa Francisco publicou uma carta, à qual chamou Encíclica Laudato Sí’, que foi dirigida a todas as pessoas habitantes neste planeta. Surpreendemo-nos! Sim, é uma carta dirigida a cada um de nós. É uma carta que manifesta uma enorme preocupação com o planeta e com o cuidado que devemos ter com o mesmo, a nossa casa comum, tal como ele refere. É um documento notável, riquíssimo de informação, de reflexões que procuram desde logo sensibilizar a nossa consciência convidando-nos a reduzir o nosso impacto ambiental.
Na Laudato Sí’, o Papa Francisco inspira-nos, lembrando-nos da nossa vocação de proteger a obra de Deus. Ele diz: “Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial duma existência virtuosa” (LS 217). O Papa Francisco lembra-nos que todos podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas do mundo, que cada um de nós tem um papel a desempenhar usando os nossos dons e talentos.
“A crise ecológica é um apelo a uma profunda conversão interior. Isto exige reconhecer os próprios erros, pecados, vícios, ou negligências, e arrepender-se do coração, mudar a partir de dentro” (LS, 217-218). Por exemplo, sabemos que a tecnologia baseada nos combustíveis fósseis – altamente poluentes, sobretudo o carvão mas também o petróleo e, em menor medida, o gás – devem ser, progressivamente e sem demora, substituídos.” (LS 165).
Estamos, pois, perante um desafio urgente, que nos deve levar sobretudo ao compromisso de responder à ameaça de um colapso climático total e à perda devastadora das diferentes formas de vida.
Sem dúvida, todos temos as nossas próprias responsabilidades imediatas: família, trabalho, escola, doenças, tristezas e tantos outros emaranhados da vida, que nos fazem correr de um compromisso para o outro, por vezes sofregamente, indiferentes e cegamente agarrados ao nosso próprio eu. E estarmos dispostos a mudar o nosso modo de vida, a maneira como aquecemos e iluminamos as nossas casas, viajamos, construímos, plantamos, jardinamos, vestimos, divertimos e até fazemos compras e comemos, são pedidos enormes. Na verdade, um novo tipo de cruz. Mas esta é uma cruz que podemos abraçar com alegria e, sem dúvida, também com alguma dor quando deixamos para trás velhas formas de ser.
A alegria pode vir à medida que trabalhamos com Jesus, dedicados nas nossas comunidades a criar uma nova e transformada casa comum, onde possa haver alimentos para todos, onde povos indígenas possam viver nas suas terras, onde se possa reverter as condições inóspitas criadas por fenómenos climáticos extremos que obrigam comunidades a se deslocarem, que nos possamos alegrar com a alegria dessas gentes, onde se possa respirar ar puro e todos possam ter água potável e saudável, e, claro, onde a natureza e todas as criaturas de Deus possam prosperar.
Na mesma encíclica, o Papa diz-nos “para nunca subestimar o poder das pequenas acções, aquelas coisas que fazemos na nossa vida diária em nossa casa, escolas e paróquias para tentar viver de forma mais sustentável, para caminhar mais suavemente nesta terra. Essas pequenas acções têm um efeito cascata em toda a comunidade e podem-se tornar experiências de graça. Elas testemunham uma visão mais abrangente para o nosso mundo”.
Assim, aceitando esse convite e apelo, na nossa comunidade iremos ter oportunidade de saber como repensar algumas acções do nosso estilo de vida, de como agir de forma prática para melhorar os nossos relacionamentos com a terra e uns com os outros, abraçando o mundo, abraçando-nos a nós mesmos.
Manuel José Marques é animador de encontros sobre a encíclica Laudato Si’ na paróquia de Valongo do Vouga (Águeda)
Tempo da Criação
A bondade da criação
Pedro Vaz Patto | 3 Mai 2023 | in 7 Margens
Associa-se habitualmente a bondade da criação à flora e à fauna, aos rios e às montanhas. Mas importa também associá-la ao corpo humano.
Vêm-se sucedendo notícias sobre as implicações da ideologia do género em vários âmbitos da sociedade: da cultura, da educação, da medicina, do desporto, etc. Mais do que a promoção da igualdade e não discriminação, assistimos à imposição de uma mentalidade (o Papa Francisco fala em “colonização ideológica”) que se pretende indiscutível, mesmo quando choca com a realidade: vejam-se as exigências da participação de homens em competições desportivas femininas ou a reclusão de homens em estabelecimentos prisionais destinados a mulheres. É de acordo com os pressupostos dessa ideologia que se pretende desviar o exercício da arte médica dos princípios ancestrais que a têm orientado, instrumentalizando-a de modo a que um corpo sexuado saudável se modifique de acordo com a vontade de quem se autoperceciona de um género diferente do seu sexo (biológico). A medicina servirá, pois, para satisfazer um desejo, mais do que para curar, ou de outro modo enfrentar, uma qualquer doença. Advoga-se, assim, a prática de tratamentos de hormonas cruzadas (correspondentes ao sexo oposto), cirurgias de “retificação” do sexo, bloqueadores de puberdade (em adultos, crianças e adolescentes, pois).
Abordam mais especificamente esta questão, na perspetiva da moral católica, dois documentos recentes.
Um deles é uma nota da Comissão Doutrinal da Conferência Episcopal norte-americana, de 20 de março de 2023, sobre os Limites Morais da Manipulação Tecnológica do Corpo Humano.
Parte esta nota da visão bíblica (refletida, designadamente, em Gn 1,31, e Sl. 19) e católica da bondade essencial da ordem da criação. Na natureza, há uma ordem e uma finalidade que são sinal da sabedoria e da bondade do Criador, que deve ser respeitada e não contrariada ou arbitrariamente substituída por outra (supostamente melhor).
Dessa bondade intrínseca da ordem da criação faz parte a pessoa como unidade de corpo e espírito. O corpo é constitutivo da pessoa, não é algo que lhe seja exterior, um seu instrumento, como se uma pessoa pudesse rejeitar o seu corpo, ou nascer num corpo errado.
E da corporeidade da pessoa, da bondade intrínseca dessa corporeidade, faz parte a dualidade sexual. Ser homem ou mulher é uma realidade boa e querida por Deus: «Ele os criou homem e mulher» e «viu que era bom» (Gn 1, 27).
Esta visão, radicalmente diferente da da ideologia do género, é afirmada em vários documentos do magistério da Igreja Católica citados nesta nota.
Da constituição conciliar Gaudium et Spes (n. 36): «(…) em virtude do próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte»
Da encíclica de Bento XVI Caritas in Veritate (n. 48): «A natureza está à nossa disposição (…) como um dom do Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos dos quais o homem há de tirar as devidas orientações para a “guardar e cultivar” (Gn 2, 15)».
Da exortação apostólica Amoris Laetitia, do Papa Francisco (n. 56): «É preciso não esquecer que sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separar. (…) Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspetos inseparáveis da realidade. Não caiamos no pecado de pretender substituir-nos ao Criador. Somos criaturas, não somos omnipotentes. A criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada».
A esta luz, a nota reafirma o ensinamento de Pio XII sobre a licitude de intervenções médicas sobre o corpo humano quando elas se destinam a corrigir algum defeito, ou quando sacrificam uma parte para salvaguarda do todo (de acordo com critérios de proporcionalidade). Podem ser lícitas até com propósitos estéticos quando não envolvam riscos desproporcionados para bens mais valiosos.
Não satisfazem estas exigências de licitude manipulações genéticas ou outras intervenções com propósitos não terapêuticos, mas de melhoramento (enhacement) de capacidades humanas, físicas ou intelectuais. As referidas intervenções de “retificação” de sexo, tratamentos hormonais cruzados ou bloqueadores de puberdade, também não satisfazem estas exigências de licitude, pois também se situam fora do âmbito terapêutico próprio da medicina. Porque estão em causa corpos saudáveis, essas intervenções traduzem-se em verdadeiras mutilações. Nem o sexo masculino nem o sexo feminino são defeitos a corrigir.
A nota serve, deste modo, de orientação para os estabelecimentos de saúde católicos, ameaçados por propostas legislativas que pretendem a imposição desse tipo de intervenções em nome da agenda própria da ideologia do género.
Na mesma linha desta nota doutrinal dos bispos norte-americanos situa-se uma outra nota, esta do Grupo de Estudo de Bioética da Comissão de Pastoral da Saúde da Conferência Episcopal Italiana sobre Transgenerismo e Transexualidade – Nota de Valoração Ética, de 2 de setembro de 2022.
Esta nota reafirma os princípios da ilicitude de intervenções corporais não justificadas por propósitos terapêuticos (como os de correção de algum defeito, ou de sacrifício de uma parte para salvaguarda do todo).
Rejeita a ideia de que se poderia justificar, para além destas, um outro tipo de intervenção corporal (que será sempre uma mutilação) para salvaguarda do bem-estar psíquico das pessoas transsexuais (ou transgénero). Não ignora, de modo algum, o sofrimento dessas pessoas. Mas também não oculta (como vem sucedendo, também por pressões ideológicas) os malefícios para a saúde, física e psíquica, que essas intervenções provocam, nem os riscos decorrentes dos seus efeitos ainda não inteiramente conhecidos. Invoca, por isso e a este respeito, o princípio bioético fundamental da não maleficência.
Na verdade, alimentar a ilusão de que é possível mudar de sexo (como se este não tivesse uma componente genética inalterável) e de que qualquer das intervenções referidas causa perturbações no equilíbrio natural próprio do corpo humano e seu desenvolvimento (um equilíbrio ecológico, de ecologia humana) não é contribuir para o bem das pessoas transexuais. Contribuir para esse bem é, antes, ajudá-las a aceitar e estimar o corpo que será sempre parte integrante delas mesmas.
Esta nota termina com a advertência de que a análise objetiva da moralidade destas práticas não pode implicar a insensibilidade diante do sofrimento dessas pessoas, nem julgamentos pessoais. E cita, a este respeito, o Papa Francisco. «Deus é Pai e não rejeita nenhum dos seus filhos. E o estilo de Deus é proximidade, misericórdia e ternura.»
Pedro Vaz Patto é presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz.
Tempo da Criação
Dia da Mãe com um filho preso
Lígia Pires | 5 Mai 2023 | in 7 Margens
Meu querido filho:
Houve um momento em que eu te perdi. Deve ter havido um momento exato, mas não me consigo recordar qual.
Ouço-te no poema do Eugénio de Andrade “No mais fundo de ti, eu sei que traí, mãe”. Que curvas e contracurvas tem a vida, para que passasses de adormecer a sorrir quentinho no meu colo para passares a adormecer a chorar numa cela? Eu sei que falhei, não fui capaz de te passar todos os valores que os meus pais me passaram a mim. Acho que nunca tive verdadeira vocação para ser mãe. Aconteceste na minha vida. Mas eu também aconteci na tua. Sem saber muito bem o que fazer, o que dizer, sozinhos, só tu e eu. E o mundo. O mundo todo tão grande, tão cheio de perigos. Tentei sempre almofadá-lo para não te magoares nas suas arestas dolorosas, se calhar protegi-te demasiado. Não te soube dar as ferramentas de que precisavas para te saberes defender sozinho. E juntaste-te às pessoas erradas. Ou tu também eras errado como elas? Fui eu quem errou. Quem não soube dizer-te não, quem não aguentava contrariar-te. Queria que visses os dias cheios de luz e hoje a pouca luz que te entra pelos olhos é através de barras de ferro. Procurei sempre fazer-te o que mais gostavas para o jantar e hoje comes o que te põem no prato e não podes queixar-te do tempero. Deves sonhar com o meu bacalhau no forno e o meu arroz-doce de que tanto gostas.
Não chores meu filho, não estás sozinho, eu estarei sempre contigo. Lembras-te em que momento te perdeste de mim? Puxo pela cabeça e não sou capaz. Talvez tenha sido numa noite, sim, o mais possível é que tenha sido numa das noites em que eu ficava acordada à espera de que chegasses e não chegavas e eu tinha de sair para trabalhar. Mas depois não te dizia nada, eras maior e vacinado, não tinha esse direito. Hoje tenho todo o direito de te chorar. Dóis-me bem cá no fundo. Não te culpo. Foi a vida que escolheste. Sem pensar nas consequências, nunca tiveste muitas, essa é a realidade.
Eras o meu menino “Não te esqueças de levar um casaco que vai esfriar e à noite um casaquinho nunca aborrece.” Tens frio aí, não tens? Nem me deixam levar-te um édredon e o cobertor faz-te espilrar toda a noite.
Não sou capaz de te imaginar a sofrer. O meu coração ficou contigo ao ver-te entrar por esses portões. Agora vivo sem coração, sem alma, vazia de ti. Como te fui perder? Onde errei? Quem te ganhou de mim? Foste por essa estrada fora e não consegui apanhar-te a tempo. Não foi por ires depressa demais, mas por ser escuro. Não te vi ir embora. Ou não quis ver?
Agora o teu abraço é maior que o meu e quando me envolves nos teus braços a minha cabeça é que pousa no teu peito e não a tua no meu, como era antigamente. Mas tu sabes que eu te amo, não sabes? Eu vou buscar-te ao fundo dessa estrada e custe o que custar, hei-de trazer-te de volta a casa.
Lígia Pires é visitadora nos estabelecimentos prisionais de Custóias, Santa Cruz do Bispo e Polícia Judiciária/Porto.
Tempo da Criação
Espelhos de Jesus Ressuscitado
A Páscoa é uma primavera, a Páscoa é encontro, a Páscoa é Paz.
Rita Baldaque| 28 Abril 2023 | in Ponto SJ
As histórias infantis têm a arte de descrever, de forma simples e pedagógica, ensinamentos que podem ser transversais a outras áreas da vida.
O conto “O gigante egoísta”, de Oscar Wilde, é um exemplo de como uma narrativa infantil pode ser uma metáfora pascal para adultos.
Resumidamente, conta a história de um Gigante que tem um lindo jardim, frequentado por diversas crianças, numa casa que não habita durante anos. No seu regresso, decide expulsá-las e o inverno vem morar no seu jardim.
Um dia, naquele jardim invernoso, o Gigante encontra um menino, que o beija e abraça, e deixa-se transformar interiormente por tamanha ternura.
Os anos passaram, e só quando o Gigante já é muito velhinho, o menino reaparece. O Menino tinha feridas de pregos nas mãos e o Gigante não O reconheceu de imediato. Então, o Menino disse ao Gigante: “Estas são feridas do Amor… Tu deixaste-me brincar uma vez no teu jardim; hoje virás comigo para o meu jardim, que é o Paraíso.”
Esse Menino era Jesus. O mesmo Jesus nascido em Belém; o Jesus que foi cravado na cruz e que ainda revela as Suas marcas da crucifixão; o Jesus glorioso da Páscoa, que está vivo e que continua a transformar a vida dos que acreditam na Sua Ressurreição.
Este é o Jesus Ressuscitado que se nos revela.
Um Jesus que vem habitar os jardins de inverno das nossas vidas. Um Jesus escondido, que se revela, como nas aparições que faz aos apóstolos depois da Ressurreição, com lembranças do tempo vivido na sua humanidade através do partir do pão; da pesca milagrosa; das suas chagas ou na familiaridade com que chama o nome “Maria”. Um Jesus que não é logo reconhecido pelos “seus”. Esse Jesus que vem ao encontro de quem por Ele espera. Esse Jesus que nos amou quando ainda éramos pecadores (Romanos 5,8), e gigantes em egoísmo, e que, com o Seu afecto e sabedoria, transforma os corações e nos faz querer viver uma vida ao Seu jeito de amar.
Jesus Ressuscitado impele-nos à acção, desafia-nos à missão, tira-nos do nosso cantinho de conforto e incita-nos a ir por todo o mundo a espalhar a Sua palavra. Este todo o mundo não tem de fazer de nós uns expatriados, não é preciso ir para África ou outro lugar qualquer para se ser missionário. É o convite a sermos como Jesus no mundo de cada um, na nossa casa, no nosso trabalho, nas nossas relações.
A alegria da Páscoa é a certeza de que não há inverno que sempre dure, que a dor não é o fim da história, que somos amados com um amor imensurável e que há um jardim no céu à espera de todos e de cada um de nós.
São cinquenta dias de tempo pascal, nos quais somos convidados a viver o reflorescimento, uma vida nova.
A ressurreição de Jesus deixa uma transformação admirável na vida dos que n´Ele crêem: a transformação vivida e testemunhada pelos discípulos de Emaús, pelos apóstolos, por Maria Madalena… É o testemunho, que permanece até hoje, da mudança que Deus quer imprimir na vida de cada um: a alegria de se saber vivo quem se ama; a confiança de que o Amor é uma escolha; a paz de quem se sabe acompanhado em todos os momentos.
Jesus revela-se em sinais e, hoje, somos nós os sinais da Sua ressurreição. Somos nós, através dos nossos exemplos de vida, da nossa “fúria” de viver o Amor, que mantemos Jesus vivo e que continuamos, por gestos, a evangelizar.
Depois da Sua ressurreição, as ideias de Paz e de Missão são-nos sugeridas, por Jesus, como caminho e recompensa. Jesus repete insistentemente: “…a Paz esteja convosco”. (Lc 24, 36)
Esta Paz que nos é dada é mais do que uma paz reveladora de uma ausência de guerra. É uma Paz maior do que a sugerida pela lei humana que legisla a ordem das sociedades. Não é a força que se deve impor numa situação de guerra.
A Paz que Jesus nos oferece é uma Paz eterna que começa já hoje, neste mundo. Não é uma promessa de ausência de dificuldades, é um compromisso de presença divina no quotidiano de cada um, quando sofremos e quando estamos alegres, quando a vida flui serenamente ou quando cada alvorada é uma batalha. É sabermo-nos amados. Esta Paz é a força que nos permite dizer, a quem está prestes a largar a vida terrena, um “Vá em Paz”, porque acreditamos que a morte não é o fim.
A Paz de Jesus é um estado de equilíbrio que nos invade como consequência do amor, da tolerância, do diálogo, da aceitação do outro, do respeito pela diferença e pelos direitos de cada individuo. É, simultaneamente, a serenidade social e a cessação de conflitos, mas apesar de não sermos a Santa Madre Teresa, o Gandhi, o Luther King ou o Nelson Mandela, e não nos ser atribuído um Prémio Nobel da Paz, no nosso coração e nas nossas vidas podemos viver ao jeito de Jesus e, desta forma, sermos testemunhas da Sua Ressurreição e construtores da Sua Paz.
Ao aproximar-se o mês de Maria, vejo-me a contemplar esta mãe, que passou por invernos tenebrosos, a acompanhar o seu filho em todos os momentos da Sua vida. Admiro a virtude do seu silêncio e do seu coração na confiança da primavera esperada, e deixo-me maravilhar pela ternura e alegria do abraço que, Mãe e Filho, terão dado quando se reencontraram depois da Ressurreição.
A Páscoa é uma primavera, a Páscoa é encontro, a Páscoa é Paz.
Se somos hoje testemunhas da Ressurreição, que um “Obrigado Jesus” seja suficientemente revelador da nossa gratidão e que o nosso modo de viver seja espelho da Sua presença no mundo.
Tempo da Criação
Ser visitador prisional: e se eu um dia ficasse cá dentro?
Lígia Pires | 21 Abr 2023 | in 7 Margens
Ser visitador prisional é viver um pouco preso também. É entrar na cadeia muitas vezes contra tudo e contra todos, muitas vezes ser menos bem tratado pelo sistema, sorrir e seguir em frente.
“Aquele primeiro dia em que o ferrolho da fechadura se fechou atrás de nós…” – dizem-nos quase todos os reclusos. Nós também sentimos isso, também ouvimos as grades frias fecharem-se à nossa passagem e as pesadas voltas na chave. E se um dia eu entrasse e ficasse cá dentro? Haverá algum visitador prisional que nunca tenha pensado nisso? Como viveria eu a minha primeira noite? Como viveria o meu primeiro dia? Todas as outras noites? Todos os outros dias? Dezenas, centenas, demasiados. Numa cela gelada e húmida, obrigada a conviver com pessoas totalmente diferentes, obrigada a partilhar frustrações e medos alheios, sem o beijo amoroso da minha mãe, sem o abraço caloroso do meu pai? Sem passeios à beira-mar ou na floresta? Como seria a minha vida sem sol? A viver com culpas e remorsos dos meus erros e com todo o tempo do mundo para eles me atormentarem? A chorar todas as lágrimas que tenho até elas secarem por completo? A pensar na vergonha que sentiriam de mim os que me amam, eventualmente também eles a culpar-se por eu ali ter chegado, a imaginar os amigos que em breve deixariam de o ser e as visitas que nem sei se quereria ter, só para não ver nos olhos do outro lado da mesa no parlatório o sofrimento que causei. Mereceria cá estar dentro? Talvez sim, talvez não. Mas isso pouco importaria para o que agora seria a minha nova realidade. Teria forma de limpar a minha alma escura e de me regenerar? Vontade e capacidade de me reconciliar comigo própria antes de tudo? E Deus estaria lá de facto para me levar ao colo?
O medo. Como viveria com o medo constante a todas as horas do dia e da noite? Quem viria em meu auxílio? Alguém algum dia se importaria comigo? Com as razões que levaram a minha vida a seguir um percurso até aqui chegar?
Ser visitador prisional é ser sempre bem recebido e estimado pelos reclusos que sentem em nós uma brisa de ar puro, um raio de sol, um motivo para sorrir. Não vamos levar Deus à cadeia. Ele já cá está, não é, querido e saudoso padre João [Gonçalves, coordenador da pastoral prisional que morreu em 2020]?
Mas ficamos felizes por perceber que há quem O procure aqui dentro, às vezes pela primeira vez, por haver quem fique de olhos rasos de lágrimas quando escuta algumas das Suas palavras e no fim nos pegue nas mãos e diga apenas “Muito obrigado por ter vindo.”
Se um dia eu estivesse cá dentro, penso que tudo o que desejaria era encontrar alguém que não me julgasse mais, que me sorrisse e desse as boas-vindas, que não se importasse com os meus crimes e me tratasse como um ser humano que está a tentar reerguer-se. Alguém que tivesse empatia e percebesse que qualquer um de nós é maior do que os seus erros. Alguém que me recebesse de braços abertos sem receios nem restrições mentais. Alguém que me perguntasse se eu estava bem e me ajudasse nos dias mais difíceis. Alguém em que eu pudesse confiar e com quem pudesse conversar sabendo que me escutava sem estar a avaliar-me. Alguém que me fizesse sentir “Eu importo”.
E, acima de tudo, alguém que me fizesse acreditar que um dia, lá fora, não estaria sozinha nem desamparada e teria sempre quem me apoiasse. No fundo, alguém que me visse como eu afinal sou, uma pessoa que erra e continua sempre a tentar não errar mais.
Lígia Pires é visitadora nos estabelecimentos prisionais de Custóias, Santa Cruz do Bispo e Polícia Judiciária/Porto; testemunho apresentado no momento de renovação do compromisso dos visitadores após a cerimónia do Lava-Pés, na celebração de Quinta-Feira Santa com reclusos, nos estabelecimentos prisionais da região Porto/Matosinhos.
Tempo da Criação
A alegria é a coisa mais séria da vida
P. Francisco Campos, sj | 9 Abril 2023 | in Ponto SJ
Bigodaram o Almada. Houve alguém que não percebeu que a coisa, essa coisa da alegria, era séria. PIM
Vamos por partes. Vamos ao fundamento.
Jesus ressuscitou! E isso traz frutos deliciosos que não podemos descurar.
Entre muitos, o Senhor da vida traz-nos a paz e a alegria.
Foi isso que mais uma vez confirmei em dois momentos.
O Cantinho da Paz
Fui no outro dia em regime de Sábado Santo ao túmulo de Jesus. É em Lisboa e é cantinho de paz. Come-se muito bem, em tom goês, e vale a pena uma visita. Daquelas com boa companhia, como se faz quando se vai visitar Jesus.
Assim foi.
Íamos em busca não sei bem de quê. De encontro certamente. E a pergunta era como é que realmente iríamos tirar a pedra que sabíamos existir para que encontrar a ressurreição fosse possível. Entrámos e fomos acolhidos pela Ana, toda ela delicadeza natural, fruto de uma genética bem desenvolvida por muitos anos. “Esse é o cantinho de paz que vos está destinado” – disse ela.
E foi, como fruto da ressurreição, o que nos foi concedido. Contámos a cada um a sua versão da história, sem esconder a dor, o abandono, a fragilidade. Vimos a cruz. Apareceu outra. Trocámo-las, deixámos que o outro a contemplasse. Foi possível tocar na cruz de cada um. Na dor, mas sobretudo na doação.
“A bebinca é prova da existência de Deus, sabias?” Não sabia, mas fiquei a saber porque é experiência de ressurreição e isso transforma a cruz em sentido. Sentido para acolher a paz do cantinho. Por isso, Jesus ressuscitado insiste tantas vezes: “A paz esteja convosco!” E repete a doação: “A paz esteja convosco.”
Recebemo-la como fruto daquela refeição. Pudemos deixar o Cantinho da Paz porque aí há vida, porque a Lina corta a cebola ao mesmo ritmo que bate o coração, porque aí não se esquece a história, nem a sabedoria acumulada, nem a dor. E porque essa paz se estende ao mundo inteiro.
Onde há paz, aí está o Senhor a ressuscitar.
Viva Jesus Cristo, Senhor e Rei da Paz!
A Arcada da Alegria
Dias mais tarde passei diante do Almada que dizia que a alegria é a coisa mais séria da vida. Não o levaram a sério. E PIM!
Pensaram que uma graçola, feita à conta de um bigode mal aparado com lata de spray, iria trazer muita alegria. Mas não. Porque essa não é a alegria do ressuscitado. A alegria de Jesus é serena e profunda, e não prefere as vias jocosas. Vem de uma promessa que se faz presença de quem nos precede na Galileia. E isso é coisa muito séria.
Por isso, não compreendo um cristianismo que não reconhece a paz e a alegria não só como frutos da ressurreição, mas também como caminho direto para o encontro com Cristo. Um cristianismo de fiéis trombudos, pessimistas, causadores de divisão, que deixam pior do que quando chegaram quem esteve na sua presença. Não levam a sério o sepulcro vazio. Não deixam que os frutos da ressurreição entrem na sua vida.
É que a ressurreição apesar de ser uma realidade que se impõe, pode ser ignorada ou menosprezada. Por isso, para ser assumida, tem de se optar pelos seus frutos. A alegria e a paz não são só graças que caem do céu. São opções de quem quer viver a ressurreição de Jesus. E isso é a coisa mais séria da vida.
Boa Páscoa! Boas opções!
Tempo da Criação
Os abusos e a Igreja católica
Olhar e escutar a dor, em processo sinodal
Cecília Vaz Pinto | 7 Abr 2023 | in 7 Margens
Nesta sexta resposta ao desafio do 7MARGENS, Cecília Vaz Pinto, médica, sugere que os bispos olhem e escutem as vítimas e quem num verdadeiro processo sinodal, ouçam a opinião e os saberes de leigos católicos. A renovação dos modos de comunicar e dos processos formativos – incluindo nos seminários –são outras sugestões feitas.
Em pleno percurso sinodal, convocado pelo Papa Francisco em Outubro 2021, a Igreja em Portugal assistiu a 13 de fevereiro de 2023 à apresentação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa – “Dar voz ao silêncio”, e em seguida, a 3 de Março, à reação da Conferência Episcopal Portuguesa.
Perante o choque e a dor que sentimos com a tragédia dos abusos sexuais, e a tristeza perante a reação, terá de ser necessariamente à luz da sinodalidade, ou como diz o Papa Francisco à luz do “caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio”, que se podem pensar nos pontos centrais e nas medidas a assumir pela Igreja. Desde logo:
– Olhar e escutar as vítimas. Olhar e ver, e escutar abrindo o coração para de algum modo se abeirar do seu sofrimento.
Cabe à hierarquia da Igreja, dar um passo nesse sentido, como o Papa Francisco o fez, olhando e escutando a dor nalguns testemunhos. Olhar e escutar as vítimas que assim o entenderem, respeitando também todas as que quiserem preservar seu anonimato.
– Iniciar o percurso do cuidado às vítimas. Num caminho ainda sem todas as respostas, é preciso estruturar e articular o cuidado com os que possuam competências específicas, ao mesmo tempo que se ouvem os crentes e não crentes e se dialoga com estruturas da sociedade civil e estatais (Ministério da Saúde, por exemplo).
– Ouvir os leigos, religiosos e diferentes comunidades. Ouvir os que já se pronunciaram e chamar outros a esta reflexão. Um processo de escuta ativa, com o objetivo de conhecer como os leigos interpretam os acontecimentos, vivendo a sua Fé como protagonistas do quotidiano na sociedade, em diferente meios sociais, profissionais e culturais. Os leigos têm hoje o desafio de ser testemunho de Cristo, num processo de evangelização que já não atravessa mares, mas atravessa os muros de uma sociedade descrente e que os interpela. Comunidade eclesiástica e leigos têm de caminhar juntos à luz sinodal e aprender a fazer este caminho: o clero com disponibilidade para a escuta e os leigos não se escudando à reflexão que se impõe. Um processo de reflexão que pode ser feito da parte dos leigos a partir de pequenas comunidades, mas em comunicação com outras comunidades e estruturas da Igreja.
– Comunicar e, desde logo pensar a comunicação no interior da Igreja, como fruto de um querer e de uma necessidade, mas também de um processo que deve ser estruturado e criativo pensando em novos canais de comunicação, que funcionem de um modo recíproco e permitam um enriquecimento mútuo, num caminho de transformação para uma igreja mais unida e mais próxima.
As próprias cartas pastorais sobre o tema dos abusos devem ser objeto de reflexão pela Igreja, podendo essa reflexão ser proposta quer pela comunidade eclesial, quer pelos leigos. Já em 2010, na altura dos acontecimentos na Irlanda, o Papa Bento XVI escreveu uma carta pastoral para ser lida em todas as paróquias de modo a “expressar a proximidade e propor um caminho de cura, de renovação e de reparação” e em 2018 o Papa Francisco escreveu uma Carta ao Povo de Deus também sobre o mesmo tema.
– Comunicar melhor internamente favorece a comunicação externa, numa informação clara e transparente em sintonia com todos os baptizados. Uma Igreja em comunhão com os leigos e menos clericalizada, comunicará numa linguagem mais acessível à época atual, para crentes e não crentes.
– Ao tema da formação deve a Igreja dar particular atenção, e essa tem sido uma mensagem do Papa Francisco também em relação à formação nos seminários e à vida dos sacerdotes. Também é necessária uma formação transversal aos leigos, que na família e nas estruturas da igreja ou outras devem estar atentos aos sinais de possíveis abusos, não descurando a abordagem ao tema da sexualidade e do cuidado ao outro.
A transformação da Igreja, que as crises proporcionam, pode ser uma via para uma Igreja mais autêntica e purificada, mais em comunhão e próxima da figura de Jesus no Evangelho, e sobre esse mesmo olhar de esperança continuar um caminho sinodal e de renovação.
Tempo da Criação
Os abusos e a Igreja católica
Prefácio do secretário de Estado da Santa Sé, card. Pietro Parolin, ao livro “Il dolore della Chiesa di fronte agli abusi” (A dor da Igreja perante os abusos), assinado pelo bispo emérito de Nanterre, D. Gérard Daucourt, pelo padre canossiano, psicólogo e psicoterapeuta Amedeo Cencini, e pelo teólogo Andrés Torres Queiruga (Pazzini Editore).
Na linguagem bíblica, a palavra coração refere-se à pessoa na sua totalidade, e não apenas à sede dos sentimentos e dos afetos. O coração é o lugar de onde dimanam pensamentos, propósitos, paixões e projetos, espaço de terra sagrada da responsabilidade, da liberdade, a sede das opções a realizar; com o coração não só se ama, mas pensa-se, escuta-se e relaciona-se.
Sem meios termos, Jesus explica que o mal e o bem têm origem precisamente no coração: «Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, as prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições, perversidade, má fé, devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios» (Marcos 7, 21-22); como também proclama bem-aventurado quem tem um coração puro, isto é, capaz de reservar a Deus o primeiro lugar (cf. Mateus 5, 8), ao mesmo tempo que critica quem, ao contrário, o endureceu, fechando-se ao seu amor.
Bem sabemos o quanto é indefeso o coração de uma criança, facilmente influenciável por aquilo que sente, vê ou recebe. Quando, com efeito, Jesus pronuncia o discurso sobre o escândalo, tem entre os seus braços uma criança. Mas o episódio referido por Mateus tem uma premissa: a pergunta sobre o poder dos discípulos: «Quem é o maior no Reino dos Céus?».
Então Jesus assume como modelo uma criança: «Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe».
A criança como modelo de autenticidade, simplicidade, transparência da própria fé. Da qui deriva a condenação: «Mas, se alguém escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos! São inevitáveis, decerto, os escândalos; mas ai do homem por quem vem o escândalo!». E conclui: « Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus anjos, no Céu, vêem constantemente a face de meu Pai que está no Céu» (Mateus 18, 6-10).
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Diante da dor infligida por comportamentos que surgem como loucos, dramáticos, além de qualquer possível explicação e, até, qualquer capacidade de compaixão, o ser humano precisa de encontrar “uma” causa. Quanto mais ela é clara e circunscrita, mais parece aliviar a raiva e o desconcerto que esse acontecimento produziu.
Todavia, as vicissitudes humanas subtraem-se à explicação unívoca e linear: o ser humano é muito complexo, entre bem e mal, entre recursos e limites, como são inevitavelmente complexas as motivações que movem o seu coração e por vezes os seus gestos. O abuso sobre menores está entre aquelas situações insustentáveis de aceitar, ainda mais quando quem comete o crime é uma pessoa que fez do serviço de Deus e do seu povo uma missão de vida. É demasiado!
Urge pôr-lhes remédio. Sobre esta questão intervêm os temas que nestes anos a Igreja colocou com nervo: do fim da lei do silêncio à transparência, à formação, à direção espiritual, ao acolhimento e à escuta das vítimas.
Além disso, permanece em aberto a interrogação última de como dar um sentido ao sofrimento dos inocentes. Pergunta que não tem resposta fora da fé. Só se Deus está nas vítimas podemos entrever um sentido, de outra forma estamos na angústia. Especificamente, nestes anos começou a colocar-se a questão de qual é a causa: «É culpa do celibato!»; «se a Igreja estivesse mais atenta a não acolher homossexuais!»; «se houvesse menos clericalismo!». E, por fim, pergunta-se o que deve ser feito à pessoa do culpado.
Muitas vezes as duras palavras de Jesus sobre quem escandaliza “os pequeninos” são utilizadas para condenar os pedófilos e até para lhes justificar a condenação à morte. Como pode Jesus chegar a tanto? Logo Ele que indica a via da perfeição no amor pelos inimigos e na oferta do perdão setenta vezes sete, isto é, sempre!
A imagem de suspender ao pescoço a mó de um moinho é um sinal da duríssima condenação de quem escandaliza, um sinal muitas vezes reutilizado para outros juízos sobre culpas gravíssimas, mas não é o fundamento bíblico nem do suicídio do pecador nem da pena capital a reservar aos profanadores da inocência dos pequeninos.
Jesus parece recorrer a uma imagem terrível para fazer compreender a gravidade da culpa de quem escandaliza o irmão de fé frágil, e utiliza uma linguagem simbólica e vigorosa para recordar o severo juízo divino em relação àquele pecado. (…)
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Uma atitude fundamental é a de não ficar satisfeito do que se ouve dizer ou de leituras simplistas, ficando, antes, aberto às investigações e aos estudos sobre o tema do abuso, que diz tanto respeito ao âmbito familiar quanto desportivo e das organizações religiosas. Celibato/abuso, homossexualidade/abuso, atenção aos reducionismos perigosos e totalmente arbitrários!
A prática da Igreja latina, que pede aos seus ministros o compromisso do celibato e, consequentemente, a continência sexual, remonta a dois concílios significativos: o Concílio de Elvira, no século IV, e o Concílio Lateranense IV, em 1215, e desde então essa norma permaneceu uma constante para os sacerdotes da Igreja católica latina. O problema dos abusos sobre menores, por seu lado, teve um andamento descontínuo, em termos numéricos de crescimento e decrescimento ao longo dos anos. É evidente, portanto, que a ligação causa-efeito entre um e outro é indevido, e faz pouco sentido colocar em discussão o celibato em si, na base das suas derivas.
Sejam mais tomados em consideração – pela incidência de relevo sobre o fenómeno dos abusos – os programas formativos de seminários e institutos religiosos, que só nas últimas décadas deram uma séria atenção à maturidade humana e psicoafectiva dos candidatos e à qualidade das relações fraternas, antes decididamente na sombra em relação à formação académica e espiritual. Torna-se mais claro, então, como a chaga do abuso, dentro e fora da Igreja, está sobretudo ligada a personalidades desarmónicas, gravemente deficitárias no plano emotivo e de capacidade relacional.
Não só. Apesar dessas aquisições, numa certa gama de testes de diagnóstico psicológico os padres abusadores, no que diz respeito a características individuais externas ou mais superficiais, não diferem de modo significativo dos não abusadores, nem manifestam mais patologias em comparação com o grupo de controlo, dado que soa desconcertante quanto à nossa necessidade de encontrar evidências claras e unívocas. Por outras palavras: não são imediatamente reconhecíveis, confirmando que as generalizações grosseiras são totalmente inadequadas para “explicar” o drama do abuso sobre menores.
É preciso, portanto, uma análise mais aprofundada e destes de tipo projetivo para intercetar eventuais problemas psicológicos que representem os fatores que predispõem ao abuso, ou (…) a prisão, em que o amadurecimento afetivo do indivíduo, leigo ou presbítero, permaneceu bloqueado.
A maturidade humana: é precisamente este o aspeto central, ainda que não exclusivo, a tomar hoje em séria consideração na avaliação de quem está em caminho vocacional, nos seminários e nas comunidades religiosas, e não só na fase inicial do percurso, mas ao longo de toda a vida ministerial e apostólica. O olhar sobre a pessoa deve ser global, capaz de avaliar o seu funcionamento atual, e como foram vividas e integradas (ou não) eventuais situações dramáticas que marcaram a infância e a adolescência: violência físicas e verbais, abandonos, ambientes conflituais.
Toda a parcelação da pessoa a um só dado da sua história ou da sua personalidade representa uma pesada e injusta condenação a priori sobre a sua maturidade e sobre a capacidade de amar de maneira autêntica, fiel e livre, segundo a sua vocação específica.
Nesta lógica de respeito pela complexidade do ser humano, em que toda a dimensão de si deve ser lida no conjunto de um todo mais amplo, também a orientação homossexual não pode ser considerada nem causa, nem aspeto típico do abusador, ainda mais quando é desligado da estrutura geral da pessoa. É uma associação grave e cientificamente insustentável aquela que liga o “sexual ofender” à sua homossexualidade, a priori, e sem uma avaliação subjetiva.
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A Igreja, hoje, finalmente, pretende promover este ambiente de atenção à pessoa e à formação humana como prevenção dos abusos da parte de ministros ordenados, porque «agora não podemos mais dizer que não sabíamos» (…).
É unanimemente aceite, com efeito, que no nosso tempo, tão complexo e articulado como nunca, não se podem improvisar os papéis de superior ou formador. É verdade que a sua preparação não constitui garantia absoluta de um andamento sereno do futuro presbítero, mas é ineludível a exigência de que os educadores tenham os instrumentos necessários para assumir um papel tão delicado e de grande responsabilidade, pessoal e eclesial.
Mas nem só isto basta. É também necessário repensar com coragem e clareza o acompanhamento pós-formação: a solidão e um excesso de trabalho minam demasiadas vezes a serenidade e o equilíbrio psicológico e emotivo dos presbíteros, tornando urgente uma reflexão sobre o pós-seminário, sobre mudanças antropológicas e sobre o ambiente em que o ministro se insere. (…)
Uma reflexão articulada e competente [por parte dos autores do livro prefaciado], que não se poupa a evidenciar as contradições em que a Igreja caiu no passado e pode ainda cair, a par com a sua vontade honesta de abrir os olhos. A mudança de rota, porém, deve concretizar-se num compromisso efetivo e construtivo para compreender até ao fundo o fenómeno do abuso e eliminar as condições que o favorecem. (…)
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Da atenção do bispo ao abusador e de uma leitura sistémica que reconhece a complexidade do fenómeno nasce a proposta de «quase um decálogo» - como o define o formador e psicólogo [P. Amedeo Cencini] – de atitudes ideais que deveriam ser concretizados tanto pela Igreja como pelas comunidades singulares para prevenir e/ou enfrentar o mal. Parte-se do reconhecimento e denúncia do abuso, passando pela identificação das raízes e das consequências do drama, chegando à atenção à vítima e à vigilância sobre o abusador, através da formação inicial e permanente de seminaristas e presbíteros. (…)
Todos precisamos desta perspetiva humana e misericordiosa, porque demasiadas vezes fica-se pelo reconhecimento da culpa e a punição do culpado, mas perde-se de vista o estilo compassivo de Jesus, como nos recordam as palavras da “Amoris laetitia” (…): «Ninguém pode ser condenado para sempre porque não é a lógica do Evangelho» (n. 297). Quem errou, quem saiu do caminho, quem cometeu o mal não pode ser abandonado a si próprio; é a possibilidade de que uma história ferida possa encontrar acolhimento para além da desesperação, e quem errou possa «avançar por um caminho de paz e de cura» que dê esperança.
De Jesus, que tem nos braços uma criança e pronuncia severas palavras em sua defesa, podemos e devemos aprender a ternura e a responsabilidade em relação aos pequeninos, a ter, como Ele, apertada entre os braços a fraqueza de todos, essa fragilidade que requer custódia amorosa e cura atenta, mas também uma contínua e profunda conversão, para que, como recorda o papa Francisco, a santidade pessoal e o compromisso moral ajudem a promover a credibilidade do anúncio evangélico e a renovar a missão educativa da Igreja (cf. Carta Apostólica em forma de “Motu Proprio” do sumo pontífice Francisco sobre a proteção dos menores e das pessoas vulneráveis, 26 de março de 2019).
Card. Pietro Parolin | In Settimana News | Trad.: Rui Jorge Martins | in SNPC | Publicado em 30.03.2023
Tempo da Criação
«Semeador de sorrisos, é belo»:
Papa Francisco anima trabalhadores das atrações itinerantes
«A felicidade de uma criança nos divertimentos é uma imagem de alegria pura que pertence à memória de cada família», destacou esta segunda-feira o papa, ao receber, no Vaticano, membros da União Nacional de Atrações Itinerantes de Itália, a quem recordou a importância da sua «vocação» de «semear alegria» também para o anúncio do Evangelho.
Francisco agradeceu aos trabalhadores itinerantes o facto de a sua atividade recordar que o ser humano não é feito «apenas para o trabalho, mas também para a festa», não isoladamente, como é muitas vezes frequente com os aparelhos eletrónicos, mas ao ar livre e com os amigos. Excertos das palavras do papa.
«A pandemia impediu-vos de desenvolver as habituais atividades, viajando de praça em praça com as vossas atrações. (…) Agora, graças a Deus, pudestes recomeçar. A Igreja continua a acompanhar-vos anunciando-vos Cristo Salvador, que percorria cidades e aldeias levando a todos o anúncio feliz do Reino de Deus.
“O Senhor – diz-nos a Escritura – caminha à tua frente; Ele estará contigo, não te deixará e não te abandonará; não temeis e não percas o ânimo” (Deuteronómio 31, 8). Estas palavras dirijo-as hoje a vós, queridos irmãos e irmãs trabalhadores do espetáculo itinerante.
A exortação apostólica “Evangelii gaudium” começa assim: «A alegria do Evangelho enche o coração e toda a vida daqueles que se encontram com Jesus». E também vós cooperais em larga medida para o anúncio do Evangelho por causa da alegria que levais às pessoas com as vossas atrações.
Vós sois semeadores de alegria, não o esqueçais! E por vezes semeais alegria em momentos em que o coração não está feliz, está triste por causa dos problemas… Mas vós semeais, a vossa vocação é semear alegria. Por isso encorajo-vos a ter sempre o vosso coração e a vossa vida abertas a uma perspetiva de fé, que nasce do encontro com Jesus, presente e operante na sua Igreja, presente e operante em vós, em cada uma das pessoas que encontrais, em cada uma das pessoas que fazeis rir. Que é uma das coisas belas: semeador de sorrisos, é belo!
Ao permanecer com as atrações nas regiões e nas cidades, ofereceis às crianças e aos adultos momentos de descontração, distraindo-os um pouco das preocupações que assediam a vida quotidiana. A felicidade de uma criança nos divertimentos é uma imagem de alegria pura que pertence à memória de cada família.
O sentido de alegria e de festa que disseminais brota da criatividade e da fantasia, não decalca os modelos artificiais e conformistas que circulam nos meios de comunicação social; alimenta-se não da busca de sensações sempre novas, mas da simplicidade e genuinidade que se pode respirar num parque de diversões.
Queridos irmãos e irmãs, ide em frente no vosso trabalho itinerante. Num mundo onde se respira muitas vezes um ambiente cinzento e pesado, vós recordais-nos que o caminho para se estar contente é a simplicidade; e também uma forma de divertimento ao ar livre e em companhia: o oposto daquilo que cada vez mais se vê hoje, cada um sozinho com o seu telemóvel ou com o computador, que te isola da comunicação social.
Vós convidais a sair, ao encontro nas praças, ao divertimento em conjunto. Valorizo-vos por isso. E agradeço-vos porque, no fundo, recordais-nos que não somos feitos apenas para o trabalho, mas também para a festa, e Deus fica contente quando nós festejamos juntos com irmãos em simplicidade.
E a vossa vocação é: rir e fazer sorrir. Por vezes o coração está triste, mas a vocação leva-te para a frente para dar sorrisos aos outros, sorrisos que o façam rir. E isto é belo: semear sorrisos, semear alegria, semear paz, semear um horizonte mais positivo do que aquele que talvez as pessoas estejam a viver naquele momento. Em frente, com a alegria.»
Papa Francisco
Vaticano, 20.3.2023
Texto e imagem: Sala de Imprensa da Santa Sé | in SNPC | Trad.: Rui Jorge Martins | Publicado em 21.03.2023
Tempo da Criação
Rezar ao ritmo da terra
Luísa Ribeiro Ferreira | 18 Mar 2023 || in 7 Margens
Nestas últimas semanas temos vivido tempos difíceis, nos quais dolorosamente percebemos o significado real da expressão, muitas vezes ouvida, “uma Igreja santa e pecadora”. É-nos fácil reconhecer a sua santidade, não só porque é constantemente lembrada nos grandes textos do cristianismo, mas também porque o convite que permanentemente nos é feito se concretiza na exortação “Sede perfeitos como o vosso Pai é perfeito” (Mt 5, 48). A exigência deste apelo é muitas vezes esquecida pois aceitamos com naturalidade o facto de nos sentirmos, e de facto sermos, pecadores.
Em criança aprendi no Catecismo que “há pecados que bradam aos céus”, algo que nessa altura nunca percebi e para o qual me davam explicações vagas. Hoje sei que os abusos sobre as crianças ou sobre os elementos mais frágeis de uma comunidade podem integrar-se nesse rol. E na situação que presentemente vivemos, coloco-me ao lado de todo(a)s que não só têm denunciado essas situações, como também daquele(a)s que exigem reparação – e não se trata de uma questão de vingança mas sim de justiça para com as vítimas.
Nos dias que ultimamente vivemos senti-me traída pela displicência, confusão e superficialidade com que a hierarquia da Igreja respondeu a esta situação. E orgulhosa com o facto de ter havido vozes críticas das bases, denunciando esse modo de agir (ou de não agir). Tornava-se-me necessário um tempo de reflexão e de distanciamento. Assim, foi com enorme satisfação que participei, durante alguns dias, num grupo de cristãos que se propunha “rezar ao ritmo da terra”. O local foi a Casa Velha, em Ourém; os participantes eram maioritariamente jovens, algumas crianças, e um pequeno grupo de gente mais velha, no qual me incluí. Presidiu a este encontro um padre que, para além das celebrações, também trabalhou a terra, cavando, podando e abrindo valas, como toda a gente.
A proposta para iniciarmos o trabalho nos campos foi tratar do que era necessário e simultaneamente fruir da beleza em que estávamos integrados, contemplando, sem no entanto deixar de agir, pois o trabalho era muito e urgente. Assim, cortámos ervas daninhas, podámos árvores e plantas, envasámos, construímos uma horta e tratámos de outras, num ambiente de cooperação em que o mais forte ajudava o mais fraco e o mais sabedor o ignorante. Embora as nossas tarefas fossem bem delimitadas – nas mais das vezes implicando arrancar e destruir muita coisa inútil e prejudicial –, todas estas actividades nos davam um sentido de pertença a um todo no qual também nos integrávamos. E muitas vezes me lembrei do meu filósofo preferido, Baruch de Espinosa, para quem Deus e a Natureza se identificam – Deus sive Natura (Deus ou a Natureza) – escreveu ele na sua Ética.
Nesses três dias que passámos a cuidar da terra houve troca de experiências, partilha de testemunhos, orações cantadas e rezadas. “Ao Ritmo da Terra” foi o slogan que acompanhou este encontro. Atendendo a esta proposta procurámos reencontrar o nosso próprio ritmo, integrando-o neste momento particularmente difícil que a vida da Igreja portuguesa atravessa. Mas tal como na natureza há morte e ressurreição, foi-nos lembrado, como proposta de meditação, um excerto do Eclesiastes:
“Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que se deseja debaixo do céu: tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para plantar e tempo para arrancar o que se plantou, tempo para matar e tempo para curar, tempo para destruir e tempo para edificar, (…) tempo para amar e tempo para odiar, tempo para a guerra e tempo para a paz. (Eclesiastes 3, 1-8).
Esperamos que este tempo em que rezámos ao ritmo da terra possa ser uma ajuda para a reconciliação da nossa Igreja e de nós mesmos com ela.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática (aposentada) de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa.
Tempo da Criação
Retirei-me
Fev 28, 2023 | Lígia Silveira, Agência ECCLESIA
Confesso não ter sido fácil, mas em boa hora decidi retirar-me por uns dias. O calendário da tradição litúrgica da Igreja católica convidava a parar mas são tantos os anos em que o calendário tem passado por mim mas eu não passo por ele. Um amigo disse-me esta verdade que eu fui confirmando na vida: «A Quaresma tem um programa próprio e a seu tempo surpreende-nos».
Este ano, a surpresa do tempo veio acompanhada por uma autora, já lida e que descansava na prateleira entre colegas escritores: Etty Hillesum, o seu Diário, as Cartas publicadas e o desafio de com ela rezar a Quaresma.
Deixar que seja a natureza, quer do corpo quer do contexto, a guiar os dias, foi para mim o primeiro passo. Também a jovem judia, mestre espiritual, não fugiu do que sentia, mas foi aos poucos, procurando silenciar o interior para entregar, e ordenar, o que estava a viver.
«Etty juntou o jasmim e os pés gastos» – o espaço silencioso (que já era oração) que aprendeu a criar e depois a necessitar, uniu-o à contemplação, à beleza no mundo afirmada, sem qualquer dúvida, naquele ano e meio no seu Diário, apesar da eliminação massiva do ser humano – «Acho a vida prenha de sentido, apesar de tudo».
A palavra que no início tateava e colocava entre aspas, foi ganhando a forma de relação, foi para Etty a certeza em dias que se tornavam evidentes e dos quais não quis fugir. Naquele tempo, aprendeu a retirar-se, a ficar imóvel e a escutar: «A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, ó Deus, um grande diálogo. Às vezes, quando me posto nalgum canto do campo, com os meus pés plantados na tua terra e os meus olhos erguidos para o teu céu, o meu rosto fica inundado de lágrimas, lágrimas de profunda emoção e gratidão».
Quando decidiu que fugir da perseguição nazi não era para si uma opção, que também entre os barracões, a lama, o frio, o choro ininterrupto das crianças retiradas às suas mães, a desumanidade inexplicável, haveria de encontrar Deus, Etty tornou-se esmola. Quando discutiu com amigos que a queriam ajudar e decidiu não ficar sequestrada no medo – que para si significava já a morte – percebeu que não seria Deus a salvá-los, mas que teriam de ser mãos humanas a mostrar que também ali estava Deus. «Não és tu quem nos pode ajudar, mas nós quem pode ajudar-te – e ao fazer isto, ajudamo-nos a nós mesmos».
Quando Etty assume que o seu destino é viver no campo de trânsito de Westerbork, aguardando a sua chamada para o comboio que a levará para Auschwitz, o campo de concentração do extermínio, ajudando quem se cruza consigo, cuidando dos doentes, escrevendo cartas para familiares, ou perscrutando sinais de humanidade nos jovens guardas do campo, a jovem judia 29 anos faz jejum ao ódio. «A podridão dos outros também está em nós. Eu não vejo outra solução, não vejo outra solução senão voltar-me para dentro e arrancar toda a podridão que ai reside. E deixar de acreditar que podemos mudar alguma coisa no mundo, se não nos mudarmos primeiro a nós próprios. Isso parece-me ser a única lição a aprender com esta guerra».
«Ontem à noite, senti de repente que a minha paisagem interior era como um vasto campo de milho a amadurecer… dentro de mim há campos de milho, que vão crescendo e amadurecendo».
Se este não for um caminho quaresmal…
E nestes dias tive a certeza que Etty é para todos: crentes e não crentes, adultos na fé e crianças a aprender a falar, analfabetos de razões ou inteligentes de sentidos, pessoas que nunca entraram Deus e outros que se reconciliam com ele. Etty, que funciona como um espelho, é para todos!
PS: O meu obrigada à Mariana Abranches Pinto que ajudou a desabrochar e a regressar à Etty.
PS1: O seu lugar na prateleira vai ficar vago por algum tempo, enquanto os seus escritos repousam na cabeceira, ao meu lado, para me lembrar e desafiar a cada dia.
Tempo da Criação
Uma derrota para a humanidade
Fev 24, 2023 - Paulo Rocha, Agência Ecclesia
O Papa Francisco dirigiu uma pergunta a todo o mundo na última quarta-feira e repetiu-a hoje, dia em que se evoca um ano do conflito na Ucrânia: foi tudo feito para acabar com a guerra? Na audiência semanal, no Vaticano, Francisco questionou e tentaram-se respostas, com poucas certezas; hoje, para uma audiência ainda mais pública, nas redes sociais, volta a colocar a pergunta e as respostas serão ainda mais vagas.
Mesmo sem uma análise detalhada, é possível afirmar que não terá havido semana desde que começou a invasão da Ucrânia pelas tropas russas que o Papa Francisco não tenha apelado insistentemente à paz. E mesmo mais do que uma vez… Bastará revisitar as alocuções feitas nos encontros públicos, ao domingo, no ângelus, e em cada quarta-feira, na audiência geral.
Como tem acontecido em muitos momentos na História dos últimos 10 anos, o pontificado do Papa Francisco narra-se com surpresas, com gestos inesperados e inéditos, com mensagens interpeladoras. Também no que respeita à condenação da guerra na Ucrânia, como o demonstra a visita imediata ao embaixador da Rússia junto da Santa Sé no dia seguinte ao início do conflito armado ou o envio de ajuda humanitária para os ucranianos através de cardeais do Vaticano, a que se aliam tantos momentos de oração pela paz, feitos também de jejum, nomeadamente o que aconteceu em ligação com Fátima.
Neste ano de conflito, há duas imagens do Papa Francisco que são particularmente significativas e mostram o drama que vive no seu interior por causa de um conflito que teima em não terminar: a que mostra o Papa com bandeira da Ucrânia marcada por destroços da guerra, no início de abril, e quando Francisco chorou ao pedir o fim da guerra, diante da imagem da Imaculada Conceição, a 8 de dezembro, na cidade de Roma.
Mensagens cheias de determinação e imagens fortes que, apesar de tudo, são incapazes de deter a insanidade de quem apenas vê poder, domínio, conquista, impérios de tempos idos da história. De quem desconhece a humanidade! Porque é disso que se trata: fazer a guerra é querer derrotas para a humanidade.
No segundo dia invasão da Ucrânia pelas tropas russas, o Papa Francisco abriu a encíclica Fratelli Tutti, publicada no dia em que se evoca São Francisco de Assis, em outubro de 2020, para afirmar que “a guerra é o falhanço da política e da Humanidade”. E repetiu essa certeza recorrentemente ao longo dos últimos 365 dias, seja diante líderes das nações e das religiões, quando pediu a reforma da ONU ou o compromisso de diplomatas pelo diálogo entre nações, e depois de forma insistente na última mensagem para o Dia Mundial da Paz: “esta guerra, juntamente com todos os outros conflitos espalhados pelo globo, representa uma derrota não apenas para as partes diretamente envolvidas mas também para a humanidade inteira”.
Que a derrota não seja a última estação da comum humanidade…
Tempo da Criação
Desafios sociais europeus em 2023
ESPECIAL JUSTIÇA SOCIAL
P. Filipe Martins, sj | 7 Fevereiro 2023 | in Ponto SJ
Seis meses depois de ter assumido o lugar de Delegado Social dos jesuítas europeus, vai-se-me tornando claro parte dos desafios sociais que marcam a vida do nosso continente, e aos quais muitas das nossas instituições e redes (a par com muitas outras) vão tentando dar resposta. Sem querer fazer uma sua enumeração exaustiva, eis alguns destes principais desafios.
O primeiro grande desafio continua a ser a guerra na Ucrânia, com os 6 milhões de deslocados internos e 8 milhões de refugiados que saíram do país, num movimento e com uma escala de destruição e morte sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. Dramático continua a ser o facto de não se ver fim à vista do conflito, seja pelo reconhecimento das “anexações” das atuais autoridades de Moscovo (que faria prevalecer a “lógica da força” contra o “direito internacional”), seja por uma eventual vitória ucraniana com a expulsão do invasor russo. Infelizmente a guerra e a destruição não são exclusivos do nosso continente, e tantos outros conflitos entre estados ou civis (de Israel-Palestina ao Sudão do Sul, do Haiti a Myanmar) continuam a marcar a atualidade (não deixando o Papa Francisco de os denunciar com insistência e determinação, como há poucos dias na sua viagem a África). Na Europa tem sido sobretudo o Serviço Jesuíta aos Refugiados (JRS) a tentar dar resposta às necessidades dos refugiados ucranianos, com centros de acolhimento nos países vizinhos e a ativação das redes de instalação em muitos outros países europeus.
Um segundo desafio social liga-se ao aumento do custo de vida, devido ao aumento do custo da energia e à disrupção e escassez nas grandes linhas de distribuição de bens. Se a pandemia já tinha alterado várias das dinâmicas produtivas e de transporte comercial internacional, a guerra veio exponenciar essa dificuldade. De novo, mesmo se as dificuldades europeias não se podem comparar à falta aguda de alimento em muitos países do Sul Global, estudos referem que quase 1/4 dos europeus encontram-se em “situação financeira precária”, e entidades como os Bancos Alimentares e Caritas reportam um aumento exponencial nos pedidos de assistência por parte das famílias
Um terceiro desafio, cujos efeitos se têm rapidamente estendido, é o da crise climática. Não é novo o alerta (já em 1972 o Clube de Roma tinha escrito sobre “os limites do crescimento”), nem novos são os relatórios científicos anuais do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC). Considerados até há pouco como “alarmistas” e “desproporcionados”, vemos agora “na pele” estes efeitos anunciados (o calor extremo e os rios secos por toda a Europa no verão passado, as temperaturas anormais para esta altura do ano), e como há zonas do planeta que já se tornaram inabitáveis. É de 2015 o texto “Laudato Si´” do Papa Francisco, com o chamamento imperativo à alteração dos modelos económicos vigentes (nomeadamente no que respeita ao consumo e ao uso de combustíveis de origem fóssil) e à mudança para estilos de vida sustentáveis. Das poucas “Gretas” ativistas de há uns anos, são hoje cada vez mais os que o fazem, optando por gestos “radicais” (e ainda assim insuficientes, se não os fizermos muitos mais) como não viajar de avião ou deixar de comer carne bovina (pela produção de metano). A nível jesuíta, algumas províncias europeias têm-se destacado pelo assumir de um “plano de transição ecológica” claro e determinado, sendo que outras se implicam em ações de advocacy e desobediência civil diante da falta de cumprimento das promessas por parte dos governos.
A crise climática não altera só o clima, mas traz por arrasto muitos outros problemas, como a mudança dos ecossistemas e o impacto sobre as condições essenciais para a vida humana, nomeadamente água potável e a garantia de uma produção alimentar suficiente para todos. Estas questões da segurança alimentar e da eficiência e sustentabilidade da produção agrícola são igualmente críticas e “batem já à porta” da humanidade, embora para o europeu comum sejam ainda difíceis de imaginar (habituados como estamos às prateleiras cheias dos supermercados). Desde há anos que muitas ONGs e centros sociais (onde se incluem vários centros jesuítas em outros continentes, como o Jesuit Centre for Ecology and Development no Malawi) têm trabalhado estes temas, seja a nível de “advocacy” (p.e. lutando pela proibição de certos tipos de pesticidas) seja a nível das comunidades locais (p.e. ajudando na transição para culturas sustentáveis).
Como quinto desafio social para 2023, e numa lógica já indireta, aludiria à “Quarta revolução industrial“, o mundo novo digital que estamos a construir. “Revolução” cheia de potencialidades para unir e cuidar, tem “instrumentos” que vemos também ser usados para controlo e manipulação da informação, criação de polarizações e conflito nas sociedades, a hostilização do “outro” que é diferente (seja ele imigrante, pobre, com cor de pele inabitual, ou simplesmente defensor de outras opiniões). Não é por isso de estranhar que a própria UE tenha criado uma “task force” contra a desinformação, a partir da consciência de que a sociedade democrática, inclusiva e social é algo sempre necessitado de defesa e não vista como “dado adquirido”. Projetos escolares como o JRS Change (para compreender “por dentro” o fenómeno da imigração) ou a campanha em prol da educação universal “Silla Roja” (da ONG jesuíta espanhola Entreculturas) são bons exemplos do trabalho de sensibilização social que a nível da sociedade (e das nossas comunidades, escolas, paróquias e centros, etc.) está sempre por fazer-se.
No primeiro dia de cada ano celebra-se o Dia Internacional da Paz, e na mensagem para 2023 o Papa Francisco voltou a recordar as palavras de há uns anos, “ninguém pode salvar-se sozinho”. E continua: “não se pode ignorar o dado fundamental de que as variadas crises morais, sociais, políticas e económicas que estamos a viver encontram-se todas interligadas, e os problemas que consideramos como singulares, na realidade um é causa ou consequência do outro. […] O que se nos pede para fazer? Antes de mais nada, deixarmos mudar o coração pela emergência que estivemos a viver, ou seja, permitir que, através deste momento histórico, Deus transforme os nossos critérios habituais de interpretação do mundo e da realidade. Não podemos continuar a pensar apenas em salvaguardar o espaço dos nossos interesses pessoais ou nacionais, mas devemos repensar-nos à luz do bem comum, com um sentido comunitário, como um «nós» aberto à fraternidade universal. […] É hora de nos comprometermos todos em prol da cura da nossa sociedade e do nosso planeta, criando as bases para um mundo mais justo e pacífico, seriamente empenhado na busca dum bem que seja verdadeiramente comum”. Que assim possa ser em 2023.
Tempo da Criação
Igreja/Sociedade: «Não podemos continuar a devorar avidamente os recursos naturais» – Papa
Fev 11, 2023 | in Ecclesia
Francisco pediu para se «escutar mais os povos indígenas» e aprender com seu modo de vida
Cidade do Vaticano, 10 fev 2023 (Ecclesia) – O Papa Francisco destacou hoje a “crise social e ambiental sem precedentes”, afirmando que a “contribuição dos povos indígenas é fundamental na luta contra as mudanças climáticas”, aos participantes do 6° Encontro Mundial do Fórum dos Povos Indígenas.
“Infelizmente, assistimos uma crise social e ambiental sem precedentes. Se realmente queremos cuidar da nossa casa comum e melhorar o planeta em que vivemos, são imprescindíveis mudanças profundas nos estilos de vida, são imprescindíveis modelos de produção e consumo”, disse o Papa, na audiência, desta manhã, na Sala do Consistório, no Vaticano.
Francisco recebeu os participantes do 6° Encontro Mundial do Fórum dos Povos Indígenas, promovido pelo Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (FIDA), e destacou que a “contribuição dos povos indígenas é fundamental na luta contra as mudanças climáticas”, o que “está comprovado cientificamente”.
“Devemos escutar mais os povos indígenas e aprender com seu modo de vida a fim de compreender adequadamente que não podemos continuar a devorar avidamente os recursos naturais; ignorar as comunidades originárias na salvaguarda da terra é um grave erro, é o funcionalismo extrativista, para não dizer uma grande injustiça”, salientou o Papa.
‘Liderança dos povos indígenas em questões climáticas: soluções baseadas nas comunidades para melhorar a resiliência e a biodiversidade’, é o tema deste 6° Encontro Mundial do Fórum dos Povos Indígenas.
Para o Papa, este lema, é uma oportunidade para “reconhecer o papel fundamental” que os povos indígenas desempenham na proteção do meio ambiente e “destacar sua sabedoria para encontrar soluções globais para os imensos desafios que as mudanças climáticas colocam diariamente à humanidade”.
“Hoje, mais do que nunca, são muitos os que pedem um processo de reconversão das consolidadas estruturas de poder que regem a sociedade de cultura ocidental e, ao mesmo tempo, transformam as relações históricas marcadas pelo colonialismo, exclusão e discriminação, dando lugar a um diálogo renovado sobre a forma como estamos construindo o nosso futuro do planeta”, desenvolveu.
Francisco, pediu aos governos que “reconheçam os povos indígenas de todo o mundo, com suas culturas, línguas, tradições e espiritualidades”, e que respeitem a sua dignidade e os seus direitos, “conscientes de que a riqueza da nossa grande família humana consiste em sua diversidade”.
“As culturas indígenas não devem ser convertidas numa cultura moderna, não. Elas devem ser respeitadas.”
“Saber mover-se em harmonia é o que dá a sabedoria que chamamos de viver bem. A harmonia entre uma pessoa e sua comunidade, a harmonia entre uma pessoa e o ambiente, a harmonia entre uma pessoa e toda a criação. As feridas contra esta harmonia são as que estamos vendo evidentemente, que destroem os povos. O extrativismo, no caso da Amazónia, por exemplo, o desmatamento, ou o extrativismo de minério.”
Segundo o Papa, é louvável o trabalho do FIDA em “ajudar as comunidades indígenas num processo de desenvolvimento autónomo”, sobretudo pelo Fundo de Apoio aos Povos Indígenas, mas esses esforços “devem ser multiplicados e acompanhados de decisões firmes e claras, para uma transição justa”, divulga o ‘Vatican News’.
CB/PR
Tempo da Criação
VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
À REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO E SUDÃO DO SUL
(Peregrinação Ecumênica de Paz no Sudão do Sul)
[31 de janeiro - 5 de fevereiro de 2023]
ENCONTRO COM OS REPRESENTANTES DE ALGUMAS OBRAS DE CARIDADE
DISCURSO DO SANTO PADRE
Nunciatura Apostólica de Kinshasa
Quarta-feira, 1° de fevereiro de 2023
Queridos irmãos e irmãs!
Saúdo-vos cordialmente e agradeço os cânticos, os testemunhos e quanto me contastes, mas principalmente tudo o que fazeis! Neste país, onde há tanta violência que ribomba como o estrondo duma árvore derrubada, vós sois a floresta que cresce dia a dia em silêncio e torna o ar melhor, respirável. Claro, faz mais barulho a árvore que cai, mas Deus ama e cultiva a generosidade que silenciosamente germina e dá fruto, e pousa o olhar com alegria sobre quem serve os necessitados. Assim cresce o bem, na simplicidade de mãos e corações estendidos para os outros, com a coragem dos pequenos passos para se aproximar dos mais frágeis em nome de Jesus. É mesmo verdadeiro, o provérbio que Cecília citou: «Mil passos começam sempre com o primeiro»!
Houve uma coisa que me impressionou! É que não vos limitastes a elencar os problemas sociais nem a enumerar dados sem conta sobre a pobreza, mas sobretudo falastes com carinho dos pobres. Referistes a vossa relação com pessoas que, antes, não conhecíeis e agora se vos tornaram familiares: nomes e rostos. Obrigado por este olhar que sabe reconhecer Jesus nos seus irmãos mais pequeninos. O Senhor deve ser procurado e amado nos pobres e, como cristãos, devemos ter cuidado com nos distanciar deles, porque há algo errado quando um crente se mantém à distância dos prediletos de Cristo.
Hoje, enquanto muitos os descartam, vós abraçai-los; enquanto o mundo os explora, vós promovei-los. A promoção contra a exploração: esta é a floresta que cresce enquanto avança, violenta, a desflorestação do descarte! Quero dar voz àquilo que fazeis, favorecer o crescimento e a esperança na República Democrática do Congo e neste continente. Vim aqui animado pelo desejo de dar voz a quem a não tem. Como gostaria que os meios de comunicação dessem mais espaço a este país e à África inteira! Oxalá se conheçam os povos, as culturas, os sofrimentos e as esperanças deste jovem continente do futuro! Descobrir-se-ão imensos talentos e histórias de verdadeira grandeza humana e cristã, histórias nascidas num clima genuíno, que conhece bem o respeito pelos mais pequeninos, os idosos e a criação.
É bom poder dar-vos voz aqui na Nunciatura, porque as Representações Pontifícias, as «casas do Papa» espalhadas pelo mundo, são e devem ser amplificadores de promoção humana, cruzamentos de caridade, na vanguarda da diplomacia da misericórdia favorecendo ajudas concretas e promovendo redes de cooperação. Isto já acontece, sem alarde e há muito tempo, aqui e em muitas partes do mundo. Há decénios que esta casa é uma presença vizinha: inaugurada há noventa anos como Delegação Apostólica, celebrará dentro de poucos dias o sexagésimo aniversário da sua elevação a Nunciatura.
Irmãos e irmãs que amais este país e vos dedicais ao seu povo, aquilo que fazeis é maravilhoso, mas nada fácil. Apetece chorar ao ouvir histórias, como as que me contastes, de pessoas que sofrem condenadas pela indiferença geral a uma vida errante que as leva a viver na rua, expondo-as ao risco de violências físicas e abusos sexuais e até à acusação de bruxaria, quando estão apenas carentes de amor e de cuidados. Impressionou-me aquilo que nos disseste tu, Tekadio: por causa da lepra, ainda hoje – em 2023 – te sentes «discriminado, visto com desprezo e humilhado», enquanto as pessoas, levadas por um misto de vergonha, incompreensão e medo, se apressam a limpar o próprio trilho onde passou a tua sombra. A pobreza e a rejeição ofendem o homem, desfiguram a sua dignidade: são como cinzas que apagam o fogo que se traz dentro. Na verdade em cada pessoa, enquanto criada à imagem de Deus, resplandece um fogo luminoso, mas só o amor remove as cinzas que o cobrem: só devolvendo dignidade é que se restitui humanidade! Entristeceu-me ouvir que também aqui, como em muitas partes do mundo, crianças e idosos são descartados. Além de escandaloso, isso é nocivo para a sociedade inteira, que se constrói precisamente a partir do cuidado pelos idosos e as crianças, pelas raízes e o futuro. Lembremo-nos de que um progresso verdadeiramente humano não pode prescindir de memória e de futuro: a memória proporcionada pelos idosos, o futuro pelos jovens.
Irmãos, irmãs, hoje quero partilhar convosco e, por vosso intermédio, com os inúmeros obreiros do bem neste grande país, duas perguntas. A primeira: isto vale a pena? Vale a pena comprometer-se à vista de um oceano de carências em constante e dramático aumento? Não será trabalhar em vão, para além de se mostrar muitas vezes desanimador? Ajuda-nos o que disse a Irmã Maria Celeste: «Apesar da nossa pequenez, o Senhor crucificado deseja ter-nos ao seu lado para suportar o drama do mundo». É verdade! A caridade sintoniza com Deus, e Ele surpreende-nos com prodígios inesperados que acontecem através de quem ama. As vossas histórias estão cheias de acontecimentos estupendos, conhecidos pelo coração de Deus e impossíveis para as simples forças humanas. Penso naquilo que nos contaste tu, Pierre, dizendo que, no deserto da impotência e da indiferença, no mar da tribulação, descobriste, juntamente com os teus amigos, que Deus não vos esquecera, tendo enviado pessoas que não passaram ao largo na estrada onde estáveis. Assim, no rosto delas, descobristes o de Jesus e agora quereis fazer o mesmo pelos outros. O bem é assim: é difusivo, não se deixa paralisar pela resignação e pelas estatísticas, mas convida a dar aos outros aquilo que gratuitamente recebemos: eu recebi e, por minha vez, dou. É preciso que sobretudo os jovens vejam isto: rostos que superam a indiferença fixando as pessoas nos olhos, mãos que não pegam em armas e não manuseiam dinheiro, mas estendem-se a quem está caído por terra e o levantam para a sua dignidade, a dignidade de filha e filho de Deus. Trata-se do único caso em que é lícito olhar de cima para abaixo uma pessoa: para ajudá-la a levantar-se. Fora disso, nunca se pode olhar uma pessoa de cima para baixo.
Concluindo, vale a pena! E é um bom sinal que as Autoridades, através dos acordos recentes com a Conferência Episcopal, tenham reconhecido e valorizado a obra de quantos se empenham em campo sociocaritativo. Com certeza, isto não significa que se possa delegar sistematicamente ao voluntariado o cuidado dos mais frágeis, bem como o empenho na saúde e na instrução. São tarefas prioritárias de quem governa, com o cuidado de assegurar os serviços fundamentais também à população que vive longe dos grandes centros urbanos. Ao mesmo tempo, os crentes em Cristo nunca devem manchar o testemunho da caridade, que é testemunho de Deus, com a busca de privilégios, prestígio, visibilidade e poder. Esta é um coisa má, que nunca se deve fazer. Nunca! Os meios, os recursos e os bons resultados são para os pobres, e quem se ocupa deles é chamado a recordar-se sempre de que o poder é serviço e que a caridade não permite repousar sobre os triunfos, mas exige urgência e concretismo. Neste sentido, entre as muitas coisas que se hão de fazer, quero sublinhar um desafio que diz respeito a todos, e não pouco a este país: o que causa a pobreza não é tanto a ausência de bens e de oportunidades, mas a sua iníqua distribuição. Quem é abastado, particularmente se cristão, sinta-se interpelado a repartir o que possui com quem carece do necessário, sobretudo se pertence ao mesmo povo. Não é uma questão de bondade, mas de justiça. Não é filantropia, mas fé; pois, como diz a Escritura, «a fé sem obras está morta» (Tg 2, 26).
E aqui surge a segunda pergunta precisamente acerca da obrigação e urgência do bem: como fazê-lo? Como praticar a caridade e que critérios seguir? A propósito, gostava de vos oferecer três pontos simples; são aspetos que as instituições sociocaritativas aqui operantes já conhecem, mas é bom recordá-los para que o serviço a Jesus nos pobres seja um testemunho cada vez mais fecundo.
Antes de mais nada, a caridade requer exemplaridade: de facto, não é apenas algo que se faz, mas expressão daquilo que se é. É um estilo de vida; é viver o Evangelho. Por isso, são necessárias credibilidade e transparência: penso na gestão financeira e administrativa dos projetos, mas também no empenho por oferecer serviços condignos e qualificados. Este é precisamente o espírito que carateriza tantas obras eclesiais de que beneficia este país e que marcaram a sua história. Haja sempre exemplaridade!
O segundo ponto: clarividência, isto é, saber olhar ao longe. É fundamental que as iniciativas e as boas obras, além de responder às necessidades imediatas, sejam sustentáveis e duradouras. Não simplesmente assistencialistas, mas realizadas com base naquilo que realmente se pode fazer e com uma perspetiva de longo prazo, para que perdurem no tempo e não acabem com quem as iniciou. Neste país, por exemplo, existe um solo incrivelmente fecundo, uma terra extremamente fértil; a generosidade de quem ajuda não pode deixar de atender a esta caraterística, favorecendo o desenvolvimento interno de quantos povoam esta terra, ensinando-lhes a cultivá-la, dando vida a projetos de desenvolvimento que ponham o futuro nas suas mãos. Mais do que distribuir bens, que aliás serão necessários sempre, é preferível transmitir conhecimentos e dar instrumentos que tornem o progresso autónomo e sustentável. A propósito, penso inclusivamente no grande contributo oferecido pelos Serviços de Saúde católicos que neste país, como em tantos outros no mundo, dão alívio e esperança à população, indo gratuita e seriamente ao encontro de quem sofre, procurando sempre socorrer – como justamente deve ser – através de instrumentos modernos e adequados.
Exemplaridade, clarividência e finalmente – terceiro elemento – conexão. Irmãos e irmãs, é preciso construir rede, não apenas de forma virtual, mas concretamente, como sucede na sinfonia de vida da grande floresta deste país e sua variegada vegetação. Fazer rede: trabalhar cada vez mais juntos, estar em constante sinergia entre vós, em comunhão com as Igrejas locais e com o território. Trabalhar em rede: cada qual com o seu carisma, mas juntos, interligados, partilhando as urgências, as prioridades, as necessidades, sem fechamentos nem autorreferencialidades, prontos a juntar-se a outras comunidades cristãs e outras religiões e aos inúmeros organismos humanitários presentes. Tudo, para benefício dos pobres. Fareis rede com todos.
Queridos irmãos e irmãs, deixo-vos estas ideias e agradeço-vos tudo o que depusestes hoje no meu coração. Sim, muito obrigado porque me tocastes o coração. Sois preciosos. Abençoo-vos e peço-vos, por favor: continuai a rezar por mim, que preciso. Obrigado!
Tempo da Criação
VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
À REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO E SUDÃO DO SUL
(Peregrinação Ecumênica de Paz no Sudão do Sul)
[31 de janeiro - 5 de fevereiro de 2023]
ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, A SOCIEDADE CIVIL E O CORPO DIPLOMÁTICO
DISCURSO DO SANTO PADRE
Jardim do "Palais de la Nation", Kinshasa
Terça-feira, 31 de janeiro de 2023
Senhor Presidente da República,
Ilustres Membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Distintas Autoridades religiosas e civis,
Insignes Representantes da sociedade civil e do mundo da cultura,
Senhoras e Senhores!
Saúdo-vos cordialmente e agradeço ao Senhor Presidente as palavras que me dirigiu. Estou feliz por estar aqui, nesta terra tão bela, vasta e fértil, que abraça a floresta equatorial ao norte, planaltos e savanas arborizadas ao centro e para o sul, colinas, montanhas, vulcões e lagos ao leste, e a oeste grandes águas com o rio Congo que encontra o oceano. No vosso país, que é como um continente no grande continente africano, parece que toda a terra respira. Mas, se a geografia deste pulmão verde é tão rica e matizada, já a história não se mostrou igualmente generosa: atormentada pela guerra, a República Democrática do Congo continua a padecer, dentro das suas fronteiras, conflitos e migrações forçadas e a sofrer terríveis formas de exploração, indignas do homem e da criação. Este país imenso e cheio de vida, este diafragma da África, atingido pela violência como se fosse um murro no estômago, parece há muito sem fôlego. O Senhor Presidente mencionou este genocídio esquecido, que a República do Congo está a sofrer.
E enquanto vós, congoleses, lutais para salvaguardar a vossa dignidade e a vossa integridade territorial contra condenáveis tentativas de fragmentar o país, venho até junto de vós, em nome de Jesus, como um peregrino de reconciliação e de paz. Muito desejei estar aqui e, finalmente, venho trazer-vos a solidariedade, o afeto e a consolação de toda a Igreja e aprender do vosso exemplo de paciência, coragem e luta.
Quero falar-vos servindo-me duma imagem, que bem simboliza a luminosa beleza desta terra: a imagem do diamante. Queridas mulheres e homens congoleses, o vosso país é verdadeiramente um diamante da criação; mas vós, todos vós, sois infinitamente mais preciosos do que qualquer bem que brote deste solo fecundo! Estou aqui para vos abraçar e recordar que tendes um valor inestimável, que a Igreja e o Papa têm confiança em vós, acreditam no vosso futuro, num futuro que esteja nas vossas mãos e no qual mereceis poder investir os vossos dotes de inteligência, sagacidade e laboriosidade. Coragem, irmão e irmã congoleses! Levanta-te, retoma nas mãos, como um diamante puríssimo, aquilo que és, a tua dignidade, a tua vocação de guardar na harmonia e na paz a casa que habitas. Revive o espírito do teu hino nacional, sonhando e pondo em prática as suas palavras: «Através dum trabalho duro, construiremos um país mais belo do que antes; em paz».
Prezados amigos, os diamantes, habitualmente raros, aqui abundam. Se isto vale para as riquezas materiais escondidas no subsolo, com maior razão vale para as riquezas espirituais encerradas nos corações. E é precisamente a partir dos corações que a paz e o desenvolvimento continuam a ser possíveis, porque, com a ajuda de Deus, os seres humanos são capazes de justiça e perdão, de concórdia e reconciliação, de compromisso e perseverança em pôr a render os talentos recebidos. Desejo, pois, ao início da minha viagem lançar um apelo: que cada congolês se sinta chamado a fazer a sua parte! Que a violência e o ódio não tenham mais lugar no coração e nos lábios de ninguém, porque são sentimentos anti-humanos e anticristãos, que paralisam o desenvolvimento e fazem retroceder para um passado sombrio.
A propósito de desenvolvimento obstruído e retorno ao passado, é trágico que estes lugares, e o continente africano em geral, padeçam ainda de várias formas de exploração. Existe aquele lema que vem do inconsciente de muitas culturas e de muitas pessoas: «África deve ser explorada». Isto é terrível! De facto, depois da exploração política, desencadeou-se um «colonialismo económico» igualmente escravizador. Assim, largamente saqueado, este país não consegue beneficiar suficientemente dos seus recursos imensos: chegou-se ao paradoxo de os frutos da sua terra o tornarem «estrangeiro» para os próprios habitantes. O veneno da ganância tornou os seus diamantes ensanguentados. É um drama face ao qual, muitas vezes, o mundo economicamente mais desenvolvido fecha os olhos, os ouvidos e a boca. Mas este país e este continente merecem ser respeitados e ouvidos, merecem espaço e atenção: tirem as mãos da República Democrática do Congo, tirem as mãos da África! Basta com este sufocar a África: não é uma mina para explorar, nem uma terra para saquear. Que a África seja protagonista do seu destino! Que o mundo recorde os desastres perpetrados ao longo dos séculos em prejuízo das populações locais, e não esqueça este país e este continente. Que a África, sorriso e esperança do mundo, conte mais: fale-se mais sobre ela, tenha mais peso e representatividade entre as Nações!
Abra-se caminho a uma diplomacia do homem a favor do homem, dos povos a favor dos povos, onde estejam no centro, não o controle das áreas e recursos, nem as ambições de expansão e o aumento dos lucros, mas as oportunidades de crescimento das pessoas. Olhando para este povo, fica-se com a impressão de que a Comunidade Internacional se tenha quase resignado com a violência que o devora. Não podemos habituar-nos ao sangue que, há décadas, corre neste país ceifando milhões de vidas, sem que muitos o saibam. Seja conhecido tudo o que acontece aqui. Os processos de paz em curso, que encorajo com todas as forças, sejam sustentados com factos, e os compromissos sejam mantidos. Graças a Deus, não falta quem contribua para o bem da população local e para um efetivo desenvolvimento através de projetos eficazes: não meras intervenções assistenciais, mas planos tendentes a um crescimento integral. Expresso imensa gratidão aos países e às organizações que fornecem ajudas substanciais nessa linha, ajudando na luta contra a pobreza e as doenças, apoiando o estado de direito, promovendo o respeito pelos direitos humanos. Faço votos de que possam continuar a desempenhar plena e corajosamente esta nobre função.
Voltemos à imagem do diamante. Uma vez trabalhado, a sua beleza deriva também da sua forma, de numerosas faces harmoniosamente dispostas. De igual modo este país, enriquecido pelo seu típico pluralismo, possui um caráter poliédrico. É uma riqueza que deve ser salvaguardada, evitando cair no tribalismo e na contraposição. A adesão obstinada à própria etnia ou a interesses particulares, alimentando espirais de ódio e violência, reverte em detrimento de todos, já que bloqueia a necessária «química do conjunto». A propósito de química, um dado interessante é a constituição dos diamantes formada por simples átomos de carbono; mas, se estes forem diversamente interligados, formam a grafite: na prática, a diferença entre a luminosidade dum diamante e a obscuridade da grafite deve-se ao modo como os simples átomos estão dispostos no interior da molécula. Metáfora aparte; o problema não é a natureza dos homens ou dos grupos étnicos e sociais, mas o modo em que se decide estar juntos: querer ou não encontrar-se, reconciliar-se e recomeçar, marca a diferença entre a obscuridade do conflito e um luminoso futuro de paz e prosperidade.
Queridos amigos, o Pai do Céu quer que nos saibamos acolher como irmãos e irmãs duma única família e trabalhar para um futuro que seja vivido juntamente com os outros, não contra os outros. «Bintu bantu»: assim, de forma muito expressiva, um provérbio vosso recorda que a verdadeira riqueza são as pessoas e as boas relações com elas. Chamadas a contribuir para isso são de modo especial as religiões, com o seu património de sabedoria, esforçando-se diariamente por renunciar a toda a agressividade, proselitismo e coação, meios indignos da liberdade humana. Quando degeneram na imposição, lançando-se à caça de seguidores de modo indiscriminado com o engano ou a força, saqueiam a consciência alheia e viram costas ao verdadeiro Deus, porque – não o esqueçamos – «onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade» (2 Cor 3, 17) e, onde não está a liberdade, aí não está o Espírito do Senhor. No empenho por construir um futuro de paz e fraternidade, também os membros da sociedade civil – alguns deles aqui presentes – desempenham um papel essencial. Muitas vezes, à custa de grandes sacrifícios, deram provas de saber opor-se à injustiça e à degradação para defender os direitos humanos, a necessidade duma sólida educação para todos e duma vida mais digna para cada um. De coração agradeço às mulheres e aos homens, especialmente os jovens deste país, que tiveram em variada medida de sofrer por causa disso, e presto-lhes homenagem.
O diamante, na sua transparência, refrata de maneira maravilhosa a luz que recebe. Muitos de vós brilham pelo papel que desempenham. Assim, quem detém responsabilidades civis e governamentais é chamado a atuar com clareza cristalina, vivendo o encargo recebido como um meio para servir a sociedade. De facto, o poder só tem sentido se se torna serviço. Como é importante agir com este espírito, fugindo do autoritarismo, da busca do lucro fácil e da ganância do dinheiro, que o apóstolo Paulo define «raiz de todos os males» (1 Tm 6, 10); e procurando, ao mesmo tempo, promover eleições livres, transparentes, credíveis; alargar ainda mais a participação nos processos de paz às mulheres, aos jovens e a diversos grupos, aos grupos marginalizados; buscar mais o bem comum e a segurança das pessoas do que os interesses pessoais ou de grupo; reforçar a presença do Estado em todas as partes do território; cuidar das inúmeras pessoas deslocadas e refugiadas. Não se deixem manipular nem comprar por quem quer manter o país na violência para o explorar e fazer negócios vergonhosos: isto só traz descrédito e vergonha, juntamente com morte e miséria. Ao contrário, é bom aproximar-se das pessoas, para se dar conta do modo como vivem. As pessoas fiam-se quando sentem que o indivíduo que as governa se faz realmente próximo, não por cálculo nem exibicionismo, mas por serviço.
Na sociedade, muitas vezes o que obscurece a luz do bem são as trevas da injustiça e da corrupção. Já há séculos se perguntava Santo Agostinho, nascido neste continente: «Se não se respeita a justiça, que são os Estados senão grandes bandos de ladrões?» (De civitate Dei, IV, 4). Deus está da parte de quem tem fome e sede de justiça (cf. Mt 5, 6). É preciso não se cansar de promover, em cada setor, o direito e a equidade contrastando a impunidade e a manipulação das leis e da informação.
Um diamante sai da terra genuíno mas em estado bruto, carecendo de ser trabalhado. Assim, também os diamantes mais preciosos da terra congolesa, que são os filhos desta nação, devem poder usufruir de válidas oportunidades educativas, que lhes permitam fazer frutificar plenamente os brilhantes talentos que possuem. A educação é fundamental: é o caminho para o futuro, o caminho a percorrer para se alcançar a plena liberdade deste país e do continente africano. É urgente investir nela para preparar sociedades que só serão consolidadas se bem instruídas, só serão autónomas se plenamente conscientes das suas potencialidades e capazes de as desenvolver com responsabilidade e perseverança. Mas há muitas crianças que não vão à escola: quantas, em vez de receberem uma digna instrução, são exploradas! Muitas morrem, sujeitas a trabalhos escravizadores nas minas. Não se poupem esforços para denunciar o flagelo do trabalho infantil e acabar com ele. Quantas adolescentes são marginalizadas e violadas na sua dignidade! As crianças, as donzelas, os jovens que são o presente da esperança, são a esperança: não permitamos que seja extinta, mas cultivemo-la com paixão!
Dom da terra, o diamante faz apelo à salvaguarda da criação, à proteção do meio ambiente. Situada no coração da África, a República Democrática do Congo abriga um dos maiores pulmões verdes do mundo, que deve ser preservado. Como na paz e no desenvolvimento, também neste campo é importante uma colaboração ampla e profícua, que permita intervir eficazmente, sem impor modelos externos, mais úteis a quem ajuda do que a quem é ajudado. Muitos pediram à Africa o seu empenhamento e ofereceram-lhe ajuda para contrastar as alterações climáticas e o coronavírus. Trata-se, sem dúvida, de oportunidades que se devem aproveitar, todavia há necessidade sobretudo de modelos sanitários e sociais que deem resposta não só às urgências do momento, mas contribuam para um efetivo crescimento social: há necessidade de estruturas sólidas e de pessoal honesto e competente para superar os graves problemas que bloqueiam logo ao nascer o desenvolvimento, como a fome e as doenças.
Finalmente, o diamante é o mineral de origem natural com maior dureza; é muito alta a sua resistência aos agentes químicos. A contínua repetição de ataques violentos e as numerosas situações de transtorno poderiam enfraquecer a resistência dos congoleses, minar a sua força de ânimo, levá-los a desanimar e fechar-se na resignação. Mas em nome de Cristo, que é o Deus da esperança, o Deus de todas as possibilidades que sempre dá a força para recomeçar, em nome da dignidade e do valor dos diamantes mais preciosos desta terra que são os seus cidadãos, quero convidar a todos para um recomeço social corajoso e inclusivo. No-lo pede a história luminosa mas ferida do país, no-lo suplicam sobretudo os jovens e as crianças. Estou unido a vós e, com a oração e a proximidade, acompanho todos os esforços por um futuro pacífico, harmonioso e próspero deste grande país. Deus abençoe toda a nação congolesa!
Tempo da Criação
ESPECIAL GUERRA NA UCRÂNIA
Ponto SJ | 15 Janeiro 2023
O P. Vitaliy Osmoloskyy é ucraniano e é jesuíta. Estava nos Estados Unidos a fazer um doutoramento quando rebentou a guerra na Ucrânia, a 24 de fevereiro de 2022. Foi chamado e imediatamente regressou ao seu país para estar com o seu povo. O facto de ter dupla nacionalidade (ucraniana e polaca) mostrou-se de uma enorme importância, uma vez que, ao longo dos meses, muitos milhares de ucranianos fugiram para a Polónia, encontrando-se agora o país a braços com cerca de quatro milhões de pessoas. Aí contribuiu para a resposta da Companhia de Jesus no apoio aos refugiados que fugiam da guerra – através da criação de uma delegação do Jesuit Refugee Service (JRS), em Varsóvia – e também ajudando os combatentes ucranianos na linha da frente.
Em março, o jesuíta ucraniano conheceu, nas instalações dos jesuítas em Varsóvia, um grupo de portugueses, alguns dos quais ligados à Companhia de Jesus, que aí pernoitavam após uma viagem que tinha por objetivo entregar mantimentos e trazer refugiados para Portugal. Desde então, mantiveram uma estreita relação de colaboração com o P. Vitaliy Osmoloskyy que tem consistido no envio de bens de primeira necessidade para a Polónia, para serem distribuídos pelos refugiados que aí se encontram e pelas pessoas que mais necessitam na Ucrânia.
No início de janeiro, o P. Vitaliy veio a Portugal, mais concretamente a Fátima, para acompanhar os seus pais, que, à semelhança do povo ucraniano, são profundamente devotos de Nossa Senhora. Aproveitando a presença do jesuíta ucraniano em Portugal, a Paróquia da Encarnação (Lisboa), confiada à Companhia de Jesus, e a paróquia de Nossa Senhora Senhora da Conceição, no Rato, que promoviam desde dezembro a campanha de angariação de bens “Natal na Ucrânia”, convidaram o sacerdote a participar na eucaristia dominical e a dar o testemunho da situação vivida na Ucrânia e do apoio dado aos refugiados.
Foi nessa ocasião e através desse grupo de portugueses que o Ponto SJ chegou à fala com o P. Vitaliy e que foi possível esta entrevista.
Ponto SJ: O P. Vitaliy é jesuíta, mas antes disso é ucraniano. Dez meses depois do início da guerra, como se sente em relação ao que está a acontecer?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Primeiro que tudo gostaria de dizer que estou muito contente por estar aqui e por partilhar convosco a minha gratidão. Vim a Portugal com os meus pais, como peregrino, para rezar em Fátima, pela paz, pois Nossa Senhora de Fátima é muito importante para nós e tem uma grande devoção na Ucrânia.
Para mim, ser jesuíta é muito simples, significa ser humano. Por isso, se for capaz de ser humano através do instrumento que é ser jesuíta é um milagre em termos de vocação e chamamento. E isto também se aplica a outras profissões e estilos de vida.
A situação dez meses depois da guerra ter começado na Ucrânia é a de uma sociedade em processo de mudança e de nascimento. É um tempo em que vemos como uma nova nação nasce para si mesma, e para o seu futuro. É um tempo em que, não só na Ucrânia mas também na Europa, muitas instituições, políticos, e nações têm de rever os seus valores. Neste tempo vemos também que o trabalho das organizações internacionais não funciona. É um tempo de extremos. Na Ucrânia as pessoas lutam pela vida, enquanto que na Europa ocidental as pessoas pensam em qualidade de vida.
Ponto SJ: No princípio da guerra foi criado o projeto Jesuítas pela Ucrânia, da parte da província polaca da Companhia de Jesus, para coordenar os esforços e ajudas para chegar à Ucrânia. Vocês enviam ajuda para território ucraniano, mas também fornecem apoio aos refugiados ucranianos que chegam à Polónia. Que tipo de trabalho têm nestas duas linhas de atuação?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Penso que um dos nossos maiores sucessos foi a criação de um JRS na Polónia. Agora temos um escritório principal em Varsóvia e outros três escritórios regionais. Podemos organizar e distribuir mais ajuda não só à Ucrânia, através do JRS que aí foi fundado em 2008, mas também dentro da Polónia.
Para mostrar o que é importante para o JRS e para nós, eu diria que a vida é importante, mas a qualidade de vida é ainda mais importante. Agora, não estou a falar de benefícios e luxos, mas do significado e do valor da vida. Não chega manter a vida. O que é necessário é tomar conta da vida, e isso significa, quando estamos a ajudar os nossos vizinhos ou até a nós próprios, viver em condições de paz, de amor e de misericórdia. Isto é que é “qualidade de vida”.
Ponto SJ: Como é que os refugiados ucranianos vivem atualmente na Polónia? Quais são as suas principais necessidades?
P. Vitaliy Osmoloskyy: A sociedade ucraniana já era muito próxima do contexto polaco, o que é algo que já vem da História. Por isso, quando os refugiados ucranianos fugiram para a Polónia, a primeira coisa que queriam era aprender a língua, a cultura, as tradições e encontrar um trabalho. Arranjar um trabalho é a primeira coisa que querem porque se tiverem um trabalho podem arranjar condições para ter uma casa, um quarto. Agora o desafio é encontrarem um espaço para alugar, pois, oficialmente, temos 4 milhões de pessoas na Polónia, a maioria mulheres e crianças. É difícil as mães encontrarem um emprego quando têm crianças pequenas, por isso, elas têm um esquema de cooperação: uma mãe toma conta de três crianças e as outras trabalham e depois trocam. Estão a criar esta cooperação que pode ser replicada para poderem trabalhar e estar com os seus filhos. A criatividade destas pessoas e a forma como organizam a sua vida é espantosa. O principal problema é arranjar uma casa para alugar.
Ponto SJ: Quantos refugiados ucranianos estão em Varsóvia?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Não estão só em Varsóvia, mas no país todo e não são só refugiados ucranianos. A Polónia é um país muito atrativo para outros países, por isso temos muitas pessoas que vieram da Índia, China, Bangladesh, Geórgia, etc. A economia continua a crescer na Polónia, enquanto há uma estagnação no resto da Europa. Por isso, há muita gente a vir para cá.
Ponto SJ: E quando cruza a fronteira para o lado de lá o que vê? Pode descrever-nos essa experiência?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Um dos momentos mais tocantes foi quando os homens e maridos estavam a trazer as mulheres, os filhos e as irmãs para a fronteira, e aí se despediam. Os homens voltavam para lutar e proteger as cidades e as mulheres e crianças viajavam, até para países do Norte. Tivemos muitas propostas para irem para muitos países como Holanda, Espanha, Portugal, França. E essas pessoas nem sequer sabiam a língua. Os momentos mais tocantes foram esses porque sabemos que muitos deles nunca mais se voltarão a ver na vida.
Ponto SJ: Contou-nos que quando estava na Ucrânia também administrou sacramentos às pessoas que estavam na zona de guerra. Como é que se lida com estas situações em circunstâncias tão dramáticas?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Sim, tenho alguns bons amigos da altura dos meus tempos de estudante na Ucrânia que estão no serviço militar e na linha da frente do combate. E quando tinham uma ordem para lutar, alguns ligaram-me ou vieram ter comigo para lhes dar uma bênção, para rezar por eles, e para tomar conta das suas famílias, se algo lhes acontecesse. Esses momentos foram muito difíceis, e claro que sou humano, mas tentava não mostrar as minhas emoções e sentimentos. Tentava ser próximo, calmo e delicado e não mostrar muita emoção. Até porque na cultura deles quando um homem chora significa que é fraco. Eles tentavam não chorar em frente às mulheres e filhos. Pessoalmente, eu penso que é uma má ideia porque só os homens fortes e corajosos conseguem chorar e não é vergonha nenhuma mostrar isso. Mas faz parte da nossa cultura.
Ponto SJ: Na televisão, vemos a guerra e a destruição. Mas no terreno, como é que os ucranianos se sentem? Sentem raiva, esperança ou resignação?
P. Vitaliy Osmoloskyy: A maioria sente raiva e isso é normal, faz parte, é um sentimento. Mas é no desejo de fazer mal, magoar, ferir, que está o pior problema. É preciso ter também vozes de reconciliação e de construção da paz, principalmente da parte do Vaticano. Em março, eu falava disso no encontro internacional de coordenadores e dizia que não é o momento de construir a paz ou reconciliação. Isso é um processo de misericórdia. Primeiro, precisamos que o agressor peça perdão e precisamos de tempo porque se trata de uma ferida. Primeiro temos de cuidar das feridas e só depois disso podemos falar de reconciliação. Costumo dizer que seria a mesma coisa do que dizer aos judeus em 1943 ou 1944: “perdoem os vossos inimigos”. Não é o momento para isso. Diria que a raiva é o primeiro sentimento e depois a desilusão, principalmente porque vemos estes políticos tão fracos na Europa… Isso encoraja as pessoas a fazerem apenas o que depende de si e a não ficarem apenas à espera da ajuda dos países europeus. Eu digo isto muitas vezes, não podemos ficar à espera da ajuda, temos de lutar por nós próprios.
Ponto SJ: Vemos muita resiliência nos ucranianos, que lutam, defendem o que é seu, e isso é algo que nos impressiona, este tipo de comportamento. Onde é que essas pessoas encontram força?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Tenho uma imagem que pode ajudar, a de um cavalo jovem. Primeiro, quando o pomos no campo, ele não sabe o que fazer, como trabalhar, mas quando percebe o seu poder, é fantástico, ele salta, corre, tem uma beleza e força enorme. Para mim, este exemplo ilustra bem a nação ucraniana. Todos os dias estamos a aperceber-nos do nosso poder e da nossa riqueza, a nossa singularidade enquanto nação. Precisamos de ajuda, mas também podemos ajudar-nos uns aos outros, e mesmo durante esta guerra, também ajudamos outros países que passam mal em África ou no Médio Oriente. Parece estranho, mas é assim.
Ponto SJ: Referiu numa entrevista que a única coisa palpável que se vê na Ucrânia é destruição. Como é possível ver o Evangelho no terreno e onde é que encontra uma réstia de esperança?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Isso é muito pessoal. Claro que a fé é importante, mas diria que a espiritualidade é mais importante. Nós temos a religião, é uma coisa externa, (direitos, linguagem, edifícios) mas também temos fé, pedimos a Deus “revela-te a nós”. E quando tenho uma revelação, tenho uma relação íntima com Deus. (E quando digo Deus não significa o Deus católico ou ortodoxo, é universal). Muitas pessoas têm como fonte Deus e a espiritualidade, mas nem todos têm ajudas como aquelas que nós temos vindo a receber de outras pessoas, de outros países.
É curioso, pois quando recebemos um grupo de mulheres e crianças refugiadas da Ucrânia e dizemos “aqui têm os vossos quartos, a cantina para comer, etc”. E elas sentam-se e perguntam: “O que temos de fazer?” E nós: “Como o que fazer? Aproveitem, descansem, estão em Varsóvia, vão sair, espairecer”. E quando eles perguntam o que é têm de fazer referem-se a trabalhar. E nós respondemos: “Nada, não têm de fazer nada, nós é que fazemos. Será que podemos limpar o chão para vocês?” E elas respondem: “Claro que não, nem pensar”. Esta é nossa cultura.
Ponto SJ: Que tipo de ajuda tem sido fornecida pelos portugueses?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Os portugueses têm dado uma ajuda preciosa. Primeiro, quando conheci o vosso grupo em Varsóvia, para mim foi o contacto com a humanidade. Naquele dia em que falamos no nosso colégio, onde vocês ficaram, e pudemos partilhar informações sobre os refugiados de diferentes culturas, foi fantástico, foi um sinal de humanidade. Um sinal de que há pessoas que se concentram primeiro naquilo que nos une e não naquilo que nos divide. E esse encontro foi o início de uma grande amizade e continuamos em contacto e colaboração, e isso não é apenas para os refugiados que estão na nossa organização – JRS – mas também para os hospitais e paróquias, etc. Agora estou a organizar ajuda para a zona central da Ucrânia onde temos muito mais necessidades do que na zona ocidental. As necessidades maiores agora são geradores e equipamento para combater o frio, e também comida e produtos de higiene.
Ponto SJ: E o que podemos fazer mais para ajudar a Ucrânia, o país e as pessoas?
P. Vitaliy Osmoloskyy: O que vocês fazem já é mais do que suficiente. É muito encorajador para as pessoas saberem que alguém tem o desejo de as ajudar, de amá-las. Só esse pensamento já faz uma enorme diferença. É como quando estamos imenso tempo longe das pessoas que amamos, mas sabemos que estão lá à nossa espera. Abre uma perspetiva diferente. Toda a ajuda conta. Não vou pedir muitas coisas, mas diria que se tiverem oportunidade ajudem.
Ponto SJ: Como e quando antevê o fim da guerra?
P. Vitaliy Osmoloskyy: Temos uma resposta oficial e outra não oficial. Na não oficial eu diria, – porque nós temos algumas fontes que nos vão dando informação – que a vitória da Ucrânia nesta guerra não depende a cem por cento da Ucrânia, depende de outros países. Não quero criar uma teoria da conspiração, mas diria que não é apenas um assunto de um país. O mesmo podemos dizer sobre conflitos mais pequenos que temos na Europa e em campo aberto e no Médio Oriente. Mas, concordo com os especialistas e analistas que dizem que a guerra deverá terminar até ao verão.
Tempo da Criação
“Isto aqui dava um belo pinhal!”
ESPECIAL ANO NOVO
P. Nuno Tovar de Lemos, sj | 1 Janeiro 2023 | in Ponto SJ
Um chefe militar tinha acabado de conquistar um território tão vasto quanto deserto. Olhando, comentou: “Isto aqui dava um belo pinhal!” Alguém contrapôs: “Sabe quantos anos demora um pinhal a crescer?” Ao que ele respondeu: “Então vamos começar amanhã!”
Li esta história há já muitos anos. Creio que se passou com o Tenente-general inglês Montgomery na Campanha do norte de África, na 2ª Guerra Mundial, mas não garanto. O que garanto é que há desertos que podiam vir a ser pinhais se apenas tivéssemos fé. Um novo ano é um convite a introduzirmos novidade nas nossas vidas, para que elas sejam mais felizes e fecundas. Mas isso não é garantido. “Ano Novo” não traz necessariamente “Vida Nova”.
Ainda por cima rodeámos o Reveillon de uma série de falsas ideias que muito contribuem para que tudo continue como dantes depois de passar a ressaca da festa. Uma delas é pensar que o momento mágico da passagem de ano (“10, 9, 8, 7… Viva!”) faz, de algum modo, um reset das nossas vidas. Como se alguma porta se abrisse para nós nesse momento, mais do que em qualquer outro momento do ano. Mas a verdade é que – como sabemos – o ano poderia terminar a 23 de agosto às 11 da manhã ou noutra data qualquer. Convencionou-se assim no nosso calendário. É totalmente arbitrário. O ano podia ao menos mudar no solstício de Inverno, quando os dias começam a crescer, que assim ainda haveria alguma ligação aos ciclos natureza. Mas nem isso acontece no calendário gregoriano.
Acreditando na “magia” desse momento ficamos à espera que o novo ano nos traga coisas boas. “Que 2023 te traga tudo o que mais desejas!” diz o amigo com lágrimas sinceras nos olhos, enquanto estende o seu copo de champanhe. Mas a verdade é que, normalmente, a vida não nos traz nada de bom enquanto nos sentarmos à espera do que ela nos possa eventualmente trazer. Os meus verdadeiros amigos não me dizem “Que a vida te traga coisas boas”; estimulam-me a lutar por construir pinhais no deserto. E garantem-me que estão do meu lado. Isto sim, pode trazer coisas boas e abrir bem um novo ano.
Mas então, por vezes na vida, não temos de atravessar alguns desertos? Onde está a resiliência cristã? Sim, é verdade que, por vezes, temos de saber aguentar, unidos à cruz de Cristo. Mas também é verdade que não fomos criados para o deserto. O deserto, para nós cristãos, não é pátria; é local de passagem. Fomos criados e salvos para uma vida cheia. Não podemos acusar Jesus de falta de clareza:
“Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância!” (Jo 10,10).
O novo ano será novo se ensaiarmos passos novos. Para isso temos de ser criativos, como o militar inglês que olhou para o deserto e “viu” o que ali poderia acontecer. Toda a novidade começa no sonho, na imaginação, no “e se eu…?”, “e se nós…?”. Assim aconteceu com Santo Inácio, quando estava de convalescença: “E se eu fizesse como os santos?”, “E se eu fosse a pé a Jerusalém?”.
Ser criativo é muito mais do que – ao começar o novo ano – ganharmos forças para fazermos aquilo que sabemos que é certo fazer (tentar não gritar tanto com os filhos, ir mais ao ginásio ou fazer Exercícios Espirituais). Ser criativo é sonhar coisas novas e, eventualmente, impensáveis e fazer atos de fé que levam a lutarmos por aquilo que, de bom, sonhámos. O profeta Isaías convidava a este ato de fé, falando a um povo que estava, provavelmente, no terrível desânimo do exílio:
O deserto e a terra árida vão alegrar-se,
a estepe exultará e dará flores belas como narcisos.
Vai cobrir-se de flores
e transbordar de júbilo e de alegria. (Is 35, 1-2)
Para isto temos de combater 3 inimigos. Chamei-lhes “os inimigos do ano novo”:
A falta de imaginação. Somos extremamente repetitivos, quer em relação ao enredo quer em relação ao personagem. Tendemos, com frequência, a repetir o que já deu bem ou não deu assim tão mal. O hamster pôs-se a correr na sua roda de plástico e – mesmo estoirado – não para de correr. Antes tenta correr cada vez mais depressa para não perder algo que , eventualmente, possa estar lá mais a frente. Não entende que deveria parar, sair da roda e olhar com calma e imaginação para tudo o que o rodeia.
Santo Inácio, nos Exercícios Espirituais, sugere que nos imaginemos na hora da nossa morte e que aí – olhando para trás – pensemos o que gostaríamos de ter feito. Ou que então imaginemos o que recomendaríamos a uma outra pessoa que está na nossa situação. São tudo técnicas para levar o hamster a sair fora da roda para poder ver mais claro.
Outro inimigo é a opinião das outras pessoas. Somos extremamente condicionados pela opinião dos outros ou por aquilo que pensamos que os outros vão pensar. E por vezes até nos enganamos. Lembro-me que – quando decidi entrar na Companhia – imaginei as reações dos meus colegas de trabalho quando lhe dissesse que “ia para padre”. Para grande espanto meu, só recebi apoios. Quantos passos deixamos de dar por medo da opinião alheia!
Noutras situações tomamos decisões que vão mesmo desagradar a algumas pessoas. Essas pessoas vão ficar a pensar menos bem de nós, a achar que não valemos assim tanto. Isto é doloroso, sobretudo se são pessoas que respeitamos. Mas, tal como afirmaram Pedro e os apóstolos diante do Sinédrio que os proibia de falar de Jesus,
Importa mais obedecer a Deus do que aos homens (Act 5, 29)
Um terceiro inimigo do ano novo são os nossos instintos básicos. “Construir um pinhal? Sabe quanto tempo demora um pinhal a crescer? Deixe-se lá de ideias!” Tantas coisas que já perdemos na vida por preguiça! Prezamos as nossas pequeninas comodidades, os nossos pequeninos prazeres, mas a falta de abnegação castra a imaginação. Sabemos que plantar um pinhal exige esforço e paciência e então começamos a achar que talvez não valha a pena lutar por ter ali um pinhal… Com frequência, para não sacrificarmos o presente ao futuro acabamos por sacrificar o futuro ao presente. Outro instinto inimigo é o “apetecer”. Comandados pelo desejo chegamos a convencer-nos que é vontade de Deus algo que nos apetece muito. Temos de ter cuidado, sobretudo quando a ideia vem acompanhada de uma pressa irresistível. “O amor é paciente” e as inspirações divinas também, ao contrário dos nossos instintos básicos. Esta paciência não se opõe à prontidão mas reveste-a de uma certa gentileza.
Chegámos ao fim de um ano e ao início de outro. O novo ano será um Ano Novo? Depende de nós. Bom Ano Novo!
Tempo da Criação
Finalmente despertos – doença mental e estigma
Margarida Cordo | Dez 30, 2022 | in 7 Margens
Há mais de 20 anos que trabalho, entre outras áreas, para ajudar a combater o estigma associado à doença mental. A minha vida profissional tem-me oferecido a oportunidade de existir com sentido e de me realizar ao serviço dos outros e em prol das causas nas quais acredito e pelas quais me vou determinando a lutar.
Em todo este percurso tenho tido experiências incríveis e conhecido pessoas extraordinárias que, mais do que tudo, se dispõem a aproveitar, se assim se pode dizer, o seu sofrimento para marcarem a diferença, fazendo algo de bom pelo mundo em que vivemos; pelos outros, conhecidos e desconhecidos, que podem estar ainda em tempo de calar o que sentem, por medo ou vergonha de que falar os destrua ainda mais do que a sua perturbação os tem destruído.
O Pedro Machado, nome real autorizado pelo próprio, é uma das pessoas fantásticas que tenho o privilégio de conhecer e de acompanhar. Em vários momentos viu a sua vida ensombrada por pensamentos perturbadores, sentimentos desfasados da realidade e também vivências não escolhidas mas impostas pelas circunstâncias com que se defrontou.
Em 2020, a mãe do Pedro partiu inesperadamente num tempo de vida ainda improvável, mas, apesar disso e da saudade, essa dor que representa a quantidade de amor na ausência, ele dá no texto que a seguir transcrevo um testemunho de esperança, uma mensagem de aceitação, uma narrativa de segurança e de bem-estar para além do natural e proporcionado sofrimento. Transcrevo exatamente a narrativa do autor.
“Caminhada a ser feita ora lentamente, ora depressa demais, à procura do ritmo certo.
Entre linhas de prosa e versos de poesia, vou continuando a tentar expressar com “palavras minhas” um constante sentimento de procura de significado e de plenitude para a minha vida.
Muitos altos e baixos sem a resposta desejada. Sem ainda ter chegado onde queria e quero estar. Neste momento estou a querer o que sempre quis, mas, depois deste ano de 2020, peço apenas um ano melhor. Um ano tranquilo que me traga estabilidade.
Espero que o meu anjo na Terra (que agora é o meu Anjo da Guarda) se orgulhe de mim e que, apesar de não podermos partilhar juntos tudo o que aí virá, possa conquistar o que desejo. É a maior alegria que lhe podia dar. Enquanto aqui estiver, lutarei com todas as forças que puder, com resiliência e determinação para atingir o que há tanto tempo procuro.
Espero que seja só céu e sol, sem nuvens nem tempestades. E que ele não desapareça como tantas vezes tem feito. Independentemente disso vou continuar a fazer por ter sempre um sorriso no rosto. O mundo já é tão triste por vezes, que a vida até parece que não é bela. Mas é bela a vida, nós é que às vezes não, não percebemos…
Sejam felizes e aproveitem cada momento com os vossos. A vida é isso e no final de contas é o que mais importa!”
Quando acabámos de viver o Advento e o Natal, olhamos para o ano que vai terminando e, com esse olhar, devemos deixar sentir o impacto das experiências vividas, dos acontecimentos relevantes, das pessoas que nos marcaram, enfim… Acaba por ser tempo de balanços.
Este texto do Pedro Machado, ao qual há uns meses tive acesso, foi escrito em 2020 e revela o alento que foi capaz de, resilientemente, colher, apesar da dor.
Recentemente, que é como quem diz, dois anos depois, o Pedro escreveu assim: “Não é o que foi. É o que quero que seja. E isso não precisa de ser este mundo e o outro. Não. Tem é de ser algo que mude o meu mundo e me faça querer conquistar o outro. E quem muda o nosso mundo somos nós.”
Por vezes temos dificuldade em usar palavras simples, mas são elas que traduzem o que nos preenche e nos ajuda a ser felizes. Falo da esperança, que é a confiança em algo melhor, ou seja, a relação mais saudável que podemos ter com esse tempo do nosso tempo chamado futuro. E, sim, aquela é o condimento que sempre está presente nos textos do Pedro Machado.
A verdade é que a sua expressão não é apenas em prosa, mas também em poesia. E, por essa razão, no primeiro artigo do Ano Novo, transcreverei um poema de sua autoria como forma complementar de tradução do seu modo de contar o mundo e a vida, o ser e o existir.
Margarida Cordo é psicóloga clínica, psicoterapeuta e autora de vários livros sobre psicologia e psicoterapia.
Tempo da Criação
Natal e dignidade
José Brissos-Lino | 7 Margens | 22 Dez 2022
“Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu,
e o principado está sobre os seus ombros,
e se chamará o seu nome:
Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte,
Pai da Eternidade, Príncipe da Paz”
(Isaías 9:6).
Deus surge no palco da História de forma singular. Ele não apenas providenciou Salvação para a humanidade, mas o nascimento de Jesus é em si mesmo um acto de dignificação da família humana em diversas dimensões.
Desde logo há um sinal de reconhecimento da dignidade intrínseca da condição infantil. Deus ousa encarnar no ventre duma mulher simples do povo, e surgir perante o mundo assumindo a vulnerabilidade e fragilidade dum bebé recém-nascido. Se entre os mamíferos muitas crias mal nascem põem-se de pé e começam a correr e a mamar, pois um bebé humano está totalmente dependente dos pais para poder sobreviver. A sua dinâmica de desenvolvimento é muito mais lenta e não lhe permite que se firme nas pernas ou que se consiga alimentar por si logo que vem à luz.
Depois há também um sinal de dignificação da mulher e da maternidade. Embora a condição feminina no Antigo Israel fosse mais positiva do que nos povos contemporâneos da região, a verdade é que uma mulher israelita não poderia ir perante um juiz pedir justiça a não ser que fosse acompanhada por um homem. Na sociedade patriarcal a mulher não era dignificada como deveria pelo simples facto de ser mulher. Ao centrar o eixo da História numa mulher, Deus exalta todas as mulheres, assim como a função da maternidade que lhes é inerente.
Mas a dignificação da paternidade é igualmente uma marca do nascimento de Jesus. Mesmo não sendo o pai biológico, e até precisamente por isso, a figura de José assume uma importância ainda mais marcante neste contexto. Escritos extra-bíblicos sugerem que José seria viúvo quando casou com Maria, que era muito mais nova, e já teria filhos de um casamento anterior, mas de facto não sabemos se assim é.
Atendendo à importância social e simbólica da primogenitura entre os israelitas, José teria então um primogénito que não era sua semente nesta relação, o que terá criado uma dificuldade acrescida que ele terá sabido ultrapassar ao assumir uma paternidade em condições difíceis, mas que Deus igualmente honrou.
O evento de Belém representa ainda a dignificação da família enquanto projecto divino para a vida humana. Basta recordar o quadro do nascimento onde encontramos invariavelmente José, Maria e o Menino, assim como na viagem para o Egipto a fim de fugir à ira de Herodes.
Também não podemos esquecer a dignificação dos pobres e simples. Para escândalo do mundo, foram simples pastores de ovelhas que testemunharam ao mundo o maior evento da História. O evangelista Lucas diz que após o anúncio dos anjos eles foram “apressadamente” até Belém, e depois do encontro com o Menino foram eles que “divulgaram a palavra” de que finalmente tinha nascido o Messias de Israel e o Salvador do mundo.
Mas há que registar também a dignificação do estrangeiro, pois os astrónomos vindos do Oriente vieram a Jerusalém, e depois a Belém, ao encontro do rei dos judeus que havia nascido. Em face da viagem destes sábios, talvez estejamos aqui perante um dos primeiros movimentos de globalização de que tanto se fala hoje.
Finalmente podemos dizer que o nascimento de Jesus lançou ainda um sinal de dignificação da Humanidade em geral, tendo em conta o teor da mensagem dos anjos nas campinas de Belém. Isto é, a proclamação da paz através da boa vontade entre os homens é uma marca divina de que o mundo sempre necessitou e continua a ser actual.
Num mundo patriarcal, violento, sem paz, sem direitos humanos, o Natal representa a dignificação da pessoa humana, independentemente da idade, do sexo, da etnia, da condição social, da educação, da religião ou da cultura.
Celebremos o Natal em paz e no reconhecimento da dignidade que o nascimento de Jesus reconheceu a todos os seres humanos sem excepção, porque “Deus não faz acepção de pessoas” (Actos 10:34b).
José Brissos-Lino é director do mestrado em Ciência das Religiões na Universidade Lusófona, coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e director da revista teológica Ad Aeternum.
Tempo da Criação
P. Geral pediu audácia e compromisso aos jovens
Ponto SJ | 9 Dezembro 2022
(Nota prévia: mesmo tratando-se de uma visita ‘interna’ à Companhia de Jesus, em Portugal, estas palavras do Padre Geral da Companhia dirigidas aos Jovens, enquadram-se e são importantes no contexto da Jornada Mundial da Juventude, mas também na referência feita, neste terceiro Domingo do Advento, na nossa paróquia de Esmoriz, ao Beato Pier Giorgio Frassati que também viveu esta dimensão política e social da Fé)
Neste último dia da sua visita à Província, o P. Geral esteve com os jovens universitários no CUPAV, onde jantou, celebrou missa e conversou. Antes disso, visitou a sede da JMJ, esteve com a equipa do MAGIS e reuniu-se com os jesuítas.
“Não podemos ser cristãos sem nos comprometermos politicamente.” Esta foi uma das mensagens deixadas pelo P. Geral aos jovens, no Centro Universitário Padre António Vieira (CUPAV), em Lisboa. Perante um salão cheio de universitários e numa conversa informal que decorreu ao início da noite, o Superior Geral dos Jesuítas esclareceu que, ao dizer isto, não se referia à vida partidária, mas sim à capacidade de cada um colocar os interesses comuns à frente dos interesses individuais. “A política é o reconhecimento de que não vivemos alheados, é sermos capazes de nos orientarmos para o bem comum”, afirmou, em resposta à interpelação de um jovem. Num ambiente de grande proximidade com os universitários que escutavam atentamente e colocavam perguntas, o P. Arturo Sosa recordou a preocupação e o envolvimento que sempre teve nas questões sociais e políticas, até por ter crescido numa família profundamente implicada na vida política do seu país, bem como o impacto que teve na sua formação e até vocação as visitas sociais que fazia aos hospitais e bairros pobres nos tempos em que era aluno do Colégio de Santo Inácio, em Caracas.
Já na missa, umas horas antes, e antecipando a celebração litúrgica do Dia da Imaculada Conceição, o P. Geral tinha incitado os jovens a sonharem alto e com audácia, convidando-os, para isso, a porem os olhos em Maria, que soube acolher Deus na sua vida e confiar no Espírito, mesmo quando a situação que lhe foi apresentada parecia impossível. “O discernimento é aprender a ler os sinais do que Deus está dizendo à história humana e fazer possível o que parece impossível”, afirmou o jesuíta, reconhecendo que isto nem sempre parece óbvio num mundo confuso e sempre em mudança. “Há muitas coisas que nos parecem impossíveis e, como achamos isso, não vamos mais além, convencemo-nos que a única realidade possível é a que estamos vivendo. Conformamo-nos e ficamos por aí”. Sobre os grandes desafios que enfrenta a humanidade, e que exigem a colaboração e o compromisso de todos, o P. Geral elegeu o ambiente como o mais premente. “Há uma destruição sistemática do meio ambiente porque não somos capazes de ser verdadeiros políticos e perceber que o bem comum tem de estar acima de tudo.”
Antes deste encontro no CUPAV, o P. Geral já se tinha dirigido pessoalmente aos jovens, convidando-os, através de uma mensagem de vídeo, a participarem na Jornada Mundial da Juventude (JMJ) e no MAGIS, a proposta inaciana que antecede a JMJ. De visita à sede do Comité Organizador Local da JMJ, o P. Arturo Sosa visitou as instalações, conheceu e almoçou com os jovens que aí trabalham, e ficou a par do trabalho que aí tem sido desenvolvido de preparação para este grande acontecimento. Recebida por D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa e presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023, a comitiva da Companhia de Jesus entregou uma relíquia de São João de Brito, jesuíta e um dos patronos oficiais da JMJ, que foi colocada na capela da sede.
Neste que foi o seu último dia de visita a Portugal, o P. Geral visitou também a sede do MAGIS, situada na Cúria Provincial dos Jesuítas, foi informado do que está a ser feito para acolher estas centenas de jovens ligados à espiritualidade inaciana que chegam a Portugal no final de julho, e teve ainda oportunidade de se inscrever no evento e de benzer a bandeira do MAGIS. Esteve ainda num encontro rápido com a equipa de colaboradores da Cúria Provincial e participou na reunião da Consulta, o órgão que aconselha o P. Provincial.
Deste seu dia em Lisboa, há ainda a registar o encontro com os jesuítas do Sul da Província na Brotéria e uma visita rápida à Igreja de São Roque, tão emblemática na história da Companhia de Jesus.
Tempo da Criação
MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA O DIA INTERNACIONAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
Queridos irmãos e irmãs!
Como diria o apóstolo Paulo, todos nós trazemos o tesouro da vida em vasos de barro (cf. 2 Cor 4, 7), e o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência convida-nos a compreender que a nossa fragilidade não ofusca de modo algum «a luz do Evangelho da glória de Cristo», mas revela que «este extraordinário poder é de Deus e não é nosso» ( 2 Cor 4, 4.7). Pois a cada um, sem olhar a méritos nem fazer distinções, é entregue o Evangelho na sua totalidade e, com ele, a jubilosa tarefa de o anunciar. «Todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 121). De facto, comunicar o Evangelho não constitui uma tarefa reservada a alguns, mas é uma exigência essencial para todo aquele que tiver experimentado o encontro e a amizade com Jesus. [1]
A confiança no Senhor, a experiência da sua ternura, o conforto da sua companhia não são privilégios reservados a poucos, nem prerrogativas de quem recebeu uma esmerada e longa formação. Pelo contrário, a sua misericórdia deixa-se conhecer e encontrar de modo muito particular por quem não confia em si mesmo e sente necessidade de se abandonar ao Senhor e partilhar com os irmãos. Trata-se de uma sabedoria que cresce à medida que aumenta a consciência dos próprios limites e que nos permite apreciar ainda mais a amorosa decisão do Todo-Poderoso Se inclinar sobre a nossa fraqueza. É uma consciência que liberta do lamento triste – mesmo o mais motivado – e consente ao coração abrir-se ao louvor. A alegria que transparece no rosto de quem encontra Jesus e Lhe confia a própria existência não é uma ilusão nem fruto duma ingenuidade, mas a irrupção da força da sua Ressurreição numa vida marcada pela fragilidade.
Trata-se de um verdadeiro magistério da fragilidade que, se fosse escutado, tornaria as nossas sociedades mais humanas e fraternas, induzindo cada um de nós a entender que a felicidade é pão que não se come sozinho. Quanto nos ajudaria a ter relações menos hostis com quem vive ao nosso lado a consciência de precisarmos um do outro! E quanto nos impeliria a buscar soluções para os conflitos insensatos, que estamos a viver, a constatação de que nem sequer os povos se salvam sozinhos!
Hoje queremos recordar o sofrimento de todas as mulheres e de todos os homens com deficiência que vivem numa situação de guerra, ou de quantos carregam uma deficiência resultante de combates. Quantas pessoas – na Ucrânia e noutros cenários de guerra – permanecem encarceradas nos locais onde se combate, sem qualquer possibilidade de fugir? É preciso prestar-lhes uma especial atenção e facilitar, de todas as formas possíveis, o seu acesso à ajuda humanitária.
O magistério da fragilidade é um carisma com o qual vós, irmãs e irmãos com deficiência, podeis enriquecer a Igreja: a vossa presença «pode ajudar a transformar as realidades em que vivemos, tornando-as mais humanas e acolhedoras. Sem vulnerabilidades, sem limites, sem obstáculos a serem superados, não haveria verdadeira humanidade». [2] Por isso me alegro por o caminho sinodal estar a demonstrar-se ocasião propícia para, finalmente, se ouvir também a vossa voz, tendo o eco desta participação chegado ao documento preparatório para a etapa continental do Sínodo. Nele se afirma: «Numerosas sínteses assinalam a falta de estruturas e modalidades de acompanhamento apropriadas às pessoas com deficiência e apelam a novos modos para acolher o seu contributo e promover a sua participação: a despeito dos seus próprios ensinamentos, a Igreja arrisca imitar o modo como a sociedade as põe de lado. As formas de discriminação enumeradas – a falta de escuta, a violação do direito de escolher onde e com quem viver, a negação dos Sacramentos, a acusação de bruxaria, os abusos – e outras descrevem a cultura do descarte no confronto das pessoas com deficiência. Essas [formas de discriminação] não nascem por acaso, mas têm em comum a mesma raiz: a ideia de que a vida das pessoas com deficiência valha menos que a das outras». [3]
Sobretudo com o seu convite para caminharmos juntos e nos escutarmos reciprocamente, o Sínodo ajuda-nos a compreender como, na Igreja (mesmo no que diz respeito à deficiência), não existe um nós e um eles, mas um único nós com Jesus Cristo no centro, onde cada qual carrega os seus próprios dons e limites. Esta consciência, fundada no facto de que todos fazemos parte da mesma humanidade vulnerável, assumida e santificada por Cristo, elimina qualquer distinção arbitrária e abre as portas à participação de cada um dos batizados na vida da Igreja. Mais ainda! Se o Sínodo for verdadeiramente inclusivo, permitirá dissipar os preconceitos mais enraizados. Com efeito, são o encontro e a fraternidade que derrubam os muros de incompreensão e vencem a discriminação; por isso espero que cada comunidade cristã se abra à presença de irmãs e irmãos com deficiência, garantindo-lhes sempre acolhimento e plena inclusão.
Ora, que se trate duma condição que tem a ver com um nós, e não com um eles, descobrimo-lo quando a deficiência, de maneira temporária ou por um processo natural de envelhecimento, se abate sobre nós próprios ou algum dos nossos entes queridos. Nesta situação, começa-se a ver a realidade com novos olhos e apercebemo-nos da necessidade de derrubar mesmo aquelas barreiras que, antes, nos pareciam insignificantes. Entretanto nada disto afeta a certeza de que nenhuma condição de deficiência – temporária, adquirida ou permanente – modifica a nossa natureza de filhos do único Pai, nem altera a nossa dignidade. O Senhor ama-nos a todos com o mesmo amor carinhoso, paterno e incondicional.
Queridos irmãos e irmãs, agradeço-vos as iniciativas com que animais este Dia Internacional em prol das Pessoa com Deficiência. Acompanho-vos com a oração. De coração vos abençoo a todos e peço, por favor, que rezeis por mim.
Roma – São João de Latrão, 3 de dezembro de 2022.
FRANCISCO
[1] Cf. Francisco, Mensagem por ocasião do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (20 de novembro de 2021).
[2] Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, A Igreja é a nossa casa – Documento resumo da Consulta Sinodal Extraordinária das pessoas com deficiência, n. 2: site web do Dicastério.
[3] Sínodo dos Bispos – Assembleia sobre a Sinodalidade, Documento de Trabalho para a Etapa Continental, 36.
Tempo da Criação
(Mesmo tendo já terminado a COP-27, ainda vale a pena ler este texto)
A poucos dias da COP-27
Líderes religiosos pedem tratado global pelo fim dos combustíveis fósseis
Clara Raimundo | 3 Nov 2022 | in 7 Margens
Enquanto os líderes mundiais se preparam para a 27ª Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP 27), que terá lugar nos próximos dias 6 a 18 de novembro no Egito, os representantes das principais religiões assinaram esta terça-feira, 2, uma carta onde fazem um apelo conjunto à adoção de um tratado internacional pela não proliferação dos combustíveis fósseis.
Mais de 50 instituições religiosas, representando cerca de 1.500 milhões de pessoas em todo o mundo, subscreveram a missiva, dinamizada pelo movimento católico Laudato Si’ e pela rede inter-religiosa GreenFaith.
Entre os grupos religiosos que assinaram a carta de apoio ao tratado incluem-se o Conselho Mundial de Igrejas, e duas dezenas de instituições católicas, como a Confederação Latino-Americana de Religiosos (CLAR), a Rede Eclesial Pan-Amazónica (REPAM), ou o Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM).
Representantes do budismo, judaísmo e islamismo também assinaram o documento, incluindo a Soka Gakkai, uma organização budista com 12 milhões de membros em 150 países, a Islamic Relief Worldwide, e o grupo climático judaico Dayenu.
A carta multiconfessional, que neste momento pode ainda ser assinada online, será entregue aos governantes das nações durante a COP 27.
Estas instituições unem-se assim a 70 cidades, 101 prémios Nobel, 3.000 investigadores científicos, 1.750 organizações da sociedade civil e 500 parlamentares da África, Ásia, Europa e América, que também apelam ao fim imediato dos novos projetos de combustíveis fósseis, a uma eliminação equitativa da produção atual de carbono, petróleo e gás, e a uma transição justa que assegure “100% de acesso a energia renovável globalmente” e que permita que “todas as pessoas e comunidades, em particular o Sul Global, floresçam”.
“A ação dos governos tem sido penosamente lenta e atendido demasiado às temerárias e enganosas empresas de combustíveis fósseis, impedindo uma legislação climática significativa e oportuna”, pode ler-se na carta assinada pelos líderes religiosos, que apelam a mudanças urgentes.
Ao longo das últimas semanas, a rede internacional GreenFaith realizou ações públicas na Europa, África, Estados Unidos, América latina, Indonésia e Austrália para protestar contra os novos projetos de combustíveis fósseis. O movimento Laudato Si’, por seu lado, estreou a 4 de outubro o documentário “A Carta”, que conta com a participação do Papa Francisco e mostra como a fé, a amizade e a ciência podem combater a crise climática e ecológica. O filme já foi visto por mais de seis milhões de pessoas no último mês.
Estudo sugere que Papa instaure uma “Quaresma permanente”
Um estudo da Universidade de Cambridge afirma que, se o Papa pedisse aos católicos do mundo inteiro para não comerem carne às sextas-feiras (adotando permanentemente uma tradição associada à Quaresma), a emissão de carbono seria reduzida em milhões de toneladas, noticiou esta segunda-feira o jornal The Tablet.
O estudo revela que um em cada quatro católicos em Inglaterra e no País de Gales alteraram os seus hábitos alimentares depois de os bispos católicos terem feito esse mesmo apelo, poupando 55 mil toneladas de carbono por ano.
“A Igreja Católica está muito bem posicionada para mitigar as alterações climáticas, com mais de um bilião de seguidores em todo o mundo”, sublinhou o professor Shaun Larcom, que liderou a investigação.
“A produção de carne é um dos principais impulsionadores das emissões de gases de efeito estufa. Se o Papa estabelecer a obrigação das sextas-feiras sem carne para todos os católicos em todo o mundo, isso poderia ser uma importante fonte de redução de emissões de baixo custo. Mesmo que apenas uma minoria de católicos opte por cumprir, como vimos no nosso caso”, referiu Larcom.
De acordo com um outro estudo publicado na semana passada pela revista científica Lancet, a queima de carvão, petróleo e gás natural mata 1,2 milhões de pessoas por ano, em todo mundo. Esta dependência, dizem os especialistas, é a causa de inúmeras doenças cardiovasculares e respiratórias, enquanto as alterações climáticas são responsáveis por um aumento das mortes relacionadas com o calor e a fome.
Também na semana passada, um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Pnuma, mostrava que, para manter o aquecimento global em 1,5°C, as emissões devem cair 45% em relação às previstas nas políticas atuais até 2030. Para a meta de 2°C, é necessário um corte de 30% [ver 7MARGENS].
“Temos que aprender com o passado. Os investimentos em energias renováveis são absolutamente vitais”, afirmou a esse propósito o Secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, apelando a uma tributação sobre os lucros extraordinários do setor de combustíveis fósseis.
Tempo da Criação
DIA MUNDIAL DOS POBRES
SANTA MISSA
HOMILIA DO PAPA FRANCISCO
Basílica de São Pedro
XXXIII Domingo do Tempo Comum, 13 de novembro de 2022
Enquanto alguns falam da beleza exterior do templo e admiram as suas pedras, Jesus desperta a atenção para os acontecimentos conturbados e dramáticos que marcam a história humana. De facto, enquanto o templo construído pelas mãos do homem passará, como passam todas as coisas deste mundo, é importante saber discernir o tempo que vivemos, para permanecer discípulos do Evangelho mesmo no meio das convulsões da história.
E, para nos indicar o modo de discernir, o Senhor oferece-nos duas exortações: não vos deixeis enganar e dai testemunho.
A primeira coisa que Jesus diz aos seus ouvintes, preocupados «quando» e «como» ocorrerão os eventos aterradores de que fala, é: «tende cuidado em não vos deixardes enganar, pois muitos virão em meu nome dizendo: “Sou eu”; e ainda: “O tempo está próximo”. Não os sigais» (Lc 21, 8). E acrescenta: «Quando ouvirdes falar de guerras e revoltas, não vos alarmeis» (21, 9). E isto vem mesmo a propósito no momento atual. Mas de que engano nos quer livrar Jesus? Da tentação de ler os factos mais dramáticos de modo supersticioso ou catastrófico, como se estivéssemos já perto do fim do mundo não valendo a pena empenhar-nos em algo de bom. Se assim pensarmos, deixamo-nos guiar pelo medo e depois vamos, com morbosa curiosidade, procurar talvez respostas nas parvoíces de magos ou horóscopos que nunca faltam – e hoje muitos cristãos vão consultar os magos, procuram o horóscopo como se fosse a voz de Deus –; ou então abandonamo-nos a teorias fantasiosas propostas por qualquer «messias» da última hora, geralmente sempre derrotistas e intrigantes – também a psicologia da intriga é ruim, faz-nos mal –. Aqui não está o Espírito do Senhor, nem no ir consultar os «gurus» nem neste espírito de intriga. Aqui não está lá o Senhor. Jesus adverte-nos: «Não vos deixeis enganar», não vos deixeis encandear por uma credulidade ingénua, nem enfrenteis os acontecimentos movidos pelo medo, mas aprendei a ler os factos com os olhos da fé, certos de que, estando perto de Deus, «não se perderá um só cabelo da vossa cabeça» (21, 18).
Se é verdade que a história humana está constelada de eventos dramáticos, situações dolorosas, guerras, revoluções e calamidades, é igualmente verdade – diz Jesus – que tudo isto não é o fim (cf. 21, 9); não são um bom motivo para se deixar paralisar pelo medo ou ceder ao derrotismo de quem pensa que já está tudo perdido e é inútil empenhar-se na vida. O discípulo do Senhor não se deixa atrofiar pela abdicação, não cede ao desânimo nem mesmo nas situações mais difíceis, porque o seu Deus é o Deus da ressurreição e da esperança, que sempre levanta: com Ele sempre se pode levantar o olhar, voltar a começar e pôr-se a caminho. Assim, perante a provação – qualquer provação, seja ela cultural, histórica ou pessoal –, o cristão interroga-se: «O que é que me está a dizer o Senhor através deste momento de crise?» Também eu me coloco esta pergunta, hoje, perante esta terceira guerra mundial: O que é que nos está a dizer o Senhor? Que nos diz o Senhor? E, sempre que sucedem eventos maléficos que geram pobreza e sofrimento, o cristão pergunta-se: «O que é que posso, concretamente, fazer de bom?» Não deve fugir, mas interrogar-se: Que me diz o Senhor e que posso eu fazer de bom?
Não é por acaso que a segunda exortação de Jesus – depois desta: «não vos deixeis enganar» – seja positiva. Diz Ele: «Tereis ocasião de dar testemunho» (21, 13). Ocasião de dar testemunho. Quero sublinhar esta palavra esplêndida: ocasião. Significa ter a oportunidade de fazer algo de bom a partir das circunstâncias da vida, mesmo se estas não forem as ideais. É uma bela arte tipicamente cristã: não se deixar ficar vítima daquilo que sucede – o cristão não é vítima e a psicologia do «vitimismo» é má, faz-nos mal –, mas aproveitar a oportunidade que se esconde em tudo o que nos acontece, o bem que é possível (aquele pouco de bem que for possível fazer) e construir mesmo a partir de situações negativas. Cada crise é uma possibilidade e proporciona ocasiões de crescimento. Porque cada crise abre-se à presença de Deus, à presença da humanidade. Mas que faz o espírito mau? Quer que transformemos a crise em conflito; e o conflito é sempre fechado, sem horizonte nem via de saída. Assim não! Vivamos a crise como pessoas humanas, como cristãos, não a transformando em conflito, porque cada crise é uma possibilidade e proporciona ocasiões de crescimento. Apercebemo-nos disto, repassando a nossa história pessoal: com frequência, na vida, os passos em frente mais importantes foram dados precisamente no âmbito dalgumas crises, situações de prova, de perda de controle, de insegurança. Compreendemos, assim, o convite que Jesus faz hoje, diretamente, a mim, a ti, a cada um de nós: que fazes quando vês ao teu redor factos turbulentos, quando se levantam guerras e conflitos, quando sucedem terremotos, carestias e pestilências? Eu que faço? Tu que fazes? Procuras distrair-te para não pensares nisso? Divertes-te para não te envolveres? Segues a estrada da vida mundana, de não assumir nem tomar a peito estas situações dramáticas? Viras a cara para o outro lado para não ver? Adequas-te, submisso e resignado, ao que acontece? Ou tais situações tornam-se ocasião para testemunhares o Evangelho? Hoje cada um de nós deve questionar-se à vista de tantas calamidades, perante esta terceira guerra mundial tão cruel, frente à fome de tantas crianças, de tanta gente: Poderei eu desperdiçar, desperdiçar dinheiro, desperdiçar a minha vida, desperdiçar o sentido da minha vida, sem me encher de coragem para seguir em frente?
Irmãos e irmãs, neste Dia Mundial dos Pobres, a Palavra de Jesus é uma forte advertência para romper esta surdez interior que todos nós temos e que nos impede de ouvir o grito de sofrimento, sufocado, dos mais frágeis. Também hoje vivemos em sociedades feridas e assistimos, tal como nos disse o Evangelho, a cenários de violência (basta pensar nas crueldades que está a sofrer o povo ucraniano), injustiça e perseguição; mais, devemos enfrentar a crise gerada pelas alterações climáticas e pela pandemia, que deixou atrás dela um rasto de perturbações não apenas físicas, mas também psicológicas, económicas e sociais. Também hoje, irmãos e irmãs, vemos levantar-se povo contra povo e assistimos, angustiados, à frenética ampliação dos conflitos, à calamidade da guerra, que provoca a morte de tantos inocentes e multiplica o veneno do ódio. Também hoje, mais do que ontem, muitos irmãos e irmãs, provados e atribulados, emigram à procura duma esperança, e muitas pessoas vivem na precariedade pela falta de emprego ou por condições laborais injustas e indignas. E também hoje, irmãos e irmãs, as vítimas mais penalizadas de qualquer crise são os pobres. Mas, se o nosso coração estiver blindado e indiferente, não conseguiremos ouvir o seu flébil grito de dor, chorar com eles e por eles, ver quanta solidão e angústia se escondem mesmo nos cantos esquecidos das nossas cidades. É preciso ir aos cantos das cidades, aqueles ângulos escondidos, escuros: lá se vê tanta miséria, tanto sofrimento e tanta pobreza descartada.
Façamos nosso o convite forte e claro do Evangelho a não nos deixarmos enganar. Não demos ouvidos aos profetas da desgraça; não nos façamos encantar pelas sereias do populismo, que instrumentaliza as necessidades do povo, propondo soluções demasiado fáceis e precipitadas. Não sigamos os falsos «messias» que, em nome do lucro, proclamam receitas úteis apenas para aumentar a riqueza de poucos, condenando os pobres à marginalização. Ao contrário, demos testemunho: acendamos luzes de esperança no meio da escuridão; nas situações dramáticas, aproveitemos a ocasião para testemunhar o Evangelho da alegria e construir um mundo fraterno, pelo menos um pouco mais fraterno; empenhemo-nos corajosamente em prol da justiça, da legalidade e da paz, permanecendo sempre ao lado dos mais frágeis. Não fujamos para nos defender da história, mas lutemos para dar a esta história que estamos a viver um rosto diferente.
E onde havemos de encontrar a força para tudo isto? No Senhor. Na confiança em Deus, que é Pai e vela por nós. Se Lhe abrirmos o coração, Ele aumentará em nós a capacidade de amar. Este é o caminho: crescer no amor. De facto Jesus, depois de ter falado de cenários de violência e terror, conclui dizendo: «Não se perderá um só cabelo da vossa cabeça» (21, 18). Mas que significa isto? Que Ele está connosco, Ele é o nosso guardião, Ele caminha connosco. Tenho eu esta fé? Tu tens esta fé de que o Senhor caminha contigo? Devemos repetir sempre isto para nós mesmos, especialmente nos momentos mais dolorosos: Deus é Pai e está ao meu lado, conhece-me e ama-me, vela por mim, não dorme, cuida de mim e, com Ele, nem um só cabeleiro da minha cabeça se perderá. E eu, como respondo a isto? Ao ver os irmãos e as irmãs que passam necessidade, ao ver esta cultura do descarte que descarta os pobres, que descarta as pessoas com menos possibilidades, que descarta os idosos, que descarta os nascituros... Ao ver tudo isto, que sinto e que devo fazer como cristão neste momento?
Amados por Ele, decidamo-nos a amar os filhos mais descartados. Ali está o Senhor. Segundo uma antiga tradição (mesmo aqui, nas aldeias da Itália, ainda há alguém que a mantém), na ceia de Natal, deve-se deixar um lugar vazio para o Senhor, que certamente baterá à porta na pessoa dum pobre necessitado. E o teu coração, tem sempre um lugar livre para tais pessoas? O meu coração tem um lugar livre para tais pessoas? Ou estamos tão atarefados com os amigos, os eventos sociais, as obrigações, que nunca temos um lugar livre para tais pessoas? Cuidemos dos pobres, em quem está Cristo, que Se fez pobre por nós (cf. 2 Cor 8, 9). Ele identifica-Se com o pobre. Sintamo-nos interpelados para que nem um só cabeleiro da cabeça deles se perca. Não podemos ficar – como aqueles de quem fala o Evangelho – a admirar as belas pedras do templo, sem reconhecer o verdadeiro templo de Deus, o ser humano, o homem e a mulher, especialmente o pobre, em cujo rosto, em cuja história, em cujas feridas está Jesus. Foi Ele que o disse… Nunca o esqueçamos!
Tempo da Criação
VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO REINO DO BAHREIN
por ocasião do "Bahrain Forum for Dialogue: East and West for Human Coexistence"
(3 - 6 DE NOVEMBRO DE 2022)
ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, COM A SOCIEDADE CIVIL E COM O CORPO DIPLOMÁTICO
DISCURSO DO SANTO PADRE
Awali
Quinta-feira, 3 de novembro de 2022
Majestade,
Altezas Reais,
Ilustres membros do Governo e do Corpo Diplomático,
Distintas Autoridades religiosas e civis,
Senhoras e Senhores,
As-salamu alaikum [A paz esteja convosco]!
De coração agradeço a Sua Majestade o amável convite para visitar o Reino do Bahrein, o caloroso e generoso acolhimento e as palavras de boas-vindas que me dirigiu. Saúdo cordialmente a cada um de vós. Desejo manifestar a minha calorosa estima a quantos vivem neste país: a cada crente, a cada pessoa e a cada família, que a Constituição do Bahrein define «pedra angular da sociedade». A todos expresso a minha alegria por me encontrar no vosso meio.
Aqui, onde as águas do mar circundam as areias do deserto e imponentes arranha-céus se erguem ao lado dos tradicionais mercados orientais, cruzam-se realidades muito diferentes: convergem antiguidade e modernidade, fundem-se história e progresso, e sobretudo pessoas da mais variada proveniência formam um original mosaico de vida. Ao preparar-me para esta viagem, tomei conhecimento dum «emblema de vitalidade» que carateriza o país; refiro-me à chamada «árvore da vida» (Shajarat-al-Hayat), à qual desejo inspirar-me ao partilhar convosco algumas ideias. Trata-se duma majestosa acácia, que, há séculos, sobrevive numa zona deserta, onde a chuva é muito escassa. Parece impossível que uma árvore tão longeva resista e prospere em tais condições. Na opinião de muitos, o segredo estaria nas raízes, que se estendem por dezenas de metros sob o solo, bebendo em depósitos subterrâneos de água.
As raízes! O Reino do Bahrein empenha-se na pesquisa e valorização do seu passado, que fala duma terra extremamente antiga, para onde, já há milénios, acorriam os povos, atraídos pela sua beleza, resultante em particular das abundantes nascentes de água doce que lhe deram a fama de ser paradisíaca: o antigo reino de Dilmun denominava-se «terra dos vivos». Remontando no tempo até às suas raízes (conta 4500 anos de presença humana ininterrupta), resulta terem sido a posição geográfica, a propensão e a habilidade comercial do povo, bem como certas vicissitudes históricas que permitiram ao Bahrein moldar-se como encruzilhada de mútuo enriquecimento entre os povos. De facto, um aspeto sobressai nesta terra: sempre foi lugar de encontro entre populações diferentes.
Está aqui a água vital, aonde vão ainda hoje beber as raízes do Bahrein, cuja maior riqueza se vê na sua variedade étnica e cultural, na convivência pacífica e no tradicional acolhimento da população. Uma diversidade, não homogeneizadora, mas inclusiva constitui o tesouro de qualquer país verdadeiramente evoluído. E, nestas ilhas, pode-se admirar uma sociedade mista, multiétnica e multirreligiosa, que foi capaz de superar o perigo do isolamento. Isto é muito importante no nosso tempo, cujo excludente retraimento em si mesmo e nos próprios interesses impede de captar a irrenunciável importância do todo. Diversamente os numerosos grupos nacionais aqui coexistentes, étnicos e religiosos, testemunham que se pode e deve conviver no nosso mundo; este, já há decénios que se tornou uma aldeia global, mas, dando-se por suposta a globalização, ainda desconhece «o espírito da aldeia» em várias das suas vertentes: a hospitalidade, a solicitude pelo outro, a fraternidade. Pelo contrário, assistimos, preocupados, ao crescimento em larga escala da indiferença e mútua suspeita, à extensão de rivalidades e contraposições que se esperavam superadas, a populismos, extremismos e imperialismos que põem em perigo a segurança de todos. Não obstante o progresso e tantas conquistas civis e científicas, aumenta a distância cultural entre as várias partes do mundo e, às benéficas oportunidades de encontro, antepõem-se perversas atitudes de conflito.
Em vez disso, pensemos na árvore da vida – o vosso símbolo – e distribuamos, nos desertos áridos da convivência humana, a água da fraternidade: não deixemos evaporar-se a possibilidade do encontro entre civilizações, religiões e culturas, não permitamos que sequem as raízes do humano! Trabalhemos juntos, trabalhemos a bem do todo, em prol da esperança! Estou aqui, na terra da árvore da vida, como semeador de paz, para viver dias de encontro, participar num Fórum de diálogo entre Oriente e Ocidente em prol da coexistência humana pacífica. Desde já agradeço aos companheiros de viagem, especialmente aos Representantes religiosos. Estes dias marcam uma etapa preciosa no percurso de amizade que tem vindo a intensificar-se, nos últimos anos, com vários líderes religiosos islâmicos: um caminho fraterno que, sob o olhar do Céu, quer favorecer a paz na Terra.
A propósito, manifesto o meu apreço pelas conferências internacionais e as oportunidades de encontro que este Reino organiza e favorece, centrando-se especialmente na temática do respeito, da tolerância e da liberdade religiosa. São pontos essenciais, reconhecidos pela Constituição do país, onde se estabelece que «não deve haver discriminação alguma com base no sexo, na proveniência, na língua, na religião ou no credo» (art. 18), que «a liberdade de consciência é absoluta» e que «o Estado tutela a inviolabilidade do culto» (art. 22). Trata-se sobretudo de compromissos que hão de traduzir-se constantemente na prática, para que a liberdade religiosa se torne plena, não se limitando à liberdade de culto; para que igual dignidade e paridade de oportunidades sejam reconhecidas concretamente a todo o grupo e a toda a pessoa; para que não haja discriminações e os direitos humanos fundamentais não sejam violados, mas promovidos. Penso, antes de mais nada, no direito à vida, na necessidade de o garantir sempre, mesmo em relação a quem é punido, cuja existência não pode ser eliminada.
Voltemos à árvore da vida. Os múltiplos ramos de diferente tamanho que a caraterizam, com o passar do tempo, deram vida a espessas ramagens, fazendo crescer a sua altura e circunferência. Neste país, foi precisamente a contribuição de tantas pessoas de diferentes povos que consentiu um notável progresso produtivo. Isto tornou-se possível graças à imigração, que regista no Reino do Bahrein uma das taxas mais elevadas do mundo: cerca de metade da população residente é estrangeira e trabalha de forma significativa para o progresso dum país, onde – tendo deixado a própria pátria – se sente em casa. Todavia não se pode esquecer que, nos nossos dias, há ainda muita falta de trabalho e demasiado trabalho desumano: isto acarreta não só graves riscos de instabilidade social, mas representa um atentado à dignidade humana. De facto, o trabalho não é necessário apenas para se ganhar a vida, mas constitui também um direito indispensável para nos desenvolvermos integralmente a nós próprios e moldarmos uma sociedade à medida do homem.
A partir deste país, atraente pelas oportunidades laborais que oferece, quero lembrar a emergência da crise laboral mundial: muitas vezes falta o trabalho, precioso como o pão; frequentemente é pão envenenado, porque escraviza. Em ambos os casos, no centro já não está o homem, que, de fim sagrado e inviolável do trabalho, acaba reduzido a um meio para produzir dinheiro. Assim, por todo o lado, sejam garantidas condições laborais seguras e dignas do homem, que não impeçam, mas favoreçam a vida cultural e espiritual; que promovam a coesão social, em proveito da vida comum e do próprio progresso dos países (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 9.27.60.67).
O Bahrein pode gloriar-se de preciosas conquistas neste sentido: penso, por exemplo, na primeira escola feminina surgida no Golfo e na abolição da escravatura. Continue a ser farol na promoção em toda a área dos direitos e condições équas e cada vez melhores para os trabalhadores, as mulheres e os jovens, garantindo ao mesmo tempo respeito e solicitude por quantos se sentem mais à margem da sociedade, como os migrantes e os reclusos: o desenvolvimento verdadeiro, humano, integral mede-se sobretudo pela atenção que lhes é prestada.
A árvore da vida, que se ergue, solitária, na paisagem desértica, sugere-me ainda dois âmbitos decisivos para todos e que interpelam primariamente quem, governando, detém a responsabilidade de servir o bem comum. Em primeiro lugar, a questão ambiental: quantas árvores são derrubadas, quantos ecossistemas devastados, quantos mares poluídos pela ganância insaciável do homem, cuja conta se deve pagar depois! Não nos cansemos de trabalhar em prol desta dramática pendência, realizando opções concretas e previdentes, feitas a pensar nas gerações mais jovens, antes que seja demasiado tarde e se comprometa o seu futuro. Que a Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas (COP27), que terá lugar no Egito dentro de poucos dias, constitua um passo em frente no referido sentido!
Em segundo lugar, a árvore da vida com as suas raízes, que, do subsolo, comunicam a água vital ao tronco e, deste, aos ramos e sucessivamente às folhas, que dão oxigénio às criaturas, faz-me pensar na vocação do homem, de todo o homem que está na terra: fazer a vida prosperar. Entretanto assistimos hoje, e cada dia sempre mais, a ações e ameaças de morte. De modo particular estou a pensar na realidade monstruosa e insensata da guerra, que semeia por toda a parte destruição e erradica a esperança. Na guerra, aparece o lado pior do homem: egoísmo, violência e mentira. Sim, porque a guerra, qualquer guerra, constitui também a morte da verdade. Rejeitemos a lógica das armas e invertamos o rumo, transformando as enormes despesas militares em investimentos para combater a fome, a falta de cuidados sanitários e de instrução. Tenho no coração a tristeza por tantas situações de conflito. Olhando para a Península Arábica, cujos países desejo saudar com cordialidade e respeito, dirijo um pensamento especial e sentido ao Iémen, martirizado por uma guerra esquecida que, como qualquer guerra, não leva a nenhuma vitória, mas apenas a amargas derrotas para todos. Recordo na oração sobretudo os civis, as crianças, os idosos, os doentes, e imploro: calem-se as armas, calem-se as armas, calem-se as armas! Empenhemo-nos por toda parte e de verdade em prol da paz!
A respeito disto, a Declaração do Reino do Bahrein reconhece que a fé religiosa é «uma bênção para todo o género humano», o alicerce «para a paz no mundo». Estou aqui como crente, como cristão, como homem e peregrino da paz, porque hoje, mais do que nunca, somos chamados a empenhar-nos seriamente, por todo o lado, em prol da paz. Assim, Majestade, Altezas Reais, Autoridades, Amigos, faço meu e partilho convosco, como desejo para estes anelados dias de visita ao Reino do Bahrein, um belo trecho da própria Declaração: «Empenhamo-nos a trabalhar por um mundo, onde as pessoas de credo sincero se unam entre si para rejeitar aquilo que nos divide e, ao contrário, escolher aquilo que nos une». Assim seja, com a bênção do Altíssimo! Shukran [obrigado]!
Tempo da Criação
ENCONTRO DE ORAÇÃO PELA PAZ
DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
Praça do Coliseu
Terça-feira, 25 de outubro de 2022
Ilustres Líderes das Igrejas
cristãs e das Religiões mundiais
Irmãos e irmãs
Distintas Autoridades!
Agradeço a cada um de vós que participais neste Encontro de oração pela paz. Expresso uma gratidão especial aos líderes cristãos e de outras Religiões, animados pelo espírito de fraternidade que inspirou a primeira convocação histórica desejada por São João Paulo II em Assis há trinta e seis anos.
Este ano, a nossa oração tornou-se um “grito”, porque hoje a paz está gravemente violada, ferida, espezinhada: e isto na Europa, ou seja, no continente que no século passado viveu as tragédias das duas guerras mundiais — e agora estamos na terceira. Infelizmente, desde então, as guerras nunca deixaram de ensanguentar e empobrecer a terra, mas o momento que estamos a viver é particularmente dramático. Por isso elevámos a nossa oração a Deus, que ouve sempre o grito angustiado dos seus filhos. Escutai-nos, Senhor!
A paz está no coração das Religiões, nas suas Escrituras e na sua mensagem. No silêncio da oração, esta noite, ouvimos o grito da paz: a paz sufocada em tantas regiões do mundo, humilhada por demasiada violência, negada até às crianças e aos idosos, que não são poupados à terrível dureza da guerra. O grito da paz muitas vezes é silenciado não só pela retórica bélica, mas também pela indiferença. É silenciada pelo ódio que cresce enquanto se combate.
Mas a invocação da paz não pode ser silenciada: nasce do coração das mães, está inscrita nos rostos dos refugiados, das famílias em fuga, dos feridos ou dos moribundos. E este grito silencioso eleva-se ao Céu. Não conhece fórmulas mágicas para sair de conflitos, mas tem o sacrossanto direito de pedir paz em nome dos sofrimentos suportados, e merece ser ouvido. Merece que todos, a começar pelos governantes, se inclinem para ouvir com seriedade e respeito. O grito da paz expressa a dor e o horror da guerra, mãe de todas as pobrezas.
«Cada guerra deixa o mundo pior de como o encontrou. A guerra é um fracasso da política e da humanidade, uma vergonhosa rendição, uma derrota perante as forças do mal» (Enc. Fratelli tutti, 261). São convicções que provêm das dolorosas lições do século XX, e infelizmente também desta parte do século XXI. Hoje, de facto, o que temíamos e nunca quisemos ouvir está a acontecer: que agora se ameaça abertamente o uso de armas atómicas, que culposamente continuaram a ser produzidas e testadas depois de Hiroshima e Nagasaki.
Neste cenário sombrio, onde, infelizmente, os desígnios dos poderosos da terra não cedem às justas aspirações dos povos, não muda para a nossa salvação, o desígnio de Deus, que é «um projeto de paz e não de desventura» (cf. Jr 29, 11). Aqui a voz dos sem voz é ouvida; nisto funda-se a esperança dos pequenos e dos pobres: em Deus, cujo nome é Paz. A paz é o seu dom e nós invocámo-la d’Ele. Mas este dom deve ser acolhido e cultivado por nós, homens e mulheres, especialmente por nós, crentes. Não nos deixemos contagiar pela lógica perversa da guerra; não caiamos na armadilha do ódio pelo inimigo. Voltemos a pôr a paz no centro da nossa visão do futuro, como objetivo central da nossa ação pessoal, social e política, a todos os níveis. Desativemos os conflitos com a arma do diálogo.
Durante uma grave crise internacional, em outubro de 1962, quando um confronto militar e uma deflagração nuclear pareciam iminentes, São João XXIII fez este apelo: «Imploramos a todos os governantes que não permaneçam surdos a este grito da humanidade. Que façam tudo o que estiver em seu poder para salvar a paz». «Pouparão assim ao mundo os horrores de uma guerra, cujas terríveis consequências não podem ser previstas. [...] Promover, favorecer, aceitar os diálogos, a todos os níveis e em todos os momentos, é uma regra de sabedoria e prudência que atrai a bênção do céu e da terra» (Radiomensagem, 25 de outubro de 1962).
Sessenta anos mais tarde, estas palavras soam de impressionante atualidade. Faço-as minhas. Não somos neutros, mas alinhados pela paz. «Por isso invoquemos o ius pacis, como direito de todos a resolver os conflitos sem violência» (Encontro com estudantes e o mundo académico em Bolonha, 1 de outubro de 2017).
Nos últimos anos, a fraternidade entre religiões fez progressos decisivos: «Religiões irmãs, que ajudem os povos a ser irmãos em paz» (Encontro de oração pela paz, 7 de outubro de 2021). Cada vez mais nos sentimos irmãos uns dos outros! Há um ano, reunidos aqui mesmo, em frente do Coliseu, lançámos um apelo, hoje ainda mais atual: «As religiões não podem ser usadas para a guerra. Só a paz é santa e que ninguém use o nome de Deus para abençoar o terror e a violência. Se virdes guerras à vossa volta, não vos resigneis! Os povos desejam a paz» (ibid.).
É isto que procuramos continuar a fazer, sempre melhor, dia após dia. Não nos resignemos à guerra, cultivemos sementes de reconciliação; e hoje elevemos ao Céu o grito da paz, mais uma vez com as palavras de São João XXIII: «Tornem-se todos os povos irmãos e floresça neles e reine para sempre essa tão suspirada paz» (Enc. Pacem in terris, 91). Que assim seja, com a graça de Deus e a boa vontade dos homens e das mulheres por Ele amados!
Tempo da Criação
PAPA FRANCISCO
AUDIÊNCIA GERAL
Praça São Pedro
Quarta-feira, 19 de outubro de 2022
Catequeses sobre o discernimento 6. Os elementos do discernimento. O livro da própria vida
Prezados irmãos e irmãs, bem-vindos e bom dia!
Nas catequeses destas semanas insistimos sobre os pressupostos para fazer um bom discernimento. Na vida devemos tomar decisões, sempre, e para tomar decisões devemos percorrer um caminho, uma estrada de discernimento. Cada atividade importante tem as suas “instruções” a seguir, que devem ser conhecidas para que possam produzir os efeitos necessários. Hoje meditemos sobre outro ingrediente indispensável para o discernimento: a própria história de vida. Conhecer a própria história de vida é um ingrediente – digamos assim – indispensável para o discernimento.
A nossa vida é o “livro” mais precioso que nos foi confiado, um livro que muitos infelizmente não leem, ou que o fazem demasiado tarde, antes de morrer. No entanto, é precisamente nesse livro que se encontra aquilo que se procura inutilmente por outros caminhos. Santo Agostinho, um grande investigador da verdade, compreendeu-o exatamente relendo a sua vida, observando nela os passos silenciosos e discretos, mas incisivos, da presença do Senhor. No final deste percurso, anotará com admiração: «Tu estavas dentro de mim, e eu fora. Lá, eu procurava-te. Deformado, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo» (Confissões X, 27.38). Daqui deriva o seu convite a cultivar a vida interior, para encontrar o que se procura: «Volta para ti mesmo. No homem interior habita a verdade» (A verdadeira religião, XXXIX, 72). Este é um convite que faria a todos vós, inclusive a mim mesmo: “Entra em ti mesmo. Lê a tua vida. Lê dentro de ti, como foi o teu percurso. Com serenidade. Entra em ti mesmo”.
Muitas vezes, também nós vivemos a experiência de Agostinho, de nos encontrarmos presos em pensamentos que nos afastam de nós mesmos, mensagens estereotipadas que nos ferem: por exemplo, “Nada valho” – e desanimas; “tudo corre mal comigo”, e deprimes-te; “nunca farei nada de bom”, e desencorajas-te; e assim é a vida. Estas frases pessimistas que te desanimam! Ler a própria história significa também reconhecer a presença destes elementos “tóxicos”, mas para depois ampliar a trama da nossa narração, aprendendo a observar outras coisas, tornando-a mais rica, mais respeitadora da complexidade, conseguindo até captar os modos discretos como Deus age na nossa vida. Certa vez conheci uma pessoa da qual havia quem dissesse que merecia o prémio Nobel da negatividade: tudo era terrível, tudo, e procurava sempre motivos para desanimar. Era uma pessoa amargurada e no entanto possuía muitas qualidades. Depois, esta pessoa encontrou outra pessoa que a ajudou muito e cada vez que se lamentava de algo, esta última dizia: “Agora, para compensar, diz alguma coisa positiva de ti”. E ele: “Ah, sim... tenho também esta qualidade”, e pouco a pouco ajudou-o a ir em frente, a ler bem a própria vida, quer nos aspetos negativos quer nos positivos. Devemos ler a nossa vida, e assim vemos o que não é positivo e também as coisas boas que Deus semeia em nós.
Vimos que o discernimento tem uma abordagem narrativa: não se limita à ação pontual; insere-a num contexto: de onde vem este pensamento? O que sinto agora, de onde vem? Para onde me leva o que estou a pensar agora? Quando tive a ocasião de o encontrar precedentemente? É algo novo que sinto agora, ou que já senti outras vezes? Porquê é mais insistente do que outros? O que me quer dizer a vida com isto?
A narração das vicissitudes da nossa vida permite também compreender matizes e detalhes importantes, que podem revelar-se ajudas valiosas até então ocultas. Por exemplo, uma leitura, um serviço, um encontro, à primeira vista considerados de pouca importância, sucessivamente transmitem uma paz interior, transmitem a alegria de viver e sugerem outras iniciativas de bem. Deter-se e reconhecer que isto é indispensável para o discernimento. Parar é reconhecer: é importante para o discernimento, é uma obra de recolha daquelas pérolas preciosas e escondidas que o Senhor disseminou no nosso terreno.
O bem está escondido, sempre, pois o bem tem pudor e esconde-se: o bem está escondido; é silencioso, requer uma escavação lenta e contínua. Pois o estilo de Deus é discreto: a Deus apraz o escondimento, a discrição, não se impõe; é como o ar que respiramos, não o vemos, mas faz-nos viver, e só nos damos conta dele quando nos falta.
Habituar-se a reler a própria vida educa o olhar, aguça-o, permite notar os pequenos milagres que o bom Deus realiza para nós todos os dias. Quando prestamos atenção, observamos outros rumos possíveis que revigoram o gosto interior, a paz e a criatividade. Acima de tudo, torna-nos mais livres dos estereótipos tóxicos. Diz-se sabiamente que o homem que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. É curioso: se não conhecermos a estrada percorrida, o passado, repetimo-lo sempre, somos circulares. A pessoa que caminha circularmente nunca vai em frente, não há caminho, é como o cão que se morde a cauda, sempre vai assim, e repete as ações.
Podemos perguntar-nos: já contei a alguém a minha vida? Esta é uma bonita experiência dos namorados, que quando a relação é séria contam a vida um ao outro... Trata-se de uma das formas de comunicação mais belas e íntimas, narrar a própria vida. Ela permite-nos descobrir coisas até então desconhecidas, pequenas e simples, mas, como diz o Evangelho, é precisamente das pequenas coisas que nascem as grandes (cf. Lc 16, 10).
Também a vida dos santos constitui uma ajuda preciosa para reconhecer o estilo de Deus na própria vida: permite familiarizar com o seu modo de agir. O comportamento de alguns santos interpela-nos, mostrando-nos novos significados e oportunidades. Foi o que aconteceu, por exemplo, a Santo Inácio de Loyola. Quando descreve a descoberta fundamental da sua vida, acrescenta uma importante observação: «Por experiência, deduziu que alguns pensamentos o deixaram triste e outros, alegre; e pouco a pouco aprendeu a conhecer a diversidade dos pensamentos, a diversidade dos espíritos que nele se agitavam» (Autob., n. 8). Conhecer o que acontece dentro de nós, conhecer, estar atentos.
O discernimento é a leitura narrativa dos momentos bons e dos momentos escuros, das consolações e desolações que experimentamos ao longo da nossa vida. No discernimento é o coração que nos fala de Deus, e nós devemos aprender a compreender a sua linguagem. Perguntemo-nos, no final do dia, por exemplo: o que aconteceu hoje no meu coração? Alguns pensam que fazer este exame de consciência é fazer a contabilidade dos pecados que cometemos – e cometemos muitos – mas é também perguntar-se “o que aconteceu dentro de mim, tive alegrias? O que me causou alegria? Fiquei triste? Qual o motivo da tristeza? E assim aprender a discernir o que acontece dentro de nós.
Tempo da Criação
E depois do Tempo da Criação?…
Rita Veiga | 15 Out 2022 | in 7 Margens
A cada ano que passa, tornam-se mais prementes os alertas neste mês focado na criação. Infelizmente, é mesmo preciso desinquietar as pessoas: daqui a alguns anos, as crianças de hoje poderão perguntar porque deixámos degradarem-se tanto as condições de vida no planeta.
São quase cinco semanas, desde o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, a 1 de setembro, até 4 de outubro, festa de S. Francisco de Assis. Este ano, o tema proposto foi “Escuta a voz da criação”, porque não é demais insistir que é urgente ouvir a Terra, que geme e se queixa em tantos fenómenos extremos, e o choro e o desespero de populações que perdem tudo ou deixam de ter condições de sobrevivência porque a sua terra se tornou inóspita.
Com o Tempo da Criação procura-se manter viva e fecunda a mensagem da encíclica Laudato Si’, uma carta que o Papa Francisco dirigiu a todas as pessoas de boa vontade. Esse texto, publicado em 2015 e tão actual, desenvolve a ideia de uma ecologia integral (LS 137-138). Está tudo interligado (LS 91) e as questões ambientais não podem ser dissociadas das sociais e económicas, nem das espirituais. Francisco propõe-nos a conversão ecológica, que “comporta deixar emergir, nas relações com o mundo que nos rodeia, todas as consequências do encontro com Jesus” (LS 217). E aquela, acrescenta, “para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária” (LS 219).
Este ano, na mensagem para o dia de oração pela criação, o Papa relembrou a necessidade de uma espiritualidade ecológica (LS 216) que nos leve a uma relação diferente com os outros e com a criação: “Trata-se de “converter” os modelos de consumo e produção, bem como os estilos de vida, numa direcção mais respeitadora da criação e do progresso humano integral de todos os povos presentes e futuros, um progresso fundado na responsabilidade, na prudência/precaução, na solidariedade e atenção aos pobres e às gerações futuras.”
Hoje, de facto, a crise climática, a guerra e a crise económica parecem nuvens negras encasteladas, que desestabilizam o nosso modo de vida, mesmo quando não nos atingem directamente, e nos deixam pelo menos apreensivos. Mas também sacudiu muitas das pessoas que ainda andavam “distraídas”. O sistema terrestre (ver artigo de Francisco Ferreira sobre “A emergência da mudança pela sustentabilidade”) que reúne as condições que possibilitam a nossa existência, ressente-se de múltiplos desequilíbrios que a espécie humana lhe tem causado e a sua sustentabilidade não está garantida.
Não é possível continuar a proceder como se não houvesse limites para o progresso, nem para os recursos de que se pode dispor. Tal irresponsabilidade está aliada muitas vezes a uma ganância desmedida, com a agravante de que aumentam o fosso das desigualdades, em que uns, poucos, se apoderam dos recursos que fazem falta a populações inteiras para conseguirem aceder a condições de vida condizentes com a dignidade humana (LS, cap. III).
Muito se tem dito sobre todas estas questões, mas é preciso ser consequente. É mais que tempo de agir. Um dos primeiros passos – aliás, indispensável – é refrear o consumismo que gera tanto desperdício; são antídotos eficazes aprender a saborear a sobriedade, dispensando o supérfluo, e descobrir a alegria de partilhar, mas não só o que não queremos e, sim, aquilo de que o destinatário precisa ou deseja.
Temos pela frente enormes desafios e a situação é intimidante, mas voltemos à Laudato Si’: “O urgente desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos abandona, nunca recua no seu projecto de amor, nem Se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum” (LS 13).
“Cuidar” é tarefa de todos, começando por aprender um outro modo de habitar a Terra e viver a amizade social, na linha da Fratelli Tutti.
Há que aprofundar a teologia da criação e uma espiritualidade ecológica de conversão individual e comunitária. Falta muito para globalizar a solidariedade, para fomentarmos relações de proximidade, alargando os nossos círculos de modo a incluir as margens e as periferias, até que ninguém fique de fora.
Existem algumas propostas que abrem caminhos para não ficarmos a olhar a vida da varanda, para nos tornarmos protagonistas da mudança, como desafiou o Papa na Jornada Mundial da Juventude de 2013, no Rio de Janeiro:
• A Plataforma de Acção Laudato Si’ propõe uma estratégia orientada para sete Objectivos Laudato Si’, convocando sete sectores distintos;
• A Economia de Francisco mobiliza jovens de todo o mundo para pôr a economia ao serviço das pessoas e das sociedades;
• O Pacto Educativo Global pretende que a educação oriente para “uma cultura integral, participativa e poliédrica”;
Deixo ainda uma sugestão: o filme A Carta, um documentário com o Papa Francisco estreado no dia 4 de outubro, a concluir o Tempo da Criação 2022. Dá que pensar.
Rita Veiga é membro da Comissão de Coordenação da REDE Cuidar da Casa Comum. Contacto: rita.veiga7@gmail.com
Tempo da Criação
Desenhar um mundo mais justo, ecológico e solidário
António Matos Ferreira | 14 Mai 2022 | in 7 Margens
Recorrer à fundamentação histórica para legitimar a atuação presente ou futura, se é possível e compreensível, não é necessariamente adequado e é preenchido por muitos equívocos e falsos caminhos. O presente e o futuro não são determinados fatalmente pelo passado. A contemplação e a reflexão sobre o passado, na sua complexidade e nas suas contradições, se é um exercício apropriado não justifica por si só as decisões e as atuações presentes. Se pode existir similitude entre um determinado passado e o presente, os protagonistas e as circunstâncias nem são os mesmos nem se repetem, pois são fruto de pessoas atuais e das suas respetivas motivações.
O passado, se condiciona o nosso presente e o modo como se encara o futuro, não é válido por si só para legitimar o presente e menos ainda o futuro, até porque estes podem ser sempre perspetivados de modo diferente. A ética do presente e do agir futuro, se pode tomar referência no passado, não pode entender-se como mera perpetuação deste, como se a consciência dos indivíduos não pudesse adquirir outros contornos mais apropriados para a realização humana.
Se a recomposição da vida das pessoas e das sociedades é constante, mesmo quando habituados à repetição do quotidiano e motivados por uma existência o mais favorável a cada um de nós, a realidade apresenta-se de forma bem distinta. Viver e conviver em sociedade só atinge um adequado nível de concretização pela progressiva interiorização do processo consciente de autolimitação na relação com os outros e em cada um. A solidariedade não se pode alcançar sem graus significativos de abdicação.
Uma parte significativa da humanidade vive em condições sofridas pela ambição e pela desmesura de outros, poucos, dos quais, eu que escrevo e, provavelmente, alguns que possam ler estas linhas fazemos parte. A liberdade respeita o que se pretende alcançar e realizar. O que cada um de nós quer realmente da vida? A resposta aos problemas começa em cada um de nós.
Cada um não perde a sua liberdade porque se autolimita e abdica, antes acrescenta a capacidade de contenção. Vivemos e conhecemos a pandemia e os confinamentos, a guerra e as suas misérias, bem como a fome que já atingiam há muito certas populações, as mais fracas e vulneráveis. Como mancha que se espalha, estas situações atingiram agora as nossas sociedades onde, muitas vezes, se concebe a realização humana com um desenvolvimento constante e exponencial de ter mais, de ganhar mais ou muito mais, sendo certo que todos pretendemos fugir à morte mesmo se isso provoca a subjugação e a morte de outros, de muitos, de milhares e de milhões de mulheres, de crianças e de homens desamparados e desesperados.
Práticas para mudar a vida
É sempre tempo de mudar de vida, reorientar e corrigir os nossos desejos de ambição e de domínio, afinando a vontade de ajudar os outros, pois, por mais que se tenha ou se seja, não se escolhe ficar na história porque esta tende, muitas vezes, a valorizar e a reter alguns que se comportaram como canalhas e assassinos.
A história do bem é aquela que atende à complexidade e aceita as contradições existenciais. O melhor depositário das práticas do bem é o coração e a gratuidade de uns em relação aos outros, sendo que a mão direita não deve saber das graças da mão esquerda e vice-versa. A perpetuidade espalha-se no universo enquanto dom, tudo aquilo que vem de fora, da pessoalidade única e indestrutível. O mal, se prejudica gravemente aqueles que atinge, existe e também é um fazer, mas no final destrói sempre quem o exercita. É tempo de praticar um mundo melhor e mais justo, para nosso bem e dos outros. Não se trata de ideologias, mas de práticas.
A responsabilidade pelo que acontece também se constrói e se aprofunda. Contrariar a fatalidade não resulta somente do que os outros são ou constroem, mas respeita a capacidade de resistência de cada um, de individualmente potenciar a disponibilidade para assumir as consequências dos atos de liberdade e de solidariedade. Estas são práticas do quotidiano.
Haverá sempre muito dinheiro para o armamento, não necessariamente para a defesa das populações, mas para reprimir aqueles que aspiram à sua liberdade e a uma maior justiça. Os momentos de grandes dificuldades das sociedades são muitas vezes acompanhados por grande agitação e, também, por não menor indiferença até as situações baterem à nossa porta. Quanto do que acontece decorre da defesa do nosso bem-estar, da nossa indiferença, de uma cultura reivindicativa, mas não de redistribuição justa e adequada?
Seremos capazes de não desfalecer perante a urgência de apoiar até ao fim os que foram invadidos, para restituir o que lhes é devido?
Muitos desafios nos solicitam: combater bens mal adquiridos e não se aproveitar dos mecanismos de especulação e de mais-valias indevidas; contrariar e lidar, sem alarmismos, com a inflação o aumento dos preços em geral; consumir menos, em particular energia; potenciar mais empregos a partir daquilo que temos e está ao nosso alcance; partilhar a vida com mais imigrantes e proporcionar a sua integração sem medos; comer menos e procurar que o facto de ser mais caro reverta o mais possível para os produtores; aprender a não acusar os outros pelo nosso infortúnio; viver com menos, diminuir o nosso nível de vida e, simultaneamente, querer que outros vivam melhor; promover e aceitar limites de ganhos e de enriquecimento. Tantos caminhos.
Não se podem impor práticas solidárias aos outros, mas cada um pode realizar no seu quotidiano o desenho mais apropriado de um presente e de um futuro mais justo, mais ecológico, mais solidário. O que vale uma grande agitação se esta não tiver uma mudança, se não ocorrer uma conversão no presente de cada um? Por muito que se viva, a vida de cada um é sempre muito curta, às vezes escandalosamente curta. É verdade que só na consciência mais íntima e discreta cada um sabe o que vive.
Lisboa, 29 de abril de 2022
Tempo da Criação
OPINIÃO EDUCAÇÃO DOS FILHOS
Filhos exasperados, pais desesperados
Inês Teotónio Pereira | 27 Setembro 2022 | in Ponto SJ
“Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, porque isto agrada ao Senhor. Pais, não irriteis os vossos filhos, para que eles não desanimem” (Cl 3, 20-21). É uma das minhas passagens preferidas das Escrituras: já devia ter um quadro pendurado à porta de casa com estas palavras impressas.
Esta passagem, assim como esta, mais ou menos parecida:
“Filhos, obedecei aos vossos pais, no Senhor, pois é isso que é justo: Honra teu pai e tua mãe – tal é o primeiro mandamento, com uma promessa: para que sejas feliz e gozes de longa vida sobre a terra.” Reparem como acaba em beleza e sabedoria divinal:
“E vós, pais, não exaspereis os vossos filhos, mas criai-os com a educação e correcção que vêm do Senhor.” (Efésios 6, 1-5)
Pois aqui, nestas breves frases, está todo um tratado sobre educação. Onde estamos, pais e filhos, e quais as nossas funções? É difícil educar numa época em que tudo é posto em causa; em que aquilo que era, pouco serve.
Hoje, os pais paralisam com medo de errar, o tempo é escasso porque só há tempo ao fim do dia. Grande parte dos filhos são educados à vez por pais separados e muitas vezes são utilizados como armas de arremesso em disputas judiciais que se eternizam. São poucos os que confiam nos seus instintos e preferem delegar a educação dos filhos nos outros: na escola, nos psicólogos, nos educadores, nos especialistas que existem em tudo e mais alguma coisa. Como se houvesse uma receita para tudo, porque desistiram deles próprios.
Procuram-se soluções rápidas para problemas que não se conhecem, e que se calhar nem sequer são problemas. São fases, é a vida a passar. Há cada vez mais pais sozinhos na educação, sem famílias que lhes contem as tradições e que adormeçam os fantasmas dos pais que não os deixam dormir tais são as angústias e as inseguranças.
No entanto, e este é o drama da educação dos dias de hoje, são os pais quem devem liderar e não são os pais que lideram. São os pais e não a escola, o Estado ou os influencers quem mandam nos filhos, em casa, nas famílias. É aqui que está a base da estrutura social e são eles o núcleo onde tudo começa.
É aos pais a quem os filhos devem obediência, respeito, a quem devem reconhecer autoridade, a quem vão seguir o exemplo. Sem eles, os filhos ficam sozinhos, sem norte, sem saber o que escolher, em quem ou no que acreditar, que caminho seguir. Demitirmo-nos desse papel de liderança, de decidir o que é melhor para eles em cada momento, de exercer autoridade, é como largar-lhes a mão enquanto eles ainda não sabem andar. É quase cobardia. É demitirmo-nos de os ajudar a conquistar a sua própria liberdade.
Ter uma família, liderar uma família, é um problema. Mais: é multiplicar problemas, acrescentar o espaço e o tempo dos outros ao nosso. Precisamos de nos suportar, precisamos de ter mais paciência, tolerância, de saber ouvir, de partilhar. Uma família cansa, pode ser um peso. E é por isso que só o conseguimos suportar com amor e caridade, sem arrogância e com alegria. Com alma a transbordar de alegria quando de repente, por obra de Deus, todos nos rimos à gargalhada à volta da mesa do jantar. Nessas alturas percebemos que a família é um motor e não um peso.
“Pais, não exaspereis os vossos filhos”. E é tão fácil. É tão fácil abusar do poder de pai e mãe. Puxar dos galões e mandá-los fazer coisas que eles não conseguem, exigir-lhes resultados que para nós seriam impensáveis alcançar, traçar-lhes objetivos que são nossos e não deles. É tão fácil exigir sem dar o exemplo, fazer dos filhos refém dos problemas conjugais. Exasperá-los.
“Pais, não irriteis os vossos filhos, para que eles não desanimem.” Poker face: é a expressão deles depois de uma discussão em que parece que nos querem matar mas não mexem um nervo da cara. Parece-me que não é a esta irritação a que se referem as Escrituras, mas sim ao desespero que advém da nossa incompetência em educá-los. Os pais são os adultos da casa e são os principais responsáveis pela alegria, os silêncios, as discussões e as tempestades que lá se vivem, por mais que nos custe assumir. E sim, o ânimo ou o desânimo acorda lá todas as manhãs.
“Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais”. Mas será que é isso que nós, pais, queremos? Não, não é: é ao contrário. É mais difícil mandar que obedecer, e nós, pais do século XXI, delegámos nos nossos filhos, no Estado, nas escolas e nos especialistas toda a autoridade. Quem obedece somos nós.
Tempo da Criação
Viver saudavelmente a vocação
Margarida Cordo | 22 Set 2022 | in 7 Margens
Decidi escrever sobre isto na reentrada após férias: frequentemente, estas semanas são tempos desafiantes, que nos levam a tentar não ceder às exigências da vida de forma desequilibrada. Com isso, evitamos ficar tão cansados rapidamente, como nos sentíamos antes de ter parado o nosso trabalho e as nossas obrigações quotidianas, profissionais e outras.
Viver saudavelmente não é apenas não ter doenças, mas, em concordância com a Organização Mundial de Saúde (OMS), conseguir um estado de bem-estar físico, mental e social. Deste modo, para alcançar a perceção de uma vivência saudável de qualquer vocação, é importante olhar para o que é uma vivência saudável da vida.
Entendo que qualquer vocação é digna, desde que seja objeto de um discernimento maduro e consistente e que nos mobilize, a partir daquele, para a verdadeira consciência da nossa missão.
Muito se fala daquilo que está errado, das formas desajustadas de existir; mas, de modo tranquilo e simples, podemos começar a olhar construtivamente para o que nos faz ser e estar bem, seja isso o que for e em que condição for.
Deste modo, todas as vocações de vida devem constituir uma oportunidade para bem nos relacionarmos com os desafios que são colocados no nosso caminho. Somos seres biológicos, psicológicos, sociais e espirituais e pragmatizamo-nos, se assim podemos dizer, porque pensamos, sentimos e agimos.
Assentamos os nossos percursos em alguns pilares dos quais me apetece destacar a memória, enquanto guia estruturante; a motivação, que poderíamos metaforizar como sendo o motor de arranque e de suporte da consistência das nossas condutas, e a autoestima, que é como quem diz a impressão que temos sobre nós mesmos. Há quem a defina como julgamento, mas, pela conotação que este acarreta, prefiro não o fazer.
Conseguir escolher viver por amor e não por medo faz toda a diferença para a saúde mental. Na verdade, alguns dos “fantasmas” que temos de compreender para nos libertarmos deles, são este mesmo (o medo), a culpa e a vergonha, essa inquietação com aquilo que pensamos que os outros pensam de nós.
Também em qualquer vocação é fundamental construir a liberdade de não se deixar guiar por aquelas que considero serem as ambições menos positivas que mais proliferam no mundo dito desenvolvido, neste século XXI – o prestígio (aos olhos dos outros), o poder e o dinheiro.
Todos, sem exceção, precisamos de nos conceber como seres em relação com quem nos rodeia, mas também connosco mesmos, com Deus e com o mundo, para já não falar da relação que também precisamos de ter com o tempo e com a própria vida que nos é dada e que, para os que temos fé, representa “apenas” uma etapa da nossa existência.
Todos somos, enfim, gestores das nossas prioridades, dos nossos equilíbrios e das nossas missões, mas precisamos de saber como fazer tudo isso para vivermos saudavelmente. Para tanto, vale a pena invocar apenas algumas sugestões que devem ser entendidas em jeito de pistas de reflexão:
– Integrar um bom grupo de pares;
– Conseguir ter a capacidade de não ser pedinte de afetos, alcançando um bom equilíbrio afetivo;
– Saber que nem todos podem ser tudo só porque são excelentes pessoas, estejamos, ou não, a falar de vocações consagradas. Uma coisa é ter um bom desejo. Outra é ser capaz de viver em harmonia com ele, com delicadeza, dedicação, alegria genuína e coerência;
– Disponibilizar-se a trabalhar a sua história, meio de transporte até ao presente, a fim de ser apenas produto, mas não ficar refém dela;
– Alcançar autonomia e equilíbrio emocional;
– Tomar consciência de que autoestima é bem diferente de arrogância e de narcisismo, e dedicar-se a crescer em descrição e em humildade;
– Alcançar a capacidade de acautelar as “idealizações do que não foi vivido”;
– Construir pouco a pouco a capacidade de se sentir seguro porque confia e não porque controla;
– Investir nessa tão necessária capacidade de lidar com a frustração e de adiar a gratificação com persistência e perseverança;
– Conseguir que o reconhecimento dos outros seja um valor acrescentado e não uma necessidade para se confirmar;
– Alcançar a maturidade na interdependência e não na submissão ou, pelo contrário. no autoritarismo dominador, narcísico, ditatorial e idolátrico;
– Ser autêntico;
– Não ter agendas próprias e/ou escondidas…
Em síntese, crescer em maturidade, usando sabiamente a liberdade e a responsabilidade, em busca de equilíbrios e de sentido, como sugere e tanto podemos aprender com Vitor Frankl.
O texto já vai longo e, por isso mesmo, não vou detalhar domínios que teriam abordagens complementares, não necessariamente coincidentes, em função de vidas específicas, como é o caso da afetividade e da sexualidade nas vocações consagradas. Preferi, neste artigo, mostrar que, todos, sem exceção, temos enormes desafios comuns, se quisermos viver saudavelmente, no que de nós depende. Acredito que esta que deve ser uma insaciável procura, está verdadeiramente ao nosso alcance, sendo necessário investir nela com dinamismo e empenho, sem que a acomodação e a perversidade possam fazer parte do léxico de possíveis condutas.
Tenho consciência que este artigo é bastante denso, pois quase cada linha pode ser pretexto de detalhado desenvolvimento. Espero verdadeiramente que, para quem o lê, esse objetivo seja atingido.
Termino citando um provérbio árabe que diz mais ou menos isto: não digas tudo o que sabes, não faças tudo o que podes, não acredites em tudo o que ouves, não gastes tudo o que tens. Porque quem diz tudo o que sabe, quem faz tudo o que pode, quem acredita em tudo o que ouve, quem gasta tudo o que tem… muitas vezes diz o que não convém, faz o que não deve, julga o que não vê e gasta o que não pode.
Assim sendo, passo a passo, poderemos chegar a uma consistente e progressiva pedagogia de bem viver.
Margarida Cordo é psicóloga clínica, psicoterapeuta e autora de vários livros sobre psicologia e psicoterapia.
Tempo da Criação
Responder à voz da criação
Juan Ambrosio | in MENSAGEIRO DE Santo António | 10 setembro, 2022
Não, não é engano. Sei bem que o tema deste Tempo da Criação, que estamos a celebrar, se formula com outro verbo. Trata-se do verbo escutar, e o convite que nos é dirigido é que escutemos a criação. Sei também como é importante, mesmo indispensável, que o façamos. A nossa incapacidade para escutar essa voz conduziu-nos à situação em que nos encontramos. E os sinais de alerta estavam aí. Primeiro pouco numerosos, pouco impactantes, deixando ainda lugar para dúvidas. Por isso a imensa maioria de nós os ignorou. Aqueles que nos chamavam a atenção para o que se estava a preparar, eram apelidados de alarmistas e de falsos profetas.
Pouco a pouco, e de uma maneira cada vez mais acelerada, os sinais foram-se tornando mais evidentes, deixando menos espaço para dúvidas. Aumentou o número daqueles que começaram a falar da necessidade de estarmos mais atentos e, mesmo, da necessidade de mudarmos de estilos de vida. O que estava já a acontecer foi-se tornando mais claro e começou a ser mais fácil colocar a questão ecológica no centro das atenções e das preocupações.
Hoje vivemos, a este nível, uma situação bem distinta. Diminui o número de aqueles que não querem reconhecer a evidência das alterações climáticas e os enormes desafios que enfrentamos ao nível ambiental. Já é fácil perceber que a situação que enfrentamos vai exigir a mudança dos nossos estilos de vida e que gestos ‘pequenos’ (bem grandes), como fechar a água enquanto nos ensaboamos ou lavamos os dentes, podem fazer uma enorme diferença.
Nesta mudança de atitude, que precisa ainda de ser mais enérgica, desempenharam um papel fundamental as constantes interpelações do Papa Francisco. Bem cedo no seu pontificado começou a chamar a atenção para o enorme desafio que enfrentamos como humanidade. A encíclica Laudato si’, marcou, neste âmbito, uma mudança de tal maneira significativa que podemos falar num antes e num depois. Agora o cuidado da casa comum, metáfora, que se tornou de uso corrente, é também um tema central na reflexão e ação das comunidades cristãs. Cuidar desta casa torna-se também critério para aferir a fidelidade da fé cristã.
A categoria ecologia integral, proposta neste texto, alarga ainda mais o horizonte, de tal modo que a questão ecológica não pode mais ficar reduzida à sua dimensão climática. As dimensões sociais, económicas, culturais e da vida quotidiana são também destacadas. O bem-comum surge como critério maior para orientar a ação. A questão ecológica é agora mais facilmente entendida como uma questão humana. No fundo sempre o foi, mas demorámos muito tempo a percebê-lo. Escutar o grito da terra e o grito dos pobres é uma obrigação e exigência para aqueles que se dizem discípulos de Cristo.
De tal maneira a escuta deste(s) grito(s) se tornou evidente que ousamos mesmo dizer que nele(s) se escutam também as interpelações que Deus nos dirige. E na resposta a essas interpelações, encontraremos certamente os caminhos a que nos está a convocar
Por tudo isto é evidente que o tema escolhido para este Tempo da Criação é acertado. Mas se a escuta é necessária, e mesmo indispensável, ela não chega para lidarmos com os desafios que enfrentamos. Não podemos deixar de escutar, mas é urgente começar a responder. Por isso a proposta do título que encabeça estas linhas. O tempo que vivemos tem de ser já o tempo da resposta. Não basta perceber a necessidade da mudança. É urgente concretizá-la. Em certo sentido, a verdade da escuta pode ser aferida pela ousadia da resposta.
Tempo de reconciliação e de cura entre o Homem e a Natureza | stock.adobe.com
As chamadas de atenção e a presença da temática tanto nos discursos dos líderes políticos e religiosos, como no comum dos cidadãos, é um passo muito importante, mas será, sem dúvida, um passo curto se ficar só, ou essencialmente, a este nível. Nas repostas concretas que soubermos e quisermos dar ao grito da terra e ao grito dos pobres encontraremos, não tenho dúvidas acerca disso, o rumo que estamos a percorrer enquanto humanidade.
E essas respostas não são só competência dos líderes já referidos. Claro que eles têm um papel importantíssimo, mas não basta.
O lugar dos cidadãos, também daqueles que se dizem cristãos, é imprescindível. Cada um de nós é chamado a dar essa resposta. As mudanças de estilo de vida que são necessárias só serão possíveis se forem consolidadas com os passos do dia-a-dia. A mudança global, que se exige para o futuro, tem de começar hoje e tem de ser edificada sobre os gestos concretos de cada um.
O que está a acontecer ao nível da nossa casa comum pode parecer indicar que já é tarde e não vamos a tempo. Certamente teria sido melhor sermos mais rápidos, pois algumas das consequências da nossa lentidão já se fazem sentir e provocam dor, sobretudo, como sempre, entre os mais frágeis, mas ainda vamos a tempo:
O criador não nos abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem se arrepende de nos ter criado. A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum.
LS, 13
Este é o tempo de responder à voz da criação.
Tempo da Criação
Aprender a escutar os que são silenciados
ESPECIAL TEMPO DA CRIAÇÃO
José Varela | 5 Setembro 202 2| in Ponto SJ
O Tempo da Criação, que decorre de 1 de setembro a 4 de outubro, constitui um período em que os Cristãos de todo o mundo são convidados a orar e a agir pela Casa Comum. Este ano o mote principal consiste em “Escutar a Voz da Criação”, tendo como símbolo a sarça ardente.
Sendo de cariz ecuménico, esta iniciativa é organizada por instituições ligadas a diferentes Igrejas cristãs, as quais chamam a atenção para a necessidade de escutar todas as vozes que são silenciadas no discurso público sobre as alterações climáticas e a forma como cuidamos e nos relacionamos com a Terra.
A escuta dos que mais sofrem é, para os cristãos, feita à imagem do que Deus transmitiu a Moisés com a sarça ardente (Ex 3: 1-12), um fogo do Espírito que não destrói mas que mostra que Deus ouve estas vozes e está com os injustiçados, conforme sublinha a organização.
Estas são não só as vozes daqueles que mais sofrem as consequências das mudanças no clima, mas também dos que conhecem formas ancestrais de viverem em respeito pelo Planeta, sendo destacados os mais jovens, os povos indígenas, as mulheres, os economicamente marginalizados, os migrantes, bem como as diferentes espécies ou os ecossistemas afetados.
Na sua mensagem para o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação – que se celebrou a 1 de setembro – o Papa Francisco refere que, se aprendermos a escutar, perceberemos a dissonância que existe na voz da Criação, a qual canta em louvor a Deus mas ao mesmo tempo lamenta “os nossos mau tratos a esta nossa casa comum”. É por isso necessário “mudar os nossos estilos de vida e sistema destrutivo”, “convertendo modelos de consumo e produção” que respeitem “a criação e o desenvolvimento humano integral de todos os povos, presentes e futuros”, defendendo um “desenvolvimento baseado na responsabilidade, prudência/precaução, solidariedade, preocupação com os pobres e as gerações futuras”.
Para aprendermos a escutar é essencial o papel de cada pessoa, famílias e instituições. A Plataforma de Ação Laudato Si, uma iniciativa do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral com diversas organizações parceiras, apoia a conversão ecológica de vários setores, entre os quais as Instituições Educativas.
Na encíclica Laudato Si´, Francisco defende que “antes de tudo é a humanidade que precisa de mudar”, o que implica, entre outros, um grande desafio educativo (LS, 202). Esta mudança passa por adotar novos estilos de vida, que se afastem do consumismo, da autorreferenciação e que sejam capazes de pressionar os poderes político, económico e social (LS, 203 – 206).
Neste âmbito, o desafio educativo coloca-se em diferentes âmbitos, como sejam “a escola, a família, os meios de comunicação, a catequese, e outros”. À política, às associações e à própria Igreja compete “um esforço de formação das consciências da população” (LS, 213;214).
Na verdade, sem um esforço de transformação pela e da educação no seu sentido mais amplo, a conversão à ecologia integral não será certamente uma realidade. Desta forma, um dos sete Objetivos Laudato Si´ definidos na Plataforma é precisamente a “educação ecológica”.
Pretendendo-se que estes objetivos guiem a ação de quem procura “discernir uma resposta para a crise ecológica”, a inspiração que é dada para o âmbito educativo passa, por exemplo, por trabalhar pelo acesso equitativo à educação, pela promoção dos direitos humanos, por fomentar os temas da Laudato Si´ na comunidade, por incentivar lideranças ecológicas e atividades de restauração ecológica, por redefinir currículos e reformar as instituições.
Reforçando a importância da educação, já no lançamento do Pacto Educativo Global, em 2019, o Papa Francisco defendia que “toda a mudança precisa duma caminhada educativa”, sendo necessário ter “a coragem de colocar no centro a pessoa” e encontrar “outros modos de compreender a economia, a política, o crescimento e o progresso”.
Na verdade, o discurso de diagnóstico e proposta de soluções para o desenvolvimento sustentável não raras vezes enreda-se em argumentos tecnicistas e também eles autorreferenciais, mesmo que bem intencionados, esquecendo o contributo que outras vozes e experiências podem trazer para a discussão.
Que o Tempo da Criação que estamos a viver encoraje todos os que de alguma forma têm um papel no campo educativo, desde a família às grandes instituições, a escutar os que mais sofrem, os que sabem viver de acordo com os limites da natureza e os que conhecem na prática os efeitos de modelos económicos e sociais que requerem mudanças urgentes.
Tempo da Criação
Escutar, vigiar, agir
ESPECIAL TEMPO DA CRIAÇÃO
Maria José Pereira | 1 Setembro 2022 | in Ponto sj
“Escutem!” O Papa exorta-nos com diligência a escutar, na encíclica Laudato Sí, na convocação do Sínodo, nas homilias, sempre quando nos fala. Ao escutarmos, prestamos atenção e tomamos conhecimento do que se passa. É o passo antes da ação. No dia de Oração pela Criação, dia 1 de setembro, escutemos o Santo Padre, escutemos o clamor da Terra, escutemos os nossos Irmãos, muitos dos quais sofrem. Ao escutarmos, o que precisamos de fazer?
Na encíclica, o Papa expõe a crise ecológica, que se manifesta este ano com calor excessivo, grande seca e fogos em muitas partes do mundo, incluindo no nosso Portugal. Desastres naturais que sofremos todos, mas que afligem em particular os mais pobres. Por isso, o Papa refere que a crise é mais do que ecológica, é civilizacional. As alterações climáticas, a perda de biodiversidade, a poluição dos mares, do ar e da terra provêm, em grande parte, do comportamento humano e da sua ação descuidada, representando uma degradação ética.
Por isso, o Papa apela a uma conversão espiritual, a uma ecologia integral. Para cuidar da Terra, precisamos de cuidar do nosso espírito. Inspirado por S. Francisco de Assis, o Papa delineia a ligação entre a natureza, a sociedade, a justiça e a paz interior. Tudo está interligado. A ecologia integral transcende a gestão científica, económica e política para o essencial do que significa ser humano.
No mundo, a natureza que nos envolve é vista fora de nós. Compreende recursos para o nosso proveito. Porém, o Papa Francisco lembra que “o nosso corpo é constituído pelos elementos do Planeta”, e ao destruí-lo, estamos a prejudicar-nos. Os recursos da Terra alimentam-nos e devem ser aproveitados com respeito, sem desperdício. Oikonomia em grego quer dizer “gestão da casa”, o que implica explorar, produzir, e consumir com atenção e responsabilidade.
Temos que ir além das soluções tecnológicas, regulamentação e do apoio financeiro para acelerar o processo de descarbonização e para criar uma sociedade onde as pessoas possam viver em harmonia com a natureza e entre si, respeitando a dignidade de cada um.
É com a crise ecológica que se manifestam as transgressões: a cultura do individualismo, o consumismo, a competição, a avareza, o crescimento económico sem limites, o que impede uma gestão cuidadosa da “nossa casa”. Observamos sucessivos desastres naturais. É imperativo olharmos para este desafio na sua integralidade e com sinceridade, sem ilusões nem encontrando pretextos.
A natureza é um bem coletivo, património de todos e ao cuidado de todos. Todos contribuímos para a crise, por isso devemos participar na sua solução, de uma forma holística. Tudo está interligado. A solução não se encontra em respostas fragmentadas. Nem contando só com o mercado livre para resolver a crise. Temos que ir além das soluções tecnológicas, regulamentação e do apoio financeiro para acelerar o processo de descarbonização e para criar uma sociedade onde as pessoas possam viver em harmonia com a natureza e entre si, respeitando a dignidade de cada um.
Para responder ao apelo do Papa, precisamos de construir o bem comum. Jacques Maritain, o filósofo católico, para quem o bem comum não é simplesmente um conjunto de bens públicos, descreve o que representa a vida boa, humana. A Terra oferece-nos recursos naturais, e a sociedade proporciona as condições de existência e desenvolvimento pessoal, permitindo-nos satisfazer os nossos desejos emocionais e espirituais. Fazemos parte de um corpo dinâmico e não somos apenas a soma das partes individuais. Tudo está interligado. Contribuímos todos para o bem comum.
O Papa Francisco apela-nos a uma conversão ecológica, a uma transformação cultural. Não amamos a Terra, se continuarmos a destruí-la. Não amamos o outro se o tratamos mal. Cuidar da Terra é um ato de amor e de justiça para com a mesma, assim como para com os nossos Irmãos, presentes e futuros. As gerações futuras merecem herdar bens que lhes permitirem viver em dignidade. Uma ecologia integral implica abdicar-se de uma acumulação excessiva de bens e de prazeres; que permita a adoção de uma vida equilibrada e responsável, em harmonia com a Criação.
Tempo da Criação
Tempo da Criação 2022 (Comissão Diocesana)
Todos os anos, de 1 de setembro a 4 de outubro, a família cristã une-se para a celebração mundial de oração e ação pela proteção da nossa casa comum. Como seguidoras e seguidores de Cristo de todo o mundo, compartilhamos um apelo comum a cuidar da criação. Somos cocriaturas e fazemos parte de tudo o que Deus fez. O nosso bem-estar está entrelaçado com o bem-estar da Terra. Alegramo-nos com esta oportunidade de salvaguardar a nossa casa comum e todos os seres que a compartilham connosco. Este ano, o tema deste Tempo é «Escutar a Voz da Criação».
Convite dos líderes religiosos à participação no Tempo da Criação
Caríssimas Irmãs e Irmãos em Cristo,
O Tempo da Criação é a celebração cristã anual para escutarmos e respondermos conjuntamente ao grito da Criação: a família ecuménica em todo o mundo une-se para rezar e proteger a nossa casa comum.
A "Celebração" começa a 1 de setembro, o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação, e termina a 4 de outubro, Festa de São Francisco de Assis, o santo padroeiro da ecologia, amado por muitas denominações cristãs.
Este ano vamos unir-nos em torno do tema: «Escutar a Voz da Criação».
O salmista declara: «Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos. Um dia fala disso ao outro dia; uma noite revela-o à outra noite.... não se ouve a sua voz. Mas a sua voz ressoa por toda a terra, e as suas palavras até os confins do mundo». (19, 1-4)
Durante o Tempo da Criação, a nossa oração e ação comum podem ajudar-nos a escutar as vozes que são silenciadas. Na oração, lamentamos cada pessoa em particular, comunidades, espécies e ecossistemas que estão perdidas/os, e aquelas/es cujo sustento está ameaçado pela perda do habitat e pelas mudanças climáticas. Na oração, colocamos no centro o grito da Terra e o grito dos pobres.
Que este Tempo da Criação de 2022 possa renovar a nossa unidade ecuménica, renovando e unindo-nos pelo nosso vínculo de Paz num mesmo Espírito, no nosso apelo a cuidar da nossa casa comum. E que este tempo de oração e ação seja um tempo para escutar a Voz da Criação, para que as nossas vidas em palavras e atos proclamem boas novas para toda a Terra.
Na graça de Deus,
Membros do Comitê Consultivo do Tempo da Criação
O tema de 2022: «Escutar a Voz da Criação»
Durante a pandemia da COVID-19, muitas/os de nós familiarizamo-nos com o conceito de sermos silenciadas/os durante as conversas virtuais. Com frequência as pessoas usam plataformas que não dão a opção de sair do silêncio. Ainda mais, nem sequer têm acesso às plataformas digitais, e por isso as suas vozes nunca são escutadas. Muitas vozes são silenciadas no discurso público sobre as mudanças climáticas e a ética do cuidado da Terra. Estas são as vozes daquelas/es que sofrem os impactos da mudança climática. Estas são as vozes daquelas/es que possuem sabedoria geracional sobre como viver com gratidão dentro dos limites da terra. Estas são as vozes de uma diversidade cada vez menor de espécies mais do que humanas, é a voz da Terra. O tema do Tempo da Criação de 2022 desperta a consciência da nossa necessidade de escutar a voz de toda a criação.
O salmista (19,1-4) reconhece que escutar a voz da criação requer um tipo de escuta que é cada vez mais raro. Dentro da família cristã ecuménica, existe uma gama diversificada de tradições para nos ajudar a recuperar a nossa capacidade de escutar a voz da criação. Alguns dos primeiros escritos cristãos referem-se ao conceito da criação como um livro a partir do qual o conhecimento de Deus pode ser lido. A tradição teológica do livro da criação corre como um fio de ouro dos escritos de Orígenes através dos escritores da época da Patrística como Tertuliano, Basílio de Cesareia e outros. Como o salmista, São Máximo lembra-nos que todo o cosmos louva e glorifica a Deus «com vozes silenciosas», e que o louvor não é escutado até que lhe demos voz, até que louvemos a Deus na e com a criação. Santo Agostinho escreve: «[A Criação] é a página divina que deves escutar; é o livro do universo que deves observar. As páginas da Escritura só podem ser lidas por aqueles que sabem ler e escrever, enquanto todos, mesmo os analfabetos, podem ler o livro do universo». Para um sermão de Advento Martinho Lutero escreveu: «Deus escreveu [o Evangelho] não só em livros, mas também em árvores e outras criaturas».
Um "livro" ou um pergaminho era para ser lido em voz alta e, portanto, era uma palavra falada que devia ser escutada. Os pergaminhos e os livros da Escritura deveriam ser lidos em voz alta, inspirados numa comunidade e ouvidos como proclamação. O salmista que declara que a criação proclama o trabalho manual de Deus também sabe que o livro da Escritura revive perfeitamente a alma, faz sábias as pessoas simples, alegra o coração e ilumina os olhos. (Salmo 19,7-8) O livro da criação e o livro da Escritura devem ser "lidos" lado a lado.
Devemos ter cuidado para não confundir os dois livros e para não desfocar as linhas entre a razão e a revelação. Mas o que "escutamos" da criação é mais do que uma metáfora extraída da nossa compreensão da ecologia e da ciência climática. É mais do que as ciências biológicas e físicas que têm moldado o diálogo entre a teologia e as ciências naturais desde a revolução científica. Na sua encíclica sobre a Fé e a Razão, o Papa João Paulo II reconheceu que, enquanto Cristo é o coração da revelação de Deus, a criação foi a primeira etapa dessa revelação. As harmonias que emergem quando contemplamos os livros da criação e das Escrituras formam a nossa cosmologia sobre quem somos, onde estamos e como somos chamados a viver relações harmoniosas com Deus e com as nossas cocriaturas.
A contemplação abre-nos a muitos modos de escutar o livro da criação. O Salmo 19 diz que as criaturas falam-nos do Criador. O equilíbrio harmonioso das ecologias biodiversas e os gritos de sofrimento da criação são ambos ecos do Divino, porque todas as criaturas têm a mesma origem e terminam em Deus. Escutar as vozes de nossas cocriaturas é como perceber a verdade, a bondade ou a beleza através da vida de um amigo humano e de um membro da família. Aprender a escutar essas vozes ajuda-nos a tomar consciência da Trindade, na qual a criação vive, se move e tem o seu ser. Jürgen Moltmann pede «um discernimento do Deus que está presente na criação, que através de seu Espírito Santo pode levar o homem e a mulher à reconciliação e à paz com a natureza".
A Tradição Cristã ajuda-nos a aprender a escutar o livro da criação. A espiritualidade cristã está repleta de práticas que levam os nossos corpos à contemplação com palavras, também com o silêncio. Tais práticas litúrgicas e espirituais são acessíveis desde a infância até à vida adulta. Cultivar uma espiritualidade de escuta ativa ajuda-nos a discernir as vozes de Deus e dos nossos vizinhos no meio do barulho de narrativas destrutivas. A contemplação move-nos do desespero à esperança, da ansiedade à ação!
Para os cristãos e cristãs, Jesus Cristo mantém juntos os dois "livros" da criação e da Escritura. Diante da realidade da rutura, do sofrimento e da morte, a encarnação e ressurreição de Cristo torna-se a esperança de reconciliar e curar a Terra. O livro da Escritura proclama a Palavra de Deus para que possamos ir ao mundo e ler o livro da criação de uma forma que antecipe este Evangelho. Por sua vez, o livro da criação ajuda-nos a escutar o livro da Escritura a partir da perspetiva de toda a criação que anseia pela boa nova. Cristo torna-se uma chave para discernir o dom e a promessa de Deus para toda a criação e particularmente para aqueles que sofrem ou que para nós já estão perdidas.
Durante o Tempo da Criação, a nossa oração e ação comum podem ajudar-nos a escutar as vozes que são silenciadas. Na oração, lamentamos pessoas em particular, comunidades, espécies e ecossistemas que estão perdidas/os, e aquelas/es cujo sustento está ameaçado pela perda do habitat e pela mudança climática. Na oração, colocamos no centro o grito da Terra e o grito dos pobres. As comunidades de fé e oração podem ampliar as vozes das pessoas jovens, dos povos indígenas, das mulheres e das comunidades afetadas que não são ouvidas na sociedade. Através de liturgias, orações públicas, atos simbólicos e de incidência pública, podemos lembrar aquelas/es que são deslocadas/os ou desapareceram dos espaços públicos e dos processos políticos.
Escutar a voz da criação oferece aos membros da família cristã um rico ponto de entrada no diálogo e na prática inter-religiosa e interdisciplinar. Os cristãos e cristãs trilham um caminho compartilhado como aqueles que possuem diferentes tipos de conhecimento e sabedoria em todas as culturas e setores da vida. Ao escutar a voz de toda a criação, a humanidade une-se na vocação de cuidar da nossa casa comum (oikos).
Oração
Criador de todas as coisas,
A partir da Tua comunhão de amor, a Tua Palavra partiu para criar uma sinfonia de vida que canta os Teus louvores.
Pela Tua Sagrada Sabedoria fizeste a Terra para trazer à tona uma diversidade de criaturas que Te glorificam no seu ser. Dia após dia proclamam; noite após noite, revelam conhecimento.
Chamaste a humanidade a cultivar e manter o Teu jardim. Colocaste-nos em relações harmoniosas com cada criatura para que pudéssemos escutar as suas vozes e aprender a salvaguardar as condições para a vida. Mas voltamo-nos só para nós mesmos.
Fechamos os nossos ouvidos aos conselhos dos nossos semelhantes. Não ouvimos os gritos das pessoas empobrecidas e as necessidades das mais vulneráveis. Silenciamos as vozes daquelas que sustentam as tradições que nos ensinam a cuidar da Terra. Fechamos os nossos ouvidos à Tua Palavra criativa, reconciliadora e sustentadora, que nos chama através das Escrituras.
Lamentamos a perda das nossas espécies semelhantes e dos seus habitats que nunca mais falarão. Lamentamos a perda de culturas humanas, juntamente com as vidas e os meios de subsistência que foram deslocados ou pereceram. A criação grita enquanto as florestas crepitam e os animais fogem dos incêndios da injustiça que acendemos com a nossa falta de vontade de escutar.
Neste Tempo da Criação, oramos para que Tu nos chames, a partir da sarça-ardente, com o fogo sustentador do Teu Espírito. Sopra sobre nós. Abre os nossos ouvidos e move nossos corações. Transforma o nosso olhar interior. Ensina-nos a contemplar a Tua criação e a escutar a voz de cada criatura que declara a Tua glória. Pois «a fé vem pelo ouvir».
Dá-nos corações para escutarmos as boas novas da Tua promessa de renovar a face da Terra. Ilumina-nos com a graça de seguir o Caminho de Cristo enquanto aprendemos a caminhar com leveza sobre esta terra sagrada. Enche-nos da esperança de apagarmos o fogo da injustiça com a luz do Teu amor curativo que sustenta a nossa casa comum.
Em nome d'Aquele que veio para proclamar a boa nova a toda a criação, Jesus Cristo.
Ámen.
Tempo da Criação
Descansar como Deus descansou
ESPECIAL ODE AO DESCANSO
Marta Arrais | 7 Agosto 2022 | in Ponto SJ
Vivemos em piloto-automático. Mergulhamos os nossos dias numa correria cega, absoluta e imparável. Julgamo-nos super-heróis. Capazes de combinar um ritmo de profunda produtividade, com exímia competência. Sem nunca ousar pôr o pé no travão, aceleramos a todo o custo, sem pensar nas consequências dessa falta de pausas, de descanso e, até, de reflexão sobre o nosso caminho interior.
Qual a razão para não nos darmos o sossego que merecemos? Quais os motivos para não nos permitirmos o descanso?
A verdade é que o mundo nos quer fazer acreditar que o descanso é para os fracos. Para os que são preguiçosos; para os que não honram o trabalho e para os que têm vidas que não rimam com o profissionalismo e a capacidade. Esta ilusão que os outros nos dão e nos “vendem”, de tantas e diferentes formas, não passa de uma distração do essencial. De uma tentativa de não nos deixar pensar que o mais importante não está no ritmo frenético, nas checklists todas cumpridas ou nas tarefas feitas em tempo recorde e sempre em modo de “para ontem”. O mais importante está, precisamente, na capacidade de saber equilibrar o tempo de trabalho e de produtividade com o tempo de descanso e de sossego. Obviamente não faria sentido passar a vida toda a descansar, tal como não pode fazer sentido passar a vida (apenas) a trabalhar e a cumprir objetivos.
Pensemos no exemplo de Deus. Colocou a sua raiz e a sua luz na criação do mundo, para cada um de nós. Deu-nos tudo e deu-Se incondicionalmente. Sem pesos e sem medidas. No entanto, teve (ainda assim) a humildade para se conceder o descanso. Para se permitir um tempo de repouso depois de ter dado tudo. De ter sido tudo.
Vejamos: se até Deus descansou, quem serei eu para me julgar melhor do que Deus?
É preciso (e urgente) normalizar a importância do descanso como uma parte integrante da nossa saúde física e mental. Quando nos concedemos tempos de pausa estamos a ousar viver mais plenamente e, efetivamente, a recuperar forças e ânimo para que, mais tarde, possamos trabalhar melhor, pensar melhor, viver e amar melhor.
Neste tempo que é, para muitos, tempo de descanso e de férias, talvez valha a pena usufruir destes dias sem os colar aos pensamentos sobre o trabalho que ficou lá atrás ou sobre as tarefas que estão, ainda, por vir. Que saibamos educar-nos para contemplar o pôr-do-sol com o mesmo respeito que temos pelo cumprimento de um prazo. Que saibamos desfrutar de um mergulho no mar com o mesmo cuidado que temos com as nossas tarefas diárias. Que saibamos ouvir o som dos pássaros, das ondas que beijam a praia, das crianças que riem por coisa nenhuma com a mesma reverência que temos com uma reunião importante. Que saibamos fechar os olhos enquanto o sol nos doira a pele com a mesma concentração que temos quando lemos um e-mail importante.
A arrogância de julgarmos não precisar do descanso deixa-nos reféns de uma vida demasiado vazia e ausente de sentido. Tudo é de Deus: o trabalho e o descanso. Que seja prioridade tanto um como outro e que a nossa vida rime sempre com o sossego que é o amor do Pai.
Tempo da Criação
Igreja/Ambiente: Crise nos oceanos vai «afetar todos», diz José Varela
No Parque das Nações juntaram-se mais de 7 mil pessoas, de 142 países, para segunda Conferência dos Ocenaos, da ONU. José Varela, da Comissão Executiva da “Rede Cuidar da Casa Comum” foi um dos participantes e é o convidado desta semana da Entrevista Renascença-Ecclesia
In Ecclesia | Jul 3, 2022
(Continuação)
Sabemos que iniciativas das Nações Unidas obedecem a um conjunto de regras…. Mas, iniciar-se um evento destes tendo à partida já um rol de conclusões definidas prejudica o debate?
Eu acho que há debates em diferentes níveis. E isso é uma grande declaração e acho que se compreende que, quando se procura o consenso de tanta gente, se calhar não se vai tão longe como se pretendia. Mas há outros diálogos. Há dezenas de eventos que estão a existir, e, portanto, acho que não devemos olhar só para a conferência e sua declaração final. Há todos estes diálogos e este trabalho que vai surgindo que também é importante e que também é diálogo.
Isso leva à nossa próxima pergunta. Quando olhamos para o panorama macro há a tendência de delegar funções e responsabilidades no Estado, nos responsáveis políticos, na comunidade internacional, como uma entidade abstrata. Seria importante uma reflexão sobre os impactos das ações humanas para a natureza? E também o no seu papel de novas formas de produção e de consumo?
Sim, isto é um trabalho de todos. Não podemos dizer que isto é com cada um. Ou então o contrário e pensar-se que as grandes instituições é que vão resolver, o Estado é que vai resolver. Acho que o trabalho é de todos, e aqui também o movimento ‘Laudato Si’, a rede de cuidar da casa comum – todas estas organizações- também trabalhamos para provocarmos mudança. Também temos de nós próprios mudar e isto é um trabalho constante…
Mas há sempre o problema da resistência à mudança?
Há a resistência à mudança. Há as opções também. Uma coisa que muitas vezes preocupa é o facto de o consumo ético muitas vezes ser mais caro do que o consumo não ético, e se calhar devia ser o contrário. Incentivar quem tem essa preocupação e não o contrário. Não é fácil. E aliás, a ‘Laudato Si’ é uma encíclica que desinstala. A mensagem não nos deixa sossegados. Há sempre qualquer coisa que é preciso mudar. Às vezes por aí também pode haver resistência porque chega-se ao fim e está em causa o estilo de vida…
A própria proposta de ter menos e viver com menos que em última instância, é isso?
Perfeitamente. Envolve toda a nossa vida, os padrões de consumo. Toda a nossa vida como está organizada. Isso também tem de ser conseguido em pequenos passos. Tentar o possível e com algum impacto. Mas, há outras iniciativas e por exemplo a plataforma ‘Laudato Si’ que é promovida pelo dicastério para o desenvolvimento humano integral e onde está o movimento ‘Laudato Si’ e muitas outras organizações já tem esse objetivo de tentar ajudar as pessoas, organizações, universidades, empresas, podem-se inscrever, registar-se e têm acesso a documentação para planos de ação porque a ideia é mesmo passar à prática. E isso pode ajudar. Juntos é mais fácil do que sozinhos.
Que lugar tiveram os mais jovens, nesta Conferência, sabendo que eles são os mais empenhados na luta climática?
De facto, como se falou já noutros momentos com a delegação não vemos jovens em todos os fóruns que se calhar gostaria que estivessem. O Padre Pedro até falou disso no dia 28, sobre a possibilidade de participarem mais até mesmo para entrar nestes mecanismos e compreender as suas dinâmicas. No programa houve outros momentos para jovens, como por exemplo em Carcavelos, a marcha azul pelo clima, onde houve participação. Mas, o que se sentiu e que vamos falando também entre nós é que podia haver mais espaço para os jovens nestes fóruns onde depois acabam por sair decisões.
Ainda estamos muito marcados pela crise pandemia e agora temos uma guerra na Europa. Teme que estas circunstâncias dramáticas possam atrasar a implementação de medidas que foram acordadas nas conferências do Clima e neste tipo de iniciativas?
Acho que sim. Estes acontecimentos que são tudo urgências, pois o mundo confronta-se com todos estes problemas e por exemplo a agenda mediática também influencia depois as prioridades e às vezes são coisas contraditórias. Por um lado, precisamos de um reforço de gasto em armamento, face ao que está a acontecer, mas precisávamos também de financiamento e de investimento para muitas outras coisas que também são urgências. Só que, se calhar nuns sítios tem mais atenção e noutros sítios esquecemo-nos. Acho que há o risco. Mas gostaria mais de dizer: temos de tentar que isso não aconteça. Não esquecermos o que disse o Secretário-Geral das Nações estamos perante uma emergência. E por isso, todos temos que tentar dar o nosso contributo, mas sabemos que há muitas outras prioridades que se podem sobrepor. Vamos tentar não deixar que isso aconteça.
Uma das preocupações das Nações Unidas tem a ver com a subida do preço do peixe, de cerca de 25 por cento, em cerca de meio ano. Isto pressiona os consumidores, mas se calhar também pressiona a indústria para uma maior procura face ao lucro. E isto pode precipitar por exemplo de uma agenda que saia desta conferência?
Nós precisamos também do envolvimento das empresas e do sector empresarial e das indústrias e de facto há muitas forças e condicionantes que podem prejudicar. Agora, acho que isso não nos deve fazer baixar os braços e procurar também diálogos e formas de pontes e pontes de encontro onde seja possível continuar esta agenda e esta caminhada.
Muitas das medidas têm impacto económico e depois nunca há grande disponibilidade para assumir o custo do que se tem de fazer, não é?
Sim, claro. Embora há passos que vão sendo dados. Nós não temos a mesma realidade que havia há algum tempo, e, portanto, isso será possível. E o nosso trabalho com organizações ligadas à Igreja é também sensibilizarmos individualmente cada pessoa, porque as pessoas estão em muitos sítios não é. E, portanto, isso também pode ajudar porque as decisões são tomadas por pessoas. Por muito que tenhamos aquele mito das decisões apenas financeiras há sempre a vertente ética, a vertente das escolhas, e portanto, cada um trabalhará nas suas áreas. O nosso trabalho tem muito a ver com o despertar essas consciências porque as decisões são tomadas por pessoas e essas pessoas podem de facto fazer a diferença, nos sítios onde estão.
Rápido aumento do nível do mar, agravamento da erosão costeira, aquecimento e acidificação dos oceanos, poluição marinha… O alerta surge de todos os lados: a humanidade está a afundar-se. Mas parece que esse alerta já não é suficiente. Vai ser necessário uma maior radicalidade na procura de soluções?
A procura de soluções técnicas tem que andar a par. Achamos importante parar e perceber o que é que estamos a fazer. Por exemplo, o plástico que eu deito aqui vai aparecer, se calhar na casa destas pessoas com quem eu estive agora e isso faz muita diferença. Não sei se a opção tem de ser radical. Direi que temos de aprofundar e acelerar, porque não pode ser apenas nestes momentos, nestes grandes eventos que se trata destes assuntos. Há aqui um trabalho de continuação. E por exemplo posso dizer que está a ser organizado entre várias organizações católicas – Universidade Católica da Austrália, com o dicastério do desenvolvimento humano integral – está a ser preparada uma conferência online sobre os oceanos. Fica aqui a notícia um bocadinho em primeira mão. Está a ser preparada uma conferência internacional sobre os oceanos online que será em outubro. E portanto, será também um momento de voltarmos a falar disto agora não dentro das regras e do esquema da ONU, mas será organizada por estas instituições ligadas à Igreja onde toda a gente terá voz. Realmente para não deixar cair o assunto porque é preciso acelerar. É preciso aprofundar e não esquecer que estamos todos em causa. E com tanta coisa à nossa volta é isso que esquecemos. E não estou a fazer juízos de valor sobre quem é mais perfeito ou não, mas isto deve-nos fazer pensar e não esquecer e continuar. E é isso que nós vamos tentar e continuaremos com certeza juntamente com estas várias organizações e tantas pessoas. E isso também é uma nota de esperança, porque há pessoas que realmente se preocupam. Há muita gente, e isso tem que dar alguma coisa.
Fazendo parte da denúncia e da importância de manter o assunto à tona….
Exato. A preocupação de cada um pode ser a preocupação de muitos. E este conjunto pode fazer de facto aos poucos a diferença; sem idealismos irrealistas. Mas, há passos que tem que ser dados e há coisas que mesmo na Igreja nós vemos que estão a ser feitas, e muito inspiradas pela ‘Laudato Si’ e outros documentos. De facto há coisas muitas diferentes do que era há algum tempo. Queremos que isto continue.
Tempo da Criação
Igreja/Ambiente: Crise nos oceanos vai «afetar todos», diz José Varela
No Parque das Nações juntaram-se mais de 7 mil pessoas, de 142 países, para segunda Conferência dos Ocenaos, da ONU. José Varela, da Comissão Executiva da “Rede Cuidar da Casa Comum” foi um dos participantes e é o convidado desta semana da Entrevista Renascença-Ecclesia
In Ecclesia | Jul 3, 2022
A delegação da Santa Sé na Conferência alertou para o risco de uma destruição sem precedentes, neste século, caso a comunidade internacional adie compromissos na defesa dos mares. Que expectativas de mudança podemos ter, quando a decisão está concentrada nos mesmos de sempre?
Houve uma delegação, em particular, que veio da Oceânia, e que várias instituições e organizações católicas receberam em Portugal, com muito gosto. A esperança está sempre presente.
Nestes dias temos momentos de alguma angústia, se calhar, e até alguma revolta, que também faz parte, mas temos sempre de acreditar que qualquer pequeno passo é importante. Nestes dias, criou-se uma rede de pessoas, que se vai juntando, da sociedade civil, em interação com pessoas de outras denominações religiosas ou não-confessionais. Essa rede vai crescendo, os relacionamentos também são importantes, não é só a discussão técnica: há aqui também um trabalho de consciência.
E que pode ser um fator de mudança no futuro?
Pode ser, porque a mudança começa por cada um de nós, de facto. São vários planos de trabalho, não vemos tudo negro, no sentido de não irmos conseguir, mas é um trabalho longo. São processos, como diz o Papa Francisco, e o importante é criá-los. Mesmo as organizações que estiveram connosco, na delegação, isto é só um momento: o principal do trabalho acontece entre COP, entre conferências. Queremos deixar uma palavra de esperança, há coisas que podem mudar, todos os pequeninos passos são sempre importantes e bem-vindos.
Mas não acaba por haver decisões que são sempre dos mesmos?
Numa declaração de compromisso, de tantos países, vai-se até onde se pode, certamente, e é um trabalho a nível político. Nestes dias, viemos a alertar para a necessidade de contar com outras esferas da atividade humana, a parte espiritual, a voz dos povos indígenas, da juventude. Portanto, é um caminho que não está como todos gostaríamos, mas é um trabalho que vale a pena: vemos estar organizações que se juntam, acompanham e querem ter uma voz, participar neste diálogo, numa perspetiva de fé.
O compromisso do Papa e do Vaticano, visível na encíclica ‘Laudato Si’, ainda está longe de ser entendido e acolhido por todos?
Penso que sim, ainda há muito caminho para percorrer, à volta da ‘Laudato Si’. Há comunidades em diferentes estádios evolutivos, pessoas também… eu próprio posso ter contacto com a mensagem, numa altura percebo-a de uma maneira, depois percebo outra abrangência e o impacto é diferente. Apesar de tudo, a ‘Laudato Si’ tem sido um grande farol e movimentado muita gente; eu, em particular, sou voluntário do Movimento Laudato Si e, neste momento, existem no mundo 8 mil animadores formados, o que quer dizer que há muita gente com vontade de, nas suas comunidades, nas suas realidades, continuar a passar esta mensagem.
Ficou com a ideia de que a voz de Francisco é ouvida, ou nestas conferências há pouco espaço para a linguagem de Deus e para falar de espiritualidade?
A maior parte do que ouvimos são mensagens científicas, mas, por exemplo, o arcebispo Chong (Fiji) foi aceite como ‘stakeholder’ para falar ao plenário da Conferência, e também outra ativista que está connosco, Pelenatita Kara, que vem da Cáritas Oceânia. Isso anima-nos, são perspetivas novas, que fazem parte do diálogo. Não que as outras não sejam importantes, precisamos é de todos.
D. Peter Chong, arcebispo das Ilhas Fiji, que participou nesta conferência mostrou-se um tanto desiludo e numa entrevista à Renascença disse que “o verdadeiro povo, cujo grito o mundo precisa de ouvir”, não esteve presente. É a voz de alguém que vive numa das zonas mais afetadas pelas alterações climáticas e pela subida das águas… Falta mesmo ouvir mais quem sofre as consequências, neste debate?
Sem dúvida. Há aqui alguns fatores, a começar por onde vivemos, o que experimentamos no dia a dia. Um dos delegados da Oceânia mostrou fotografias para mostrar pessoas que vivem diariamente com água à porta de casa, como se fosse uma inundação, mas permanente. Outra coisa é estar num sítio onde, se calhar, não me lembro disso todos os dias. Mas nós estamos unidos, o Oceano acaba por nos afetar a todos.
É importante dar voz – e esta delegação tentou fazê-lo, num evento, a 28 de junho – às histórias e ao testemunho pessoal, que é muito tocante, verdadeiro. Quando se fala do coração, não se consegue mentir.
Acompanhou a delegação dos católicos da Oceânia que esteve em Portugal. Que lugar houve para os mais atingidos pela crise climática? Para os representantes indígenas? Lembro especificamente dois dos intervenientes do evento que referiu, que acabaram as suas intervenções em lágrimas…
Esse foi um evento paralelo, não entrou no programa, mas teria sido bom, para que mais pessoas ouvissem, percebessem esses testemunhos. Às vezes estamos a tratar de coisas muito técnicas e políticas, mas esquecemos o impacto que isso vai ter.
Estamos satisfeitos, porque o evento acaba por ter repercussão a nível de redes sociais, vai continuar disponível, existe um site específico, o www.oceaniatalanoa.com, onde é reunida toda a documentação e as intervenções. Isso dá-nos esperança, essa voz não está completamente silenciada, talvez precise de ser amplificada, com mais espaços em que todos possam ser ouvidos. ‘Stakeholder’ não é só uma palavra bonita, mas é algo que devemos praticar, cada vez mais.
(Continua na próxima semana)
Tempo da Criação
Acolher sem porquês
Isabel Melo, Munique (Alemanha) | 26 Jun 2022 | in 7 Margens
Eu e o meu namorado vivemos na Alemanha e decidimos desde o início da guerra na Ucrânia hospedar refugiados em nossa casa.
Pensámos muito: nenhum de nós tem muito tempo disponível e sabíamos que hospedar refugiados não é só ceder um quarto, é ceder paciência, muita paciência, compreensão, ajuda com documentos, conhecimento de língua (não materna também para nós) e burocracia (mal, porque não somos refugiados, por isso é também novo para nós).
A única condição que pusemos foi serem dois. Duas pessoas que vêm da mesma situação não se sentem sozinhas e apoiam-se mutuamente. Quando começámos a pensar em condições que nos pudessem facilitar a vida rapidamente saltámos para o jogo das compatibilidades: já agora era bom se falassem inglês e se fossem vegetarianos porque nós também somos. Decidimos que não, que uma pessoa que não fale inglês, não seja vegetariana e esteja sozinha também tem direito a ser acolhida. Ainda assim mantivemos a condição de serem duas pessoas, porque sabíamos que não teríamos a disponibilidade emocional para apoiar uma pessoa sozinha.
Obviamente saiu-nos tudo ao lado: calhou-nos um casal de 25 anos, de Mikolaiv, que não falava uma palavra de inglês, não tinha email e não percebia o porquê de ter de ir a cinco sítios diferentes registar-se para ter ajuda. Além disso, ao fim de uma semana, ele conseguiu trabalho nos EUA e ela ficou sozinha (contrariando a única condição que mantivéramos, a de não acolher pessoas sozinhas).
A comunicação passa sempre por dois níveis de dificuldade: a língua – para a qual usamos o Google tradutor inglês-russo (língua comum na região), nunca sabendo se a tradução é fidedigna; e os conceitos – compreensão da burocracia alemã, difícil até para um alemão, imagine-se para pessoas que não tinham email.
É difícil, é muito difícil e não me arrependo. É frustrante, é muito frustrante para nós e é mais para ela. Ter deixado tudo para trás, casa, família (mãe), o ganha-pão, estar sozinha num país em que não fala nenhuma das línguas possíveis, dificuldade de confiar nos outros, assinar documentos que não percebe. Não pode ser fácil. Nem para ela, nem para nós.
E mesmo assim não me arrependo. Ajudo sem fazer perguntas porque gostava que fizessem o mesmo por mim. Ajudo sem fazer perguntas porque TODOS temos direito a uma vida digna. Nem todos tivemos a sorte de nascer no lado bom do mundo. O Artº 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos.” Talvez devêssemos mudar o nome do documento para Declaração Universal dos Direitos Ocidentais.
Isabel Melo, cidadã do mundo, trabalha como educadora em Munique (Alemanha).
Tempo da Criação
MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
PARA O VI DIA MUNDIAL DOS POBRES
(XXXIII Domingo do Tempo Comum – 13 de novembro de 2022)
Jesus Cristo fez-Se pobre por vós (cf. 2 Cor 8, 9)
1. «Jesus Cristo (…) fez-Se pobre por vós» (2 Cor 8, 9). Com estas palavras, o apóstolo Paulo dirige-se aos cristãos de Corinto para fundamentar o seu compromisso de solidariedade para com os irmãos necessitados. O Dia Mundial dos Pobres torna este ano como uma sadia provocação para nos ajudar a refletir sobre o nosso estilo de vida e as inúmeras pobrezas da hora atual.
Há alguns meses, o mundo estava a sair da tempestade da pandemia, mostrando sinais de recuperação económica que se esperava voltasse a trazer alívio a milhões de pessoas empobrecidas pela perda do emprego. Abria-se uma nesga de céu sereno que, sem esquecer a tristeza pela perda dos próprios entes queridos, prometia ser possível tornar finalmente às relações interpessoais diretas, encontrar-se sem embargos nem restrições. Mas eis que uma nova catástrofe assomou ao horizonte, destinada a impor ao mundo um cenário diferente.
A guerra na Ucrânia veio juntar-se às guerras regionais que, nestes anos, têm produzido morte e destruição. Aqui, porém, o quadro apresenta-se mais complexo devido à intervenção direta duma «superpotência», que pretende impor a sua vontade contra o princípio da autodeterminação dos povos. Vemos repetir-se cenas de trágica memória e, mais uma vez, as ameaças recíprocas de alguns poderosos abafam a voz da humanidade que implora paz.
2. Quantos pobres gera a insensatez da guerra! Para onde quer que voltemos o olhar, constata-se como os mais atingidos pela violência sejam as pessoas indefesas e frágeis. Deportação de milhares de pessoas, sobretudo meninos e meninas, para os desenraizar e impor-lhes outra identidade. Voltam a ser atuais as palavras do Salmista perante a destruição de Jerusalém e o exílio dos judeus: «Junto aos rios da Babilónia nos sentamos a chorar, / recordando-nos de Sião. / Nos salgueiros das suas margens / penduramos as nossas harpas. / Os que nos levaram para ali cativos / pediam-nos um cântico; / e os nossos opressores, uma canção de alegria / (...). Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor, / estando numa terra estranha?» (Sal 137, 1-4).
Milhões de mulheres, crianças e idosos veem-se constrangidos a desafiar o perigo das bombas para pôr a vida a salvo, procurando abrigo como refugiados em países vizinhos. Entretanto, aqueles que permanecem nas zonas de conflito têm de conviver diariamente com o medo e a carência de comida, água, cuidados médicos e sobretudo com a falta de afeto familiar. Nestes momentos, a razão fica obscurecida e quem sofre as consequências é uma multidão de gente simples, que vem juntar-se ao número já elevado de pobres. Como dar uma resposta adequada que leve alívio e paz a tantas pessoas, deixadas à mercê da incerteza e da precariedade?
3. Neste contexto tão desfavorável, situa-se o VI Dia Mundial dos Pobres, com o convite – tomado do apóstolo Paulo – a manter o olhar fixo em Jesus, que, «sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9). Na sua visita a Jerusalém, Paulo encontrara Pedro, Tiago e João, que lhe tinham pedido para não esquecer os pobres. De facto, a comunidade de Jerusalém debatia-se com sérias dificuldades devido à carestia que assolara o país. O Apóstolo preocupou-se imediatamente em organizar uma grande coleta a favor daqueles pobres. Os cristãos de Corinto mostraram-se muito sensíveis e disponíveis. Por indicação de Paulo, em cada primeiro dia da semana recolhiam quanto haviam conseguido poupar e todos foram muito generosos.
Como se o tempo tivesse parado naquele momento, também nós, cada domingo, durante a celebração da Santa Missa, cumprimos o mesmo gesto, colocando em comum as nossas ofertas para que a comunidade possa prover às necessidades dos mais pobres. É um sinal que os cristãos sempre cumpriram com alegria e sentido de responsabilidade, para que a nenhum irmão e irmã faltasse o necessário. Já o testemunhava no século II São Justino que, ao descrever ao imperador Antonino Pio a celebração dominical dos cristãos, escrevia: «No dia do Sol, como é chamado, reúnem-se num mesmo lugar os habitantes, quer das cidades quer dos campos, e leem-se, na medida em que o tempo o permite, ora os comentários dos Apóstolos ora os escritos dos Profetas. (…) Seguidamente, a cada um dos presentes se distribui e faz participante dos dons sobre os quais foi pronunciada a ação de graças, e dos mesmos se envia aos ausentes por meio dos diáconos. Os que possuem bens em abundância dão livremente o que lhes parece bem, e o que se recolhe põe-se à disposição daquele que preside. Este socorre os órfãos e viúvas e os que, por motivo de doença ou qualquer outra razão, se encontram em necessidade, assim como os encarcerados e hóspedes que chegam de viagem; numa palavra, ele toma sobre si o encargo de todos os necessitados» (Primeira Apologia, LXVII, 1-6).
4. Voltando à comunidade de Corinto, sucedeu que, depois do entusiasmo inicial, começou a esmorecer o empenho, e a iniciativa proposta pelo Apóstolo perdeu impulso. Este é o motivo que leva Paulo a escrever com grande paixão, relançando a coleta, «para que, como fostes prontos no querer, também o sejais no executar, conforme as vossas possibilidades» (2 Cor 8, 11).
Neste momento, penso na disponibilidade que, nos últimos anos, moveu populações inteiras para abrir as portas a fim de acolher milhões de refugiados das guerras no Médio Oriente, na África Central e, agora, na Ucrânia. As famílias abriram as suas casas para deixar entrar outras famílias, e as comunidades acolheram generosamente muitas mulheres e crianças para lhes proporcionar a devida dignidade. Mas quanto mais se alonga o conflito, tanto mais se agravam as suas consequências. Os povos que acolhem têm cada vez mais dificuldade em dar continuidade à ajuda; as famílias e as comunidades começam a sentir o peso duma situação que vai além da emergência. Este é o momento de não ceder, mas de renovar a motivação inicial. O que começamos precisa de ser levado a cabo com a mesma responsabilidade.
5. Com efeito, a solidariedade é precisamente partilhar o pouco que temos com quantos nada têm, para que ninguém sofra. Quanto mais cresce o sentido de comunidade e comunhão como estilo de vida, tanto mais se desenvolve a solidariedade. Aliás, deve-se considerar que há países onde, nas últimas décadas, se verificou um significativo crescimento do bem-estar de muitas famílias, que alcançaram um estado de vida seguro. Trata-se dum resultado positivo da iniciativa privada e de leis que sustentaram o crescimento económico, aliado a um incentivo concreto às políticas familiares e à responsabilidade social. Possa este património de segurança e estabilidade alcançado ser agora partilhado com quantos foram obrigados a deixar as suas casas e o seu país para se salvarem e sobreviverem. Como membros da sociedade civil, mantenhamos vivo o apelo aos valores da liberdade, responsabilidade, fraternidade e solidariedade; e, como cristãos, encontremos sempre na caridade, na fé e na esperança o fundamento do nosso ser e da nossa atividade.
6. É interessante notar que o Apóstolo não quer obrigar os cristãos, forçando-os a uma obra de caridade; de facto, escreve: «Não o digo como quem manda». O que ele pretende é «pôr à prova a sinceridade do amor» demonstrado pelos Coríntios na atenção e solicitude pelos pobres (cf. 2 Cor 8, 8). Na base do pedido de Paulo, está certamente a necessidade de ajuda concreta, mas a sua intenção vai mais longe. Convida a realizar a coleta, para que seja sinal do amor testemunhado pelo próprio Jesus. Enfim, a generosidade para com os pobres encontra a sua motivação mais forte na opção do Filho de Deus que quis fazer-Se pobre.
Na realidade, o Apóstolo não hesita em afirmar que esta opção de Cristo, este seu «despojamento», é uma «graça» – aliás, é «a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo» (2 Cor 8, 9) – e só acolhendo-a é que podemos dar expressão concreta e coerente à nossa fé. O ensinamento de todo o Novo Testamento revela a propósito uma especial unanimidade, como se verifica nesta passagem da Carta do apóstolo Tiago sobre a Palavra que foi semeada nos crentes: «Tendes de a pôr em prática e não apena ouvi-la, enganando-vos a vós mesmos. Porque, quem se contenta com ouvir a palavra, sem a pôr em prática, assemelha-se a alguém que contempla a sua fisionomia num espelho; mal acaba de se contemplar, sai dali e esquece-se de como era. Aquele, porém, que medita com atenção a lei perfeita, a lei da liberdade, e nela persevera – não com quem a ouve e logo se esquece, mas como quem a cumpre – esse encontrará a felicidade ao pô-la em prática» (1, 22-25).
7. No caso dos pobres, não servem retóricas, mas arregaçar as mangas e pôr em prática a fé através dum envolvimento direto, que não pode ser delegado a ninguém. Às vezes, porém, pode sobrevir uma forma de relaxamento que leva a assumir comportamentos incoerentes, como no caso da indiferença em relação aos pobres. Além disso acontece que alguns cristãos, devido a um apego excessivo ao dinheiro, fiquem empantanados num mau uso dos bens e do património. São situações que manifestam uma fé frágil e uma esperança fraca e míope.
Sabemos que o problema não está no dinheiro em si, pois faz parte da vida diária das pessoas e das relações sociais. Devemos refletir, sim, sobre o valor que o dinheiro tem para nós: não pode tornar-se um absoluto, como se fosse o objetivo principal. Um tal apego impede de ver, com realismo, a vida de todos os dias e ofusca o olhar, impedindo de reconhecer as necessidades dos outros. Nada de mais nocivo poderia acontecer a um cristão e a uma comunidade do que ser ofuscados pelo ídolo da riqueza, que acaba por acorrentar a uma visão efémera e falhada da vida.
Entretanto não se trata de ter um comportamento assistencialista com os pobres, como muitas vezes acontece; naturalmente é necessário empenhar-se para que a ninguém falte o necessário. Não é o ativismo que salva, mas a atenção sincera e generosa que me permite aproximar dum pobre como de um irmão que me estende a mão para que acorde do torpor em que caí. Por isso, «ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, porque as suas opções de vida implicam prestar mais atenção a outras incumbências. Esta é uma desculpa frequente nos ambientes académicos, empresariais ou profissionais, e até mesmo eclesiais. (…) Ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 201). Urge encontrar estradas novas que possam ir além da configuração daquelas políticas sociais «concebidas como uma política para os pobres, mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos inserida num projeto que reúna os povos» (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 169). Em vez disso, é preciso tender para assumir a atitude do Apóstolo, que podia escrever aos Coríntios: «Não se trata de, ao aliviar os outros, vos fazer entrar em apuros, mas sim de que haja igualdade» (2 Cor 8, 13).
8. Estamos diante dum paradoxo, que, hoje como no passado, é difícil de aceitar, porque embate na lógica humana: há uma pobreza que nos torna ricos. Recordando a «graça» de Jesus Cristo, Paulo quer confirmar o que o próprio Senhor pregou, ou seja, que a verdadeira riqueza não consiste em acumular «tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem os corroem e os ladrões arrombam os muros, a fim de os roubar» (Mt 6, 19), mas, antes, no amor recíproco que nos faz carregar os fardos uns dos outros, para que ninguém seja abandonado ou excluído. A experiência de fragilidade e limitação, que vivemos nestes últimos anos e, agora, a tragédia duma guerra com repercussões globais, devem ensinar-nos decididamente uma coisa: não estamos no mundo para sobreviver, mas para que, a todos, seja consentida uma vida digna e feliz. A mensagem de Jesus mostra-nos o caminho e faz-nos descobrir a existência duma pobreza que humilha e mata, e há outra pobreza – a d’Ele – que liberta e nos dá serenidade.
A pobreza que mata é a miséria, filha da injustiça, da exploração, da violência e da iníqua distribuição dos recursos. É a pobreza desesperada, sem futuro, porque é imposta pela cultura do descarte que não oferece perspetivas nem vias de saída. É a miséria que, enquanto constringe à condição de extrema indigência, afeta também a dimensão espiritual, que, apesar de muitas vezes ser transcurada, não é por isso que deixa de existir ou de contar. Quando a única lei passa a ser o cálculo do lucro no fim do dia, então deixa de haver qualquer freio na adoção da lógica da exploração das pessoas: os outros não passam de meios. Deixa de haver salário justo, horário justo de trabalho e criam-se novas formas de escravidão, suportada por pessoas que, sem alternativa, devem aceitar este veneno de injustiça a fim de ganhar o mínimo para comer.
Ao contrário, pobreza libertadora é aquela que se nos apresenta como uma opção responsável para alijar da estiva quanto há de supérfluo e apostar no essencial. De facto, pode-se individuar facilmente o sentido de insatisfação que muitos experimentam, porque sentem que lhes falta algo de importante e andam à sua procura como extraviados sem rumo. Desejosos de encontrar o que os possa saciar, precisam de ser encaminhados para os humildes, os frágeis, os pobres para compreenderem finalmente aquilo de que tinham verdadeiramente necessidade. Encontrar os pobres permite acabar com tantas ansiedades e medos inconsistentes, para atracar àquilo que verdadeiramente importa na vida e que ninguém nos pode roubar: o amor verdadeiro e gratuito. Na realidade, os pobres, antes de ser objeto da nossa esmola, são sujeitos que ajudam a libertar-nos das armadilhas da inquietação e da superficialidade.
Um padre e doutor da Igreja, São João Crisóstomo, em cujos escritos se encontram fortes denúncias contra o comportamento dos cristãos para com os mais pobres, escrevia: «Se não consegues acreditar que a pobreza te faça tornar rico, pensa no teu Senhor e deixa de duvidar quanto a isso. Se Ele não tivesse sido pobre, tu não serias rico; trata-se de algo extraordinário: que da pobreza tenha derivado riqueza abundante. Aqui Paulo entende por “riquezas” o conhecimento da piedade, a purificação dos pecados, a justiça, a santificação e milhares doutras coisas boas que nos foram dadas agora e para sempre. Tudo isto, o temos graças à pobreza» (Homilias sobre a II Carta aos Coríntios, 17, 1).
9. O texto do Apóstolo a que se refere este VI Dia Mundial dos Pobres apresenta o grande paradoxo da vida de fé: a pobreza de Cristo torna-nos ricos. Se Paulo pôde comunicar este ensinamento – e a Igreja difundi-lo e testemunhá-lo ao longo dos séculos – é porque Deus, em seu Filho Jesus, escolheu e seguiu esta estrada. Se Ele Se fez pobre por nós, então a nossa própria vida ilumina-se e transforma-se, adquirindo um valor que o mundo não conhece nem pode dar. A riqueza de Jesus é o seu amor, que não se fecha a ninguém mas vai ao encontro de todos, sobretudo de quantos estão marginalizados e desprovidos do necessário. Por amor, despojou-Se a Si mesmo e assumiu a condição humana. Por amor, fez-Se servo obediente, até à morte e morte de cruz (cf. Flp 2, 6-8). Por amor, fez-Se «pão de vida» (Jo 6, 35), para que a ninguém falte o necessário, e possa encontrar o alimento que nutre para a vida eterna.Também em nossos dias parece difícil, como foi então para os discípulos do Senhor, aceitar este ensinamento (cf. Jo 6, 60); mas a palavra de Jesus é clara. Se quisermos que a vida vença a morte e que a dignidade seja resgatada da injustiça, o caminho a seguir é o d’Ele: é seguir a pobreza de Jesus Cristo, partilhando a vida por amor, repartindo o pão da própria existência com os irmãos e irmãs, a começar pelos últimos, por aqueles que carecem do necessário, para que se crie a igualdade, os pobres sejam libertos da miséria e os ricos da vaidade, ambos sem esperança.
10. No passado dia 15 de maio, canonizei o Irmão Carlos de Foucauld, um homem que, tendo nascido rico, renunciou a tudo para seguir Jesus e com Ele tornar-se pobre e irmão de todos. A sua vida eremita, primeiro em Nazaré e depois no deserto do Saara, feita de silêncio, oração e partilha, é um testemunho exemplar da pobreza cristã. Ajudar-nos-á a meditação destas suas palavras: «Não desprezemos os pobres, os humildes, os operários; são não só nossos irmãos em Deus, mas também os que mais perfeitamente imitam a Jesus na sua vida exterior. Eles apresentam-nos perfeitamente Jesus, o Operário de Nazaré. São primogénitos entre os eleitos, os primeiros chamados ao berço do Salvador. Foram a companhia habitual de Jesus, desde o seu nascimento até à sua morte (…). Honremo-los, honremos neles as imagens de Jesus e dos seus santos progenitores (…). Tomemos para nós [a condição] que Ele tomou para Si (…). Nunca deixemos de ser, em tudo, pobres, irmãos dos pobres, companheiros dos pobres; sejamos os mais pobres dos pobres, como Jesus, e como Ele amemos os pobres e rodeemo-nos deles» ( Comentário ao Evangelho de Lucas, Meditação 263) [1]. Para o Irmão Carlos, estas não eram apenas palavras, mas estilo concreto de vida, que o levou a partilhar com Jesus o dom da própria existência.
Oxalá este VI Dia Mundial dos Pobres se torne uma oportunidade de graça, para fazermos um exame de consciência pessoal e comunitário, interrogando-nos se a pobreza de Jesus Cristo é a nossa fiel companheira de vida.
Roma, São João de Latrão, na Memória de Santo António, 13 de junho de 2022.
FRANCISCO
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[1] Meditação n. 263, sobre Lc 2, 8-20: C.De Foucauld, A Bondade de Deus. Meditações sobre os santos Evangelhos, I, Nouvelle Cité – Montrouge 1996, 214-216.
Tempo da Criação
A vocação poética cristã
P. Francisco Cortês Ferreira, sj | 8 Junho 2022 | in Ponto SJ
No outro dia, numa tarde de saudável de procrastinação, “tropecei” numa conferência cujo título inusitado me despertou do meu torpor: A vocação poética do cristão e o seu contraponto com a prática cristã em declínio, no Ocidente.
Várias notas: Que o cristianismo está em decadência no ocidente não é novidade. Já muitos escreveram sobre o assunto; alguns cépticos mais convictos já lhe decretaram a morte, enquanto que outros analistas, mais optimistas, enunciaram diversas propostas de solução. Podíamos entrar nesse debate e talvez não fosse perda de tempo. Mas a mim interessa-me, sobretudo, uma pergunta anterior: o que queremos dizer, quando dizemos Ocidente?
Pode significar somente um espaço geográfico, um determinado modelo económico ou uma determinada tradição ético-religiosa. Ou pode simplesmente ser o produto de um imaginário coletivo, e que nem sequer exista na realidade. Ou outras coisas ainda mais sofisticadas. Há, no entanto, uma aproximação ao conceito sobre a qual eu próprio nunca havia dado conta e que creio perfeitamente justa: Pensar o Ocidente a partir daquilo a que ele é relativo, ou seja, o Oriente.
Podemos entender o Ocidente como aquilo que está virado para o Oriente, tal como as igrejas dos primeiros séculos, que rasgavam uma janela na parede virada para a Aurora, recebendo assim os raios da manhã que simbolizavam a Cristo, sol nascente, que vem iluminar os que jazem nas trevas e nas sombras da morte. Partindo deste principio, talvez essa crise do ocidente cristão, ou do cristianismo no ocidente, como preferirmos, não seja outra que o esquecimento de olharmos para Oriente. Esquecimento dessa referência para a qual nos devemos tornar em busca da Luz que ilumina todas as coisas, como a manhã da Criação do Mundo.
Quem perde a Referência deixa de conseguir habitar o próprio mundo. E quem não habita o próprio mundo perde a sensibilidade para encontrar o Mistério aí presente. E é aqui que entra a vocação poética do cristão, que nos reenvia ao Mistério para lá da espessura das coisas, para a contemplação das relações profundas com o Mundo, com os Outros e com Deus.
Importa notar que esta vocação poética vai muito além da capacidade de ordenar palavras em sonetos ou outro tipo de poemas. Envia-nos sobretudo à poiesis grega, que significa criar ou fazer, não no sentido de quem explora a natureza e as coisas em vista de uma satisfação bruta dos próprios desejos, mas a um fazer-lugar, que será no caso cristão um fazer lugar sagrado, onde as palavras ressoam um outro significado e se estabelecem relações justas. Somos chamados a ser artífices-poetas contra a inércia que nos invade diariamente a nossa desgastada vida espiritual. Contra o desperdício das horas mal passadas a planear os supostos momentos de oração futuros. Contra a irritação pela consciência da nossa mediocridade diante do Deus que quer habitar em nós. Contra os anos de estagnação espiritual. Contra as hipocrisias interiores que diluem o nosso Oriente. Contra as birras que fazemos. Chamados apesar de tudo isso a fazer lugares sagrados na nossa Vida.
Eu creio que todos nós, de algum modo, sabemos o que isso quer dizer, ainda que o guardemos na nossa consciência e no segredo dos nossos quartos. E talvez por isso usemos outros poetas, aqueles que têm jeito com as palavras, como espelhos dos desejos divinos que ocultamos. Da nossa safra lusitana, o Deus que nos habita é desde há muito cantado. E se é verdade que um de nós tem os nossos poemas preferidos, outros, no entanto, são preferidos de todos, como o poema de Antero:
Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.
Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.
Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do deserto…
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
Tempo da Criação
À escuta do corpo que somos
ESPECIAL SEXUALIDADE
P. Paulo Duarte, sj | 30 Maio 2022 | in Ponto SJ
Que corpo é este? Quem somos nós em corpo? Parece-me fundamental tomar consciência deste sentido da existência enquanto corpo para se fazer reflexões sérias e adultas sobre temas complexos como os da afectividade e sexualidade.
“Justa é a forma do nosso corpo”.
Quando penso em temas de corpo, surge-me este verso de Sophia de Mello Breyner, do poema Dias de Verão. Nós, em corpo, somos justos de ajustados. Enquanto humanos, há um equilíbrio divino, podemos dizer, de como tão magnificamente tudo se conjuga no nosso ser. No relato da criação, o ser humano é a última realidade a ser criada, quando tudo estava pronto para o acolher. É criado à imagem e semelhança de Deus, que viria a assumir em pleno a beleza da corporeidade encarnando. Este acontecimento altera o curso da humanidade. O corpo não é refugo, sepulcro, parte do ser humano, mas existencialmente integrado na pessoa. O ser humano não tem um corpo, o ser humano é corpo.
Ainda assim, que corpo é este? Quem somos nós em corpo? Parece-me fundamental tomar consciência deste sentido da existência enquanto corpo para se fazer reflexões sérias e adultas sobre temas complexos como os da afectividade e sexualidade. Ao ler e escutar discussões, opiniões e conversas sobre este tema, apercebo-me que ainda se vive a tensão dualista, onde, por um lado, se prima por uma pureza de alma, com a mais ou menos subtil castração, muitas vezes em nome de Deus. Por outro, uma hipersexualização da realidade, que reduz a pessoa a um mero objecto de prazer. Ambos extremos, causam danos sérios na pessoa e nas suas relações. Ajustando a realidade, parece-me importante encontrar a virtude no meio, através da integração da pessoa nas suas dimensões física, emocional, racional, relacional e espiritual.
Uma das coisas que me ajuda no estudo sobre Corpo é percebê-lo, no fundo perceber o ser humano, como um todo. Isto vai crescendo na medida em que descubro algo novo sobre Corpo. Para mim, que tenho dedicado bastante tempo à escuta de tantas pessoas, tem sido importante conhecer mais a fundo a psico-fisiologia do ser humano. O que acontece organicamente, também como efeito das nossas relações e de como somos educados, é fascinante. Ou, preocupante. O desajuste interno, provocado por excessivas ou moralizações ou permissões sexuais, é de tal ordem que leva ao desenvolvimento de doenças psíquicas, como depressões, e físicas, por exemplo, auto-imunes. Em O Corpo Não Esquece – Cérebro, Mente e Corpo na superação do trauma, o psiquiatra Bessel Van der Kolk, escreve: “se durante a infância, formos maltratados, ignorados ou crescermos numa família onde a sexualidade é tratada com repugnância, então a mensagem do nosso mapa interior será diferente. O nosso sentido do nosso eu será marcado pelo desprezo e pela humilhação.” O eu desajustado de si vai-se considerar como menor, e, no extremo, como indigno.
Também por saber disto é que me dá profunda tristeza quando, sobretudo em contextos mais eclesiais, ao ler ou escutar sobre corpo e sexualidade, noto que é tratado em vista ao “santo propósito” de encontro com a pureza, ou ao ser-se imaculado diante de Deus. Temas ligados com a sexualidade, em específico com a genitalidade, deveriam ser tratados como um todo e não através, quase em exclusivo, da capa do bem e do mal. Quando isso acontece, há o sério perigo de voltar a algo que Jesus cortou de forma radical: a distinção entre puros e impuros. A obsessão nesta via do bem e do mal em relação ao corpo acaba por ser muitas vezes reveladora de frustração, de medo, de vergonha, até mesmo de nojo do corpo ou seja, de si próprio. Por outras palavras, acaba por ser uma projecção de quem tem dificuldade de lidar com estes temas na sua própria pessoa. E admitir isto é outra história, igualmente muito complexa. Durante muito tempo, os puros eram os especiais, aqueles que tinham primazia na relação com Deus, estando a um nível superior de intelecto, de espiritualidade, de moral, enquanto os impuros, esses seres carnais, muitos escravos dos “puros”, estavam num nível inferior. Isso foi uma heresia, conhecida por gnosticismo, bastante combatida nos primeiros tempos do Cristianismo. Pergunto-me: até que ponto nalgumas obsessões, em que, por exemplo, se insiste de forma reiterada nas confissões na questão sexual, não se vive actualmente um neo-gnosticismo? Recordo que a parábola do juízo final dá atenção ao corpo, sim, mas em nada sobre questões sexuais, apenas na importância que se deu ao outro: no alimentar, no tirar a sede, no vestir (não por razões pudicas, mas de dignidade e protecção), no visitar, no estar. [Cf. Mt 25, 31-46].
A corporeidade é tão densa de Deus, que há medo de ir mais fundo nesta relação. O mais fácil é espiritualizar a realidade, num etéreo bonito e quase cândido. No entanto, Deus habita a matéria. Além de a ter criado, assume a existência em carne, em corpo, onde todo o sentir fala d’Ele. O medo de se falar de corpo é por implicar enfrentar a verdade pessoal, do prazer ao trauma, do deleite ao sofrimento, nas muitas dimensões das diferentes relações. Isso é de tal maneira duro, intenso e exigente que as muitas defesas internas, provocadas por uma educação castradora, mesmo que com a melhor das intenções, impedem o caminho de liberdade. O medo também surge em preconceitos a desmontar se se quer crescer também na fé. Falar de corpo é muito mais que falar de sexo. No entanto, também falar de sexo, de afectividade, de conhecimento de corpo total de forma pedagógica, compreensível e ajustada às idades, pode ajudar a combater doenças, a diminuir violências, contribuindo para o amadurecimento das relações. É fundamental uma educação para a afectividade, que inclui a sexualidade, que integre a complexidade do ser humano, a partir do conhecimento de si, desenvolvendo o respeito e o cuidado por si e pelos outros, de como, na compreensão da beleza da criação, somos ajustados em corpo. Também é um modo de viver o mandamento de amar o próximo como a si mesmo, desde corpo que se é.
PS- O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico
Tempo da Criação
SABER APRENDER – O que pode ser uma espiritualidade ecológica
Ecclesia Mai 25, 2022 - Miguel Oliveira Panão (Professor Universitário)
Estamos em plena semana Laudato Si’ (https://laudatosiweek.org/pt/home-pt/ e um dos objectivos identificados no último capítulo desta Carta Encíclica é o da Espiritualidade Ecológica. Falar de uma espiritualidade ecológica implica reconhecer a existência de três visões ecológicas, como as que inspiraram o filósofo Felix Guattari, e uma visão unitiva dessas três. Primeiro assumimos que se entende por ecologia a ciência dos relacionamentos. Assim, na vertente do mundo natural é possível identificar a visão de uma ecologia ambiental que se refere aos relacionamentos dos ecossistemas; na vertente dos outros, a visão de uma ecologia humana que diz respeito aos relacionamentos entre as pessoas; e numa vertente mais pessoal existe ainda uma ecologia interior associada aos relacionamentos que ocorrem dentro de nós, tocando nas dimensões mental, mas, sobretudo, na espiritual.
O papa Francisco não o faz explicitamente, mas poderíamos reconhecer que a ecologia integral que propõe na Laudato Si’ procura unir e harmonizar estas três primeiras visões ecológicas. Por isso, a visão subjacente a uma espiritualidade ecológica assente em Deus, que une todas as coisas, só faz sentido no âmbito de uma ecologia integral, ou como em tempos propus;, uma ecologia de comunhão. A questão que daqui surge é: como se traduz na vida e na prática quotidiana. Para isso, a Laudato Si’ convida a fazermos na espiritualidade ecológica um caminho do interior para a plenitude feito em cinco fases: 1) Conversão; 2) Testemunho; 3) Participação; 4) Celebração; 5) e Vida plena.
1ª Fase — Conversão Ecológica
A primeira fase desse caminho é a conversão ecológica no modo de pensar, sentir e viver (LS 216). O que nos leva a pensar, sentir e viver de um modo diferente depende daquilo que nos motiva. E o que nos motiva é o que interiormente nos dinamiza. E tudo o que é interior a ti, a mim, a cada um de nós está estritamente ligado com a nossa união com Deus. E quanto maior for a nossa união com Deus, mais sensíveis estaremos à conversão ecológica que emerge dos vários aspectos que afectam a nossa vida, desde as opções de consumo à nossa opinião sobre as origens da crise ambiental. E se essa crise for um resultado da nossa acção exterior impulsionada por desejos inconscientes ou incoerentes interiores, é natural que a conversão ecológica necessária dependa do modo como trabalhamos o nosso interior. E um desses modos é a contemplação. Porém, o acto de contemplar é o quê? Simples. Notar em coisas novas, ou notar nas mesmas coisas, mas com um olhar renovado/transformado pela união que temos com Deus.
2ª Fase — Testemunho
A conversão ecológica é uma constante na vida, logo, a segunda fase começa com o testemunho a dar daquilo que vivemos. Podemos não falar, mas a alegria que sentimos e a paz que experimentamos irá manifestar-se numa nova forma de falar com as pessoas, de conduzir, e até de consumir. A sobriedade é uma característica da fase do testemunho. E uma outra é a humildade cuja ausência provoca danos ambientais e espirituais. A humildade ajuda-nos a reconhecer quem somos, a saber quais são os nossos limites e a abrir-nos à possibilidade de os usar para sermos criativos na sobriedade. Por exemplo, aprender a fazer iogurtes em casa e partilhar essa experiência com os outros, diminuindo, assim, o uso de plástico nas nossas casas.
3ª Fase — Participação
Na terceira fase, depois da conversão e do testemunho dessa, entramos na fase da participação. O papa Francisco diz que — «o cuidado da natureza faz parte dum estilo de vida que implica capacidade de viver juntos e de comunhão.» — Por isso, a participação na vida das nossas comunidade e na sociedade com o nosso testemunho são a comunhão que gera um modo mais amplo de entender a fraternidade universal, aceitando o mundo natural — vento, sol, nuvens, rios — como irmãos no sentido de não os querermos controlar ou abusar. A participação apela à responsabilidade, como acontece nas nossas famílias. E o amor nos pequenos gestos é expressão da cultura do cuidado que numa espiritualidade ecológica nos tornará cuidadores da criação (que é bem mais profundo que administradores ou guardiões).
4ª Fase — Celebração
Na quarta fase, a celebração é o acto natural de um universo que volta para Deus. Uma espiritualidade ecológica que celebra reconhece a presença de Deus nos relacionamentos que existem em todas as coisas e entre essas. Como Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares expressa tão ao dizer que — «se o riacho desaguava no lago, era por amor. Se um pinheiro se erguia ao lado de outro, era por amor. E a visão de Deus sob as coisas, que dava unidade à criação, era mais forte do que as próprias coisas. A unidade do todo era mais forte do que a distinção das coisas entre si.» Porém, a celebração conduz à última fase, a vida plena.
5ª Fase — Vida Plena
A vida plena só se sente, realmente, na experiência da presença de Deus no meio de nós. Um dos lugares privilegiados é a eucaristia, onde — como diz o papa na Laudato Si’ — «o Senhor quer chegar ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria.» Mas, ainda de Chiara Lubich apercebemo-nos da intuição de haver uma relação entre a eucaristia e o ambiente que se enquadra na espiritualidade ecológica, quando diz — «se a Eucaristia é causa da ressurreição do homem, não poderá o corpo humano, divinizado pela Eucaristia, estar destinado a desfazer-se debaixo da terra para contribuir para a ressurreição do cosmos?» (Um Caminho Novo, Cidade Nova). Tomar consciência desta realidade escondida e, por isso, designamo-la por Mistério, deveria redimensionar toda a nossa experiência da eucaristia como uma experiência palpável de espiritualidade profundamente ecológica. Por fim, a vida plena no âmbito de uma espiritualidade ecológica em profunda comunhão com Deus convida-nos a «ler a realidade em chave trinitária» (LS 239). Como diz o Papa —
«As criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada ser vivo tender, por sua vez, para outra realidade, de modo que, no seio do universo, podemos encontrar uma série inumerável de relações constantes que secretamente se entrelaçam. Isto convida-nos não só a admirar os múltiplos vínculos que existem entre as criaturas, mas leva-nos também a descobrir uma chave da nossa própria realização. Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a sua criação. Tudo está interligado, e isto convida-nos a maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade.» (LS 240).
Ou seja, a finalidade de uma espiritualidade ecológica será darmo-nos conta de como a natureza é (como nas etiquetas da roupa) “MADE IN TRINITY”.
Tempo da Criação
Desenhar um mundo mais justo, ecológico e solidário
António Matos Ferreira | 14 Mai 2022 | in 7 Margens
Recorrer à fundamentação histórica para legitimar a atuação presente ou futura, se é possível e compreensível, não é necessariamente adequado e é preenchido por muitos equívocos e falsos caminhos. O presente e o futuro não são determinados fatalmente pelo passado. A contemplação e a reflexão sobre o passado, na sua complexidade e nas suas contradições, se é um exercício apropriado não justifica por si só as decisões e as atuações presentes. Se pode existir similitude entre um determinado passado e o presente, os protagonistas e as circunstâncias nem são os mesmos nem se repetem, pois são fruto de pessoas atuais e das suas respetivas motivações.
O passado, se condiciona o nosso presente e o modo como se encara o futuro, não é válido por si só para legitimar o presente e menos ainda o futuro, até porque estes podem ser sempre perspetivados de modo diferente. A ética do presente e do agir futuro, se pode tomar referência no passado, não pode entender-se como mera perpetuação deste, como se a consciência dos indivíduos não pudesse adquirir outros contornos mais apropriados para a realização humana.
Se a recomposição da vida das pessoas e das sociedades é constante, mesmo quando habituados à repetição do quotidiano e motivados por uma existência o mais favorável a cada um de nós, a realidade apresenta-se de forma bem distinta. Viver e conviver em sociedade só atinge um adequado nível de concretização pela progressiva interiorização do processo consciente de autolimitação na relação com os outros e em cada um. A solidariedade não se pode alcançar sem graus significativos de abdicação.
Uma parte significativa da humanidade vive em condições sofridas pela ambição e pela desmesura de outros, poucos, dos quais, eu que escrevo e, provavelmente, alguns que possam ler estas linhas fazemos parte. A liberdade respeita o que se pretende alcançar e realizar. O que cada um de nós quer realmente da vida? A resposta aos problemas começa em cada um de nós.
Cada um não perde a sua liberdade porque se autolimita e abdica, antes acrescenta a capacidade de contenção. Vivemos e conhecemos a pandemia e os confinamentos, a guerra e as suas misérias, bem como a fome que já atingiam há muito certas populações, as mais fracas e vulneráveis. Como mancha que se espalha, estas situações atingiram agora as nossas sociedades onde, muitas vezes, se concebe a realização humana com um desenvolvimento constante e exponencial de ter mais, de ganhar mais ou muito mais, sendo certo que todos pretendemos fugir à morte mesmo se isso provoca a subjugação e a morte de outros, de muitos, de milhares e de milhões de mulheres, de crianças e de homens desamparados e desesperados.
Práticas para mudar a vida
É sempre tempo de mudar de vida, reorientar e corrigir os nossos desejos de ambição e de domínio, afinando a vontade de ajudar os outros, pois, por mais que se tenha ou se seja, não se escolhe ficar na história porque esta tende, muitas vezes, a valorizar e a reter alguns que se comportaram como canalhas e assassinos.
A história do bem é aquela que atende à complexidade e aceita as contradições existenciais. O melhor depositário das práticas do bem é o coração e a gratuidade de uns em relação aos outros, sendo que a mão direita não deve saber das graças da mão esquerda e vice-versa. A perpetuidade espalha-se no universo enquanto dom, tudo aquilo que vem de fora, da pessoalidade única e indestrutível. O mal, se prejudica gravemente aqueles que atinge, existe e também é um fazer, mas no final destrói sempre quem o exercita. É tempo de praticar um mundo melhor e mais justo, para nosso bem e dos outros. Não se trata de ideologias, mas de práticas.
A responsabilidade pelo que acontece também se constrói e se aprofunda. Contrariar a fatalidade não resulta somente do que os outros são ou constroem, mas respeita a capacidade de resistência de cada um, de individualmente potenciar a disponibilidade para assumir as consequências dos atos de liberdade e de solidariedade. Estas são práticas do quotidiano.
Haverá sempre muito dinheiro para o armamento, não necessariamente para a defesa das populações, mas para reprimir aqueles que aspiram à sua liberdade e a uma maior justiça. Os momentos de grandes dificuldades das sociedades são muitas vezes acompanhados por grande agitação e, também, por não menor indiferença até as situações baterem à nossa porta. Quanto do que acontece decorre da defesa do nosso bem-estar, da nossa indiferença, de uma cultura reivindicativa, mas não de redistribuição justa e adequada?
Seremos capazes de não desfalecer perante a urgência de apoiar até ao fim os que foram invadidos, para restituir o que lhes é devido?
Muitos desafios nos solicitam: combater bens mal adquiridos e não se aproveitar dos mecanismos de especulação e de mais-valias indevidas; contrariar e lidar, sem alarmismos, com a inflação o aumento dos preços em geral; consumir menos, em particular energia; potenciar mais empregos a partir daquilo que temos e está ao nosso alcance; partilhar a vida com mais imigrantes e proporcionar a sua integração sem medos; comer menos e procurar que o facto de ser mais caro reverta o mais possível para os produtores; aprender a não acusar os outros pelo nosso infortúnio; viver com menos, diminuir o nosso nível de vida e, simultaneamente, querer que outros vivam melhor; promover e aceitar limites de ganhos e de enriquecimento. Tantos caminhos.
Não se podem impor práticas solidárias aos outros, mas cada um pode realizar no seu quotidiano o desenho mais apropriado de um presente e de um futuro mais justo, mais ecológico, mais solidário. O que vale uma grande agitação se esta não tiver uma mudança, se não ocorrer uma conversão no presente de cada um? Por muito que se viva, a vida de cada um é sempre muito curta, às vezes escandalosamente curta. É verdade que só na consciência mais íntima e discreta cada um sabe o que vive.
Tempo da Criação
Abusos sexuais: Conhecer o passado, cuidar o futuro
Pedro Strecht | 12 Maio 2022 | in 7 Margens
Terça-feira passada, dia 10, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa organizou uma conferência sobre o tema dos abusos, conforme o 7MARGENS noticiou. Pela importância do tema, da iniciativa e das intervenções nela realizadas, publicamos algumas das intervenções ali realizadas, começando pelas duas intervenções do coordenador, que se reproduzem a seguir.
Grande parte do interesse e também do conhecimento sobre questões do desenvolvimento emocional da criança e do adolescente dizem respeito a uma realidade muito recente, com pouco mais de meia dúzia de décadas. De facto, em todas as áreas, incluindo a jurídica, a de protecção social, a educativa e a psicossocial, falamos de uma luz que se abriu de forma nova, atenta e, felizmente, cada vez mais exigente no que toca ao que Françoise Dolto designou como o “verdadeiro interesse da criança”.
Não espanta por isso que, durante tanto tempo todos tenhamos assistido a uma neutralidade ou apatia, quando não desinteresse e até com frequência negação da existência de problemas graves na infância e adolescência, como os maus-tratos e todas as formas de abuso, num certo modo comum de estar e de ser, individual e social, que descuidava ainda o impacto ou o dano emocional não apenas causado no momento de um trauma, mas sim quase sempre ao longo da vida enquanto grave experiência de “não integração” psíquica ou até de “não integração” somato-psíquica, como destacou Donald Winnicott: sofrer na alma e no corpo e, sobretudo, sofrer sem qualquer amparo do outro que deles deveria cuidar, era a vivência comum da vida de muitos dos mais novos.
De verdade, o conceito mais reconhecido de infância é tão recente quanto a Carta Universal dos seus Direitos, apenas reiterada por vários países do mundo em 1991. Voltando a citar Llloyd de Mause, sim, “a história da infância é mesmo um longo pesadelo do qual agora ainda estamos a acabar de acordar”.
Felizmente que, de forma irreversível, os tempos são outros. Transitamos do conceito de “World of Defendeless” como Eihlander descreveu a propósito das observações realizadas em crianças abandonadas a si mesmo nos orfanatos da Roménia no final dos anos 80, para conceitos de um certo “state of mind” caracterizado pela importância de um “being helpful” e/ou “staying careful”. A própria ideia de “resiliência” que Boris Cyrulnik introduziu, ele mesmo um judeu resgatado no limite dos campos de concentração nazis, e que psiquicamente evoluiu de um pré-adolescente analfabeto funcional a reputado pedopsiquiatra num brilhante modelo do que W.R.Bion designou pela (quase) arte de “going on being”, é hoje reportada muito mais ao conceito interno da mente do que à capacidade de resistência a factores externos traumáticos ou de stress emocional que se esperam já controlados num mundo dito evoluído.
Na área da saúde mental em Portugal, que aliás já pelo terceiro triénio consecutivo faz parte das prioridades do Plano Nacional de Saúde, o mesmo acontece com natural ênfase nos mais novos. Ainda bem. Temos com certeza muito menos crianças do que há uns anos, a taxa de natalidade ainda não parou de baixar de forma drástica, a noção de família sofreu uma evolução radical e há quem a critique em vez de nisso ver aspectos positivos; mas existem cada vez mais pais atentos e empenhados, uma escola que pede agora o 12º ano como escolaridade mínima obrigatória, uma baixíssima taxa de mortalidade infantil, mais jovens a praticar desporto, uma justiça que protege melhor os mais pequenos, entre tantos e tão bons outros exemplos. A realidade é mesmo outra, nova e, sabemo-lo bem, assim vai ser cada vez mais de forma rápida e diferente. Todos temos que evoluir em conceitos individuais e sociais de bem-estar e felicidade ou, pelo contrário, de perpetuar o tal “mandato transgeracional” de dor e sofrimento que Serge Lebovici referia.
O impacto do trauma
Ilustração: Churchandstate.org
De facto, sabemos inequivocamente e pelo menos desde John Bolwby, o peso das boas experiências emocionais precoces e da qualidade de ligação/vinculação com o outro que representa uma base segura para que, desde o primeiro ano de vida, a criança se possa conhecer progressivamente melhor a si mesma e ao mundo envolvente. Cuidamos e valorizamos relações humanas em “sintonia afectiva” como definiu Stern, como modelo de desenvolvimento emocional e cognitivo. Conhecemos a importância de “touchpoints”, conceito de Brazelton, dentro do crescimento global dos mais novos e, sobretudo isso, não ignoramos mais o impacto das situações descritas como de “trauma” durante a infância e adolescência e o seu inequívoco impacto futuro para cada qual, a começar na fragilidade da auto imagem (psíquica e corporal), prosseguindo pelas dificuldades na relação com o grupo de pares, na distorção do contacto com os adultos, na quebra da prestação escolar e académica, na forma distorcida de relação afectiva e sexual com o outro.
Olhamos para trás e vemos como, afinal, Ferenczi tinha razão quando falava do impacto do trauma (ligando-o, no caso, aos abusos sexuais de crianças) e definia estados de “sideração psíquica”, tal como estava certa B. Dockar-Drysdale quando, referindo-se a crianças vítimas do mesmo tipo de situação, apresentava a noção de “frozen children”: afinal, vidas suspensas, de “crianças sem sombra” no meu próprio conceito, todas aquelas que, após essas circunstâncias, vivem o escuro da noite de forma sempre presente na continuidade dos seus baços, tristes e amedrontados dias.
Vidas emocionalmente suspensas, enredadas numa “dor aprisionada” (Sidney Clarck) de uma “dupla privação”, como tão bem descreveu Rolene Suzr: aquela que é provocada pelo trauma em si e a outra que se lhe junta e tem origem na própria defesa erguida como um muro intransponível, tornando essa parte da vida psíquica impenetrável e intocável, graças ao peso de forças de coação interna em que predominam os sentimentos de medo, vergonha e culpa. E como sair dela se o que então predomina é o que James Garbarino definiu como um pensamento modelado por um peso “terminal”, estado de “não vida” pautado pela sensação de “helpless” e “hopeless”?
É nesses momentos que, colocando-nos no papel dos mais novos (o movimento empático para com eles é uma competência psíquica com pouco mais de 10 mil a 15 mil anos), podemos afirmar com segurança que, como no título de um poema do cardeal Tolentino, finalmente agora “a noite abriu meus olhos”.
A bom tempo, quis a Conferência Episcopal Portuguesa abrir seus e nossos olhos para este problema que é da Igreja tanto como ainda muito mais da própria sociedade civil, convidando esta Comissão a formar-se e a iniciar um estudo que torne claro o problema dos abusos sexuais no seu seio e, sobre isso, se faça dia ou outros dias: dias novos, abertos e fraternos, mais e melhores, para os tempos que hão-de vir. Por isso espero, como médico pedopsiquiatra e coordenador da Comissão Independente, que o estudo que temos vindo a fazer, e que toda a possibilidade de abertura e de discussão do tema tanto na Igreja como na sociedade civil, de que este encontro será um inesquecível marco em Portugal, nos traga a mais forte possibilidade de conhecer o passado e abraçar o futuro, dando a todos os milhares de crianças e adolescentes que em Portugal foram vítimas destes crimes ao longo de décadas, uma nova e renovada esperança quanto ao seu próprio sentido de vida, bem como à integração psíquica possível de tudo quanto sofreram e que nunca, nunca o tempo apagará e nada nem ninguém reparará em definitivo. Porque, como o mesmo poema bem recorda, por vezes “o amor é uma noite a que se chega só”.
Silêncios que dizem tudo
[…] Afirmamos a nossa irredutível vontade de que este estudo, limitado ao corrente ano de 2022, tenha o condão de abrir portas que agora já serão impossíveis de voltar a encerrar e que, após conhecidas, caracterizadas e aceites as feridas nunca antes reveladas, ele mesmo possa ser o rastilho para mais e melhor conhecimento sobre o mundo da infância e da adolescência, bem como da necessidade de uma melhor protecção futura de uma população de crianças e adolescentes que é sempre psiquicamente e fisicamente indefesa perante o adulto em quem confia e se em proximidade se entrega, e de quem não pode nem consegue defender-se sozinha.
Aliás, para isso faltou durante décadas uma eficaz protecção social, uma escola integradora e atenta, uma justiça capaz de produzir leis eficazes e de agir rapidamente em defesa dos direitos dos mais novos, uma ideia forte de saúde mental aceite pela sociedade civil em que a noção de infância fosse reconhecida como pedra fundadora do bem-estar individual e social dos futuros adultos de amanhã.
Felizmente que em bom tempo quis a Igreja Católica portuguesa dar um exemplo ímpar com a abertura e o reconhecimento da existência no seu seio deste drama dos abusos sexuais de menores, revelando ausência de medo em conhecer o que se passou com todos os que lhe foram, são e serão sempre mais próximos, ousando ainda desde o primeiro momento afirmar a sua total disponibilidade, com o respeito por questões tão delicadas do próprio direito canónico, para a abertura dos seus arquivos secretos a uma reputada equipa de Historiadores e Arquivistas que a CI lhe propôs e foi plenamente aceitada – equipa essa que já está a trabalhar no terreno e é liderada pelo Prof. Dr. Francisco Azevedo Mendes, tudo decorrendo num cenário sem precedentes da existência secular da própria Igreja.
Sem esta acção, com moldes já comumente aceites pela CEP e pela CI que assim firmaram este compromisso, o estudo a que nos propomos ficaria sempre incompleto e, por isso mesmo, truncado de um dos seus principais objectivos: o conhecimento profundo da verdade histórica do passado, que permita olhar de forma diferente o futuro.
E assim, esta Comissão leva quatro meses de duro trabalho, de confronto diário com a verdade de testemunhos feitos de dor e de silêncio, de análise científica de dados recolhidos junto de diversas instituições e associações tanto da Igreja quanto da sociedade civil, procurando chegar acima de tudo às pessoas que, como é habitual, calaram e assim se viram esquecidas de partes de si mesmas, de uma saudável relação com o outro, com a sociedade e com o mundo num sofrimento oculto para todos.
É para as milhares de vítimas que já sabemos existirem e para todas mais cuja existência não é difícil de imaginar, que vai diariamente o esforço profissional desta equipa, num movimento que a todos apelamos não esqueçam de poder abraçar através da capacidade sincera de ajuda e da restituição de uma esperança que algures foi deixada para trás. Decerto que, também aqui, os portugueses contam com o apelo do Senhor Presidente da República e, por entre todos eles, mais ainda aqueles que o Santo Padre, o Papa Francisco, tão bem definiu como existindo e vivendo nas margens.
[…] Há, sempre houve, muitas palavras que não dizem nada e se o dizem, são vagas, vácuas e por isso mesmo efémeras. Não tocam, não ficam, não mudam. E há, sempre houve, silêncios que dizem tudo, ou quase tudo. Então, que interessa pô-los em palavras, contá-los em números, situá-los num espaço ou num tempo longínquo e, de novo, por tantos considerado inútil?
Talvez porque assim cheguemos a conseguir dar-lhes corpo, nome, saber do seu rosto e, por fim, sobre a definição possível de uma figura concreta, conhecer um olhar que ainda nos olha e, parado, espera um pouco que é tanto: a reparação clara de uma dignidade perdida no passado e assim um pouco mais de um certo sopro futuro de centralidade da vida.
Fundação Calouste Gulbenkian, 10 de Maio de 2022
Pedro Strecht é médico pedopsiquiatra e coordenador da Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa; subtítulos da responsabilidade do 7MARGENS.
Tempo da Criação
A calar ao telemóvel
Joaquim Fidalgo |in 7 Margens | 6 Mai 2022
Aqui há tempos, o dono de um restaurante confessou, numa entrevista, que é e sempre foi avesso à existência de wi-fi (rede sem fios) nos restaurantes. Porquê? Porque, quando há disponibilidade de rede, as pessoas agarram-se aos telemóveis, deixam de falar umas com as outras, ainda que sentadas à mesma mesa, e “parece que estamos numa sala de velório”.
Nada que qualquer um de nós não tenha já testemunhado, certo?…
O telemóvel é uma invenção fantástica, incrível, fabulosa. Já mal imaginamos como eram as nossas vidas antes de haver telemóveis. Mas, com o evoluir dos aparelhinhos, aquilo passou a ser de uso muito mais vasto do que simplesmente para falar com alguém (para telefonar ou receber um telefonema, lembram-se?…) Há até quem brinque dizendo que os modernos telemóveis – os chamados “smartphones”, curioso nome – servem para fazer muitíssimas coisas, inclusive para… telefonar!
A ironia disto é que um aparelho que foi feito para a gente falar serve agora, e cada vez mais, para a gente calar. Estamos à mesa com alguém, a conversa não sai ou não nos apetece que saia, ficarmos a olhar uns para os outros em silêncio é pouco agradável, e… puxamos do telemóvel. Pronto, já ficamos confortavelmente calados. Lemos notícias, vemos fotos, espreitamos vídeos, consultamos o Facebook ou o Instagram, lemos ou mandamos mensagens escritas, e por ali vamos estando, todos e cada um com o seu aparelhinho nas mãos e nos olhos, bem caladinhos, até que… chegou a comida! Vamos lá, duas de conversa rápida, que a comer não dá tanto jeito andar às voltas com o telemóvel (embora haja quem consiga!) e já voltamos ali. Já voltamos, não a falar, mas a calar ao telemóvel. Ele, afinal, não nos põe à conversa. Ele, afinal, põe-nos calados.
Há muito boa gente que agradece esta verdadeira graça tecnológica. Não é nada agradável (nem é fácil, convenhamos) estarmos com alguém prolongadamente em silêncio. Seja gente estranha, seja gente próxima. E “meter conversa” é quase uma necessidade, para ver se se preenche aquele vazio. “Então, e essa saúde?…” “Cá vamos, nunca pior… Por acaso tenho andado com uma dor…” “Ai sim?… Olha que eu também…” Se não é a saúde, o tempo salva-nos sempre. “Isto é que vai uma seca…” “Sim, mas parece que para a semana chove qualquer coisa.” “Também faz falta, para os campos…” “Estas estações andam todas viradas do avesso…”. Em situações desconfortáveis, tudo serve para tentar acabar com aquele silêncio que não sabemos como gerir. Até que… “Desculpa, não te importas, chegou-me agora uma mensagem…” “Sim, sim, eu também preciso de enviar aqui umas fotos para o meu primo…”. E pronto, cada um(a) saca do seu telemóvel-agora-smartphone e já não é preciso falar, já não custa o silêncio, já está tudo a andar normalmente. Com cada um(a) no seu canto, no seu ecrã, comunicando à distância, que ao perto não sai… E multiplica-se isto por uma mesa, e duas, e quatro, e lá temos a sala do restaurante quase transformada num velório, longe daquelas algazarras de tasco que por vezes até nos impediam de nos ouvirmos. Há que tempos!
Cá para nós, isto de estar com alguém em silêncio tem que se lhe diga. Só se consegue em situações em que há uma relação muito próxima, muito profunda, muito íntima. Aquelas situações em que falamos com a outra pessoa sem dizermos uma palavra sequer. Só um gesto, só um sorriso, só um olhar, as palavras estariam a mais. Por exemplo quando estamos apaixonados. Nesses casos, podemos ficar muito tempo em silêncio e não nos sentimos desconfortáveis, muito longe disso. E quanto dizemos calados!
Mas esta é a exceção e não a regra. Afinal, quem nunca viu um homem e uma mulher sentados à mesa do restaurante, frente a frente, comendo a sua rotineira refeição e quase não dirigindo palavra um à outra, ou vice-versa? Um monossílabo aqui – “queres água?” – um monossílabo ali – “a comida hoje está salgadita” – e pouco mais. Cenário um pouco triste, não é? Mas eis que surge o telemóvel-agora-smartphone para nos salvar deste silêncio constrangedor e para nos pôr a “falar” em todas as direções – menos naquela que está ali à nossa frente. E a coisa já se aguenta melhor. Só que… Só que…
(Uma das mais interessantes e subvalorizadas características de todos estes aparelhos que povoam a nossa vida – o rádio, a televisão, o computador, o telemóvel, a consola – é o chamado botão “on-off”. Tudo aquilo nos dá imenso jeito, mas tudo aquilo tem também um botão para desligar. E depois ligar outra vez. Mas por vezes desligar. E se a gente experimentasse mais?)
Tempo da Criação
Carvalho da Silva e o apelo da “Fratelli Tutti”
7Margens | 1 Mai 2022
“Na encíclica Fratelli Tutti, o Papa Francisco, no capítulo ‘A política melhor’ alerta para cuidados a termos com o mercado enquanto ‘dogma de fé neoliberal’ e para não aceitarmos que a economia ‘assuma o poder real do Estado’; diz-nos que para que a política seja melhor ‘a grande questão é o trabalho’ e ‘conseguir que a organização de uma sociedade assegure a cada pessoa’ trabalho digno.”
A afirmação é do investigador e professor universitário Manuel Carvalho da Silva, antigo líder da CGTP, que na sua crónica deste fim-de-semana no Jornal de Notícias, fala sobre o sindicalismo e a importância de “nutrir” as suas raízes.
“Em Portugal, é muito necessário reforçar o apelo de Francisco”, acrescenta o antigo sindicalista, que cita o Papa, quando afirma: “Insisto que ajudar os pobres com o dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo devia ser sempre consentir-lhes uma vida digna, através do trabalho.”
No artigo, que pode ser lido na íntegra na ligação já referida, Carvalho da Silva sublinha o “quadro político e social de enorme complexidade e carregado de riscos” em que este ano se assinalou o 1º de Maio, Dia Mundial do Trabalhador. “A história mostra-nos que em contextos como o que estamos a viver, em que a humanidade parece caminhar para o abismo, é imprescindível uma atenção redobrada ao mundo do trabalho e à importância da organização e da ação coletiva dos trabalhadores.”
Nutrir as raízes do sindicalismo
Manuel Carvalho Da Silva | 30 Abril 2022 às 00:00 | in JN
Este ano, a evocação do Dia Internacional do Trabalhador, dia 1.º de Maio, ocorre num quadro político e social de enorme complexidade e carregado de riscos. A história mostra-nos que em contextos como o que estamos a viver, em que a humanidade parece caminhar para o abismo, é imprescindível uma atenção redobrada ao mundo do trabalho e à importância da organização e da ação coletiva dos trabalhadores.
Que economia vamos ter no rescaldo da guerra em curso na Ucrânia que, tendo por consequência imediata o massacre de um povo e a destruição de um país, se situa no cerne dos movimentos tectónicos da geopolítica, com disputas interimperialistas que alimentam não só aquela, mas muitas outras guerras à escala global? Que economia é esta que gera a brutal concentração de riqueza que permite ao senhor Elon Musk oferecer 44 mil milhões de euros (mais de 3 PRR) pelo Twitter? Que democracia, que direitos humanos, que emprego e direitos laborais e sociais sobrevirão se prosseguirem estas selvajarias? Que Estado social teremos se permitirmos que, como está a ser preparado, parte significativa da riqueza produzida possa ser sacrificada no altar da escalada belicista em curso?
Os perigos que se perfilam são grandes, mas ultrapassáveis. É preciso vencer medos pela ação cívica e política. A democracia ganha vida, e as alternativas germinam, a partir da participação organizada dos trabalhadores, dos cidadãos, do povo. As respostas aos problemas difíceis são complexas e trabalhosas, não surgem repentinamente de um superdotado qualquer, nem se coadunam com os quadros a preto e branco que os poderes político e comunicacional instalados manipulam.
António Guterres, na sua passagem pela Ucrânia, criticou os que entendem a política como "uma feira de vaidades". Oxalá os governantes europeus, e também os grandes meios de comunicação, se comportem, não como vassalos de um império, mas antes como defensores empenhados dos valores humanistas e da paz, dos interesses dos povos que representam, da sua cultura e valores no cenário daquelas disputas interimperialistas.
Na encíclica "Fratelli tutti", o Papa Francisco, no capítulo "A política melhor" alerta para cuidados a termos com o mercado enquanto "dogma de fé neoliberal" e para não aceitarmos que a economia "assuma o poder real do Estado"; diz-nos que para que a política seja melhor "a grande questão é o trabalho" e "conseguir que a organização de uma sociedade assegure a cada pessoa" trabalho digno. Em Portugal, é muito necessário reforçar o apelo de Francisco que afirma: "insisto que "ajudar os pobres com o dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências. O verdadeiro objetivo devia ser sempre consentir-lhes uma vida digna, através do trabalho"".
Façamos um exercício de memória mostrando o imenso contributo dos sindicatos para as mais profundas e melhores transformações que os portugueses conseguiram realizar. É hora de todos os que se preocupam com o valor e a dignidade do trabalho afirmarem a importância do sindicalismo.
Neste 1.º de Maio, relembremos que os sindicatos criam as suas raízes e se alimentam, em primeiro lugar, na ação desenvolvida a partir dos locais de trabalho. É com práticas de diálogo e de participação de todos, a partir das condições concretas e das perspetivas de vida de cada um, que se geram sínteses ou identidades coletivas que, acolhendo diferenças, ganham força.
Tempo da Criação
O fim da fé na ressurreição
P. Francisco Cortês Ferreira, sj | in Ponto SJ | 20 Abril 2022
O ritual das exéquias cristãs afirma, nas notas preliminares, uma frase desconcertante: “ao celebrarem as Exéquias dos seus irmãos, procurem os cristãos afirmar sem reservas a esperança na vida eterna” (praenotanda n.2).
É verdade que não é difícil para muitas pessoas admitirem uma existência post-mortem de algum tipo, seja a imortalidade da alma, seja uma outra forma de existência espiritual qualquer. Contudo, quando toca à crença específica numa Ressurreição dos mortos essa profissão não é tão imediata, mesmo entre cristãos. Talvez porque o seu sentido original se foi de tal modo esbatendo do nosso imaginário pessoal e coletivo, ou misturando com uma espécie de ideia de imortalidade abstrata ou de reencarnação espiritual, que quando dizemos ressurreição sentimos no nosso íntimo que não sabemos bem o que estamos a dizer. E isto é problemático, porque não só a ressurreição ocupa um espaço central entre os artigos da fé cristã, como remete à noção mesma de Deus, um Deus de vivos, cujo poder ultrapassa o limiar da morte. Falar da ressurreição não é só falar de uma eventual vida após a morte. É muito mais do que isso: sem a Ressurreição não é possível compreender a noção cristã de Deus. Sem a ressurreição, não é possível conceber o Deus de Jesus Cristo.
As primeiras comunidades cristãs tinham clara noção disto. Para elas, a fé na ressurreição era a fonte da esperança irreprimível, a pedra que suportava toda a sua existência, as suas relações e a resiliência na vida ordinária e no meio das perseguições. São Paulo, seguindo essa intuição, coloca este ponto no centro da sua mensagem: o que ele anuncia é o evangelho da ressurreição dos mortos, como consequência necessária da ressurreição de Jesus (1 Cor 6,14; Rm 8,11; 1 Tes 4,14). Negar a ressurreição dos mortos é negar a de Jesus (1 Cor 15,13) e negar a de Jesus é reduzir a esperança cristã ao vazio (1 Cor 15,17).
Mas “exprimir o inexprimível” esbarra sempre nos limites da nossa linguagem. Assim, o Apóstolo dos gentios, consciente disso, recorre a uma analogia para desafiar a nossa imaginação: assim como há uma desproporção entre uma semente deitada à terra e a vida vegetal que dela brota, de igual modo o corpo morto ressuscitará num corpo singular, pela ação vivificante e inefável de Deus. Não deixa de ser curioso o facto de São Paulo classificar este corpo ressuscitado como um “corpo espiritual”, um corpo incorruptível nascido da corrupção. É uma verdadeira corporalidade que, no entanto, é a expressão pura do Espírito, o que em si mesmo, parece uma contradição em termos. É uma expressão totalmente acientífica e que parte da intuição imediata de um corpo que será levantado, não pelo desejo íntimo da vontade e das disposições humanas, mas fruto da liberdade e da soberania de Deus.
Esta invocação da dimensão corporal não é de todo inocente. É o modo de São Paulo salvaguardar e colocar o Ser humano como objeto central da ação salvífica de Deus. Mas isto só é compreensível se a nossa interpretação de “corpo” ultrapassar uma visão imediata, estrita e redutora. Pelo contrário, deve ser pensado como ponto de origem a partir do qual o ser humano estabelece todas as suas relações e exerce a sua liberdade, como uma realidade orgânica entendida, não como algo externo, que se possui, mas como algo que nos define e identifica. É a realização definitiva do Homem Todo diante de Deus, que lhe concede a vida eterna.
Ratzinger tem razão, ao afirmar que a fé na ressurreição não aparece como parte de uma especulação sobre cosmologia ou sobre a teologia da história, ou outra coisa abstrata qualquer, mas é relativa a uma pessoa, a Deus em Cristo.
Em Cristo o escondido torna-se presente. Da nossa parte, vislumbrar para lá do véu da morte será eventualmente meditar sobre os mistérios da vida de Cristo, pensado à luz da Páscoa e que reflete algo desse modo Novo de viver. A ressurreição é um assentimento a um futuro do Homem e do Cosmos, onde Deus se manifesta Senhor da História, e um convite de participação numa realidade dialogal, concebida numa conceção alargada da nossa própria história pessoal. Daí ser possível afirmar que a ressurreição de Cristo e a ressurreição dos mortos não são duas, mas uma e a mesma realidade, que no total não é outra coisa senão a verificação da fé em Deus à luz da História.
E é justamente essa fé e a adesão pessoal subsequente que permite a entrada na vida eterna e que torna compreensível as palavras de Jesus a Marta, no episódio da ressurreição de Lázaro: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que acredita em mim, mesmo que morra, viverá” (Jn 11, 25). Vista deste prisma, a ressurreição não remete simplesmente para um acontecimento longínquo e apocalíptico, no final dos tempos, mas algo inaugurado e possível desde já.
A fé, que implica o contacto entre Jesus Cristo e eu, possibilita, desde já, a vitória sobre a morte, remetendo para uma imagem que, como num espelho, re-envia de volta uma noção de Deus que se vai clarificando, numa espécie de círculo que mostra a esperança definitiva de Deus para o mundo.
Tempo da Criação
MENSAGEM URBI ET ORBI
DO PAPA FRANCISCO
PÁSCOA 2022
Balcão central da Basílica Vaticana
Domingo, 17 de abril de 2022
Queridos irmãos e irmãs, feliz Páscoa!
Jesus, o Crucificado, ressuscitou! Veio ter com aqueles que choram por Ele, fechados em casa, cheios de medo e angústia. Veio a eles e disse: «A paz esteja convosco!» (Jo 20, 19). Mostra as chagas nas mãos e nos pés, a ferida no lado: não é um fantasma, é mesmo Ele, o mesmo Jesus que morreu na cruz e esteve no sepulcro. Diante dos olhos incrédulos dos discípulos, repete: «A paz esteja convosco!» (20, 21).
Também os nossos olhos estão incrédulos, nesta Páscoa de guerra. Demasiado sangue, vimos; demasiada violência. Também os nossos corações se encheram de medo e angústia, enquanto muitos dos nossos irmãos e irmãs tiveram de se fechar nos subterrâneos para se defender das bombas. Sentimos dificuldade em acreditar que Jesus tenha verdadeiramente ressuscitado, que tenha verdadeiramente vencido a morte. Terá porventura sido uma ilusão? Um fruto da nossa imaginação?
Não; não é uma ilusão! Hoje, mais do que nunca, ressoa o anúncio pascal tão caro ao Oriente cristão: «Cristo ressuscitou! Verdadeiramente ressuscitou!» Hoje mais do que nunca precisamos d’Ele, no termo duma Quaresma que parece não querer acabar. Temos atrás de nós dois anos de pandemia, que deixaram marcas pesadas. Era o momento de sairmos do túnel juntos, de mãos dadas, juntando as forças e os recursos... Em vez disso, estamos demostrando que ainda não existe em nós o Espírito de Jesus, mas existe ainda em nós o espírito de Caim, que vê Abel não como um irmão, mas como um rival, e pensa como há de eliminá-lo. Temos necessidade do Crucificado ressuscitado para acreditar na vitória do amor, para esperar na reconciliação. Hoje mais do que nunca precisamos d’Ele, precisamos que venha colocar-Se no meio de nós e nos diga mais uma vez: «A paz esteja convosco!»
Só Ele o pode fazer. Só Ele tem hoje o direito de anunciar-nos a paz. Só Jesus, porque traz as chagas, as nossas chagas. Aquelas chagas d’Ele são nossas duas vezes: são nossas, porque Lh’as provocamos nós com os nossos pecados, a nossa dureza de coração, o ódio fratricida; e são nossas, porque Ele as traz por nós, não as cancelou do seu Corpo glorioso, quis conservá-las, trazê-las consigo para sempre. São um timbre indelével do seu amor por nós, uma perene intercessão ao Pai celeste para que as veja e tenha misericórdia de nós e do mundo inteiro. As chagas no Corpo de Jesus ressuscitado são o sinal da luta que Ele travou e venceu por nós, com as armas do amor, para podermos ter paz, estar em paz, viver em paz.
Contemplando aquelas chagas gloriosas, os nossos olhos incrédulos escancaram-se, os nossos corações endurecidos abrem-se e deixam entrar o anúncio pascal: «A paz esteja convosco!»
Irmãos e irmãs, deixemos entrar a paz de Cristo nas nossas vidas, nas nossas casas, nos nossos países!
Haja paz para a martirizada Ucrânia, tão duramente provada pela violência e a destruição da guerra cruel e insensata para a qual foi arrastada. Sobre esta noite terrível de sofrimento e morte, surja depressa uma nova aurora de esperança. Escolha-se a paz! Deixe-se de exibir os músculos, enquanto as pessoas sofrem. Por favor, por favor: não nos habituemos à guerra, empenhemo-nos todos a pedir a paz, em alta voz, das varandas e pelas ruas! Paz! Quem tem a responsabilidade das nações, ouça o clamor do povo pela paz. Lembre-se daquela inquietadora pergunta feita pelos cientistas, há quase setenta anos: «Poremos fim ao género humano, ou a humanidade saberá renunciar à guerra?» (Manifesto Russell-Einstein, 09/VII/1955).
Trago no coração todas e cada uma das numerosas vítimas ucranianas, os milhões de refugiados e deslocados internos, as famílias divididas, os idosos abandonados, as vidas destroçadas e as cidades arrasadas. Não me sai da mente o olhar das crianças que ficaram órfãs e fogem da guerra. Vendo-as, não podemos deixar de nos dar conta do seu grito de sofrimento, juntamente com o de tantas outras crianças que sofrem em todo o mundo: as que morrem de fome ou por falta de cuidados médicos, as que são vítimas de abusos e violências e aquelas a quem foi negado o direito de nascer.
No meio da angústia da guerra, não faltam também sinais encorajadores, como as portas abertas de tantas famílias e comunidades que acolhem migrantes e refugiados em toda a Europa. Que estes numerosos atos de caridade se tornem uma bênção para as nossas sociedades, por vezes degradadas por tanto egoísmo e individualismo, e contribuam para torná-las acolhedoras com todos.
Que o conflito na Europa nos torne mais solícitos também perante outras situações de tensão, sofrimento e angústia, que tocam demasiadas regiões do mundo e que não podemos nem queremos esquecer.
Haja paz no Médio Oriente, dilacerado por anos de divisões e conflitos. Neste dia glorioso, peçamos paz para Jerusalém e paz para aqueles que a amam (cf. Sal 121/122): cristãos, judeus e muçulmanos. Possam israelitas, palestinenses e todos os habitantes da Cidade Santa, juntamente com os peregrinos, experimentar a beleza da paz, viver em fraternidade e gozar de livre acesso aos Lugares Santos no mútuo respeito pelos direitos de cada um.
Haja paz e reconciliação para os povos do Líbano, da Síria e do Iraque, e, de modo particular, para todas as comunidades cristãs que vivem no Médio Oriente.
Haja paz também para a Líbia, a fim de encontrar estabilidade depois das tensões destes anos, e para o Iémen, que sofre com um conflito esquecido por todos mas com vítimas contínuas: a trégua assinada nos últimos dias possa devolver esperança à população.
Ao Senhor ressuscitado, pedimos o dom da reconciliação para Myanmar, onde perdura um cenário dramático de ódio e violência, e para o Afeganistão, onde não diminuem as perigosas tensões sociais e onde uma dramática crise humanitária atormenta a população.
Haja paz para todo o continente africano, a fim de que cessem a exploração de que é vítima e a hemorragia causada pelos ataques terroristas – particularmente na região do Sahel – e encontre apoio concreto na fraternidade dos povos. Que a Etiópia, atribulada por uma grave crise humanitária, reencontre o caminho do diálogo e da reconciliação e cessem as violências na República Democrática do Congo. Não falte a oração e a solidariedade pelas populações do leste da África do Sul, atingidas por enchentes devastadoras.
Cristo ressuscitado acompanhe e assista as populações da América Latina, que, em alguns casos, viram piorar as suas condições sociais nestes tempos difíceis de pandemia, agravadas também por casos de criminalidade, violência, corrupção e tráfico de drogas.
Peçamos ao Senhor ressuscitado que acompanhe o caminho de reconciliação que a Igreja Católica no Canadá está percorrendo com os povos autóctones. Que o Espírito de Cristo ressuscitado cure as feridas do passado e disponha os corações na busca da verdade e da fraternidade.
Queridos irmãos e irmãs, cada guerra traz consigo consequências que envolvem toda a humanidade: do luto ao drama dos refugiados, até à crise económica e alimentar de que já se veem os primeiros sintomas. Perante os sinais perdurantes da guerra, bem como diante das muitas e dolorosas derrotas da vida, Cristo, vencedor do pecado, do medo e da morte, exorta-nos a não nos rendermos ao mal e à violência. Irmãos e irmãs, deixemo-nos vencer pela paz de Cristo! A paz é possível, a paz é um dever, a paz é responsabilidade primária de todos!
Tempo da Criação
VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A MALTA
(2-3 DE ABRIL DE 2022)
ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, A SOCIEDADE CIVILE E O CORPO DIPLOMÁTICO
DISURSO DO SANTO PADRE
"Grand Council Chamber" do Palácio do Grão-Mestre em Valeta
Sábado, 2 de abril de 2022
(Continuação)
Continuando na rosa-dos-ventos, olhemos para sul. De lá chegam muitos irmãos e irmãs à procura de esperança. Quero agradecer às Autoridades e à população pelo acolhimento que lhes dão em nome do Evangelho, da humanidade e do sentido de hospitalidade típico dos malteses. Segundo a etimologia fenícia, Malta significa «porto seguro». Mas, perante o afluxo crescente dos últimos anos, medos e inseguranças geraram desânimo e frustração. Para se enfrentar adequadamente a complexa questão da migração, é preciso situá-la dentro de perspetivas de tempo e espaço mais amplas. De tempo: o fenómeno migratório não é uma conjuntura do momento, mas marca a nossa época. Traz consigo as dívidas de injustiças passadas, de tanta exploração, de mudanças climáticas e de desditosos conflitos cujas consequências se pagam. Do sul pobre e povoado, massas de pessoas deslocam-se para o norte mais rico: é um dado real, que não se pode enjeitar com anacrónicos fechamentos, porque não haverá prosperidade nem integração no isolamento. Depois há que considerar o espaço: o agravamento da emergência migratória – pensemos nos refugiados da martirizada Ucrânia – exige respostas amplas e partilhadas. Não podem apenas alguns países arcar com o problema inteiro, na indiferença de outros! Nem podem países civis sancionar, para seu próprio interesse, acordos obscuros com criminosos que escravizam as pessoas. Isto, infelizmente, acontece. O Mediterrâneo precisa de corresponsabilidade europeia, para voltar a ser teatro de solidariedade e não a dianteira dum trágico naufrágio da civilização. O mare nostrum não pode tornar-se o maior cemitério da Europa.
E a propósito de naufrágio, penso em São Paulo que, durante a sua última travessia no Mediterrâneo, chegou a estas costas de maneira inesperada e foi socorrido. Depois, mordido por uma víbora, foi julgado um criminoso, passando pouco depois a ser considerado uma divindade por não ter sofrido consequências (cf. At 28, 3-6). Por entre os exageros dos dois extremos, escapava a evidência primária: Paulo era um homem, necessitado de acolhimento. A humanidade vem em primeiro lugar e antepõe-se a tudo: ensina-o este país, cuja história beneficiou com a penosa chegada do Apóstolo naufragado. Em nome do Evangelho que ele viveu e pregou, alarguemos o coração e descubramos a beleza de servir os necessitados. Continuemos por esta estrada. Enquanto hoje, a respeito de quem atravessa o Mediterrâneo à procura de segurança, prevalecem o medo e «a narração da invasão», e o objetivo primário parece ser a tutela a todo custo da própria segurança, ajudemo-nos a não ver o migrante como uma ameaça não cedendo à tentação de construir pontes levadiças e erguer muros. O outro não é um vírus do qual nos devemos defender, mas uma pessoa a acolher, e «o ideal cristão convidará sempre a superar a suspeita, a desconfiança permanente, o medo de sermos invadidos, as atitudes defensivas que nos impõe o mundo atual» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 88). Não deixemos que a indiferença apague o sonho de vivermos juntos! Claro, acolher custa fadiga e exige renúncias. Foi assim também com São Paulo: para se porem a salvo, foi necessário primeiro sacrificar os bens do navio (cf. At 27, 38). Mas trata-se de santas renúncias as que são feitas por um bem maior, pela vida do homem, que é o tesouro de Deus!
E temos, enfim, o vento de leste, que sopra muitas vezes ao amanhecer. Homero chamava-o «Euro» (Odisseia V, 379.423). Entretanto foi precisamente do leste da Europa, do Oriente onde primeiro aparece a luz, que chegaram as trevas da guerra. Pensávamos que invasões doutros países, combates brutais pelas estradas e ameaças atómicas fossem sombrias recordações dum passado distante. Mas o vento gelado da guerra, que só traz morte, destruição e ódio, abateu-se prepotentemente sobre a vida de muitos e sobre os dias de todos. E enquanto mais uma vez um poderoso qualquer, tristemente fechado em anacrónicas reivindicações de interesses nacionalistas, provoca e fomenta conflitos, a gente comum sente a necessidade de construir um futuro que será vivido conjuntamente por todos ou então não subsistirá. Agora, na noite da guerra que caiu sobre a humanidade, por favor não façamos evaporar-se o sonho da paz.
Malta, que resplandece luminosa no coração do Mediterrâneo, pode inspirar-nos, porque é urgente devolver beleza ao rosto do homem, desfigurado pela guerra. Uma bela estátua mediterrânica, que remonta a séculos antes de Cristo, retrata a paz, Irene, como uma mulher segurando Plutão, a riqueza. Recorda que a paz gera bem-estar, e a guerra só pobreza. E impressiona o facto de, na estátua, a paz e a riqueza aparecerem retratadas como uma mãe que segura um filho nos braços. A ternura das mães, que dão ao mundo a vida, e a presença das mulheres são a verdadeira alternativa à perversa lógica do poder, que leva à guerra. Precisamos de compaixão e cuidados, não de visões ideológicas e populismos, que se alimentam com palavras de ódio e não têm a peito a vida concreta do povo, da gente comum.
Há mais de sessenta anos, da bacia do Mediterrâneo para um mundo ameaçado pela destruição, onde ditavam lei as contraposições ideológicas e a lógica férrea dos alinhamentos, ergueu-se uma voz contracorrente, que contrapôs, à exaltação da própria parte, um salto profético em nome da fraternidade universal. Era a voz de Jorge La Pira, que disse: «A conjuntura histórica que vivemos, o choque de interesses e ideologias que abalam a humanidade a braços com um infantilismo incrível, devolvem ao Mediterrâneo uma responsabilidade capital: definir de novo as normas duma Medida onde se possa reconhecer o homem abandonado ao delírio e aos excessos» (Discurso no Congresso Mediterrânico de Cultura, 19/II/1960). São palavras atuais; podemos repeti-las, porque têm uma grande atualidade! Quanto precisamos duma «medida humana» face à agressividade infantil e destrutiva que nos ameaça, frente ao risco duma «guerra fria alargada» que pode sufocar a vida de gerações e povos inteiros! Infelizmente, aquele «infantilismo» não desapareceu. Ressurge prepotentemente nas seduções da autocracia, nos novos imperialismos, na difusa agressividade, na incapacidade de lançar pontes e começar pelos mais pobres. Hoje é tão difícil pensar com a lógica da paz; habituamo-nos a pensar com a lógica da guerra. Disto começa a soprar o vento gelado da guerra, que esta vez também foi alimentado ao longo dos anos. Sim, desde há tempos que a guerra tem vindo a ser preparando com grandes investimentos e tráficos de armas. E é triste ver como o entusiasmo pela paz, surgido depois da II Guerra Mundial, se debilitou nas últimas décadas, bem como o percurso da comunidade internacional, com alguns poderosos que avançam por conta própria à procura de espaços e zonas de influência. E assim não só a paz, mas também muitas questões importantes, como a luta contra a fome e as desigualdades, foram efetivamente canceladas das principais agendas políticas.
Mas a solução para as crises de cada um é ocupar-se das crises de todos, porque os problemas globais requerem soluções globais. Ajudemo-nos a auscultar a sede de paz das pessoas, trabalhemos por colocar as bases dum diálogo cada vez mais alargado, voltemos a reunir-nos em conferências internacionais pela paz, onde seja central o tema do desarmamento, com o olhar fixo nas gerações vindouras! E os enormes fundos que continuam a ser destinados para armamentos sejam aplicados no desenvolvimento, na saúde e na nutrição.
Olhando ainda para leste, gostaria por fim de dirigir um pensamento ao Médio Oriente, cuja proximidade se reflete na língua deste país, que se harmoniza com outras, como se quisesse recordar a capacidade que têm os malteses de gerar benéficas convivências, numa espécie de convívio das diferenças. Disto precisa o Médio Oriente: o Líbano, a Síria, o Iémen e outros contextos dilacerados por problemas e violência. Que Malta, coração do Mediterrâneo, continue a fazer palpitar a esperança, o cuidado pela vida, o acolhimento do outro, o anseio de paz, com a ajuda de Deus, cujo nome é paz.
Deus abençoe Malta e Gozo!
Tempo da Criação
(À chegada a Malta, o papa Francisco fez um belíssimo discurso, que vale a pena ler e reler, de tão bem situado neste Mundo em que vivemos, a partir da imagem da Rosa-dos-Ventos. Por ser um pouco mais longo, publicamos hoje apenas uma parte. Na próxima semana publicaremos o resto)
VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A MALTA
(2-3 DE ABRIL DE 2022)
ENCONTRO COM AS AUTORIDADES, A SOCIEDADE CIVILE E O CORPO DIPLOMÁTICO
DISURSO DO SANTO PADRE
"Grand Council Chamber" do Palácio do Grão-Mestre em Valeta
Sábado, 2 de abril de 2022
(…) Os vossos antepassados deram hospitalidade ao Apóstolo Paulo durante a sua viagem para Roma, tratando-o a ele e aos seus companheiros de viagem «com invulgar humanidade» (At 28, 2); agora também eu, vindo de Roma, experimento o acolhimento caloroso dos malteses, tesouro que passa de geração em geração no país.
Devido à sua posição, pode-se definir Malta como o coração do Mediterrâneo. E não só pela posição: há milénios que o entrelaçamento de acontecimentos históricos e o encontro de populações fazem destas ilhas um centro de vitalidade e cultura, espiritualidade e beleza, uma encruzilhada que soube acolher e harmonizar influxos originários de muitas partes. Esta diversidade de influxos faz pensar na variedade dos ventos que caraterizam o país. Não é por acaso que, nas antigas representações cartográficas do Mediterrâneo, a rosa-dos-ventos estava frequentemente colocada perto da ilha de Malta. Servindo-me precisamente desta imagem da rosa dos ventos, que localiza as correntes de ar segundo os quatro pontos cardeais, quero delinear quatro influxos essenciais para a vida social e política deste país.
Sobre as ilhas maltesas, os ventos sopram predominantemente de noroeste. O norte lembra a Europa, em particular a casa da União Europeia, edificada para que nela habite uma grande família unida na salvaguarda da paz. Unidade e paz são os dons que o povo maltês pede a Deus cada vez que entoa o Hino Nacional. Com efeito assim reza a oração escrita por Dun Karm Psaila: «Concedei, Deus Omnipotente, sabedoria e misericórdia a quem governa, saúde a quem trabalha e assegura ao povo maltês unidade e paz». A paz vem depois da unidade e brota dela. Isto faz pensar na importância de trabalhar juntos, colocar a coesão antes de toda a divisão, revigorar raízes e valores partilhados que forjaram a unicidade da sociedade maltesa.
Mas, para garantir uma boa convivência social, não basta consolidar o sentido de pertença; é necessário também reforçar os alicerces da vida comum, que assenta sobre o direito e a legalidade. A honestidade, a justiça, o sentido do dever e a transparência são pilares essenciais duma sociedade civilmente avançada. Por isso o empenho em eliminar a ilegalidade e a corrupção seja forte como o vento que, soprando de norte, varre as costas do país. E sempre se cultivem a legalidade e a transparência, que permitem erradicar a candonga e a criminalidade, unidas pelo facto de não agirem à luz do sol.
A casa europeia, que está empenhada na promoção dos valores da justiça e equidade social, encontra-se também na vanguarda da tutela da casa mais ampla da criação. O ambiente onde vivemos é uma dádiva do céu, como reconhece também o Hino Nacional ao pedir a Deus que olhe pela beleza desta terra, mãe adornada com a mais alta luz. É verdade! Em Malta, onde a luminosidade da paisagem alivia as dificuldades, a criação aparece como o dom que, por entre as provas da história e da vida, recorda a beleza de habitar a terra. Por isso deve ser preservada da ganância devoradora, da sofreguidão do dinheiro e da especulação imobiliária, que compromete não só a paisagem, mas também o futuro. Ao passo que a defesa do ambiente e a justiça social preparam o futuro, e são ótimos caminhos para fazer apaixonar os jovens pela boa política, libertando-os das tentações do desinteresse e alheamento.
O vento norte mistura-se muitas vezes com o vento que sopra de oeste. De facto este país europeu, particularmente a sua juventude, partilha os estilos de vida e de pensamento ocidentais. Daqui derivam grandes bens – penso por exemplo nos valores da liberdade e da democracia –, mas também riscos sobre os quais é preciso vigiar, para que a ambição do progresso não leve a separar-se das raízes. Malta é um maravilhoso «laboratório de desenvolvimento orgânico», onde progredir não significa cortar as raízes com o passado em nome duma falsa prosperidade ditada pelo lucro, as necessidades sugeridas pelo consumismo, bem como pelo direito de ter todo e qualquer direito. Para um desenvolvimento saudável, é importante preservar a memória e tecer respeitosamente a harmonia entre as gerações, sem se deixar absorver por homogeneizações artificiais e colonizações ideológicas, que muitas vezes ocorrem, por exemplo, no campo da vida, do princípio da vida. São colonizações ideológicas que vão contra o direito à vida desde o momento da conceção.
Na base dum sólido crescimento, está a pessoa humana, o respeito pela vida e pela dignidade de todo o homem e mulher. Conheço o empenho dos malteses em abraçar e proteger a vida. Já nos Atos dos Apóstolos vos distinguíeis por salvar tantas pessoas. Encorajo-vos a continuar a defender a vida desde o início até ao seu fim natural, mas também a preservá-la sempre de ser descartada e negligenciada. Penso especialmente na dignidade dos trabalhadores, dos idosos e dos doentes. E aos jovens, que correm o risco de desperdiçar o bem imenso que são, perseguindo miragens que deixam no íntimo tanto vazio. A provocar tudo isto é o consumismo exasperado, o fechamento às necessidades dos outros e a praga da droga, que sufoca a liberdade ao criar dependência. Protejamos a beleza da vida!
(Continua)
ENCONTRO COM OS MIGRANTES
DISCURSO DO SANTO PADRE
Centro para os Migrantes "João XXIII Peace Lab" em Hal Far
Domingo, 3 de abril de 2022
ORAÇÃO NO FINAL DO ENCONTRO COM OS MIGRANTES
Senhor Deus, criador do universo,
fonte de liberdade e paz,
de amor e fraternidade,
Vós criastes-nos à vossa imagem
e infundistes em todos nós o vosso sopro vital,
para nos fazer participantes do vosso ser em comunhão.
Mesmo quando quebramos a vossa aliança
Vós não nos abandonastes ao poder da morte
mas, na vossa misericórdia infinita,
sempre nos chamastes para regressar a Vós
e viver como vossos filhos.
Infundi em nós o vosso Santo Espírito
e dai-nos um coração novo,
capaz de escutar o clamor, muitas vezes silencioso,
dos nossos irmãos e irmãs que perderam
o calor do lar e da pátria.
Fazei que possamos dar-lhes esperança
com olhares e gestos de humanidade.
Fazei de nós instrumentos de paz
e de amor fraterno concreto.
Livrai-nos dos medos e preconceitos,
para assumirmos como nossos os seus sofrimentos
e lutar juntos contra a injustiça;
para que cresça um mundo onde cada pessoa
seja respeitada na sua dignidade inviolável
aquela que Vós, Pai, colocastes em nós
e o vosso Filho consagrou para sempre.
Ámen.
Tempo da Criação
“Dou-te meus lábios cheios de sede”
P. Luís Maria da Providência, sj | 21 Março 2022 | in Ponto SJ
O Dia Mundial da Água foi instituído pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1993, tendo escolhido para esse efeito o dia 22 de Março. A problemática das “mudanças climáticas”, acentuada por este inverno extremamente seco, confere outra acuidade a esta celebração.
S. Francisco de Assis (1181-1226) integra a irmã água no coro do “Cântico das Criaturas” que louvam continuamente o Criador: “Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã água que é tão útil, e humilde, e preciosa e casta.” A partir da comunhão profunda com Deus, abre-se a Francisco um novo horizonte, que lhe permite dizer tudo, em tão poucas palavras, numa linguagem acessível a todos, referindo as características essenciais da água às quais poderás estar cego. Para Daniel Faria, (1971-1999) a água é puro dom divino e, consequentemente, a sede é essencial/estruturante/constitutiva do ser humano:
Aos meus amigos nunca pedi mais
Que um copo de água
Sobre a mesa
E tudo o que me deram foi
Seus lábios cheios de sede
Por isso minha vida
É
E lhes sou grato
Também o Papa Francisco na encíclica Laudato Si’ (LS), dedica uma secção à questão da água (§ 27-31). A encíclica sublinha que “o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos” (§ 30). Alerta ainda que “os impactos ambientais poderiam afetar milhares de milhões de pessoas, sendo previsível que o controle da água por grandes empresas mundiais se transforme numa das principais fontes de conflitos deste século” (§ 31).
Uma série de flashes vêm-me instantaneamente à mente, representativos de diferentes momentos da minha história. Nasci em 1960. Em criança, o sábado era o dia do banho semanal. Ainda pequeno, aprendi a entrar num café para pedir “um copo de água, por favor” e a agradecer no final. Quando jovem, parte das férias de verão eram passadas no Parque Nacional da Peneda-Gerês onde as águas frias e transparentes que corriam e caíam em cascata da montanha sobre leito rochoso iam escavando, ao longo de muitos anos, marmitas de gigante. Bastante mais tarde, em 1997-98, no Negaje (Angola), o duche de madrugada limitava-se apenas a meio balde de água com um púcaro. Em 2006, o goês que ficou hospedado lá em casa, à chegada foi acolhido por mim e perguntou-me num português fluente: “a água da torneira é boa?” Quantas vezes, também em pequeno, tinha feito a mesma pergunta?!
Uma autêntica “conversão ecológica” (LS § 2016-221) pode levar-te a fazer a seguinte pergunta: “Que hei-de fazer, Senhor?” (At 22, 10). É uma pergunta recorrente em S. Lucas e que testemunha a transformação interior, fruto de um verdadeiro encontro com o Ressuscitado. Viver da comunhão com Cristo em que é que se traduz, na tua vida? A resposta terá de partir de ti. Quem sabe, poderá passar pelo cuidado em acumular num balde a primeira água do duche, que sai fria, e pode desempenhar perfeitamente as funções do autoclismo ou, então, ser usada para regar as plantas de interior ou do jardim. Eventualmente poderás também cortar com a rotina e obrigação do duche diário para passar a fazê-lo duas a três vezes por semana. O Papa insiste em pequenas ações diárias em prol do ambiente (LS § 211-212, 230-231). “É muito nobre assumir o dever de cuidar da criação com pequenas ações diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de motivar para elas, até dar forma a um estilo de vida” (LS § 211). Inácio de Loiola (1491-1556), mediante o “exame particular” (Exercícios Espirituais 24-31), fornece-te um instrumento poderoso para consolidardes a tua conversão ecológica.
Israel tem um clima semidesértico pelo que a água constitui para os seus habitantes um bem precioso: “E quem der de beber a um destes pequeninos, ainda que seja somente um copo de água fresca, por ser meu discípulo, em verdade vos digo: não perderá a sua recompensa.” (Mt 10, 42). Um simples copo de água que venhas a oferecer a alguém, por causa de Jesus, confere uma outra plenitude à tua existência.
A água que ingeres ou na qual te lavas, arrasta as impurezas a nível interior ou exterior. Contudo, há uma outra água, que o próprio Jesus te dá, que nasce da tua interioridade e te vai comunicando uma plenitude crescente: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba: do coração daquele que acredita em mim correrão rios de água viva para a vida eterna. Referia-se ao Espírito…” (Jo 7, 37-39).
É muito significativo o documento publicado em 30 de março de 2020 pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, intitulado Aqua fons vitae. Orientações sobre a água, símbolo do choro dos pobres e do choro da terra. Esquematicamente, o documento começa por reconhecer diferentes tipos de valores associados à água: 1. valor religioso; 2. valor sociocultural e estético; 3. valor institucional e valor útil para a paz; 4. valor económico. Muitos destes valores caíram no esquecimento das nossas mentes utilitaristas e reivindicativas que perderam, também, a capacidade de se maravilhar.
Destes valores seguem-se três grandes dimensões da água: 1. a água para o uso humano; 2. a água e as atividades humanas; e, finalmente 3. a água como espaço. “A Bíblia tem 1500 versículos nos quais se fala da água” (Aqua fons vitae).
O documento conclui com um secção intitulada “Educação e Integridade”, acentuando por um lado a necessidade de uma “educação para um novo humanismo e para uma cultura do encontro e de colaboração sobre a água” e, por outro, a necessidade da “luta contra a corrupção e contra a violência sobre a água”. O documento advoga “uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de uma escuta paciente, de diálogo construtivo e de mútua compreensão” (§ 103).
Realmente, a água é a fonte da vida! Consequentemente, o grito dos pobres e o grito da terra, implorando por água, chegou até Deus (Ex 3, 7). A paixão de Cristo vai-se impondo e ganhando contornos universais, mesmo para aqueles que no seu hedonismo e indiferença a pretendem negar.
A cerca de dois quilómetros de Manresa, Inácio sentou-se voltado para o rio que corria fundo na paisagem e profundo dentro de si mesmo! Foi neste cenário que recebeu a graça da iluminação, a mais marcante de toda a sua vida. Esse momento transformou-o num Homem Novo (Autobiografia).
Na obra emblemática de Inácio de Loiola, os Exercícios Espirituais (EE), o termo “água” é empregue em mistérios significativos da vida de Jesus, nomeadamente: 1. as bodas de Caná, em que Jesus faz o primeiro milagre convertendo a água em vinho (Jo 2); 2. Jesus caminha sobre o mar de Tiberíades ao encontro dos discípulos (Mt 14); 3. o lado de Jesus crucificado é trespassado por uma lança, jorrando sangue e água (Jo 19).
Os EE terminam com a “Contemplação para alcançar amor” (EE 230-237), correspondente ao Pentecostes na tua vida quotidiana. Mais precisamente Inácio conclui com a imagem das águas que descem da fonte (EE 237). O Espírito Santo é o dom por excelência que vindo do alto desce sempre mais fundo como as águas que correm da fonte. Acolhe esta água viva, o próprio Espírito Santo, e poderás ser sucessivamente força, justiça, bondade, piedade e misericórdia de Deus no meio do mundo (EE 237). Simbolizada pela água corrente, esta kenosis/abaixamento caracteriza o verdadeiro discípulo de Jesus Cristo.
Na sua extrema discrição, a água em sentido literal ou, então, a água como imagem do Espírito Santo, especialmente presente na Igreja e nos seus membros, é condição sine qua non para que o mundo tenha vida e vida em abundância (Jo 10, 18).
Tempo da Criação
DISCURSO DE SUA SANTIDADE PAPA FRANCISCO
AOS MEMBROS DA ORGANIZAÇÃO VOLUNTÁRIA
"HO AVUTO SETE"
Clementine Hall
segunda-feira, 21 de março de 2022
Queridos irmãos e irmãs, bom dia e bem-vindos!
Agradeço à Senhora Presidente as suas palavras e tenho o prazer de vos dar as boas-vindas, dez anos depois do início da vossa experiência de voluntariado. Desde então, vocês estão unidos por um objetivo claro e urgente: levar água potável a quem não a tem. E as palavras de Jesus: «Tive sede» ( Mt 25,35) tornaram-se o vosso nome e o vosso lema. Dou-vos os parabéns!
O acesso à água, em particular à água limpa e potável, é agora um ponto crítico para o presente e o futuro próximo da família humana (cf. Carta Encíclica Laudato si' 27-31). É um assunto prioritário para a vida no planeta e para a paz entre os povos. Isso afeta-nos a todos. No entanto, no mundo, especialmente na África, existem populações que sofrem mais do que outras pela falta de acesso a esse bem primário. Por esta razão, vocês implementaram os vossos projetos humanitários na África, em muitos países e em várias regiões do continente. Isso é muito bom. Da mesma forma, é muito bom que o trabalho seja sempre realizado com operários locais e em colaboração com os missionários e as comunidades eclesiais da região.
«Tive sede, e destes-me de beber», diz Jesus, acrescentando: «Quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes» ( Mt 25,35,40). Queridos amigos, a sede não é tão má quando há muito para beber. Mas sabemos que, se faltar, e faltar por muito tempo, a sede pode tornar-se insuportável. A vida na terra depende da água; mesmo nós, seres humanos. Todos nós precisamos da irmã água para viver!
Por que, então, guerrear uns contra os outros por causa de conflitos que devemos resolver conversando uns com os outros como pessoas semelhantes? Por que não juntar nossas forças e recursos para travarmos juntos as verdadeiras batalhas da civilização: a luta contra a fome e a sede; o combate a doenças e epidemias; a luta contra a pobreza e a escravidão de hoje. Porquê? Certas escolhas não são neutras: destinar grande parte dos gastos às armas significa retirá-la de outra coisa, o que significa continuar a retirá-la de quem não tem as necessidades. E isso é um ultraje: gastar com armas. Quanto se gasta em armas, é terrível! Não sei qual a percentagem do PIB, não sei, não tenho o valor exato, mas é uma percentagem alta. E gastar em armas e em guerras, não só esta, que é muito grave, que estamos a viver agora, e a gente sente mais porque está mais perto, mas na África, no Oriente Médio, na Ásia, há guerras contínuas. Isso é sério. Precisamos criar a consciência de que continuar a gastar em armas mancha a alma, mancha o coração, mancha a humanidade. De que adianta comprometer-nos todos juntos, solenemente, a nível internacional, nas campanhas contra a pobreza, contra a fome, contra a degradação do planeta, se voltamos então ao velho vício da guerra, à velha estratégia do poder dos armamentos, que leva tudo e todos para trás? Uma guerra sempre nos leva para trás, sempre. Nós vamos para trás. Teremos que começar de novo.
Queridos irmãos e irmãs, como podem ver, sua organização, embora pequena em comparação com esses grandes problemas, está trabalhando em um ponto crítico, e fazendo-o bem, da maneira certa; como são, graças a Deus, tantas outras organizações voluntárias na Itália e em todo o mundo. E gostaria de dizer que fiquei surpreso ao encontrar um setor voluntário tão forte aqui na Itália: não o vi em nenhum outro lugar. Esta é a sua herança cultural italiana, que você deve preservar bem. Você tem um voluntariado válido, e esta associação também é uma importante atividade voluntária. Por isso, agradeço-vos e encorajo-vos a prosseguir os vossos esforços. Abençoo de coração a todos vós e a quantos trabalham convosco nos vários projectos. E também te peço o dom de rezar por mim. Obrigado!
Tempo da Criação
Apelo do Papa pela Ucrânia: Em nome de Deus, parem o massacre!
Mais um apelo: Francisco não poupa palavras para condenar o massacre de civis indefesos vítimas da guerra na Ucrânia. "Diante da barbárie da matança de crianças, de inocentes e de civis indefesos não existem razões estratégicas plausíveis", afirmou.
Vatican News
Com voz e mãos firmes, o Papa foi contundente ao pedir, mais uma vez, o fim imediato da guerra na Ucrânia ao final da oração mariana do Angelus deste domingo (13/03):
"Acabamos de rezar para Nossa Senhora. Esta semana, a cidade que leva seu nome, Mariupol, tornou-se uma cidade mártir da guerra desoladora que está devastando a Ucrânia. Diante da barbárie da matança de crianças, de inocentes e de civis indefesos não existem razões estratégicas plausíveis: deve-se somente cessar a inaceitável agressão armada, antes que reduza as cidades em cemitérios."
"Com dor no coração, uno a minha voz àquela das pessoas comuns, que imploram o fim da guerra. Em nome de Deus, ouça-se o grito de quem sofre e ponha-se fim aos bombardeios e aos ataques! Invista-se real e decididamente na negociação, e os corredores humanitários sejam efetivos e seguros."
“Em nome de Deus, eu peço: parem este massacre!”
Deus é só Deus da paz, não da guerra.
O Papa pediu também um maior esforço para acolher os que foge da guerra e que os fiéis intensifiquem as orações:
Gostaria ainda, mais uma vez, de exortar ao acolhimento dos muitos refugiados, nos quais Cristo está presente, e agradecer pela grande rede de solidariedade que se formou. Peço a todas as comunidades diocesanas e religiosas que aumentem os momentos de oração pela paz. Aumentar os momentos de oração pela paz. Deus é só Deus da paz, não é Deus da guerra, e quem apoia a violência profana o seu nome. Vamos agora rezar em silêncio por quem sofre e para que Deus converta os corações a uma firme vontade de paz."
O Pontífice está acompanhando de perto tudo o que está acontecendo na Ucrânia. A seu pedido, esta semana dois cardeais, Konrad Krajewski e Michael Czerny, estiveram entre os refugiados na Polônia e na Hungria para levar a solidariedade do Papa e ajudas materiais. O esmoleiro, card. Krajewski, inclusive conseguiu ir até Lviv, cidade que os russos bombardearam nas últimas horas. Na frente diplomática o secretário de Estado, Pietro Parolin, conversou no decorrer da semana com o ministro das relações exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, para pedir o fim imediato dos bombardeiros e oferecendo a mediação da Santa Sé.
Tempo da Criação
O Outro em mim
Maria Inês Gonçalves | in Ponto sj | 2 Março 2022
Gosto de pensar que, para além de ser fruto da educação dos meus pais, sou também fruto da relação com os que estão à minha volta. E que novidade este pensamento traz na minha relação com Jesus?
Naturalmente a maneira como agimos com outras pessoas é resultado daquilo que aprendemos em casa. Desde pequeninos olhamos para os nossos pais como referência e exemplo a seguir: como nos devemos comportar, o que devemos ou não fazer, ou dizer. Quantas vezes olho para a minha maneira de falar e revejo a minha mãe; ou mesmo quando me revejo nos meus irmãos… A convivência diária leva-nos a adotar pequenos hábitos uns dos outros e assim vamos mudando e crescendo ao longo do tempo.
Mas não só a família. Os nossos amigos, de certa forma, também influenciam a nossa maneira de ser. Talvez porque têm algo para nos ensinar, uma maneira nova de ver as coisas, uma reação a uma situação perante a qual não saberíamos responder. Mas pode também ser o oposto: algo que nos deixe mais desconfortáveis ou acabemos por chegar à conclusão que provavelmente, naquele contexto, teríamos agido de maneira diferente.
E quando penso sobre isto, e na novidade que os outros trazem à minha vida, pergunto-me: se fosse Jesus, o que é que teria feito naquele lugar? Se calhar, estou constantemente à procura de Jesus nos outros. Se calhar, deveria pensar que exemplo de Jesus sou, ou quero ser para os outros.
Mas não é só nos que estão mais perto que posso encontrar Jesus. Quando veio à terra, o que Ele mais procurava era ajudar e chegar aos que estavam mais longe, aos que a sociedade afastava, aos que eram rejeitados – podemos recordar a passagem da cura do leproso (Mt 8,1-4), ou quando deu a mão a Maria Madalena (Jo 8,1-11) -. Cada um de nós pode tentar ser Jesus assim, estando atento ao mundo, interessando-se pelas histórias e situações de cada um, de cada nação, como por exemplo ao procurar ajudar refugiados que chegam a outra cidade, a outro país.
Enquanto pensava sobre o tema deste artigo e começava a escrever as primeiras linhas, ouvi um episódio do podcast “Aquele que habita os céus sorri”, da autoria do padre António Pedro Monteiro, que ainda me desafiou mais na minha relação com “os outros”. Ouvi a sua perspetiva sobre a importância de não rotular o próximo pela sua condição, por exemplo, não me referir àqueles que não têm liberdade como “os presos”, mas sim como “as pessoas que estão presas”; não pensar naqueles que fogem do país por causa da guerra como “os refugiados”, mas sim como “as pessoas que estão refugiadas”. Porque antes de qualquer condição, está uma pessoa, igual a mim, com os mesmos direitos.
Neste início de Quaresma São Paulo, na sua carta aos Coríntios, recorda-nos que “este é o tempo favorável”. É o tempo favorável para sair de mim para ir ao encontro dos outros, mais uma oportunidade de recomeçar.
Ao dar-me ao próximo sem esperar nada em troca, ao perdoar, ao não julgar talvez assim esteja a ser mais Jesus para o outro. E voltando à questão “o que faria Jesus se aqui estivesse?” Acredito que a cada um de nós nos sopraria a melhor resposta, na certeza de que continuaria a gostar de mim independentemente da condição em que eu estivesse, independentemente de me dar gratuitamente, independentemente de julgar o outro, independentemente de pecar, independentemente de tudo.
A isto chamo fé. E consigo perceber (e sentir!) que é um fator de mudança na minha maneira de estar. Quase como se fosse uma amiga que me ensina o melhor que sabe para assim eu O levar aos outros. É esta a novidade Jesus me traz!
Tempo da Criação
Desmond Tutu: Eu sou porque tu és!
Frei Fabrizio Bordin, Mensageiro de Santo António, fevereiro 2022
O novo ano de 2022, começou com o funeral de outro grande profeta do nosso tempo: Desmond Tutu, Arcebispo da Igreja Anglicana e prémio Nobel da Paz em 1984 pela sua luta contra o Apartheid na sua terra natal.
Nasceu em Klerksdorp, na África do Sul, a 7 de Outubro de 1931. Aos 12 anos, a sua família mudou-se para Joanesburgo. Era seu desejo tornar-se médico, mas não tendo condições económicas para pagar os estudos, acabou por enveredar nas disciplinas teológicas tornando-se, em 1960, ministro ordenado da Igreja anglicana. Jovem pastor foi nomeado capelão da Universidade de Fort Hare, no Sul do País, berço da luta contra o apartheid. Continuou a estudar nos anos Sessenta, tendo obtido o bacharelado e depois um master em Teologia.
Começou a viajar e tornou-se cada vez mais sensível aos temas da “negritude”. Em 1975, foi nomeado deão da Catedral de Santa Maria, em Joanesburgo: era o primeiro negro com tal cargo!
Esta escolha provocou reações polémicas nos círculos governamentais. O ano de 1976 representa uma viragem significativa na vida de Desmond Tutu: após ser sagrado bispo, as manifestações, no município de Soweto, contra as diretrizes do governo que obrigavam ao uso da língua afrikaans nas escolas afro, acabaram com o massacre de centenas de jovens. O apoio de Desmond Tutu ao embargo económico contra o regime segregacionista do seu País provocou um grande clamor.
Com a sua nomeação para secretário-geral do Conselho das Igrejas da África do Sul a sua voz de luta não violenta contra o regime racista do National Party tornou-se cada vez mais forte, através de escritos, conferências e conversações, no seu país e no estrangeiro, em defesa do direito de circulação dos negros, em prol de um sistema educacional comum e contra as deportações forçadas dos negros.
Entre os vários títulos honoríficos recebidos, o mais famoso e significativo é, sem dúvida, o Prémio Nobel da Paz, em 1984, que sagrou o seu carisma profético em defesa da negritude. De 1985 a 1986, foi bispo de Joanesburgo e, de 1986 a 1996, arcebispo da Cidade do Cabo. Era casado, desde 1955, com Leah Nomalizo Tutu, com a qual teve quatro filhos: Trevor Thamsanqa, Theresa Thandeka, Naomi Nontombi e Mpho Andrea.
Não podemos deixar de lembrar, na figura emblemática deste iluminado pastor da Igreja anglicana, a criação, em 1995, da Comissão Verdade e Reconciliação, com o intento de uma reparação moral em prol dos familiares das vítimas, através da confissão dos crimes cometidos durante o Apartheid. Esta intuição, apoiada fortemente pelo Pai da Pátria, Nelson Mandela, tornou-se revolucionária, porque travou o perigo de uma terrível guerra civil por causa da sede de vingança que havia entre as famílias nos territórios da África Austral.
Ubuntu
Mas para entender melhor o carisma de Desmond Tutu, é importante lembrar um conceito filosófico da tradição Bantu, que Tutu soube conjugar com a sabedoria da Palavra de Deus.
Trata-se do “Ubuntu”, que poderíamos traduzir em português como: “Eu sou porque tu és!”. Várias outras expressões retiradas das intervenções de Desmond Tutu reforçam esta tradição ancestral da sua terra natal: “Uma pessoa torna-se humana graças às outras pessoas”. “Um indivíduo é pessoa graças aos outros indivíduos!”.
É uma visão da sociedade sem divisões em que, cada pessoa é chamada a desenvolver um papel importante. Daqui a atenção dada por Desmond Tutu à alteridade, uma alteridade que exprime uma tensão para a paz.
Há um episódio curioso que um dia um antropólogo contou para explicar quanto é forte esta dimensão relacional nas culturas sul-africanas. Um dia, decidiu colocar uma cesta cheia de fruta ao pé de uma árvore, dizendo a um grupo de crianças que quem chegasse primeiro ficaria com toda a fruta. Quando deu o sinal, as crianças deram as mãos e correram todas juntas; depois sentaram-se em círculo para gozar em conjunto o prémio alcançado. O cientista perguntou porque é que não correram separados. E todos responderam em coro: “Ubuntu!”.
Este foi o fundamento da nova nação “Arco-íris”, termo que o próprio Desmond Tutu criou para afastar a vingança por parte da maioria “afro” contra a minoria “branca” depois da queda do regime segregacionista de Pretória.
No dia da sua morte, a 26 de Dezembro de 2021, o tributo foi unânime, como acontece com todas as figuras simbólicas. As palavras sobre a figura de Desmond Tutu que se ouviram dos governantes do mundo inteiro e do Papa não foram meras palavras de circunstância. Entre todas, ousamos realçar as do Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres, que o recordou como “uma voz inabalável dos que não têm voz”, “uma inspiração para as gerações ao redor do mundo”, “um farol brilhante pela justiça social, liberdade e resistência não violenta”.
Tempo da Criação
Todos os dias chegamos de viagem
Ana Tojal | 14 Fevereiro 2022 | in Ponto SJ
Todos os dias chegamos de viagem, percorrendo a trajetória que nos leva de um dia para o outro e nos permite recomeçar. Esse tempo novo que nos é dado a cada madrugada e nos torna a todos viajantes.
Às vezes, não desfazemos a bagagem que trazemos, com a pressa de chegarmos a outro destino, ao outro dia que se aproxima, sem fazermos a pausa necessária para chegarmos mais longe. Esquecemo-nos de iniciar o percurso interior que nos salva. Acumulamos culpas, lixo emocional, hábitos que são para descartar, esquecendo que não avança quem cede sob o peso de uma bagagem demasiado pesada. Tornamo-nos pessimistas, precipitamo-nos e não nos lembramos simplesmente de abrir as mãos, para depositar com confiança o que nos pesa e que não somos capazes de suportar.
Somos peritos na pressa que nos rouba o olhar e deixamos de conseguir distinguir o que importa, apreciar o momento, fechando-nos num pessimismo persistente que nos congela e corrói. Por entre o atropelo dos dias perdemos o fio à meada, desaprendendo que não viajamos sozinhos, que Deus caminha connosco e nos deu companheiros de viagem para fazermos da vida e do mundo um lugar melhor.
Mas apesar disso, há experiências que nos transformam, que nos abrem os olhos para uma nova maneira de ver e nos fazem inaugurar ciclos novos. Pode ser um livro que nos passa pelas mãos, uma frase que fica a soar dentro de nós, alguém que nos desafia a pensar e que podemos nunca mais voltar a ver, ou um episódio que nos toca sem percebermos muito bem porquê. Somos então convidados a fazer uma viagem interior, a aprofundar, a medir e a “transgredir”. A transgredir não como quem ofende, mas transpondo o que é necessário para chegar ao outro, gerando comunhão e paz.
Estive em África há pouco tempo e sinto ainda o eco dos passos que dei, do que vi e ouvi. Uma África que nunca tinha visto antes. Um horizonte vasto, onde há ainda tanto a fazer pelos mais excluídos. Uma pobreza menos mascarada, com contornos diferentes da que vi noutros lugares.
Presenciámos o que o desespero provoca em quem nada tem, ouvimos relatos de violência pela boca de quem os viveu de perto, e na outra face da moeda encontrámos um pedaço de paraíso em ótima companhia. Experimentámos a beleza da vida selvagem, mergulhámos no azul do Índico em praias deslumbrantes, e fomos recebidos com amizade e solicitude, em família.
Um turbilhão de sentimentos que estou ainda a gerir, porque todos precisamos de tempo e de pausas para processar o que vimos e o que sentimos e a aprender a não parar apenas nas primeiras impressões. A entender o que nos está a ser dito, pedido, oferecido…a encetar o caminho da compreensão e da compaixão.
Há viagens que continuam mesmo depois de terem terminado. No fundo, sabemos que de alguma forma estamos todos interligados, e que ao debruçarmo-nos sobre os grandes temas que nos afetam a todos, chegamos inevitavelmente a um lugar comum e ao mesmo tempo sagrado, que pede de nós atenção e cuidado.
Hans Rosling, que nos deixou em 2017, dedicou os últimos anos da sua vida à escrita do seu livro ”Factfulness”. Especialista em Saúde e co-fundador dos Médécins Sans Frontières, fala-nos das tendências globais e do progresso humano, enquanto médico e humanista. Com convicção afirma que subestimamos sistematicamente o progresso que tem sido realizado no mundo. Falando do seu trabalho em Nacala, Moçambique, onde trabalhou num hospital, escreve: “não são os médicos nem as camas de hospital que salvam as vidas das crianças nos países nos níveis 1 e 2. As camas e os médicos são fáceis de contar e os políticos adoram inaugurar edifícios. Mas quase todo o aumento de sobrevivência infantil é conseguido com medidas preventivas fora dos hospitais por enfermeiros locais, parteiras e pais com educação”. (Hans Rosling,“Factfulness”, pag 139, Temas e debates Circulo Leitores).
A educação é um fator crucial que não pode jamais ser posto de lado, assim como a humildade, a empatia e o empenho de quem pretende causar impactos positivos.
Gael Giraud, jesuíta e economista, reflete há vários anos sobre as grandes questões da humanidade, fazendo a ligação entre economia, finanças e ecologia. Giraud viveu no Chade e aprendeu a compreender o extraordinário impacto da mudança climática sobre a população. A escassez de água, o avanço rápido da desertificação e as condições de vida locais fizeram-no entender que a questão do aquecimento global é uma realidade tangível.
Numa entrevista ao Vatican News, a 2 de março de 2021, ao jornalista Xavier Sartre, afirmou: “A experiência da fé cristã alimenta em mim a ‘esperança contra toda esperança’ que garante que eu não tenha – ou não tenha imediatamente – o reflexo de me esconder na negação da situação ambiental e da catástrofe em curso. Nós, cristãos, temos um papel, uma responsabilidade na resolução desta crise extremamente grave”.
Vários avanços têm sido feitos devido ao esforço e dedicação de muitos, mas há ainda muito a alcançar. É precisamente o que Gaël empreende na missão que lhe foi confiada pela Companhia de Jesus: “criar e desenvolver um centro de justiça ambiental na Universidade de Georgetown de Washington, nos Estados Unidos”.
Muitas pessoas no mundo inteiro dedicam as suas vidas em busca de soluções em prol da humanidade. Embora o mundo enfrente desafios gigantes, foram feitos enormes progressos. A maioria das pessoas tem o suficiente para comer, tem acesso a água tratada, a maioria das crianças é vacinada e tem acesso à escolaridade. Mas devemos continuar a reunir esforços e a tentar compreender a realidade de milhões de pessoas que vivem ainda em condições de pobreza extrema, atentos aos problemas reais e à forma de os resolver. Sabemos que 800 milhões de pessoas estão a sofrer neste momento. Ao contrário das alterações climáticas, não precisamos de previsões nem de cenários. Conhecemos as soluções, “paz, escolaridade, cuidados de saúde, água potável, microcrédito…”, mas é preciso avançar, dando os passos certos, sabendo que quanto mais depressa agirmos menor será o problema.
O que o Papa Francisco nos propõe a cada dia, com coragem e veemência, foi em parte proclamado por outras vozes, noutras latitudes. Desmond Tutu, arcebispo sul africano, anglicano e nobel da paz que nos deixou há pouco tempo, lutou toda a sua vida pelos direitos humanos. Partiu, oferecendo-nos o testemunho vivo do significado da palavra “Ubuntu”, esse sentido especial de afeto, de solidariedade e de partilha que vai mudando o mundo, quando alguém que o encarna passa por nós. A humanidade que nos liga inseparavelmente ao outro e nos permite entender que a reparação das fraturas e dos desequilíbrios é necessária e urgente.
Da mesma forma, Gandhi afirmava, “que temos de ser a diferença que queremos ver no mundo”, não apenas como um chavão, mas como uma voz a ecoar o que Cristo mostrou com a sua própria vida e nos chama a fazer. Na encíclica Laudato Si, o Papa Franci̇sco continua a interpelar-nos dizendo, “que o grito da terra e o grito dos pobres são só um e o mesmo grito”, o grito que nos transporta a cada lugar onde existe privação e sofrimento. Ao lugar onde cada um de nós poderia estar neste momento. À viagem essencial.
Tempo da Criação
(Ainda a propósito do Dia Mundial do Doente, celebrado na passada sexta-feira, 11 de Fevereiro, e dos desafios que deixa a cada um de nós e à comunidade paroquial que formamos)
Lisboa, 11 fev 2022 (Ecclesia) – O coordenador da Comissão Nacional da Pastoral da Saúde (CNPS) destacou a importância da “rede de proximidade”, no acompanhamento das pessoas sozinhas e isoladas, destacando a importância de melhorar a resposta na área da saúde mental.
“A Saúde Mental em Portugal carece, de facto, de um novo entendimento e um novo cuidado, há várias entidades envolvidas, e só parece que é preciso realizar alguma coisa”, refere o padre José Manuel Pereira de Almeida à Agência ECCLESIA, numa entrevista por ocasião do Dia Mundial do Doente, que se celebra hoje.
O responsável da CNPS manifesta “disponibilidade absoluta” da Igreja Católica em “colaborar com os responsáveis do Estado” para que os cuidados às pessoas que têm doença mental “possa subir de nível, ter mais qualidade, possa ser mais envolvente e tratar a pessoa no seu todo”.
O sacerdote, médico e pároco no centro de Lisboa, destaca que nesta área da saúde, em Portugal, as Irmãs Hospitaleiras e os Irmãos de São João de Deus são quem, “em maior número”, marcam a presença da Igreja no cuidado “daqueles que outos não querem cuidar”.
A Igreja Católica celebra o Dia Mundial do Doente 2022, neste 11 de fevereiro, memória litúrgica de Nossa Senhora de Lourdes, com o tema da mensagem do Papa Francisco ‘«Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36) – Estar ao lado de quem sofre num caminho de amor’.
O padre José Manuel Pereira de Almeida salienta que a “misericórdia não se compadece com ações pontuais”, com acontecimentos isolados, mas é um caminho e “é nesse aproximar-se em percurso com que a misericórdia se manifesta”.
O Papa defende um acesso universal a serviços de saúde, recordando milhões de pessoas excluídas socialmente nos cinco continentes, lamenta a falta de disponibilidade de vacinas contra a Covid-19, destaca os avanços da ciência médica, a importância dos profissionais de saúde, e elogia o papel instituições sanitárias católicas, que combatem a “cultura do descarte”.
Neste contexto, o coordenador nacional da CNPS lembra que Francisco também se refere “à importância dos cuidados paliativos”, porque quando já não há nada para tratar, podem “cuidar e a misericórdia é central”.
“Não quer dizer que se faça tratamentos sem misericórdia, mas o tratar no sentido da cura é uma conversa e quando já não há nada para tratar podemos sempre cuidar e isso é tão importante”, realça o entrevistado de hoje no Programa ECCLESIA (RTP2).
O padre José Manuel Pereira de Almeida destaca a importância das redes de proximidade nas paróquias e de “encontrar com criatividade outras hipóteses de fazer companhia” às pessoas sozinhas e isoladas, seja em casa ou em instituições.
O sacerdote adianta que muitas Comissões Diocesanas da Pastoral da Saúde e da Pastoral Social têm procurado que nas “paróquias essa rede de proximidade se faça”, a proximidade seja visível com os vizinhos, tomar a iniciativa.
“Para a pastoral da Saúde na paróquia, o mais importante é estar atento para escutar, para acompanhar”, acrescentou o coordenador do organismo da Igreja Católica em Portugal.
A Comissão Nacional da Pastoral da Saúde publicou diversos subsídios – cartaz, mensagem, oração e pagela – para assinalar e celebrar o Dia Mundial do Doente 2022, no seu sítio online.
HM/CB/OC
Tempo da Criação
(Vale a pena ler este texto inspirado e oportuno do padre Amaro Gonçalo, apanhando o ‘sinal do tempo’ que foi o drama do pequeno Rayan)
Rayan e a homilia que não tinha preparado
Este é o domingo dos mais pequeninos. De Isaías, o profeta de lábios impuros; de Paulo, o menor dos apóstolos; de Pedro, o pescador pecador. É o domingo que exalta a preferência de Deus, pelos que não apostam na sua força, na sua grandeza, na sua capacidade, na sua presunção, mas põem a sua confiança inteira no Senhor e nas redes tecidas pelos fios da unidade, da fraternidade, da comunhão.
Mas hoje é também o dia de outro pequenino, de um menino, de nome Rayan, a criança do Norte de Marrocos, que tinha cinco anos e caíra num poço de 30 metros de profundidade e 28 centímetros de diâmetro. O mundo inteiro pôs os olhos num pequenino.
As imagens do resgate são, por isso, o melhor comentário ao Evangelho deste domingo para esta homilia que não tinha preparado. Vi uma imagem na net e logo me veio à mente: «lançai as redes», mesmo que a tarefa vos pareça “de loucos” e «farei de vós pescadores de homens».
Para quem não compreenda o que seja esta sagrada vocação de “pescadores de homens”, as imagens do resgate do pequeno Rayan são bem elucidativas: uma rede de colaboração, de pessoas, de serviços, tecida por uma rede invisível de oração, de solidariedade, de comoção à escala mundial, coloca-se ao serviço do resgate de uma só vida caída num poço.
Tirar alguém do fundo de um poço, da escuridão, da solidão, do abandono, do desespero, resgatar alguém do abismo, da tristeza, do desespero, não é mais do que isso de ser “pescadores de homens”, pessoas capazes de resgatar pessoas, de iluminar as suas vidas, de as trazer à luz, de as reconduzir à vida verdadeira.
Poderíamos dizer, como Pedro, «andámos vários dias e noites e não pescamos nada». À rede sobreveio uma criança sem vida. É verdade. Mas não morreu por desamor, não morreu só, não morreu sem saber que era amada, não morreu sem que nos ensinasse o valor de cada vida humana, essa vida que vale mais do que o ouro, mais do que o resto do universo inteiro.
O pequeno Rayan foi resgatado, sem vida humana, mas o seu resgate pôs em evidência o melhor da nossa humanidade, fixou os nossos olhos no que realmente mais importa, acordou-nos, despertou-nos e ressuscitou-nos, para aquilo que vale a pena: vida por vida.
Não é uma história com final feliz, como os contos de fadas, como não foi a de Isaías, a de Pedro e de Paulo e a de Jesus, na Cruz. Mas é uma história que hoje nos une e reúne, na comoção, na fraternidade, na gratidão. E que nos deve recordar que há crianças nos campos de refugiados da Síria e em tantas partes do mundo que precisam de resgate, que estão a morrer de fome, de frio.
É uma história que nos vem recordar que há hoje, tão perto de nós, muita gente atulhada no poço ou no mar das suas misérias e que precisa de uma rede de salvação, de irmãos e irmãs, que arrisquem tudo para resgatar e salvar as suas vidas, mesmo se parecem inúteis os esforços.
Quando descobrirmos que o resgate da vida dos outros é a única coisa que nos tira dos poços onde nos atulhamos e resguardamos, então teremos salvo também a nossa vida. Lancemos as redes, dêmos as mãos, por um mundo de irmãs, de irmãos.
Pe. Amaro Gonçalo (pároco da Senhora da Hora, Porto)
Tempo da Criação
A importância de desacelerar
Luísa Ribeiro Ferreira | 9 Jan 22 | in 7Margens
Um dos alertas que nos foi dado pelo Papa Francisco na sua encíclica Laudato Si’ foi a necessidade de tomarmos consciência do ritmo frenético que se instalara nas nossas vidas. O termo por ele usado foi rapidación, essa velocidade imposta às acções humanas, fortemente contrastante com a lentidão natural da evolução biológica.”[1] O convite feito a uma vida tranquila e mais amiga da Natureza implicaria um regresso à simplicidade, à fruição dos pequenos prazeres e ao cultivo da sobriedade.
A pandemia que presentemente vivemos e que tanto nos preocupa pode ser vista como uma oportunidade de desaceleração. A permanência forçada num mesmo espaço, a limitação de saídas e a restrição de contactos afectaram-nos negativamente, lembrando-nos a vulnerabilidade da nossa condição. Mas também nos abriram portas para saborear tempos perdidos, viver ritmos mais lentos, reatar contactos e descobrir amizades.
As horas que somos obrigados a passar em casa, sobretudo para as pessoas que não estão presas a horários fixos ou a teletrabalho, pode tornar-se um tempo de fruição e de descoberta. Quando estamos confinados não nos interessa a velocidade – para quê tentar sermos rápidos se a sucessão de manhãs, tardes e noites é gerida por nós? A pandemia tornou-nos donos do espaço e do tempo, desafiando-nos a ser criativos. Habituáramo-nos a considerá-los, à maneira kantiana, como formas a priori da sensibilidade que determinavam a nossa relação com as coisas.
Na situação que actualmente vivemos, espaço e tempo passam a ser criações nossas dado que nos afirmamos como inventores de novos tempos e de novos espaços. De facto, redescobrimos outras possibilidades nos espaços familiares das nossas casas, criámos ritmos diferentes no tempo de que dispomos, confundimos as horas, alterámos os sonos, tornámo-nos senhores do dia e da noite. A queixa habitual de que nos falta tempo, transforma-se agora em inquietação do que fazer com o tempo que nos sobra. Note-se que a desaceleração que nos foi imposta é uma mais-valia que urge aprender a apreciar.
As incertezas do nosso quotidiano não devem transformar-se em angústia. Encaremo-las preferencialmente como estímulos que nos abrem diferentes janelas. Abandonemos o stress que durante anos comandou as nossas vidas e saboreemos os tempos longos que nos permitem meditar, escrever, e gozar da companhia de amigos sem obediência a horários fixos.
É tempo de revisitar um sem número de pessoas que no passado connosco conviveram, reatando velhas amizades. Há que redescobrir os cantos ocultos da nossa casa, substituir os vasos das varandas, plantar flores e conversar com elas, como fazia o Principezinho de Saint-Éxupéry. Pensando em termos musicais, troquemos o tempo rápido do allegro, pelo tempo lento do andante e inventemos novos ritmos para as nossas vidas. Habituemo-nos a substituir a velocidade pela intensidade. A lentidão não é necessariamente um defeito mas algo que se impõe na relação que estabelecemos com os outros, sendo essencial no cultivar dos afectos mais nobres como é o caso da amizade e do amor.
A pandemia condenou-nos a um isolamento forçado, alterou a convivência com os amigos, privou-nos de espectáculos e de distracções, circunscreveu-nos ao espaço doméstico, instalou rotinas. Se há dois anos me dissessem que deixaria de guiar, de andar de metro, de viajar, que passaria meses sem ir a um cinema ou a um concerto, que me seria interdito cumprimentar alguém com um beijo, que andaria mascarada na rua e evitaria ajuntamentos, certamente me sentiria a pessoa mais infeliz do mundo, privada de tudo o que constituía o ritmo normal de uma vida activa.
Tomando como referência o sociólogo alemão Hartmut Rosa[2], há que reaprender a arte de escutar, estabelecendo novas relações com a Natureza, com os outros e connosco mesmos. A ressonância que nos propõe como cura para a aceleração constante em que vivemos tem uma dimensão diagonal que nos liga ao mundo das coisas, horizontal que nos une aos outros seres e vertical que nos abre à transcendência da experiência estética e religiosa. O imperativo da aceleração que progressivamente ganhou terreno nas sociedades ocidentais gerou múltiplas crises e hoje impõe-se uma política de desaceleração.
A inércia provocada pela actual pandemia poderá ser aproveitada positivamente, promovendo uma desaceleração generalizada e a aprendizagem da arte difícil de não fazer quase nada.[3] A desaceleração imposta pelo momento que presentemente vivemos não é necessariamente negativa. Há que valorizar os aspectos positivos desta pandemia, evitando lamentações, ultrapassando desconfortos e tentando tirar partido deles. Estejamos pois atentos à exortação premonitória que o Papa Francisco nos fez no início da Laudato Si’ – a urgência de trocar a velocidade que durante anos comandou o ritmo das nossas vidas, por uma desaceleração que nos proporcione um encontro em profundidade com os outros e com a Natureza, nossa amiga e nossa mãe.
[1] Papa Francisco, Louvado Sejas. Carta Encíclica Laudato si’, Sobre o cuidado da casa comum, Paulinas, Prior Velho, 2015 ,§18, p. 17.
[2] Hartmut Rosa, Social Acceleration. A New Theory of Modernity, New York, Columbia University Press, 2013 e Resonance. A Sociology of our relationship to the world, Cambridge, Polity Press, 2019.
[3] Denis Gordanovitch, L’art difficile de ne presque rien faire, Paris, Denoël, 2009.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira é professora catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras de Universidade de Lisboa
Tempo da Criação
Colaborar no Cuidado da Casa Comum
P. Luís Maria da Providência, sj| in Ponto SJ | 17 Janeiro 2022
Ponto SJ dedica esta semana à quarta Preferência Apostólica da Companhia. O que se espera da Igreja é que seja sensível aos sinais dos tempos e se deixe guiar pelo Espírito Santo para fazer frente aos grandes desafios da nossa época.
Tal como na parábola, o Samaritano socorre o homem que é vítima dos bandidos (Lc 10), também a “nossa irmã, a mãe terra” (S. Francisco de Assis), moribunda, precisa de ser urgentemente cuidada. Olhando o mundo, torna-se óbvio que vivemos uma devastadora crise ambiental, com implicações profundas em toda a humanidade e nas gerações futuras, e maior incidência nos mais pobres, com menor capacidade de se proteger. Os jesuítas sentem-se chamados a trabalhar no decénio 2019-2029 quatro “Preferências Apostólicas Universais” (PAU). Este artigo pretende apresentar o enquadramento da quarta Preferência: “Colaborar no Cuidado da Casa Comum”.
O que quer dizer?
Em primeiro lugar, “colaborar”. Se as questões da justiça e da ecologia são transversais e estruturais – por isso falamos em pecados estruturais – só adotando estratégias igualmente transversais poderemos responder satisfatoriamente. Os pecados estruturais tornam-nos cúmplices beneficiados ou vítimas anónimas. É uma situação que damos por adquirido, a que nos vamos habituando, ao ponto de nos parecer que é aceitável e que está tudo bem. A busca de prazeres efémeros tornou-nos insaciáveis no consumo e cegos ao drama que se vive no mundo. “Colaborar” é pôr-se em causa, considerar inaceitável a realidade que se nos apresenta e dispor-se a transformá-la com os outros, começando pelas pessoas de boa vontade. Neste mundo plural, “colaborar” não é apenas uma estratégia possível, mas aquela que nos permite perceber que o que temos em comum é mais importante do que o que nos diferencia. Colaborar é um verbo que se tornou imperioso conjugar. A Congregação Geral (CG) 35 (2008) dedicou-lhe o decreto “A colaboração no centro da missão”. No “centro da missão” e não apenas nas margens, onde não chegamos. [A CG é o principal órgão com poder legislativo, no qual têm assento os representantes de todas as Províncias da Companhia de Jesus.]
Em segundo lugar, “cuidado”. As Constituições da Companhia de Jesus foram redigidas por Inácio de Loiola. É significativo registar
que nelas encontramos 41 ocorrências de “cuidado” e 10 ocorrências do termo latino “cura” (Concordancia Ignaciana). Nas Constituições, “cuidado/cura” aplica-se sobretudo quer à própria pessoa quer a determinado apostolado. Na atualidade, há pensadores jesuítas que utilizam termos pertencentes a campos semânticos afins de “cuidar”. A conferência de Bernard Lonergan SJ, “Healing and Creating in History” (1975), tem um título sugestivo. Com uma abordagem pascal implícita, este título conjuga dois aspetos: a cura (relativa ao passado) e a criatividade (relativa ao futuro). Esta conferência testemunha o interesse que Lonergan tinha pela Macro Economia e pela Ética Económica, na última fase da sua vida. A atitude do cuidado/cura encontra-se aqui aplicada a uma escala planetária. A CG 34 (1995) aprovou um decreto intitulado “Ecologia (recomendação ao P. Geral) ”. Fruto desse decreto-recomendação foram publicados dois relatórios: We live in a broken world. Reflections on Ecology (1999); e Healing a broken world. Task Force on Ecology (2011/2). Ambos os relatórios são da autoria do Social Justice and Ecology Secretariat. Note-se que a justiça social e a ecologia aparecem aqui conjuntamente. Por fim, a respeito do “cuidar”, o próprio Papa Francisco considera a Igreja como um “hospital de campanha” que, antes de mais, tem de se cuidar a si mesma, das suas próprias feridas interiores, para só depois se poder virar para fora.
Em terceiro lugar, “casa comum”. Em 1561, Jerónimo Nadal SJ (1507-80) utiliza a expressão: “El mundo es nuestra casa”. Tenhamos presente que estamos no início da chamada Globalização. Grande parte dos descobrimentos tiveram lugar no final do séc. XV e princípio do séc. XVI. A fundação da Companhia de Jesus (1540) coincide com esta época histórica: os primeiros missionários jesuítas eram enviados aos quatro cantos do mundo. O campo de missão da Companhia nascente é todo o mundo. O movimento de expansão militar, comercial e religioso tornou o mundo mais pequeno e inclusive equiparável a uma casa.
Em que é inspirada?
É, sobretudo, inspirada nos Exercícios Espirituais de S. Inácio de Loiola (1491-1556). [Os Exercícios Espirituais originalmente têm uma duração de 30 dias, num local apartado, longe das nossas rotinas habituais. Na prática, existem adaptações com a duração de 8 ou mesmo de 3 dias.] Os Exercícios Espirituais não são fim em si mesmo. Visam devolver-te à vida, livre de tudo o que te escraviza, de modo a que te movas pelo afeto que te liga ao Senhor (Exercícios Espirituais 21). Nessa medida, também fazes da tua vida quotidiana uma oração contínua de serviço e louvor.
É numa atitude de ação de graças e de louvor que Inácio de Loiola contempla a criação (Autobiografia 11), indo ao extremo de ver a Trindade numa simples folha de laranjeira! Inácio gozaria do dom da locuela, capacidade de escutar o canto perene das criaturas ao Criador (Diccionario de Espiritualidad Ignaciana). Tinha 31 anos quando, a cerca de dois quilómetros de Manresa (Catalunha), do alto duma ribanceira, vendo o rio Cardoner em baixo, experimenta uma iluminação. Fruto dessa iluminação entendeu muitas coisas: “tanto coisas espirituais, como coisas da fé e das letras”, isto é, passou a ter uma perspetiva integrada onde entra a experiência espiritual, as verdades da fé e as outras disciplinas estudadas no tempo. O entendimento dilatou-se-lhe, tornou-se um homem novo e passou a ver todas as coisas novas em Cristo (Autobiografia 30).
Inácio é um homem de pontes, procurando integrar diferentes perspetivas numa visão unificada da realidade. A expressão de Inácio “ver a Deus em todas as coisas” é traduzida por Nadal pela expressão “contemplação na ação”. Tenderíamos a considerar que Deus e as criaturas se autoexcluem, e o mesmo a respeito da contemplação e da ação. De facto, contrapõem-se, mas não são contraditórios. Uma perspetiva verdadeiramente integrada e unificada situa-se nos antípodas do sincrético e eclético. Neste último caso, diluem-se os contornos, há uma perda de identidade e ocorre uma fusão. Em contrapartida, os grandes Concílios Ecuménicos da Igreja preservam as partes intervenientes na sua diversidade. Inácio diz que Deus habita e trabalha nas criaturas (minerais, vegetais, animais), e de modo especial no ser humano, fazendo de ti seu templo, sem que nada perca a própria individualidade. Nos escritos de Inácio e dos jesuítas que se lhe seguiram podemos identificar vários binómios, em que as realidades intervenientes se contrapõem sem ser contraditórias.
Veio a mostrar-se determinante para o futuro rumo da Companhia a CG 32 (1975), nomeadamente o decreto “A nossa missão hoje: o serviço da fé e a promoção da justiça”. A fé e a justiça social não só não se opõem, mas crescem em simultâneo. Está aqui implícito o mandamento do amor, nas duas vertentes do amor a Deus e ao próximo. Além do dec. 4, da CG 32, é de justiça referir um relatório da ONU, que veio a mostrar-se relevante para a perspetiva da Companhia. Trata-se da obra de referência que teve à frente a senhora G. O. Brundtland, O nosso futuro comum (1987). Esta obra integra ambiente e desenvolvimento: os problemas do ambiente e os do desenvolvimento só podem ser resolvidos se considerados conjuntamente. A primeira encíclica do Papa Francisco, Laudato Si’, Sobre o cuidado da casa comum (2015), retoma a perspetiva integrada de Brundtland, tendo o binómio ambiente e desenvolvimento dado lugar ao binómio justiça e ecologia. É de sublinhar que o subtítulo desta encíclica é retomado na íntegra pela quarta PAU, que estamos a analisar.
O que pede à Companhia e ao Mundo?
Que tenha uma perspetiva pneumatológica de um Deus que habita e trabalha na Criação/História. A presença de Deus é dinâmica – transformadora! O que se espera da Igreja é que seja sensível aos sinais dos tempos e se deixe guiar pelo Espírito Santo para fazer frente aos grandes desafios da nossa época.
Na História da Igreja procura-se perceber se esta esteve à altura dos acontecimentos vividos, oferecendo ao mundo um testemunho credível e autêntico. Por exemplo, no que se refere à abolição da escravatura, ao nazismo, à guerra fria e ameaça de uma guerra nuclear, em que medida a Igreja teve ou não uma voz/posição profética? Hoje confrontamo-nos com outras questões, nomeadamente a mudança do clima que afeta toda a população do mundo, de modo especial os mais pobres. Isto exige que os representantes da Igreja assumam uma posição clara.
Como Igreja, estamos a fazer uma caminhada de preparação rumo ao Sínodo 2023, intitulado “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. Que dirão as próximas gerações de cristãos a nosso respeito? Queremos escrever a História da Igreja na fidelidade ao Espírito Santo. Como cristãos queremos ser mais sensíveis ao duplo grito dos pobres e da terra (Papa Francisco), “queremos cuidar da criação com pequenas ações diárias” (Laudato Si’), queremos optar por um estilo de vida sóbrio para nos identificarmos com Cristo pobre e humilde. Queremos como Igreja empenharmo-nos no mundo, ser grão de mostarda e fermento (Mt 13), colaborando com outros na transformação do mundo em Reino.
Neste mundo plural, a Igreja é convidada a afirmar-se no espaço público, como um entre muitos interlocutores. A Igreja apresenta-se como um pequeno resto com o qual o Senhor conta para saciar as multidões a partir de cinco pães e dois peixes: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mc 6, 37). “Eis o meu servo, o enlevo da minha alma; sobre ele fiz pousar o meu espírito, para que leve a justiça às nações. Não gritará, não quebrará a cana fendida, proclamará fielmente a justiça” (Is 42).
Tempo da Criação
MENSAGEM DO SANTO PADRE
FRANCISCO
PARA A CELEBRAÇÃO DO
55º DIA MUNDIAL DA PAZ
1º DE JANEIRO DE 2022
DIÁLOGO ENTRE GERAÇÕES, EDUCAÇÃO E TRABALHO:
INSTRUMENTOS PARA CONSTRUIR UMA PAZ DURADOURA
(Primeira parte)
1. «Que formosos são sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz» (Is 52, 7)!
Estas palavras do profeta Isaías manifestam a consolação, o suspiro de alívio dum povo exilado, extenuado pelas violências e os abusos, exposto à infâmia e à morte. Sobre esse povo, assim se interrogava o profeta Baruc: «Por que estás tu em terra inimiga, envelhecendo num país estrangeiro? Contaminaste-te com os mortos, foste contado com os que descem ao Hades» (3,10-11). Para aquela gente, a chegada do mensageiro de paz significava a esperança dum renascimento dos escombros da história, o início dum futuro luminoso.
Ainda hoje o caminho da paz – o novo nome desta, segundo São Paulo VI, é desenvolvimento integral [1] – permanece, infelizmente, arredio da vida real de tantos homens e mulheres e consequentemente da família humana, que nos aparece agora totalmente interligada. Apesar dos múltiplos esforços visando um diálogo construtivo entre as nações, aumenta o ruído ensurdecedor de guerras e conflitos, ao mesmo tempo que ganham espaço doenças de proporções pandémicas, pioram os efeitos das alterações climáticas e da degradação ambiental, agrava-se o drama da fome e da sede e continua a predominar um modelo económico mais baseado no individualismo do que na partilha solidária. Como nos tempos dos antigos profetas, continua também hoje a elevar-se o clamor dos pobres e da terra [2] para implorar justiça e paz.
Em cada época, a paz é conjuntamente dádiva do Alto e fruto dum empenho compartilhado. De facto, há uma «arquitetura» da paz, onde intervêm as várias instituições da sociedade, e existe um «artesanato» da paz, que nos envolve pessoalmente a cada um de nós [3]. Todos podem colaborar para construir um mundo mais pacífico partindo do próprio coração e das relações em família, passando pela sociedade e o meio ambiente, até chegar às relações entre os povos e entre os Estados.
Quero propor, aqui, três caminhos para a construção duma paz duradoura. Primeiro, o diálogo entre as gerações, como base para a realização de projetos compartilhados. Depois, a educação, como fator de liberdade, responsabilidade e desenvolvimento. E, por fim, o trabalho, para uma plena realização da dignidade humana. São três elementos imprescindíveis para tornar «possível a criação dum pacto social» [4], sem o qual se revela inconsistente todo o projeto de paz.
2. Dialogar entre gerações para construir a paz
Num mundo ainda fustigado pela pandemia, que tem causado tantos problemas, «alguns tentam fugir da realidade, refugiando-se em mundos privados, enquanto outros a enfrentam com violência destrutiva, mas, entre a indiferença egoísta e o protesto violento há uma opção sempre possível: o diálogo, [concretamente] o diálogo entre as gerações» [5].
Todo o diálogo sincero, mesmo sem excluir uma justa e positiva dialética, exige sempre uma confiança de base entre os interlocutores. Devemos voltar a recuperar esta confiança recíproca. A crise sanitária atual fez crescer, em todos, o sentido da solidão e o isolar-se em si mesmos. Às solidões dos idosos veio juntar-se, nos jovens, o sentido de impotência e a falta duma noção compartilhada de futuro. Esta crise é sem dúvida aflitiva, mas nela é possível expressar-se também o melhor das pessoas. De facto, precisamente durante a pandemia, constatamos nos quatro cantos do mundo generosos testemunhos de compaixão, partilha, solidariedade.
Dialogar significa ouvir-se um ao outro, confrontar posições, pôr-se de acordo e caminhar juntos. Favorecer tudo isto entre as gerações significa amanhar o terreno duro e estéril do conflito e do descarte para nele se cultivar as sementes duma paz duradoura e compartilhada.
Enquanto o progresso tecnológico e económico frequentemente dividiu as gerações, as crises contemporâneas revelam a urgência da sua aliança. Se os jovens precisam da experiência existencial, sapiencial e espiritual dos idosos, também estes precisam do apoio, carinho, criatividade e dinamismo dos jovens.
Os grandes desafios sociais e os processos de pacificação não podem prescindir do diálogo entre os guardiões da memória – os idosos – e aqueles que fazem avançar a história – os jovens –; tal como não é possível prescindir da disponibilidade de cada um dar espaço ao outro, nem pretender ocupar inteiramente a cena preocupando-se com os seus interesses imediatos como se não houvesse passado nem futuro. A crise global que vivemos mostra-nos, no encontro e no diálogo entre as gerações, a força motora duma política sã, que não se contenta em administrar o existente «com remendos ou soluções rápidas» [6], mas presta-se, como forma eminente de amor pelo outro, [7] à busca de projetos compartilhados e sustentáveis.
Se soubermos, nas dificuldades, praticar este diálogo intergeracional, «poderemos estar bem enraizados no presente e, daqui, visitar o passado e o futuro: visitar o passado, para aprender da história e curar as feridas que às vezes nos condicionam; visitar o futuro, para alimentar o entusiasmo, fazer germinar os sonhos, suscitar profecias, fazer florescer as esperanças. Assim unidos, poderemos aprender uns com os outros» [8]. Sem as raízes, como poderiam as árvores crescer e dar fruto?
É suficiente pensar no cuidado da nossa casa comum, já que o próprio meio ambiente «é um empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à geração seguinte» [9]. Por isso, devem ser apreciados e encorajados os numerosos jovens que se empenham por um mundo mais justo e atento à tutela da criação, confiada à nossa custódia. Fazem-no num misto de inquietude e entusiasmo, mas sobretudo com sentido de responsabilidade perante a urgente mudança de rumo [10], que nos é imposta pelas dificuldades surgidas da atual crise ética e sócio-ambiental [11].
Por outro lado, a oportunidade de construir, juntos, percursos de paz não pode prescindir da educação e do trabalho, lugares e contextos privilegiados do diálogo intergeracional: enquanto a educação fornece a gramática do diálogo entre as gerações, na experiência do trabalho encontram-se a colaborar homens e mulheres de diferentes gerações, trocando entre si conhecimentos, experiências e competências em vista do bem comum.
(continua)
Tempo da Criação
Os pecados que inventámos
Inês Teotónio Pereira | 21 Dezembro 2021 | in Ponto SJ
Tinha notícia de pessoas que se confessavam a padres estrangeiros. Era o meu sonho. Tivesse eu conhecido esses padres e era hoje santa, é o que vos digo. Padres suecos de preferência: ter-lhes-ia dito tudo, coisas que nem ao Diabo se confessa, não é como se diz? Pois a um padre sueco teria confessado todos os meus piores pensamentos, atos e omissões. Mas não, os padres que me ouviram conheciam-me bem demais para isso. O padre João e o padre António, ora um dia estavam a dar-me recados de Deus Nosso Senhor no segredo do confessionário, para eu me portar bem e ser mais amiga dos meus irmãos, como no outro dia estavam a almoçar em casa dos meus pais, ali mesmo à minha beirinha. Como se não se lembrassem dos meus terríveis pecados. Impossível ser-se tão esquecido, pensava eu.
Pelo menos duas vezes por ano lá íamos nós em fila ao confessionário, como quem ia ao dentista. Nunca decorei o Ato de Contrição, como não há maneira de decorar as classes e as ordens dos números – há limitações que nos acompanham uma vida inteira. “Vá, então reza lá a versão curtinha”. E eu, corada, atrás daquela janelinha do confessionário e em pânico que me ouvissem na fila, lá desbobinava a ladainha. O cheiro a cera na madeira escura contribuíam para a solenidade do momento e para o nervoso. “Vamos lá, há quanto tempo não te confessas?” E pronto, começava logo a pecar: “Há dois meses, mais ou menos”, mentia eu. Mas era de festa em festa que me confessava, no Natal e na Páscoa, e já era muito a ver pelo suor nas mãos. Também não tinha pecados para muito mais. O exame de consciência – como o próprio nome indica – dava-me imenso trabalho e como todos os exames que faço, estudo na véspera. Neste caso era na fila que trocava pecados com a minha irmã como quem troca cromos, éramos cábulas na confissão: “Olha, descobri um novo! Inveja.” O que é isso? Ela explicava-me que era ficar triste e até zangada por não termos uma camisola igual à de uma amiga qualquer, por exemplo. “Sei lá, inventa!”. Um pecado novo fazia as maravilhas de uma criança. Mas tinha de ter um para a troca. E ficávamos assim, a debater baixinho novos pecados que arejassem a lista dos de sempre, assim como quem acrescenta água na sopa. Mentir, dizer palavrões, roubar chocolates, adormecer sem rezar, não estudar, bater nos irmãos e desobedecer, eram pecados clássicos, enfadonhos. Também combinávamos não os dizer pela mesma ordem, com medo que o padre desconfiasse da fraude. “Olha, diz que pensas em fugir de casa – é um pecado por pensamento”, elaborado, portanto. Nunca me passou pela cabeça fugir de casa, mas convenhamos que é um pecado que dá substância a qualquer confissão em qualquer idade. Já os pecados sérios e verdadeiros, ficavam entre mim e Deus, não fosse o padre João aparecer a almoçar no dia seguinte.
Aos sete anos, o confessionário era o que me valia. Ter ali o padre fechado e trancado, sem me ver corar, aliviava a pressão e tornava possível repetir o palavrão novo que tinha aprendido. Fosse eu criança católica nos dias de hoje e garanto que nem sob tortura diria cara a cara a um padre a quantidade de ordinarices que o padre João ouviu da minha boca. Coitados dos miúdos, é o que eu acho, alguém lhes dê um confessionário no Natal. “Então diz lá?” E eles ali, como se estivessem num café, sem a portinhola a protegê-los da vergonha. Eu seria certamente protestante nestas condições.
É Deus quem nos ouve, o padre é só um instrumento e esquece-se logo a seguir de tudo o que ouve – repetia a minha consciência, a minha mãe, a catequista e todos aqueles a quem eu falava desta problemática de ter um padre entre mim e Deus como veículo das minhas maldades. Pois sim, mas Deus não me intimidava, já os padres que não fossem suecos, sim. Coitadinhos. E quando eles abanavam a cabeça desolados? “Olha que Jesus fica muito triste contigo, tens de ser boazinha”. Jesus triste comigo, será que ele tem tempo para isso? E imaginava Jesus a parar tudo o que estava a fazer por causa dos meus palavrões e a levar a mão à boca, chocado com as minhas mentiras. Não me fazia sentido, com tanta fome que há no mundo e aquilo que O vai chatear é eu não ter lavado a loiça? Mas o padre João era padre, não era pedagogo.
Era pela penitência que se aferia a qualidade da confissão: quanto mais Pais Nossos e Avé Marias, melhor. Queria dizer que os nossos pecados eram coisas sérias, de gente grande. “Então, quanto é que te tens de rezar?”, perguntávamos uns aos outros, em jeito de competição. E pronto, ficávamos assim de contas feitas e Deus já podia voltar a preocupar-se com coisas mais importantes. Entre os pecados que nem às paredes confessávamos, os que inventámos, aquilo que sofremos na fila e na confissão e aquilo que rezámos, alguma coisa ficava. E Deus, pelo menos, divertia-se.
Mas a verdade é que a confissão não me fazia sentido. Se Deus perdoa sempre, se é infinitamente misericordioso, se me ama mais do que a minha própria mãe, porque é que eu tenho de Lhe pedir desculpa e ainda por cima através de um padre? Além disso, se Ele sabe tudo o que eu fiz, se Ele me conhece melhor do que eu me conheço, para quê esta trabalheira toda? Coitado do padre João. Lembro-me de ter pena das maratonas que o padre João fazia na altura do Advento e da Quaresma a ouvir as velhinhas que confessavam a vida inteira sem olhar à fila a crescer. E nós à escuta – com sorte ainda apanhávamos ideias para mais um pecadinho novo.
Eventualmente cresci. E foi o que me valeu. Aos poucos fui desaprendendo aquilo que sabia antes de me ensinarem que Jesus tem estados de alma, que se pode desiludir, abanar a cabeça e ficar triste. Intimidar-nos e fazer-nos sentir vergonha pelas nossas falhas, imperfeições e pecados sem fim. Demorei a perceber o sentido da confissão, mas cresci. Literalmente, Graças a Deus. Fui percebendo que a confissão é a Reconciliação, primeiro connosco e depois com Deus. Primeiro, a nossa aceitação por aquilo que somos, fizemos e deixámos de fazer, de ser; depois, o arrependimento, e o propósito de não voltar a fazer, de descobrir e cumprir o projeto que Deus nos reservou. O propósito de não voltar a fazer é como subir um degrau, só um de cada vez para se poder subir sem tropeçar. Percebi que cada confissão é um novo regresso do Filho Pródigo – que somos sempre nós – ao Pai, que nos espera de braços abertos sem julgamentos, perguntas ou desilusões. Um Pai que sabe das nossas falhas e imperfeições e se mantém paciente e ansioso à espera dos nossos regressos. E percebi que para termos essa graça, esse Sacramento, é preciso alguém que nos oiça, que nos faça falar, para irmos ao fundo da nossa consciência e organizá-la. Alguém que nos abençoe e que avise o Céu que regressámos. “Tudo quanto ligardes na terra será ligado no Céu; e tudo quanto desligardes na terra será desligado no céu”: um sinal visível de uma realidade invisível. A Reconciliação é mais um abracinho apertado de Deus. Com cheirinho a cera em madeira escura, de joelhos num confessionário ou a passear numa praia, não interessa. O importante é deixar ir a Ele as criancinhas.
Tempo da Criação
PAPA FRANCISCO
ANGELUS
Praça São Pedro
Domingo, 12 de dezembro de 2021
Depois do Angelus
Queridos irmãos e irmãs!
Também apresento os meus melhores votos à Caritas Internationalis, que completa 70 anos. É uma criança! Precisa de crescer e tornar-se mais forte! A Cáritas em todo o mundo é a mão amorosa da Igreja para os pobres e os mais vulneráveis, nos quais Cristo está presente. Convido-vos a continuar o vosso serviço com humildade e criatividade, para alcançar os mais marginalizados e a promover o desenvolvimento integral como antídoto para a cultura do descarte e da indiferença. Em particular, encorajo a vossa campanha global Together We, baseada na força das comunidades na promoção de cuidados pela criação e pelos pobres. As feridas infligidas na nossa casa comum têm consequências dramáticas sobre os últimos, mas as comunidades podem contribuir para a necessária conversão ecológica. Por isso convido a aderir à campanha da Caritas Internationalis! E vós, caros amigos da Caritas Internationalis, continuai o vosso trabalho de racionalização da organização, para que o dinheiro não vá para a organização, mas para os pobres. Racionalizai bem esta organização.
Tempo da Criação
VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
A CHIPRE E À GRÉCIA
(2-6 DE DEZEMBRO DE 2021)
ORAÇÃO ECUMÉNICA COM OS MIGRANTES
Igreja paroquial da Santa Cruz em Nicósia
Sexta-feira, 3 de dezembro de 2021
Queridos irmãos e irmãs!
Sinto uma grande alegria por estar aqui convosco e concluir a minha visita a Chipre com este encontro de oração. Agradeço aos Patriarcas Pizzaballa e Béchara Raї, bem como à senhora Elisabeth da Cáritas. Saúdo com afeto e gratidão os Representantes das diferentes Confissões cristãs presentes em Chipre.
Um grande «obrigado», vindo do coração, desejo dizer a vós, jovens migrantes, que destes os vossos testemunhos. Tinha-os recebido antes, há cerca de um mês, e já então me tinham impressionado muito e hoje, ao escutá-los, comoveram-me de novo. Mas não é só emoção; é muito mais: é a comoção que provém da beleza da verdade. Como a comoção de Jesus quando exclamou: «Bendigo-Te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11, 25). Também eu bendigo o Pai celeste porque o mesmo acontece hoje aqui, bem como no mundo inteiro: aos pequeninos, Deus revela o seu Reino – Reino de amor, justiça e paz.
Depois de vos ter ouvido, compreendemos melhor toda a força profética da Palavra de Deus, que diz através do apóstolo Paulo: «Já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus» (Ef 2, 19). Escritas aos cristãos de Éfeso (e, portanto, não longe daqui), são palavras distantes no tempo, e contudo palavras muito próximas, mais atuais do que nunca, como se fossem escritas hoje para nós: vós «não sois estrangeiros, mas concidadãos». Esta é a profecia da Igreja: uma comunidade que – com todas as suas limitações humanas – encarna o sonho de Deus. Pois Deus também sonha, como tu, Mariamie, que vens da República Democrática do Congo e te definiste «cheia de sonhos». Como tu, Deus sonha um mundo de paz, onde os seus filhos vivam como irmãos e irmãs. Deus quer isto, Deus sonha isto. Somos nós que o não queremos.
A vossa presença, irmãos e irmãs migrantes, é de grande significado para esta celebração. Os vossos testemunhos são como um «espelho» para nós, comunidades cristãs. Por exemplo tu, Thamara, que vens do Sri Lanka, quando dizes «muitas vezes me perguntam quem sou?»: a brutalidade da migração coloca em risco a identidade própria. «Mas eu sou isto? Não sei... Onde estão as minhas raízes? Quem sou?». E quando dizes isto, lembras-nos que às vezes também nos colocam esta pergunta «quem és tu?», pretendendo com frequência, infelizmente, dizer: «De que parte estás? A que grupo pertences?» Mas, como tu nos disseste, não somos números, não somos indivíduos a catalogar; somos «irmãos», «amigos», «crentes», «próximos» uns dos outros. Mas quando pressionam os interesses de grupos ou os interesses políticos, mesmo das nações, muitos de nós veem-se postos de lado, escravos sem o querer. Porque o interesse sempre escraviza, sempre cria escravos. O amor, que é amplo, que é contrário ao ódio, este amor faz-nos livres.
Quando tu, Maccolins, que vens dos Camarões, dizes que, no decurso da tua vida, foste «ferido pelo ódio», estás a falar disto, destas feridas dos interesses; e lembras-nos que o ódio poluiu também as nossas relações entre cristãos. E isto – como tu disseste – deixa marcas, marcas profundas que perduram por muito tempo. Trata-se de um veneno. É verdade; ouvimo-lo dos teus lábios, dito com a tua paixão: o ódio é um veneno do qual é difícil desintoxicar-se. E o ódio é uma mentalidade distorcida que, em vez de nos fazer reconhecer como irmãos, faz-nos ver como adversários, como rivais, quando não como objetos a ser vendidos ou explorados.
Quando tu, Rohz, que vens do Iraque, dizes que és «uma pessoa em viagem», lembras-nos que também nós somos comunidade em viagem, caminhamos do conflito para a comunhão. Neste caminho, que é longo e feito de subidas e descidas, não nos devem meter medo as diferenças entre nós, mas sim os nossos fechamentos e preconceitos, que impedem de nos encontrarmos verdadeiramente e de caminharmos juntos. Os fechamentos e os preconceitos reconstroem entre nós aquele muro de separação que Cristo derrubou, ou seja, a inimizade (cf. Ef 2, 14). E então o nosso percurso rumo à unidade plena pode conhecer passos em frente na medida em que, todos juntos, mantivermos o olhar fixo sobre Jesus, sobre Ele, que é «a nossa paz» (Ef 2, 14), que é a «pedra angular» (2, 20). E Ele, o Senhor Jesus, vem ao nosso encontro com o rosto do irmão marginalizado e descartado; com o rosto do migrante desprezado, repelido, engaiolado, explorado, mas também – como disseste tu – do migrante que está em viagem com um fim em vista, rumo a uma esperança, rumo a uma convivência mais humana.
E assim Deus fala-nos através dos vossos sonhos. O perigo é que muitas vezes não deixamos os sonhos entrar em nós; preferimos dormir, sem sonhar. É tão fácil olhar para o outro lado. E, neste mundo, habituamo-nos a esta cultura da indiferença, a esta cultura de olhar para o outro lado e, assim, adormecermos tranquilos. Mas, por esta estrada, nunca se pode sonhar. É difícil. Deus fala através dos vossos sonhos. Deus não fala através das pessoas que não podem sonhar com nada, ou porque têm tudo ou porque o seu coração se endureceu. Deus chama-nos também a não nos resignarmos com um mundo dividido, a não nos resignarmos com comunidades cristãs divididas, mas a caminhar na história atraídos pelo sonho de Deus, isto é, uma humanidade sem muros de separação, liberta da inimizade, sem estrangeiros, mas apenas concidadãos, como nos dizia Paulo no texto que citei. Diferentes, claro, e orgulhosos das nossas peculiaridades; orgulhosos de ser diversos, destas peculiaridades que são dom de Deus. Diversos, orgulhosos de o ser, mas sempre reconciliados, sempre irmãos.
Possa esta ilha, marcada por uma dolorosa divisão – estou a ver o muro, ali [pela porta aberta da igreja] –, possa tornar-se com a graça de Deus um laboratório de fraternidade. Agradeço a todos aqueles que trabalham para isto. Pensar que esta ilha é generosa, mas não pode fazer tudo, porque o número de pessoas que chega é superior às suas possibilidades de inserir, integrar, acompanhar, promover. A sua proximidade geográfica facilita..., mas não é fácil. Devemos compreender os limites a que estão vinculados os governantes desta ilha. Mas sempre há nesta ilha – pude vê-lo nos líderes que visitei – [o compromisso] de se tornar, com a graça de Deus, laboratório de fraternidade. E poderá sê-lo sob duas condições. A primeira é o reconhecimento efetivo da dignidade de toda a pessoa humana (cf. Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 8). A nossa dignidade não se vende, não se arrenda, nem deve ser perdida. A testa alta: eu sou digno filho de Deus. O reconhecimento efetivo da dignidade de toda a pessoa humana: tal é o fundamento ético, um fundamento universal que está no centro também da doutrina social cristã. A segunda condição é a abertura confiante a Deus Pai de todos; e este é o «fermento» que somos chamados a levar como crentes (cf. ibid., 272).
Sob estas condições, é possível que o sonho se traduza numa viagem diária, feita de passos concretos, do conflito à comunhão, do ódio ao amor, da fuga ao encontro. Um caminho paciente que, dia após dia, nos faz entrar na terra que Deus preparou para nós, na terra onde, se te perguntarem «quem és?», podes responder com toda a franqueza: «Olha! Sou teu irmão; não me conheces?». E continua assim, devagar.
Ouvindo-vos, olhando o vosso rosto, a memória leva-me mais além e vai deter-se nos sofrimentos. Vós chegastes aqui; mas quantos dos vossos irmãos e irmãs ficaram pelo caminho? Quantos desesperados começaram o caminho em condições muito difíceis, mesmo precárias, e não conseguiram chegar? Deste mar, podemos dizer que se tornou um grande cemitério. Olhando-vos, vejo os sofrimentos do caminho, tantos que foram raptados, vendidos, explorados…, ainda estão pelo caminho sem sabermos onde. É a história duma escravidão, uma escravidão universal. Nós vemos o que acontece, e o pior é que estamos a habituar-nos a isso. «Ah sim, hoje afundou-se um navio, em tal lugar... tantos desaparecidos...». Mas olhem que este habituar-se é uma doença grave, é uma doença gravíssima; e não há antibiótico para esta doença. Devemos lutar contra este vício de habituar-se a tais tragédias quando as lemos nos jornais ou ouvimos noutros meios de comunicação. Olhando para vós, penso em tantos que tiveram de voltar para trás porque os repeliram e acabaram nos campos de concentração, verdadeiros campos de concentração, onde as mulheres são vendidas, os homens torturados, escravizados... Lamentamos as histórias que lemos dos campos de concentração do século passado, os dos nazistas, os de Stalin. Lamentamos quando vemos aquilo e exclamamos: «Mas como foi possível acontecer isto?» Irmãos e irmãs, está a acontecer hoje, nas costas vizinhas! Locais de escravidão. Vi alguns testemunhos filmados disso: lugares de tortura, de venda de pessoas. Digo isto, porque é minha responsabilidade ajudar a abrir os olhos. A migração forçada não é um comportamento quase turístico: por favor! É o pecado que temos dentro de nós que nos impele a pensar deste modo: «Que queres? É pobre gente, pobre gente…» E, com esta expressão «pobre gente», cancelamos tudo. É a guerra deste momento, é o sofrimento de irmãos e irmãs que nós não podemos calar. Deram tudo aquilo que possuíam para subir para um navio, de noite e ainda sem saber se chegarão. E depois… tantos repelidos para acabar nos campos de concentração, verdadeiros lugares de confinamento, de tortura e de escravidão.
Tal é a história desta civilização desenvolvida, que chamamos Ocidente. E depois – desculpai, mas gostaria de dizer o que tenho no coração, ao menos para rezarmos uns pelos outros e fazer qualquer coisa – e depois, o arame farpado. Vemo-lo aqui: esta é uma guerra de ódio que divide um país. Mas, noutras partes onde também existe, o arame farpado é colocado para não deixar entrar o refugiado, aquele que vem pedir liberdade, pão, ajuda, fraternidade, alegria, que está fugir do ódio e esbarra num ódio que se chama arame farpado. Que o Senhor desperte a consciência de todos nós diante destas coisas!
Desculpai se disse as coisas como são, mas não podemos calar e olhar para o outro lado, nesta cultura da indiferença.
Que o Senhor vos abençoe a todos! Obrigado!
Tempo da Criação
PAPA FRANCISCO
ANGELUS
Praça São Pedro
Domingo, 28 de novembro de 2021
Estimados irmãos e irmãs, bom dia!
O Evangelho da Liturgia de hoje, primeiro domingo do Advento, ou seja, o primeiro domingo de preparação para o Natal, fala-nos da vinda do Senhor no final dos tempos. Jesus anuncia eventos desoladores e tribulações, mas precisamente neste momento convida-nos a não ter medo. Porquê? Porque tudo vai correr bem? Não, mas porque Ele virá. Jesus voltará, Jesus virá, Ele prometeu-o. E diz: «Quando estas coisas começarem a acontecer, cobrai ânimo e levantai as vossas cabeças, porque a vossa libertação está próxima» (Lc 21, 28). É bom ouvir esta Palavra de encorajamento: erguermo-nos e levantemos a cabeça porque precisamente nos momentos em que tudo parece ter acabado o Senhor vem salvar-nos; esperar por Ele com alegria também no centro das tribulações, nas crises da vida e nos dramas da história. Esperar o Senhor. Mas como podemos levantar a cabeça, não nos deixamos absorver pelas dificuldades, pelos sofrimentos e pelas derrotas? Jesus indica-nos o caminho com um forte apelo: «Tende cuidado convosco: que os vossos corações não se tornem pesados [...]. Velai, orando continuamente» (vv. 34.36).
“Velai”, a vigilância. Façamos uma pausa sobre este aspeto importante da vida cristã. Das palavras de Cristo vemos que a vigilância está ligada à atenção: estai atentos, vigiai, não vos distraiais, isto é, permanecei acordados! Vigiar significa isto: não permitir que o coração se torne preguiçoso e que a vida espiritual se amoleça na mediocridade. Prestai atenção porque se pode ser “cristãos adormecidos” – e nós sabemos: há muitos cristãos adormecidos, cristãos anestesiados pela mundanidade espiritual – cristãos sem ímpeto espiritual, sem ardor na oração – rezam como papagaios – sem entusiasmo pela missão, sem paixão pelo Evangelho. Cristãos que olham sempre para dentro, incapazes de olhar para o horizonte. E isto leva a “adormecer”: continuar em frente por inércia, caindo na apatia, indiferentes a tudo exceto ao que convém. Esta é uma vida triste, continuar assim... não há felicidade nisto.
Precisamos de estar vigilantes para não arrastar os dias no hábito, para não nos sobrecarregarmos – diz Jesus – com as preocupações da vida (cf. v. 34). As preocupações da vida sobrecarregam-nos. Por conseguinte, hoje é uma boa ocasião para nos perguntarmos: o que torna o meu coração pesado? O que torna o meu espírito pesado? O que me faz sentar na poltrona da preguiça? É triste ver cristãos “na poltrona”! Quais são as mediocridades que me paralisam, os vícios, quais são os vícios que me esmagam e me impedem de levantar a cabeça? E em relação aos fardos que pesam sobre os ombros dos irmãos, estou atento ou indiferente? Estas perguntas fazem-nos bem, pois ajudam a proteger o coração da acídia. Mas, padre, diga-nos: o que é a acídia? É um grande inimigo da vida espiritual, também da vida cristã. A acídia é aquela preguiça que faz precipitar, deslizar na tristeza, que cancela o gosto pela vida e a vontade de fazer. É um espírito negativo, um espírito mau que prende a alma no torpor, roubando-lhe a alegria. Começa-se com aquela tristeza, escorrega-se, escorrega-se, e nenhuma alegria. O Livro dos Provérbios diz: «Vela com todo o cuidado sobre o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida» (Pr 4, 23). Vela sobre o teu coração: isto significa vigiar, despertar! Estai despertos, protegei o vosso coração.
E acrescentemos um ingrediente essencial: o segredo para estar vigilante é a oração. Com efeito, Jesus diz: «Velai, orando continuamente» (Lc 21, 36). É a oração que mantém acesa a lâmpada do coração. Especialmente quando sentimos que o entusiasmo se arrefece, a oração reacende-o, porque nos reconduz para Deus, para o centro das coisas. A oração desperta a alma do sono e concentra-a no que é importante, na finalidade da existência. Até nos dias mais movimentados, não negligenciemos a oração. Estava a assistir ao programa “À Sua Imagem” uma bela reflexão sobre a oração: ajudar-nos-á, vê-lo far-nos-á bem. Pode servir-nos de ajuda a oração do coração, repetir frequentemente pequenas invocações. No Advento, habituai-vos a dizer, por exemplo: “Vinde, Senhor Jesus”. Apenas isto, dizer: “Vinde, Senhor Jesus”. Este tempo de preparação para o Natal é bonito: pensemos no presépio, no Natal, e digamos de coração: “Vinde, Senhor Jesus, vem”. Repitamos esta oração ao longo do dia, e o espírito permanecerá vigilante! “Vinde, Senhor Jesus”: é uma oração que podemos recitar três vezes, todos juntos. “Vinde, Senhor Jesus”, “Vinde, Senhor Jesus”, “Vinde, Senhor Jesus”.
E agora oremos a Nossa Senhora: ela, que esperou pelo Senhor com coração vigilante, nos acompanhe no caminho do Advento.
Tempo da Criação
CUIDAR DO PLANETA:
A HORA DOS CIDADÃOS E DAS COMUNIDADES
Jorge Wemans | 15 Nov 21| in Sete Margens
Glasgow não foi uma oportunidade perdida apenas por ter sido a cimeira dos tímidos pequenos passos perante uma urgência inescapável. Foi um desastre porque nunca antes se apresentara tão negro o quadro da emergência climática. Foi uma desilusão porque nos últimos anos instituições de todo o tipo, cientistas e líderes dos mais variados quadrantes clamaram pela urgência de parar a catástrofe climática. Foi uma deceção por ter sido incapaz de expressar a solidariedade mundial que dois anos de devastadora pandemia impunham ter sido aprendida. Sair deste túnel escuro a que nos remeteu a impotência dos responsáveis nacionais exige ação determinada dos cidadãos e das comunidades.
A Cimeira do Clima iniciou-se tendo como pano de fundo o Relatório sobre a Lacuna de Emissões 2021 divulgado a 26 de outubro pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) que, em síntese, reconhecia que “os compromissos climáticos nacionais combinados com outras medidas de mitigação colocam o mundo no caminho para um aumento da temperatura global de 2,7° Celsius até ao final do século.” Ou seja, pelos dados recolhidos e trabalhados pelas equipas internacionais de peritos não só não estamos a caminhar para um aumento de 1,5°C da temperatura média em comparação com a registada no mundo pré-industrial, como vamos exceder em muito a meta máxima do Acordo de Paris (2°C).
Como se este alarme não fosse suficiente, vários estudos vieram adensar as mais negras previsões de catástrofe climática. Um dos que maior choque provocou terá sido a revelação feita por uma equipa de cientistas trabalhando para o Washington Post de que “muitos países subestimam as suas emissões de gases de efeito estufa nos relatórios que enviam para as Nações Unidas”. Os 196 relatórios de países analisados “revelam uma lacuna gigante entre o que as nações declaram serem as suas emissões e os gases com efeito estufa que na realidade enviam para a atmosfera”. Ou seja, as previsões sobre o futuro do planeta são realizadas com base em dados enganosos e muito subestimados.
A juntar a estes monumentais desvios (o Washington Post calcula que podem não ser contabilizadas “até 13,3 mil milhões de toneladas de emissões por ano”), pelo menos dois trabalhos de reputadas equipas científicas tornados públicos durante a conferência apontam para que cada décima de grau Celsius de aquecimento global tem efeitos mais profundos, mais extremos e mais adversos do que anteriormente avaliado.
Perante este panorama que não pode ignorar a evidência de todas as dramáticas situações vividas nos últimos anos, a COP 26 arrastou-se durante 15 dias entre promessas insignificantes, ausências gritantes (entre as quais a dos líderes da China e Rússia são sintomáticas do seu desinteresse na solução do problema) e ameaças de que nada seria acordado. Finalmente, em benefício de haver acordo, aceitou a redação de um Pacto do Clima em que até uma emenda de última hora, proposta pela Índia, “branqueando” o efeito super-nefasto da queima do carvão, foi aceite.
Um planeta doente, uma luta difícil
Ninguém em seu perfeito juízo pode hoje negar que o modo como vivemos está a acabar de vez e rapidamente com o modo como o planeta nos permitiu, à humanidade, viver desde os seus primórdios. Quanto mais tarde alterarmos o atual estado de coisas, mais difícil será conseguir conter os efeitos devastadores das mudanças climáticas. Efeitos que já são irreversíveis (há espécies animais e vegetais que os nossos pais conheceram e que já não fazem parte do nosso mundo e nunca farão parte daquele em que os nossos filhos viverão).
Sendo assim, por que razão os líderes de todo o mundo não se concertam para salvar o planeta? Enfrentar os interesses económicos, provocar as mudanças dos hábitos das populações e alterar a mentalidade vigente, exigidas pela defesa do planeta é uma tarefa ciclópica. E é também uma tarefa desinteressada marcada pela generosidade e pelo altruísmo. Virtudes raras no palco da gestão da coisa comum.
O desafio que os responsáveis nacionais enfrentam não é diferente daquele que os cidadãos e as comunidades têm por diante: alterar comportamentos, hábitos e mentalidades para que as gerações vindouras possam viver num planeta amigável da vida. É certo que os atuais cidadãos algo ganharão em evitar a catástrofe climática para que caminhamos. Mas os grandes ganhadores são os que ainda não nasceram. E por outro lado: quanto mais os meus comportamentos permitem salvar a Terra, maiores possibilidades concedo a outros para prosseguirem os consumos que destroem o planeta. Não é, pois, tanto pelo meu interesse direto no assunto, nem pela garantia de que estamos todos do mesmo lado, que nos movemos nesta luta pela sobrevivência da vida como a conhecemos. Só a ação desinteressada, o respeito e a generosidade para com as futuras gerações nos fará mover. Mas se não alteramos o nosso modo de vida é certo e seguro que o nosso planeta deixará de acolher e alimentar a vida como até agora o tem feito… apesar de nós.
Esta é a hora dos cidadãos. À passividade dos responsáveis nacionais, há que responder com maior pressão para que a sustentabilidade do planeta esteja no centro da agenda política. Mas é sobretudo imperioso tornar pública uma mudança de mentalidade, a manifestação de uma nova frugalidade, desenvolver novos comportamentos que permitam reduzir a emissão de gases com efeito de estufa, do carbono ao metano… Viver de forma diferente basta para garantir a sustentabilidade do planeta. O futuro da terra está nas nossas mãos, não depende de poderes incomensuráveis e ocultos.
As igrejas e as religiões: à frente e atrás
Este é um tema a que os cristãos têm dedicado atenção. No campo católico, a encíclica Laudato Si’ (2015) constitui um marco. Mais pragmáticas, as igrejas protestantes têm desenvolvido ações comuns, compromissos e roteiros pedagógicos muito interessantes. Não faltam pronunciamentos de outras religiões e declarações conjuntas de vários líderes religiosos reunidos para clamarem a urgência de cuidar da casa comum. O Papa Francisco cunhou a expressão “ecologia integral”, clarificando como o que estamos a viver apela a uma ecologia ambiental, económica e social. É o planeta e a humanidade, ambos, em simultâneo e “intimamente ligados” que estão em causa e por isso necessitamos de “uma ecologia integral que inclua claramente as dimensões humanas e sociais” (Laudato Si’, 137).
Em termos internacionais, o Vaticano lançou a Plataforma de Ação Laudato Si’ em que instituições, famílias e comunidades se podem inscrever e agir em defesa da sustentabilidade do planeta e onde encontram um manancial de sugestões e planos concretos que são ajudados a desenhar. Entre outras iniciativas, a rede Cuidar da Casa Comum segue, em Portugal, o mesmo perfil, contendo igualmente múltiplas propostas para modos de vidas amigáveis do ambiente.
Infelizmente, como mostrou um inquérito realizado pelo 7MARGENS e pela Família Cristã, apesar de algumas coisas concretas, está muito por fazer no âmbito da generalidade das instituições da Igreja Católica em Portugal.
Como escrevíamos em editorial no início da Cimeira do Clima, “enquanto os políticos, cientistas e ativistas discutem em Glasgow, chegou a hora de vermos com pragmatismo o que é que cada um(a) e todos nós podemos fazer. Aos bispos cabe uma responsabilidade especial nesta matéria que é, no seu alcance profundo, crucial para a salvação do planeta, a justiça social e a paz entre os povos.”
Hoje, sabendo dos fracos compromissos assinados na Cimeira, tudo se torna mais urgente. Para cada um de nós, para cada comunidade, para os bispos. A pergunta do momento é, para todos, simples: que decisões já tomámos, vamos tomar, para reduzir o impacte ambiental da minha vida, das nossas famílias, das nossas comunidades? Ou será que nunca respondemos juntos a esta interrogação?
Tempo da Criação
COP26: a derradeira oportunidade
Teresa Rebelo de Andrade | in Ponto sj | 6 Novembro 2021
Estamos hoje a meio caminho daquela que dizemos ser a “derradeira COP”. Em Glasgow, líderes mundiais, cientistas, ativistas, empresários e organizações da sociedade civil juntam-se para debater o futuro do nosso planeta e, esperamos, tomar medidas concretas para travar o avassalador aquecimento global que tem vindo a destruir habitats e pessoas.
Cansados de saber as consequências das alterações climáticas, a que temos vindo a assistir nas últimas décadas, e que pela primeira vez na história estão a provocar crises de fome, como é o caso do Madagáscar, e fartos de saber a insustentabilidade do atual modelo económico, a inação política a nível global face a um dos maiores desafios da humanidade do século XXI é verdadeiramente assustadora.
Quando em 2015, na COP21, se firmou o Acordo de Paris, assinado por 196 países, acordou-se que cada país signatário iria apresentar as suas metas climáticas com o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5ºC face à era anterior à Revolução Industrial. As chamadas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs na sigla inglesa) comprometem-se a esforços evidentes de mitigação das alterações climáticas e contam ser revistas a cada 5 anos. A situação pandémica obrigou ao cancelamento da COP em 2020 e, com isso, empurrou a revisão e eventual restruturação das NDCs para 2021. Estávamos a três dias da COP26 e mais de um terço dos países signatários do Acordo de Paris não tinha entregue as suas contribuições. Dias após o começo da Conferência o próprio Secretário-Geral da ONU, António Guterres, considerava os compromissos dos países um “caminho para o desastre”, já que, com as NDCs apresentadas os cientistas apontavam para um aumento do aquecimento da Terra de 2,7ºC.
Hoje, a meio caminho da COP26, a tensão entre a esperança e a inquietação permanece, mas algum caminho aparenta estar a ser feito: 20 países assinaram um acordo para acabar com o financiamento a combustíveis fósseis; outro acordo foi firmado para terminar com a desflorestação, no qual, entre os signatários, se conta o Brasil e a China e mais de 40 países se comprometeram a abandonar o carvão, do onde se exclui a China, a Austrália e os Estados Unidos, os países mais dependentes deste combustível fóssil. Entre estas e outras medidas, a Agência Internacional de Energia afirma que os compromissos da COP26 até então podem limitar o aquecimento global a 1,8ºC.
Caso isto se concretize fora do papel, é um avanço, mas não é suficiente.
E porque é que não é suficiente? Em primeiro lugar, porque a distância entre a vontade política (real ou fictícia) e a realização dessa vontade tem-se revelado um verdadeiro abismo. Atentemos ao Acordo de Paris, assinado há seis anos, que surgiu como uma luz ao fundo do túnel, mas que, na verdade, tem assistido ao aumento das temperaturas globais e não à sua diminuição, como era expectável caso se fizesse cumprir. O caso da Gâmbia é bastante ilustrativo do que aqui quero destacar: de entre os quase 200 países que, numa COP, se comprometeram a esforços climáticos sem precedentes, somente a Gâmbia, um país que está longe de ser a causa do asfixiamento terrestre, está efetivamente no caminho para cumprir o Acordo de 2015.
Em segundo lugar, não devemos esquecer que os desafios atuais já não se limitam à mitigação, mas também, e de extrema importância, à adaptação, já que as alterações climáticas não são um problema do futuro, mas uma realidade do presente que já atinge 85% da população mundial, direta ou indiretamente. Esta matéria, que se sintetiza no Mecanismo de Varsóvia sobre Perdas e Danos, estabelecido na COP19 em 2013 e que visa ser revisto e operacionalizado na COP26, evidencia um facto por vezes esquecido ou ignorado: o combate contra as alterações climáticas é uma questão de justiça climática que, no fim, se traduz numa questão de justiça social. O aumento de qualquer décima centígrada significa o aumento da necessidade de adaptação às consequências inevitáveis, com os custos financeiros, humanos e técnicos que isso implica, e está provavelmente reservada aos países mais pobres: aqueles que mais sofrem com esta crise, os que menos a provocam e que menor capacidade têm para dar uma resposta eficaz.
Por fim, que os eventuais avanços alcançados na COP26 não resultem num baixar a guarda por parte da sociedade, mas que os (escassos) esforços políticos exijam dos cidadãos uma ação-pressão insistente e resiliente. Como colaboradora de uma organização da sociedade civil em prol do desenvolvimento sustentável, sinto-me especialmente chamada a isso e é nesse sentido que a todos deixo o convite para participarem na Marcha Global pela Justiça Climática organizada internacionalmente pela COP26 Coalition e que, em Portugal, se vai realizar no domingo dia 7, às 15h em Lisboa/Martim Moniz.
Na Laudato Si’, lançada no épico ano de 2015, o Papa Francisco relembrava-nos que ‘o amor é também civil e político’ e que ‘o amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum são uma forma eminente de caridade’ (LS 231). Cabe-nos agora ser testemunhas vivas e ativas dum planeta que chora por si e pelos mais esquecidos.
(A autora do texto acompanha a COP26 enquanto colaboradora da FEC – Fundação Fé e Cooperação.)
Tempo da Criação
MENSAGEM DE ÁUDIO DO PAPA FRANCISCO
AOS OUVENTES DE "BBC RADIO - PENSAMENTO PARA O DIA"
NA OCASIÃO DA COP26
[Glasgow, 31 de outubro - 12 de novembro de 2021]
Caros ouvintes da BBC, bom dia!
A mudança climática e a pandemia de Covid-19 revelam a vulnerabilidade radical de tudo e de todos e levantam inúmeras dúvidas e perplexidades sobre OS nossos sistemas económicos e as formas como as nossas sociedades estão organizadas.
As nossas seguranças entraram em colapso, o nosso apetite pelo poder e o nosso anseio pelo controlo estão a desintegrar-se.
Encontramo-nos fracos e cheios de medos, imersos numa série de "crises": sanitária, ambiental, alimentar, económica, social, humanitária, ética. Crises transversais, fortemente interligadas e anunciadoras de uma “tempestade perfeita”, capaz de romper os “laços” que envolvem a nossa sociedade no precioso dom da criação.
Cada crise exige visão, planeamento e rapidez de execução, repensando o futuro da nossa casa comum e do nosso projeto comum.
Essas crises confrontam-nos com escolhas radicais que não são fáceis. Na verdade, cada momento de dificuldade também contém oportunidades que não podem ser desperdiçadas.
Eles podem ser enfrentados por meio de atitudes predominantes de isolamento, protecionismo, exploração; ou podem representar uma oportunidade real de transformação, um verdadeiro ponto de conversão, não apenas no sentido espiritual.
Este último caminho é o único que conduz a um horizonte "luminoso" e só pode ser percorrido por uma renovada corresponsabilidade global, uma nova solidariedade baseada na justiça, na partilha de um destino comum e na consciência da unidade da família humana, num projeto de Deus para o mundo.
É um desafio da civilização a favor do bem comum e uma mudança de perspectiva, de pensamento e de olhar, que deve colocar a dignidade de todos os seres humanos de hoje e de amanhã no centro de todas as nossas ações.
A lição mais importante que essas crises nos transmitem é que é preciso construir juntos, porque não há fronteiras, barreiras, muros políticos dentro dos quais nos esconder. E nós sabemos: ninguém pode sair de uma crise sozinho.
Há poucos dias, em 4 de outubro, eu estive reunido com líderes religiosos e cientistas para assinar um apelo conjunto pedindo ações mais responsáveis e coerentes tanto para nós quanto para os nossos líderes. Na ocasião, fiquei impressionado com o depoimento de um dos cientistas que disse: “Minha neta, recém-nascida, terá que viver num mundo inabitável dentro de 50 anos, se as coisas continuarem assim”.
Não podemos permitir isso!
O empenho de cada um nessa mudança de rumo tão urgente é fundamental; um compromisso que deve alimentar-se também da própria fé e espiritualidade. No Apelo Conjunto recordamos a necessidade de trabalhar com responsabilidade a favor da "cultura do cuidado" da nossa casa comum e também de nós próprios, procurando erradicar as "sementes do conflito: ganância, indiferença, ignorância, medo, injustiça, insegurança e violência".
A humanidade nunca teve tantos meios para alcançar este objetivo como tem hoje. Os responsáveis políticos que participarão da COP26 em Glasgow são chamados com urgência a oferecer respostas efetivas à crise ecológica em que vivemos e, desta maneira, oferecer uma esperança concreta para as gerações futuras. Mas todos nós - vale a pena repetir, seja quem for e onde quer que estejamos - podemos desempenhar um papel na mudança de nossa resposta coletiva à ameaça sem precedentes das mudanças climáticas e à degradação de nossa casa comum.
Tempo da Criação
No passado Domingo, 17 de Outubro, na nossa diocese do Porto, como em (quase) todas as dioceses do mundo, iniciou-se o Caminho Sinodal, na sua fase diocesana. Aqui fica a homilia do nosso bispo.
“Não deve ser assim entre vós”
A síntese desta liturgia da Palavra de Deus, agora acabada de proclamar, pode ser encontrada na frase com a qual o Senhor Jesus faz a contraposição entre os critérios do mundo e os do Reino de Deus: “Não deve ser assim entre vós”.
De facto, os filhos de Zebedeu, Tiago e João, aproveitam-se da mentalidade comum para fazerem um pedido, meter uma cunha: obterem os dois lugares de mais destaque num futuro governo a constituir-se depois da libertação da Palestina. Como tal, um lugar de domínio: colocados bem no alto da estrutura da fama e do poder, separar-se-iam do povo anónimo pela importância e pela autoridade. E os outros discípulos também não viviam uma escala de valores muito mais elevada: os seus ciúmes e inveja conduziriam à fratura e ao desentendimento.
Porém, com a sua sábia pedagogia, o Mestre faz-lhes ver que o Reino a implantar não se estrutura à base dos falsos valores, assumidos quase como inultrapassáveis por serem tão habituais, mas numa nova visão em que os conceitos dominantes passam a ser a proximidade, o serviço, a disponibilidade para aceitar a mudança, a coesão do grupo que se reúne à volta d’Ele, o deixar as velhas seguranças e embarcar na promessa, a preocupação com que ninguém fique para trás, enfim, a aceitação do próprio sofrimento da incompreensão e o eventual martírio. Tal como o “servo sofredor”, já acenado em Isaías e concretizado em Jesus Cristo, Aquele que não coloca o centro de gravidade em si mesmo, nos seus caprichos e manias, mas em Deus e nos outros.
Do mesmo modo a Igreja: jamais poderá ser fermento desse Reino se não se questionar sobre o seu presente, chamado a desaparecer, e se ele projeta ou não para um futuro a edificar na correspondência ao plano de Deus e no qual ela conte menos para que somente os outros e o Grande Outro contem tudo. Uma Igreja chamada a discernir o que tem de fazer para que seja mais Igreja, a semente frutifique e o mundo seja salvo.
As razões do próximo Sínodo entroncam aqui. Por isso, se os outros Sínodos foram sempre sobre uma determinada temática parcelar e se debruçaram sobre aspetos que, na maioria das vezes, diziam respeito à Igreja e ao mundo, este é diferente, pois não estuda setores, mas critérios e atitudes do seu próprio funcionamento.
Este grande objetivo já estava presente nas razões do Vaticano II, quando o “bom” Papa João lhe indicou o mote: “Igreja, que dizes de ti mesma?”. E o Concílio, de facto, constituiu uma resposta. Porém, a nossa vertente intelectualista levou-nos a «estudá-lo» como objeto fora de nós, a apreciá-lo e a criticá-lo, mas não a implicar nele as nossas atitudes. O problema não está, portanto, no Concílio, mas na sua receção: desde os idealistas que outra coisa dele não conhecem que não seja a ideia vaga de que «mudou tudo na Igreja», até aos integristas que fincam os pés à parede e o recusam liminarmente.
Este Sínodo interliga-se com o Concílio e a efusão do Espírito que ele representou. Na oração e na inteligência, vai ajudar a discernir um novo modelo de Igreja para este terceiro milénio. E creio bem que não poderá ser outro que não seja o que dá lastro à eclesiologia conciliar: superar a dimensão piramidal, expressa em conceitos de superioridade/inferioridade ou de responsabilidade/desinteresse, e passar à lógica da necessidade recíproca e da igual dignidade de todos os que constituem o povo de Deus.
O Papa Francisco, grande presente que Deus fez à sua Igreja neste tempo em que ela passa por um especial calvário e angústia, indica-nos a envolvência que há de caracterizar o Sínodo nas suas fases. A começar por esta diocesana: comunhão participação, missão. Desejo ardentemente que a nossa Diocese do Porto se situe dentro desta moldura geral e nunca a perca de vista. E que a leve até às últimas consequências. Para ser mais Diocese. Para ser mais Igreja. Interroguemo-nos, pois.
Comunhão. O clero é constituído por “Pastores com cheiro a ovelha”? Os leigos conhecem os seus Pastores e exprimem-lhes simpatia? Relacionam-se mutuamente em clima de fraternidade ou ainda se vive uma «luta de classes» já morta e enterrada noutros domínios? Usam-se as redes sociais para fomentar o clericalismo e o anticlericalismo ou para solidificar o sentimento de pertença à mesma realidade? Como se faz a integração dos afastados? Nas paróquias, movimentos e obras sintonizamos mesmo com o plano pastoral diocesano? Os movimentos e correntes de espiritualidade constituem um enriquecimento de propostas comprovadas ao serviço de uma Igreja mais fiel à sua origem ou imaginam-se as únicas células válidas para todo o corpo?
Participação. Por intermédio da totalidade dos seus membros, a Igreja é mesmo esta casa de família edificada no meio dos seus filhos? Todos os cristãos participam na pastoral e vida da Igreja? Sentem-se envolvidos responsavelmente numa obra que é de todos? Somos uma Igreja de diálogo recíproco ou unidirecional de comando/obediência? Assumimos que os ministérios e os serviços, mesmo os ordenados, arrancam da condição de pertença ao mesmo povo e para serviço desse povo ou fraturamos esta base? A problemática vocacional diz respeito a cada um, às famílias e a todo o povo de Deus?
Missão. Pelo exemplo e pelo testemunho, preocupamo-nos com o crescimento da Igreja em qualidade e quantidade? Vivemos como nossos os êxitos e os dramas da Igreja? Aflige-nos ou não o sabermos que, em muitas zonas, a Igreja é perseguida e martirizada? Que contributo damos para minimizar esse sofrimento? Assumimos ou não a necessidade de uma conversão pastoral em chave missionária e ecuménica? Formamos ou não a fé para podermos intentar um diálogo cultural com setores que, quase sempre, agridem a Igreja por ignorância religiosa ou desconhecimento básico? Falamos da fé, mormente a nível da família, da paróquia e organismos eclesiais? «Damos a cara» pela Igreja?
Caros irmãos na fé e na comum pertença à Igreja, o Papa Francisco tem-nos chamado a atenção para este dado: a fase de consulta do Sínodo não é igual à organização de um simpósio cultural ou a uma qualquer análise sociológica sobre as propostas das maiorias e das minorias. É antes um profundo exame de consciência, perante o Senhor e perante os irmãos na fé, realizado em contexto de oração, adoração e fervor. É isto mesmo que eu peço a todos e a cada um, particularmente no vosso contexto paroquial, familiar e de inserção no mundo. Mas de uma forma especial, à Comissão diocesana que agora «emposso» e a quem peço muito e muito trabalho para animar a todos e profundo discernimento para nos ajudar a inserir no espírito do Sínodo, particularmente nesta fase de consulta.
Com a bela oração com que se costumam abrir os Concílios e Sínodos e usado em todas as sessões do Vaticano II, também eu rezo em nome de todos vós: “Espírito Santo! Eis-nos aqui, diante de Vós, reunidos em vosso Nome. Nosso defensor, vinde, ficai connosco; tomai posse do nosso coração. Mostrai-nos o destino, caminhai connosco, conservando-nos em comunhão. Iluminai a nossa ignorância, libertai-nos da parcialidade. Amém”.
Manuel Linda, Bispo do Porto 17 de outubro de 2021
Tempo da Criação
ORAÇÃO PARA UM ESPÍRITO SINODAL
Vinde, Espírito Santo!
Vós que suscitais línguas novas
e colocais nos lábios palavras de vida,
livrai-nos de nos tornarmos uma Igreja de museu,
bela mas muda, com tanto passado
e pouco futuro.
Vinde estar connosco,
para que na experiência sinodal
não nos deixemos dominar pelo desencanto,
não debilitemos a profecia,
não acabemos por reduzir tudo
a discussões estéreis.
Vinde, Espírito Santo de amor,
e abri os nossos corações para a escuta.
Vinde, Espírito de santidade,
e renovai o santo Povo fiel de Deus.
Vinde, Espírito Criador,
e renovai a face da terra.
Ámen.
ORAÇÃO PELO SÍNODO
Eis-nos aqui, diante de Vós,
Espírito Santo!
Eis-nos aqui, reunidos
em vosso nome!
Só a Vós temos por Guia:
vinde a nós, ficai connosco,
e dignai-vos habitar
em nossos corações.
Ensinai-nos o rumo a seguir
e como caminhar juntos até à meta.
Nós somos débeis e pecadores:
não permitais que sejamos
causadores da desordem;
que a ignorância
não nos desvie do caminho,
nem as simpatias humanas ou o
preconceito nos tornem parciais.
Que sejamos um em Vós,
caminhando juntos
para a vida eterna,
sem jamais nos afastarmos
da verdade e da justiça.
Nós vo-lo pedimos
a Vós, que agis sempre
em toda a parte,
em comunhão com o Pai e o Filho,
pelos séculos dos séculos. Ámen.
Tempo da Criação
DISCURSO DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS PARTICIPANTES
DA REUNIÃO INTERPARLAMENTAR PREPARATÓRIA DA COP26
Sábado, 9 de outubro de 2021
Senhoras e senhores!
Bem-vindo e agradeço à Sra. Casellati e ao Sr. Fico pelas amáveis palavras.
Há poucos dias, no dia 4 de outubro, tive o prazer de me encontrar com vários líderes religiosos e cientistas para assinar um Apelo conjunto para a COP26. A " consciência - cito o Apelo - dos desafios sem precedentes que nos ameaçam e da vida na nossa magnífica casa comum, [...] e da necessidade de uma solidariedade cada vez mais profunda face à pandemia global e ao crescimento preocupação "por isso" ( Fé e Ciência: Rumo à COP26 - Apelo Conjunto, 4 de outubro de 2021).
Nesta ocasião, animados por um espírito de fraternidade, pudemos perceber uma forte convergência de todas as diferentes vozes na expressão de dois aspectos. Por um lado, a dor pelos graves danos causados à família humana e ao seu lar comum; de outro, a necessidade urgente de iniciar uma mudança de rumo capaz de passar com decisão e convicção da cultura do descarte, predominante em nossa sociedade, para a cultura do cuidado.
É um desafio exigente e complexo, mas a humanidade dispõe dos meios para enfrentar esta transformação, que requer uma conversão real e vontade firme para a empreender. Exige-o, em particular, para aqueles que são chamados a cargos de grande responsabilidade nas várias áreas da sociedade.
No Recurso Conjunto que assinámos e que idealmente vos confio, entregando-o aos Presidentes das duas Casas do Parlamento italiano, surgem numerosos compromissos que pretendemos assumir no domínio da acção e do exemplo, bem como no da educação. De facto, estamos perante um importante desafio educativo , porque “toda mudança necessita de um percurso educativo para fazer surgir uma nova solidariedade universal e uma sociedade mais acolhedora” ( Mensagem de lançamento do Pacto Educativo, 12 de setembro de 2019). Um desafio a favor de uma educação em ecologia integral com a qual nós, representantes das religiões, estamos fortemente comprometidos.
Ao mesmo tempo, faz-se um apelo aos governos para que adotem rapidamente um caminho que limite o aumento da temperatura média global e dê impulso a ações corajosas, fortalecendo também a cooperação internacional. Especificamente, são feitos apelos para promover a transição para energia limpa; adotar práticas sustentáveis de uso da terra, preservando as florestas e a biodiversidade; promover sistemas alimentares que respeitem o meio ambiente e as culturas locais; realizar o combate à fome e à desnutrição; apoiar estilos de vida, consumo e produção sustentáveis.
Trata-se da transição para um modelo de desenvolvimento mais integral e integral, baseado na solidariedade e na responsabilidade; uma transição durante a qual os efeitos que terá no mundo do trabalho também devem ser cuidadosamente considerados.
Neste desafio, cada um tem o seu papel, e o dos parlamentares é particularmente significativo, diria decisivo. Uma mudança de rumo tão exigente quanto a que temos diante de nós exige grande sabedoria, visão de longo prazo e senso do bem comum, virtudes fundamentais da boa política. Vós parlamentares, como principais atores da atividade legislativa, tendes a tarefa de orientar as condutas através dos diversos instrumentos que a lei oferece, "que estabelece as regras de conduta permitidas à luz do bem comum" (Carta Encíclica Laudato si', 177) e com base em outros princípios cardeais, como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade e a subsidiariedade (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 160ss). O cuidado de nossa casa comum naturalmente se enquadra no escopo desses princípios. Obviamente, não se trata apenas de desencorajar e sancionar as más práticas, mas também e sobretudo de encorajar e estimular novos caminhos mais adequados ao objetivo a alcançar. Esses são aspectos essenciais para atingir os objetivos traçados no Acordo de Paris e contribuir para o resultado positivo da COP26.
Espero, portanto, que o vosso árduo trabalho, em vista da COP26, e mesmo depois dela, seja iluminado por dois importantes "faróis": o farol da responsabilidade e o farol da <isolidariedade . Devemo-lo aos jovens, às gerações futuras que merecem todo o nosso empenho para poder viver e ter esperança. Para isso, precisamos de leis urgentes, sábias e justas, que superem as barreiras estreitas de muitos círculos políticos e possam chegar a um consenso adequado o mais rápido possível e fazer uso de meios confiáveis e transparentes.
Obrigado novamente pela sua visita! Deus abençoe você, sua família e seu trabalho.
Tempo da Criação
VÍDEO MENSAGEM DO SANTO PADRE
NA OCASIÃO DO SEGUNDO EVENTO MUNDIAL:
"A ECONOMIA DE FRANCESCO"
[Assis, 2 de outubro de 2021]
Caros jovens,
Saúdo-vos com afeto, feliz por vos conhecer - ainda que virtualmente - no vosso segundo evento. Nos últimos meses, recebi muitas notícias das experiências e iniciativas que vós construístes juntos e gostaria de agradecer o entusiasmo com que cumpris esta missão de dar uma nova alma à economia.
A pandemia Covid-19 não apenas nos revelou as profundas desigualdades que afetam nossas sociedades: também as ampliou. Desde o surgimento de um vírus do mundo animal, as nossas comunidades têm sofrido com o grande aumento do desemprego, pobreza, desigualdade, fome e exclusão dos cuidados de saúde necessários. Não nos esqueçamos de que alguns poucos aproveitaram a pandemia para enriquecer e se refugiar na sua própria realidade. Todos esses sofrimentos recaem desproporcionalmente sobre nossos irmãos e irmãs mais pobres.
Nestes dois anos, a esta altura, fomos confrontados com todas as nossas falhas no cuidado da casa e da família comum. Muitas vezes esquecemos a importância da cooperação humana e da solidariedade global; também frequentemente esquecemos a existência de uma relação recíproca responsável entre nós e a natureza. A Terra nos precede e nos foi dada, e este é um elemento-chave na nossa relação com os bens da Terra e, portanto, uma premissa fundamental para os nossos sistemas económicos. Somos administradores de bens, não donos. Apesar disso, a economia doente que mata surge do pressuposto de que somos os donos da criação, capazes de explorá-la para os nossos interesses e para o nosso crescimento. A pandemia lembrou-nos esse profundo vínculo de reciprocidade; lembra-nos que fomos chamados a guardar os bens que a criação dá a todos; lembra-nos o nosso dever de trabalhar e distribuir esses bens para que ninguém fique de fora. Finalmente, também nos lembra que, imersos num mar comum, devemos aceitar a necessidade de uma nova fraternidade. Este é um bom momento para sentirmos mais uma vez que precisamos uns dos outros, que temos responsabilidades uns com os outros e com o mundo.
A qualidade do desenvolvimento dos povos e da Terra depende sobretudo dos bens comuns. É por isso que devemos buscar novas formas de regenerar a economia na era pós-Covid-19 para que seja mais justa, sustentável e solidária, ou seja, mais comum. Precisamos de mais processos circulares, para produzir e não desperdiçar os recursos do nosso planeta, formas mais equitativas de vender e distribuir os bens e comportamentos mais responsáveis no consumo. É preciso também um novo paradigma integral, capaz de formar as novas gerações de economistas e empresários, respeitando a nossa interconexão com a Terra. Vós, na "Economia de Francisco" como em muitos outros grupos de jovens, estais a trabalhar com o mesmo propósito. Vós podeis oferecer este novo rosto e este exemplo de uma nova economia.
Hoje a nossa mãe Terra geme e avisa-nos que estamos a aproximar-nos de um limiar perigoso. Vós talvez sejais a última geração que pode salvar-nos, não estou a exagerar. Diante dessa emergência, a vossa criatividade e resiliência carregam uma grande responsabilidade. Espero que vós possais usar esses vossos dons para consertar os erros do passado e levar-nos a uma economia nova, mais solidária, sustentável e inclusiva.
Esta missão da economia, no entanto, inclui a regeneração de todos os nossos sistemas sociais: incutindo os valores da fraternidade, da solidariedade, do cuidado da nossa Terra e dos bens comuns em todas as nossas estruturas, poderemos enfrentar os maiores desafios do nosso tempo, da fome e desnutrição à distribuição justa de vacinas anti-Covid-19. Temos que trabalhar juntos e sonhar grande. Com o olhar fixo em Jesus, encontraremos inspiração para projetar um novo mundo e a coragem de caminharmos juntos por um futuro melhor.
A vós, jovens, renovo a tarefa de recolocar a fraternidade no centro da economia. Nunca como nesta época sentimos a necessidade de jovens que saibam, através do estudo e da prática, demonstrar que existe uma economia diferente. Não desanimeis: deixai-vos guiar pelo amor do Evangelho, que é o motor de todas as mudanças e nos impele a entrar nas feridas da história e a ressuscitar. Deixai-vos lançar com criatividade na construção de novos tempos, sensíveis à voz dos pobres e empenhai-vos em incluí-los na construção do nosso futuro comum. O nosso tempo, devido à importância e urgência da economia, precisa de uma nova geração de economistas que vivam o Evangelho em empresas, escolas, fábricas, bancos e mercados. Segui o testemunho daqueles novos mercadores que Jesus não expulsa do templo, porque sois seus amigos e aliados do seu reino.
Queridos jovens, apresentai as vossas ideias, os vossos sonhos e, através deles, transmiti ao mundo, à Igreja e aos outros jovens a profecia e a beleza de que sois capazes. Vós não sois o futuro, vós sois o presente. Outro presente. O mundo precisa de vossa coragem. Agora. Obrigado!
Tempo da Criação
COMUNHÃO, PARTICIPAÇÃO, MISSÃO: TRÊS PILARES
(Discurso do Papa Francisco aos fiéis da diocese de Roma, no dia 18 de Setembro de 2021) III
(Continuação de ‘Ninguém nasce cristão’)
Sacramento de uma promessa
Igreja sinodal significa Igreja sacramento dessa promessa – isto é, que o Espírito estará connosco – que se manifesta cultivando a intimidade com o Espírito e com o mundo que virá. Sempre haverá discussões, graças a Deus, mas as soluções devem ser buscadas dando a palavra a Deus e às suas vozes no meio de nós; rezando e abrindo os olhos para tudo o que nos rodeia; praticando uma vida fiel ao Evangelho; interrogando a Revelação segundo uma hermenêutica peregrina que sabe conservar e cuidar do caminho iniciado nos Atos dos Apóstolos.
E isto é importante: o modo de entender, de interpretar. Uma hermenêutica peregrina, isto é, que está a caminho. O caminho que começou depois do Concílio? Não. Começou com os primeiros Apóstolos e continua. Quando a Igreja se fecha, já não é Igreja, mas uma bela associação piedosa, porque enjaula o Espírito Santo. Hermenêutica peregrina que sabe conservar o caminho iniciado nos Atos dos Apóstolos. Caso contrário, o Espírito Santo seria humilhado.
Gustav Mahler – já disse isto noutras ocasiões – defendia que a fidelidade à tradição não consiste em adorar as cinzas, mas em conservar o fogo. Eu pergunto: antes de começarem este caminho sinodal, a que é que vocês estão mais inclinados: a conservar as cinzas da Igreja, isto é, da vossa associação, do vosso grupo, ou a conservar o fogo? Têm mais tendência a adorar as coisas que vos encerram – sou de Pedro, sou de Paulo, sou desta associação, tu és da outra, sou padre, sou bispo – ou sentem-se chamados a guardar o fogo do Espírito? Gustav Mahler foi um grande compositor, mas é também um mestre de sabedoria com essa reflexão. A Dei Verbum (n. 8), citando a Carta aos Hebreus, afirma: “‘Deus, que muitas vezes e de diversos modos nos tempos antigos havia falado aos pais’ (Hb 1,1), não cessa de falar com a Esposa do seu Filho”.
Há uma fórmula feliz de São Vicente de Lérins que, comparando o ser humano em crescimento e a Tradição que se transmite de uma geração à outra, afirma que não se pode conservar o “depósito da fé” sem fazê-lo progredir: “Consolidando-se com os anos, desenvolvendo-se com o tempo, aprofundando-se com a idade” (Commonitorium primum, 23,9) – “ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate”.
Este é o estilo do nosso caminho: as realidades, se não caminham, são como as águas. As realidades teológicas são como a água: se a água não flui e é imprópria é a primeira a entrar em putrefação. Uma Igreja imprópria começa a ficar putrefacta.
Vejam como a nossa Tradição é uma massa fermentada, uma realidade em fermento na qual podemos reconhecer o crescimento e, na massa, uma comunhão que se realiza em movimento: caminhar juntos realiza a verdadeira comunhão. É ainda o livro dos Atos dos Apóstolos que nos ajuda, mostrando-nos que a comunhão não suprime as diferenças.
É a surpresa do Pentecostes, quando as línguas diferentes não são obstáculo: embora fossem estrangeiros uns em relação aos outros, graças à ação do Espírito, “cada um ouve na sua própria língua materna” (At 2,8). Sentir-se em casa, diferentes mas solidários no caminho. Desculpem-me pela extensão, mas o Sínodo é uma coisa séria, e por isso me permiti falar…
O senso de fé para as coisas de Deus
Voltando ao processo sinodal, a fase diocesana é muito importante, porque realiza a escuta da totalidade dos batizados, sujeito do sensus fidei infalível in credendo. Há muitas resistências para superar a imagem de uma Igreja que faz uma distinção rígida entre chefes e subalternos, entre quem ensina e quem deve aprender, esquecendo-se de que Deus gosta de inverter as posições: “Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52), disse Maria.
Caminhar juntos leva a descobrir como linha própria a horizontalidade em vez da verticalidade. A Igreja sinodal restaura o horizonte do qual surge o sol [que é] Cristo: erigir monumentos hierárquicos significa encobri-lo. Os pastores caminham com o povo: nós, pastores, caminhamos com o povo, às vezes na frente, às vezes no meio, às vezes atrás. O bom pastor deve movimentar-se assim: na frente para guiar, no meio para encorajar e não esquecer o cheiro do rebanho, atrás porque o povo também tem “faro”. Tem faro para encontrar novas vias para o caminho ou para encontrar a estrada perdida.
Quero sublinhar isso, e também aos bispos e aos padres da diocese. No vosso caminho sinodal, perguntem-se: “Eu sou capaz de caminhar, de me movimentar na frente, no meio e atrás, ou estou apenas na cátedra, mitra e báculo?’. Pastores misturados, mas pastores, não rebanho: o rebanho sabe que somos pastores, o rebanho sabe a diferença. Na frente para indicar a estrada, no meio para sentir o que o povo sente e atrás para ajudar quem fica um pouco para trás e para deixar que o povo veja um pouco com o seu faro onde estão as melhores ervas.
O sensus fidei qualifica todos na dignidade da função profética de Cristo (cf. Lumen gentium, n. 34-35), para que possam discernir quais são os caminhos do Evangelho no presente. É o “faro” das ovelhas. Mas prestemos atenção porque, na história da salvação, todos somos ovelhas em relação ao Pastor que é o Senhor. A imagem ajuda-nos a entender as duas dimensões que contribuem para esse “faro”. Uma pessoal e outra comunitária: somos ovelhas e fazemos parte do rebanho, que neste caso representa a Igreja.
Lemos no Breviário, no Ofício das Leituras, o “De pastoribus”, de Agostinho, e lá ele diz-nos: “Com vocês sou ovelha, para vocês sou pastor”. Esses dois aspetos, pessoal e eclesial, são inseparáveis: não pode haver sensus fidei sem participação na vida da Igreja, que não é apenas ativismo católico, deve haver sobretudo aquele “sentir” que se alimenta dos “sentimentos de Cristo” (Fl 2,5).
O exercício do sensus fidei não pode ser reduzido à comunicação e ao debate entre opiniões que possamos ter sobre este ou aquele tema, aquele aspeto individual da doutrina ou aquela regra da disciplina. Não, estes são instrumentos, são verbalizações, são expressões dogmáticas ou disciplinares. Mas não deve prevalecer a ideia de distinguir maiorias e minorias: isso faz-se num parlamento.
Quantas vezes os “descartados” se tornaram “pedras angulares” (cf. Sl 118,22; Mt 21,42), os “distantes” se tornaram “próximos” (Ef 2,13). Os marginalizados, os pobres, os sem esperança foram eleitos como sacramento de Cristo (cf. Mt 25,31-46). A Igreja é assim.
E quando alguns grupos quiseram distinguir-se mais, acabaram sempre mal, até mesmo na negação da Salvação, nas heresias. Pensemos naquelas heresias que pretendiam levar em frente a Igreja, como o pelagianismo e, depois, o jansenismo. Todas as heresias acabaram mal. O gnosticismo e o pelagianismo são tentações contínuas da Igreja.
Preocupamo-nos tanto, e com razão, em que tudo possa honrar as celebrações litúrgicas, e isso é bom – mesmo que muitas vezes acabemos confortando-nos apenas a nós mesmos –, mas São João Crisóstomo admoesta-nos: “Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que ele seja objeto de desprezo nos seus membros, isto é, nos pobres, desprovidos de panos para se cobrirem. Não o honres aqui na igreja com tecidos de seda, enquanto lá fora tu o ignoras quando ele sofre com o frio e a nudez. Aquele que disse: ‘Este é o meu corpo’, confirmando o facto com a palavra, também disse: ‘Vós vistes-me com fome e não me destes de comer’ e: ‘Sempre que não fizestes essas coisas a um dos mais pequenos entre estes, também não o fizestes a mim’” (Homilias sobre o Evangelho de Mateus, 50, 3).
“Mas, padre, o que está dizer? Os pobres, os mendigos, os jovens toxicodependentes, todos esses que a sociedade descarta, fazem parte do Sínodo?” Sim, meu caro, sim, minha cara: não sou eu quem diz, quem o diz é o Senhor: eles fazem parte da Igreja. A tal ponto que, se vocês não os chamarem, eles verão como fazer isso, ou, se vocês não forem ao encontro deles para ficarem um pouco com eles, para escutarem não o que eles dizem, mas o que eles sentem, até os insultos que vos lançarão, vocês não estarão a fazer bem o Sínodo. O Sínodo vai até aos limites, inclui a todos.
O Sínodo também é abrir espaço para o diálogo sobre as nossas misérias, as misérias que eu tenho como vosso bispo, as misérias que os bispos auxiliares têm, as misérias que os padres e os leigos e quem pertence às associações têm; tomar toda essa miséria! Mas se nós não incluirmos os “miseráveis” – entre aspas – da sociedade, os descartados, jamais poderemos encarregar-nos das nossas misérias. E isto é importante: que, no diálogo, possam emergir as próprias misérias, sem justificativas. Não tenham medo!
(Conclui em ‘Vejo um Ramo de Amendoeira’)
Tempo da Criação
VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
A BUDAPESTE POR OCASIÃO DA SANTA MISSA CONCLUSIVA
DO 52° CONGRESSO EUCARÍSTICO INTERNACIONAL E À ESLOVÁQUIA
(12-15 DE SETEMBRO DE 2021)
ENCONTRO COM OS JOVENS
DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
Estádio Lokomotiva (Košice)
Terça-feira, 14 de setembro de 2021
(Continuação de ‘Vejo um Ramo de Amendoeira)
(…)
E, quando nos sentirmos em baixo – porque todos, em certos momentos da vida, nos sentimos um pouco desanimados; todos nós passamos por esta experiência – e quando nos sentimos em baixo, que podemos fazer? Há um remédio infalível para erguer-se. Aquilo que nos referistes tu, Petra: a Confissão. Vós ouvistes Petra? [«sim!»] O remédio da Confissão... Petra, perguntaste-me: «Como pode um jovem ultrapassar os obstáculos no caminho para a misericórdia de Deus?» Também aqui é uma questão de olhar, de olhar o que é mais importante. Se vos perguntar «em que pensais quando vos ides confessar?» (não o digais em voz alta), tenho quase a certeza da resposta: «nos pecados». Mas – pergunto-vos (e respondei) – são verdadeiramente os pecados o centro da Confissão? [«Não!»] Não ouvi… [«Não!»] Acertastes! Deus quer que te aproximes d’Ele pensando em ti, nos teus pecados, ou n’Ele? Deus, o que quer? Que te aproximes d’Ele ou dos teus pecados? Que quer Ele? Respondei [«Que me aproxime d’Ele!»] Mais alto, que sou surdo... [«…d’Ele!»] Qual é o centro: os pecados ou o Pai que perdoa todos os pecados? O Pai. Não vamos confessar-nos como pessoas castigadas que se devem humilhar, mas como filhos que correm para receber o abraço do Pai. E o Pai levanta-nos em qualquer situação, perdoa-nos todos os pecados. Fixai-o bem: Deus perdoa sempre! Entendestes? Deus perdoa sempre!
Deixo-vos um pequeno conselho: depois de cada Confissão, permanecei alguns momentos a recordar o perdão que recebestes. Guardai aquela paz no coração, aquela liberdade que sentis dentro de vós: não os pecados, que já não existem, mas o perdão que Deus te deu, a carícia de Deus Pai. Este, o perdão de Deus, guardai-o; não deixeis que vo-lo roubem. E na próxima vez que vos fordes confessar, lembrai-vos disto: vou receber de novo aquele abraço que me fez muito bem. Não vou a um juiz para regularizar as contas; vou a Jesus que me ama e cura. Neste momento, tenho vontade de dar um conselho aos padres. Digo, aos padres que se sentam no lugar de Deus Pai, que Ele sempre perdoa, abraça e acolhe. Demos a Deus o primeiro lugar na Confissão. Se o protagonista for Ele, tudo se torna belo e confessar-se torna-se o sacramento da alegria. Sim, da alegria: não do medo e do julgamento, mas da alegria. E é importante que os padres sejam misericordiosos. Nunca sejam curiosos, nunca inquisidores, por favor, mas sejam irmãos que dão o perdão do Pai, sejam irmãos que acompanham neste abraço do Pai.
Mas alguém poderia dizer: «Seja como for, eu sinto vergonha; não consigo superar a vergonha de me ir confessar». Não é um problema; trata-se de uma coisa boa. Sentir vergonha na vida, às vezes faz bem. Se te envergonhas, quer dizer que não aceitas aquilo que fizeste. A vergonha é um bom sinal, mas, como qualquer sinal, convida a ir mais longe. Não fiques prisioneiro da vergonha, porque Deus nunca Se envergonha de ti. Ama-te mesmo no ponto em que te envergonhas de ti mesmo. E ama-te sempre. Não está no ecrã, isto que vos digo: na minha terra, aos descarados que fazem mal em tudo, chamamos-lhes «desavergonhados».
Uma última dúvida: «Mas, padre, eu não consigo perdoar-me, pelo que nem sequer Deus poderá perdoar-me, pois cairei sempre nos mesmos pecados». Ouve! Mas Deus, quando é que Se ofende? Quando Lhe vais pedir perdão? Não! Nunca Se ofende… Deus sofre quando pensamos que Ele não pode perdoar-nos, pois é como se Lhe dissesses: «És fraco no amor». Dizer, de Deus, isto – «és fraco no amor» – é injusto! Ao contrário, Deus alegra-Se em nos perdoar, todas as vezes. Quando nos levanta, acredita em nós como na primeira vez. Ele não desanima. Somos nós que desanimamos; Ele não. Não vê pecadores a etiquetar, mas filhos a amar. Não vê pessoas erradas, mas filhos amados; porventura feridos, e então Ele tem ainda mais compaixão e ternura. E de cada vez que nos confessamos – nunca o esqueçais –, faz-se festa no Céu. Seja assim também na terra.
Por fim… Peter e Lenka, na vida, experimentastes a cruz. Obrigado pelo vosso testemunho. Perguntastes como «encorajar os jovens para não terem medo de abraçar a cruz». Abraçar: é um verbo significativo. Abraçar ajuda a vencer o medo. Quando somos abraçados, readquirimos confiança em nós mesmos e também na vida. Então deixemo-nos abraçar por Jesus, pois, quando abraçamos Jesus, reabraçamos a esperança. A cruz, não se pode abraçar por si só; o sofrimento não salva ninguém. É o amor que transforma o sofrimento. Portanto, é com Jesus que se abraça a cruz; nunca sozinho! Se se abraça Jesus, renasce a alegria. E a alegria de Jesus, no sofrimento, transforma-se em paz. Queridos jovens, queridas jovens, desejo-vos esta alegria, mais intensamente do que qualquer outra coisa. Desejo que a leveis aos vossos amigos. Não sermões, mas alegria. Levai alegria! Não palavras, mas sorriso, proximidade fraterna. Agradeço-vos por me terdes escutado e peço-vos uma última coisa: não vos esqueçais de rezar por mim. Ďakujem [obrigado]!
Todos, de pé, rezemos a Deus que nos ama, dizendo o Pai Nosso: «Pai-nosso… (em eslovaco).
Tempo da Criação
(Como ainda não encontramos a tradução de todo o documento em português, fica aqui esta notícia)
Cimeira do Clima
Inédito: o Papa, o patriarca e o arcebispo juntam-se pela proteção da criação
7M/Agência Ecclesia | 7 Set 21
É um gesto único e inédito aquele que tiveram o Papa Francisco, o patriarca ecuménico de Constantinopla, Bartolomeu I, e o arcebispo de Cantuária, Justin Welby, ao assinarem uma mensagem conjunta para a proteção da criação — um termo que desde os anos 1990 faz caminho entre os cristãos no debate sobre as questões ambientais e ecológicas.
“Demo-nos conta que, perante esta calamidade mundial, ninguém está a salvo até que todo o mundo esteja salvo, que as nossas ações realmente afetam os outros, e que o que fazemos hoje influencia o que acontecerá amanhã”, lê-se no texto dos três responsáveis cristãos, divulgado esta terça-feira.
A mensagem convida a considerar a calamidade mundial como uma oportunidade, que “não se pode desperdiçar”. “Devemos decidir que tipo de mundo queremos deixar para as gerações futuras. Devemos escolher viver de forma diferente; devemos escolher a vida”, escrevem Francisco, Bartolomeu e Justin.
Os três lembram que se maximizam os interesses do presente “às custas das gerações futuras” e apontam que se, por um lado, a tecnologia abriu novas possibilidades de progresso, por outro induziu a “acumular riquezas desenfreadas” com pouca preocupação com as outras pessoas ou com os limites do planeta. “A natureza é resistente, mas delicada. Temos a oportunidade de nos arrepender, de voltar atrás com decisão”, apontam.
A mensagem retoma várias vezes o conceito básico de que as mudanças climáticas não são apenas um desafio futuro, mas uma questão imediata e urgente de sobrevivência — já no presente. “Diante de uma profunda injustiça: as pessoas que sofrem as consequências mais catastróficas destes abusos são as mais pobres do planeta e foram as menos responsáveis por causá-las”, apontam.
Na mensagem conjunta dos três responsáveis cristãos destaca-se o pedido de “colaboração cada vez mais estreito entre todas as igrejas no seu compromisso com o cuidado da criação”.
“Juntos, como comunidades, igrejas, cidades e nações, devemos mudar de rumo e descobrir novos caminhos de trabalhar juntos para abater as barreiras tradicionais entre os povos, para parar de competir por recursos e começar a colaborar”, escreveram.
O Papa Francisco, Bartolomeu I e o arcebispo Welby convidam os líderes mundiais a rezarem antes da 26.ª Conferência das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), que será realizada em Glasgow, de 1 a 12 de novembro próximo.
“Esta é a primeira vez que nós os três sentimo-nos compelidos a abordar juntos a urgência da sustentabilidade ambiental, o seu impacto na pobreza persistente e a importância da cooperação global. Juntos, em nome das nossas comunidades, apelamos ao coração e à mente de cada cristão, cada crente e cada pessoa de boa vontade. Oramos pelos nossos líderes que se encontrarão em Glasgow para decidir o futuro do nosso planeta e do seu povo. Mais uma vez, lembramo-nos das Escrituras: “Escolhe a vida, para que tu e a tua descendência vivam” (Dt 30:19). Escolher a vida significa fazer sacrifícios e exercer moderação.”
Tempo da Criação
Convite dos líderes religiosos para o Tempo da Criação
Caras irmãs e irmãos em Jesus, nosso Salvador e Senhor,
Do dia 1 de setembro a 4 de outubro, a família cristã celebra o belo dom da criação. Esta celebração global teve início em 1989 com o reconhecimento do Dia de Oração pela Criação por parte do Patriarcado Ecuménico, sendo hoje adotado pela comunidade ecuménica mais ampla. A oração é uma experiência e ferramenta poderosa para aumentar a conscientização e promover relações e ministérios transformadores.
O nosso tema este ano é «Uma casa para todos? Renovando o oikos de Deus». Esperamos trabalhar juntos para desenvolver um horizonte bíblico e cosmológico mais amplo, não apenas para sermos edificados pelos próprios textos, mas para desenvolvermos uma nova maneira de ver as Escrituras, a vida e a Terra, tudo no Oikos de Deus, e reconhecer a sabedoria de incontáveis irmãs e irmãos que ajuda a todos a renovar nosso mundo como uma amada comunidade global interligada e interdependente.
Nos Génesis, Deus colocou um firmamento, ou domo, sobre a Terra. A palavra "domo" é de onde obtemos palavras como "domicílio" e "doméstico" - por outras palavras, Deus coloca todos nós - todas as pessoas, toda a vida - sob o mesmo teto deste domo - estamos todos na casa, o oikos de Deus. Deus deu aos humanos o ministério de cultivar e guardar este oikos de Deus. O Rev. Dr. Martin Luther King Jr. e outros chamaram o oikos de Deus de “a Comunidade Amada”, uma comunidade na qual todos os seres vivos são igualmente membros, embora cada um tenha um papel diferente.
O oikos é uma casa para todos, mas agora está em perigo por causa da ganância, exploração, desrespeito, desconexão e degradação sistemática. Toda a criação ainda está a clamar. Desde o alvorecer da Revolução Industrial a geografia onde reconhecemos o poder criativo de Deus continua a diminuir. Hoje, apenas fragmentos da consciência humana reconhecem Deus a agir para restaurar e curar a Terra. Esquecemos que vivemos na casa de Deus, o oikos, a Comunidade Amada. A nossa interligação fundamental foi, na melhor das hipóteses, esquecida e, na pior, negada deliberadamente.
Esperamos e pedimos que nos possamos tornar novamente esta comunidade amada de discipulado intencional. Esperamos ir além dos aspetos programáticos e didáticos da vida para a vida profética e espiritual, para a ação e modo de vida, que é moldado por Jesus.
Que sejamos líderes para a renovação da vida, servos e servas de toda a vida na Comunidade Amada, o oikos de Deus.
Na graça de Deus,
Membros do Comité Consultivo do Tempo da Criação
O tema de 2021: «Uma casa para todos? Renovando o oikos de Deus»
Em cada ano, o comité diretivo ecuménico que organiza o Guia da Celebração propõe um tema para o Tempo da Criação. O tema de 2021 é «Uma casa para todos? Renovando o Oikos de Deus».
O salmista proclama: «ao Senhor pertence a terra e tudo o que nela se contém». Há duas declarações de fé no centro deste versículo. A primeira é que toda criatura pertence à comunidade da Terra. A segunda é que a comunidade inteira pertence ao Criador. Uma palavra grega para essa comunidade da Terra é oikos. Oikos é a raiz da palavra oikoumene, ou ecuménico, que descreve a nossa "casa comum", como o Papa Francisco lhe chama na Laudato Si’. A nossa casa comum, a Terra, pertence a Deus, e cada criatura amada pertence a esse oikos comum.
Enraizando nosso tema no conceito de oikos, destacamos a teia integral das relações que sustentam o bem-estar da Terra. A palavra ecologia (oikologia) descreve as relações entre animais, plantas, organismos não-sencientes e minerais, cada um com uma função vital para manter o equilíbrio desta comunidade amada. Cada criatura é importante e contribui para a saúde e resiliência do ecossistema em que vive com a sua biodiversidade. Os seres humanos pertencem à relação correta dentro dessa comunidade da Terra. Somos feitos da mesma matéria que a Terra, e somos cuidados pelas nossas cocriaturas e pelo solo.
As relações humanas também têm um significado ecológico. Relações económicas (oikonomia), sociais e políticas afetam o equilíbrio da criação. Tudo o que fabricamos, usamos e produzimos tem a sua origem na Terra, tanto os minerais, como as plantas ou os animais. Os nossos hábitos de consumo de energia e de bens afetam a resiliência dos sistemas planetários e a capacidade da Terra de se curar a si mesma e sustentar a vida. As relações políticas e económicas têm efeitos diretos na família humana e nos membros “mais-que-humanos” do oikos de Deus. Gênesis 2, 15 lembra-nos que entre as cocriaturas, Deus deu aos humanos uma vocação especial de cultivar e guardar o oikos de Deus.
A nossa fé, razão e sabedoria são necessárias para sustentar relações ecológicas, sociais, económicas e políticas justas. Pela fé, unimo-nos ao salmista lembrando que não somos guardiões e guardiãs de uma criação inanimada, mas cuidadores e cuidadoras inseridos numa comunidade da criação dinâmica e viva. A Terra e tudo o que ela contém é um dom que nos é dado com confiança. Não somos chamados a dominar, mas a salvaguardar. Pela razão, nós discernimos a melhor forma de salvaguardar as condições para a vida e de criar estruturas económicas, tecnológicas e políticas que se enraízem nos limites ecológicos da nossa casa comum. Pela sabedoria, prestamos atenção cuidadosa aos sistemas naturais e aos seus processos, às sabedorias herdadas e das tradições indígenas, e à revelação de Deus na palavra e no Espírito.
Há séculos, nós, humanos (anthropoi) ordenamos as nossas vidas e as nossas economias de acordo com a lógica dos mercados e não dos limites da Terra. Esta lógica falsa explora o oikos de Deus e faz da criação um meio para fins económicos e políticos. A atual exploração do solo, das plantas, dos animais e minerais em função do o lucro resulta na perda de habitats que são a casa de milhões de espécies, incluindo humanos cujas casas ficam sob o risco dos conflitos climáticos, perdas e danos. A razão diz-nos que, nesta era do antropoceno, a desintegração e exclusão ecológica e social causam a atual crise climática e aceleram a instabilidade ecológica. A sabedoria torna-nos prontos para encontrar as respostas e os caminhos para construir economias de vida sustentáveis e sistemas políticos justos que possam sustentar a vida para o planeta e para as pessoas.
A fé faz-nos confiar que o Espírito de Deus renova a face da Terra constantemente. Neste horizonte de esperança, o nosso chamamento batismal liberta-nos para retornarmos à nossa vocação humana de cultivar e guardar o jardim de Deus. Em Cristo, Deus chama-nos a participar da renovação de toda a Terra habitada, salvaguardando um lugar para cada criatura e recriando relações justas entre toda a criação.
Durante este Tempo da Criação litúrgico, a família cristã ecuménica chama cada casa e toda a sociedade para se arrepender e reformular os nossos sistemas políticos, sociais e económicos rumo a economias de vida justas e sustentáveis, que respeitem os limites ecológicos vitais da nossa casa comum.
Esperamos que este Tempo da Criação renove a nossa unidade ecuménica no nosso chamamento batismal para cuidar e sustentar uma viragem ecológica que garanta que todas as criaturas encontram uma casa onde possam florescer e participam da renovação do oikos de Deus.
Tempo da Criação
Cuidar do ambiente: uma questão moral?
Podemos começar com o nosso coração. Trabalhando a nossa humildade, crescendo na consciência de que não somos proprietários dos recursos naturais e reconhecendo as limitações dos ecossistemas.
O tema das alterações climáticas não é novidade e é atualmente tão debatido científica e politicamente que se tornou para muitos um assunto banal. O mais recente relatório de avaliação do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas reforçou as preocupações em torno dos acontecimentos climáticos e levantou alarmantes cenários futuros. Simultaneamente, assistimos à ocorrência de eventos extremos como fogos e cheias que são sinais destas alterações e que têm profundas consequências ambientais e sociais.
Com a quantidade de informação a que somos expostos, incluindo opiniões divergentes de especialistas como climatologistas, é difícil para os “meros mortais” como nós compreenderem com o que lidamos. De um lado, temos uma comunidade científica a alertar para os danos ambientais causados pela humanidade e a afirmarem que, a este ritmo, estamos a caminhar para a próxima extinção em massa. Do outro, temos os climatologistas céticos que afirmam que pouco se sabe com certeza; e, por isso, não devemos fazer inferências com base em pressupostos tendenciosos. Não obstante, há aspetos com os quais até os mais céticos concordam, nomeadamente que “as temperaturas à superfície aumentaram desde 1880”, que “os seres humanos têm vindo a lançar dióxido de carbono para a atmosfera” e que “o dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa têm um efeito de aquecimento no planeta” (em “Alterações Climáticas: o que sabemos, o que não sabemos”, de Judith A. Curry 2019).
Certo, o panorama é complexo, mas este debate incessante sobre a gravidade da situação, sobre quem é o mais culpado e sobre como será o futuro desfoca-nos do essencial. Não precisamos ser cientistas para sabermos que os recursos da natureza são finitos e para avaliarmos grande parte dos modelos de produção e consumo vigentes como insustentáveis.
Isto não é suficiente para nos responsabilizarmos?
Podemos começar com o nosso coração. Trabalhando a nossa humildade, crescendo na consciência de que não somos proprietários dos recursos naturais e reconhecendo as limitações dos ecossistemas. Na carta encíclica sobre o cuidado pela casa comum Laudato Si’, o Papa Francisco chama a atenção para esta introspeção e convida-nos a encontrar soluções “não só na técnica, mas também numa mudança do ser humano; caso contrário, estaríamos a enfrentar apenas os sintomas”. Façamos uma avaliação ao nosso estilo de vida: faço escolhas que contribuem para a destruição do ambiente? Se sim, a preço de quê? De comodidade? Consigo alterar algum tipo de comportamento em prol do cuidado pela casa comum? É fácil responsabilizar os dirigentes políticos e empresas e argumentar que as escolhas ao nível individual não representam muito, mas se estas escolhas influenciarem opções políticas ou empresariais já podem ser representativas. Façamos a nossa quota parte com coragem, passando “do consumo ao sacrifício, da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade de partilha” (Laudato Si’, §9).
Se a Terra é casa comum, então, a forma como nos relacionamos com a natureza é indissociável aos conceitos de fraternidade e justiça. Na carta encíclica Fratelli Tutti do Santo Padre sobre a fraternidade e a amizade social, somos convidados a combater a indiferença globalizada e a promover uma nova forma de vida, capaz de recuperar a sede de “pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns” (116). Este sair da própria bolha e amar mais, não só o que nos são próximos, mas todos, exige tempo e esforço.
Por fim, destaco o papel da educação e liderança na responsabilidade ambiental. Os jovens e crianças são os decisores do futuro e, por isso, é fundamental que as instituições de ensino e as famílias apontem para outro estilo de vida, capaz de cuidar dos ecossistemas. Não apenas as escolas e as famílias: todos nós somos convidados a ser exemplo nas pequenas ações diárias – evitar o desperdício alimentar, reduzir o consumo de água, produzir menos resíduos, apagar as luzes quando não são necessárias, plantar árvores –, amadurecendo os nossos hábitos e influenciando o estilo de vida de outros. Esta transformação pessoal nos pequenos gestos “faz parte duma criatividade generosa e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano” (Laudato Si’, §211).
Para a semana, dia 1 de setembro, a Igreja assinala o dia mundial de oração pelo cuidado da Criação, e até dia 4 de outubro somos convidados a viver o Tempo da Criação, em memória de São Francisco de Assis. E se aproveitarmos este tempo para renovarmos o nosso compromisso pelo bem comum?
Margarida Vaz Pessoa | in Ponto SJ | 23 Agosto 2021
Tempo da Criação
A oração da criança e do pardal
Admitamos: às vezes é difícil “arranjar tempo” para rezar. No meio dos afazeres dos estudos e trabalhos, compromissos e missões, há momentos em que tudo parece mais urgente e necessário. Afinal: para que serve a oração?
Conta-se que, certo dia, um padre, vendo alguns meninos a brincar, decidiu chamar um deles e perguntou-lhe: “Se soubesses que ias morrer daqui a meia hora, que farias?”, ao que o pequeno respondeu: “eu iria para a capela rezar”; em seguida, chamou outro que à mesma pergunta retorquiu: “eu ia-me confessar”. Por fim, o padre, de nome João Bosco, chamou outro pequeno rapazito que por ali brincava – Domingos Sávio – e perguntou-lhe: “Se soubesses que ias morrer daqui a meia hora, que farias?” O menino fitou-o e respondeu alegremente: “Eu? Eu continuaria a brincar”.
Há uma cândida naturalidade na forma como os santos vivem a sua relação com Deus. Esta história, que me recordaram há dias, despertou-me para isso mesmo. Com eles rasga-se o Céu e o presente é vivido como dom. O passado já não aprisiona nem o futuro atormenta: subsiste a gratidão pelo presente. A relação com o tempo e o espaço dá-se no campo da eternidade.
Quanto a nós, santos em esboço, a relação com o tempo acontece na maioria das vezes num campo de batalha. Compreende-se então a experiência dos gregos antigos, que o personificaram no Deus Chronos: o Deus do tempo que devora os filhos. Os nossos planos, a curto, médio ou longo prazo, podem sair frustrados, o tempo escapar-nos como a areia por entre os dedos. Quando damos conta, já passou.
O passado já não aprisiona nem o futuro atormenta: subsiste a gratidão pelo presente. A relação com o tempo e o espaço dá-se no campo da eternidade.
Alegra-nos, todavia, saber que também os discípulos de Jesus experimentaram a “falta de tempo”. Conta-nos S. Marcos que “a multidão dos que chegavam e partiram era tão grande que eles nem sequer tinham tempo para comer” (Mc 6, 31). E é precisamente nestas circunstâncias que os evangelhos nos narram que Jesus se retirava para fazer oração.
Admitamos: às vezes é difícil “arranjar tempo” para rezar. No meio dos afazeres dos estudos e trabalhos, compromissos e missões, há momentos em que tudo parece mais urgente e necessário. Afinal: para que serve a oração?
Confesso que tenho uma afeição particular por este tipo de perguntas: aquelas que encerram em si uma falácia a que só uma resposta desconcertante poderá responder. É que, de facto, a oração não “serve” para coisa alguma. Ela não se insere na lógica utilitarista do consumismo nem nas luzes da sociedade de performance em que vivemos. Mais apropriado é o pedido humilde dos discípulos: “Senhor, ensina-nos a rezar”. A oração é a aprendizagem humilde e relação que cresce como o grão de trigo semeado à terra.
Para aprender a rezar, será razoável pedir a Deus o olhar da águia. Ela ergue-se, em altos voos para contemplar a vida em modo panorâmico. Como resposta, talvez se receba de Deus os olhos do pardal: o passarinho que se aproxima para ver. Assemelha-se a Moisés que, diante da sarça, se adentra para chegar a um encontro e descobre um Deus com quem aprende a falar face a face, como quem fala a um amigo (Ex 33, 11). É assim a oração do pardal: a do orante que não precisa de saber tudo e que busca a oração como quem procura o unum necessarium: o Pai-nosso que, estando nos céus, se revela nas “coisas da terra”.
Para aprender a rezar, será razoável pedir a Deus o olhar da águia. Ela ergue-se, em altos voos para contemplar a vida em modo panorâmico.
Assim é a oração dos santos: como pardal que se aproxima e como criança que dança e brinca e que nunca se cansa. Recordo a conhecida pintura de Matisse: “Dança”, que suscita um inexplicável encanto pela gratuidade. Na nossa sociedade marcada pela falta de tempo, é belo e bom pensar na oração como inserção no baile divino. Neste sentido, são proféticos os gestos da criança que dança diante dos pais. Melhor: da criança que dança com os seus pais – sem medos e sem preconceitos – na autenticidade do que é e com tudo o que tem para dar, aceitando que tropeços farão parte do processo e descobrindo que o essencial é deixar-se conduzir.
Tal como numa dança, a oração exige o esforço primeiro da aprendizagem. Depois, como em tudo nas coisas de Deus, chega por fim a Hora em que o gozo ultrapassa o esforço e a vida passa a ser encarada de outro modo. O antigo peso que a oração trazia passa a suave jugo e leve carga. Por isso, o quadro de Matisse “Dança” representa aquilo a que podemos chamar o âmago da oração. Em cada ato orante assemelhamo-nos à sabedoria, que “dançava” diante do trono do Deus (cf. Prov 8, 30). Assim gostava Guardini de pensar a liturgia: como a sublime “inutilidade” do jogo da criança. Como seria bom entrarmos na lógica de reaprendizagem do valor da inutilidade. Deixar-se, por fim, ser obra de arte que Deus continuamente cria e contempla e redescobrir a oração da criança e do pardal.
Verónica Sousa | in Ponto SJ | 04 Agosto 2021
Tempo da Criação
Não basta pensar na ecologia integral; é preciso também refletir sobre a Igreja total
Na encíclica “Pacem in terris”, de 1963, há quase sessenta anos, o papa João XXIII dizia que a afirmação da mulher era um dos sinais dos tempos. Podemos reconhecer que essa novidade epocal é também uma semente do Evangelho. Esta afirmação da mulher e este caminho de afirmação eclesial e social da mulher é algo que foi também consequência do Evangelho.
Vemos, na literatura bíblica, que a teologia da Criação não separa o homem da mulher. E nas primeiras comunidades [cristãs] as mulheres têm um papel muito significativo. Basta ler, nas Cartas de Paulo, as mulheres que aparecem como protagonistas para percebermos como o que está escrito aos Gálatas é bem verdade: não há macho nem fémea, somos um só em Cristo. Isto não significa anulação da sexualidade, mas pelo contrário: neste corpo místico de Cristo que é a Igreja não estão apenas os homens – estão os homens e as mulheres. Desde o princípio.
O papa Francisco percebeu que esta é uma questão central do nosso tempo. Uma das primeiras vezes foi em 2013, em julho, ao regressar da Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro, dentro do avião; questionado, respondeu que a Igreja tinha de abrir um processo de reflexão, um estaleiro, um laboratório de pensamento.
Não basta pensar uma ecologia integral; precisamos também de uma eclesiologia integral. Não podemos deixar a maioria da humanidade a não se sentir protagonista da vida da Igreja.
A presença da mulher é fundamental. O papa Francisco está a abrir caminhos e a pedir a todos nós que reflitamos, os teólogos possam investigar, que se possa tornar às origens da Igreja, perceber como era no princípio, analisar.
Os passos que o papa Francisco tem dado são de grande encorajamento para que possa acontecer isto: a responsabilidade na Igreja e a responsabilidade pelo Evangelho não seja apenas questão de homens, mas de homens e mulheres, nas diferentes dimensões, diferentes ministérios, numa complementaridade certamente, segundo a tradição da Igreja seguramente, mas que a Igreja é chamada a fazer um caminho e que o papa Francisco introduz essa tensão para darmos passos, fazermos reflexão nesta matéria é para todos muito claro.
Card. José Tolentino Mendonça | Fonte: Jesuítas Brasil | Edição: Rui Jorge Martins in SNPC | Publicado em 02.08.2021
Tempo da Criação
A força espiritual de Simone Biles
Simone Biles é amplamente reconhecida como a maior ginasta de todos os tempos. Mas à luz de sua decisão de se retirar da competição de ginástica nos Jogos Olímpicos de Tóquio, está na hora de reconhecer o seu novo papel público de diretora espiritual.
Muitos sublinharam a importância de Naomi Osaka, Kevin Love e outros tornarem mais aceitável para os atletas darem prioridade à sua saúde mental acima de uma busca sem fim pelo sucesso na competição. Felizmente, Simone Biles foi amplamente celebrada pela decisão de o fazer. Mas também vale a pena observar como alguém toma uma decisão como essa.
Não sou terapeuta, ginasta ou alguém que teve um desempenho próximo ao de Simone Biles. Mas sou alguém que teve de pensar em grandes decisões e, por vezes, fez grande asneira ao tomá-las, tendo procurado o conselho de muitos diretores espirituais. Com frequência, acabámos por discutir se eu tenho ou não liberdade interior suficiente para fazer uma escolha.
A liberdade interior é, talvez, algo ainda mais difícil de definir, viver e a ela responder do que a liberdade em geral. Santo Inácio, fundador da Companhia de Jesus, descreveu-a como desapego nos Exercícios Espirituais. Devemos tornar-nos indiferentes a todas as coisas criadas, na medida em que nos é permitido o livre arbítrio e não estamos sob qualquer proibição, apontou. Isto conduz a algumas consequências perturbadoras: no que nos diz respeito, não devemos preferir a saúde à doença, a riqueza à pobreza, a honra à desonra, uma vida longa à curta, considerava.
Inácio aconselhou que devemos pedir na oração para sermos livres de apegos. Compreendeu quão facilmente a tralha das nossas vidas, inclusive coisas que foram boas para nós, podem acabar por se tornar tão importantes para nós, que se tornam muros no nosso caminho para ver o mundo como ele realmente é. Como resultado, a nossa capacidade de perceber e responder aos convites de Deus torna-se mais difícil. Podemos estar apegados a narrativas sobre quem somos e quem são as outras pessoas, a planos e objetivos, a ganhos monetários, a capital social, ao que os outros pensam de nós. Inácio também reconheceu a possibilidade de que coisas que, à primeira ou mesmo à segunda vista, parecem bons desejos e apegos, governem as nossas vidas de maneira a porem em risco a nossa liberdade.
Quais poderiam ser algumas das pressões externas sobre Simone Biles? Não são difíceis de imaginar: expectativas de ser a melhor de todos os tempos e atuar desportivamente como tal, patrocínios, representar a família e todo um país. «Por vezes sinto-me verdadeiramente como tendo o peso do mundo sobre os meus ombros», escreveu Biles no Instagram há alguns dias, após os testes preliminares. «Sei que o ignoro e faço parecer que a pressão não me afeta, mas, caramba, às vezes é difícil».
Mesmo que não carreguemos a pressão de não agirmos como um dos maiores atletas de todos os tempos, somos todos suscetíveis às tendências que subjazem na nossa cultura que pregam a persistência, a labuta e o seguir em frente. Seja por dinheiro ou por aceitação social, o impulso do “nunca deixe de se aperfeiçoar” aumenta os perigos de uma cultura de bem-estar que diz que só seremos perfeitos se praticarmos o autoaperfeiçoamento até morrer. Simone Biles ofereceu-nos a prova de que os impulsos para se ser o melhor não têm de dominar as nossas vidas.
É necessária uma quantidade enorme de liberdade espiritual e uma igual quantidade de coragem para fazer essa escolha. Uma das consequências de fazer uma escolha livre é que nem todos vão entender. Como podem, se não tiverem uma janela clara para a sua alma? Embora Simone Biles tenha sido amplamente compreendida por dar prioridade à sua saúde mental, alguns comentadores embirrentos tentaram dizer que a sua escolha resulta do moderno mimo dado às gerações nascidas a partir do início da década de 80, e que seria incomensurável para alguém como Michael Jordan renunciar a uma competição (esses comentadores parecem não estar cientes de que Jordan parou de jogar basquetebol no seu auge para tentar concentrar-se na sua saúde mental, depois da morte do seu pai).
O autoconhecimento e desapego de Simone Biles das narrativas que a cercam permitiram que visse como as suas ações afetaram as pessoas próximas dela, como os seus companheiros de equipa. Ela reconheceu que, como o seu desempenho estava a cair, «não queria arriscar tirar uma medalha à equipa». Por meio da humildade honesta, foi capaz de ver com olhos límpidos como a sua participação afetaria a equipa.
E apesar de não precisar, Simone Biles mostrou a consciência de que poderia ensinar algo ao resto do mundo através da sua ação, ao referir, em conferência de imprensa após o abandono, que por vezes é acertado ficar de fora das grandes competições para se concentrar em si mesmo, «porque isso mostra o quão forte se é como competidora e pessoa».
Numa carta de 1967 enviada a todos os jesuítas no mundo, Pedro Arrupe, ex-superior geral da Companhia de Jesus, escreveu: «Desejávamos que as nossas vidas e trabalho estivessem livres de uma luta por ganhos - por vezes uma força tirânica»; e que «o mundo moderno precisa de pessoas que audaciosamente dêem testemunho de que foram libertados dessa força». Bem, mundo moderno, fica a conhecer uma mulher moderna libertada dessa força.
Zac Davis | In America |Trad.: Rui Jorge Martins in SNPC | Publicado em 29.07.2021
Tempo da Criação
(Mais um Decálogo para Férias. Vale sempre a pena passar os olhos)
Decálogo para as férias
Estamos no tempo teórico de férias, mas muitos, por causa da situação económica, não poderão desfrutá-las. Outros trabalham mais que nunca ao serviço dos turistas que nos visitam e de quem faz férias. Mas no melhor dos casos – pelo menos alguns dias, ou nem que seja algumas horas – poderemos ir de férias. Também será uma boa ocasião para conhecer melhor o próprio país, os locais mais próximos, outras pessoas, e para penetrarmos mais no tesouro cultural do nosso património.
Estamos esgotados pelo confinamento e temos vontade de saborear – por escassos que sejam – alguns dias diferentes, de descanso, de espairecimento. Aqui ficam algumas reflexões para nos ajudar a viver estes dias.
1. Respeito pela natureza
Não a prejudiques, lançando lixo em todo o lado, destruindo a flora ou maltratando a fauna e os seus espaços vitais. Na praia, na montanha, no campo… descobre na natureza a primeira carta de amor que Deus te enviou.
2. Não te envergonhes de ser cristão
Sem necessidade de fazer propaganda disso, sê capaz de dar razão da tua fé e da tua esperança, se a ocasião se proporcionar.
3. Jesus não faz férias e quer acompanhar-te nas tuas
Por isso participa na Eucaristia do domingo, onde quer que estejas. Quando entrares numa igreja, não te limites a contemplar a sua beleza ou o seu património. Procura um momento de oração, de comunicação pessoal com Jesus.
4. As férias ou dias de festa são para toda a família
Dialoga, joga, brinca, passa bem o tempo com a família, sem pressas. Sobretudo, procura momentos para escutar e falar, dado que o ritmo habitual do quotidiano não proporciona muitas vezes oportunidade para isso.
5. Sê cauteloso com a vida dos outros
A vida é um grande dom de Deus. Evita os riscos desnecessários e sê prudente ao escolher atividades.
6. Valoriza a amizade
Tens uma boa ocasião para partilhar pensamentos, opiniões, gostos e distrações com outras pessoas não habituais. Estreita a amizade com os amigos, e se tiveres oportunidade faz novas amizades.
7. Recorda sempre que outros trabalham muito para que tu possas desfrutar
Essas pessoas também têm os seus direitos; respeita-os. E sê agradecido, porque um sorriso, um dizer «obrigado» com sinceridade é, muitas vezes, a melhor recompensa.
8. Descansa, mas deixa que outros também descansem
Pensa durante a noite que tu podes levantar-te tarde, mas outros fá-lo-ão muito cedo e têm direito ao seu descanso, para que possam trabalhar e servir melhor.
9. Não vale tudo
Durante o tempo livre, tempo de férias, não vale tudo. Recorda os teus compromissos, recorda a tua dignidade e a dignidade de toda a pessoa. Recorda os mandamentos.
10. Vive a caridade e a solidariedade
Pensa em quem não tem férias, porque nem sequer tem o pão de cada dia. A caridade não faz férias.
Cada um de vós, leitores, poderá acrescentar o que considerar importante.
Boas férias e boas viagens!
A partir de texto de D. Francesc Pardo i Artigas, Bispo de Girona, Espanha
In Agência SIC | Trad.: Rui Jorge Martins | Publicado em 19.07.2021 no SNPC
Tempo da Criação
A culpa é sempre dos outros?
Quem exerce a profissão de psiquiatra ou de psicoterapeuta coloca no centro do seu trabalho a necessidade de “compreender”. Cada pessoa é um mundo complexo e delicado, ligado com fios múltiplos e por vezes intricados na vida dos outros. Nesta perspetiva, qualquer comportamento, mesmo quando não é partilhável, pode tornar-se compreensível se for lido no interior de uma história que é sempre única e singular.
A experiência ensina que quem trabalha sobre a sua história encontra sempre necessariamente ligações entre as suas dificuldades e os comportamentos dos outros. Se não se presta atenção, a responsabilidade daquilo que somos e de como nos comportamentos desloca-se insensivelmente para fora de nós: a partir do nosso pai e da nossa mãe que, com os seus limites, as suas faltas de amor, os seus erros, são muitas vezes individualizados como aqueles que condicionaram a manifestação dos nossos cansaços e dos nossos erros.
As nossas falhas e as nossas insuficiências tornam-se então não só compreensíveis, mas também justificadas, porque encontram a sua origem fora de nós, nesta cadeia sem fim das responsabilidades. Mas será mesmo que tudo o que se pode compreender também se pode justificar?
Temo que uma difusão imprópria e superficial de conceitos psicológicos complexos tenha acabado, aos poucos, por colocar em crise no sentir comum o tema crucial da responsabilidade pessoal, quer na vida familiar quer na vida social.
Na vida familiar, tornou-se difícil para os pais fazer compreender aos filhos a necessidade de aprender a responder pelas suas ações: não é raro, hoje, encontrar pais que continuam a carregar a responsabilidade pelos comportamentos dos filhos crescidos, como também é muito frequente que os filhos atribuam aos pais a culpa pelos seus insucessos ou a responsabilidade pelas distorções do seu carácter.
Mas também nas relações entre pares, como no casal, quando se verifica uma crise é sempre o outro que errou, e a atenção é totalmente concentrada nos seus defeitos, que se tornam causa e origem únicas das nossas legítimas “razões”.
No plano dos comportamentos sociais, esta deslocação da responsabilidade para fora de si representa um modelo atualmente muito espalhado, que deu origem a uma prática que segue a lógica inexorável da culpa: em toda a discussão, em todo o conflito, em toda a incompreensão, aquilo que conta é sempre encontrar um culpado, que nos permita fugir ao confronto com a complexidade e nos exonere da necessidade de mudar.
Encontrar um culpado por aquilo que não funciona ou faz sofrer representa, para a psique, um alívio imediato; combater o mal fora de nós é certamente mais fácil e menos doloroso que especificar o nosso envolvimento, coisa que exigiria assumir a responsabilidade de nós próprios e das nossas ações.
No entanto, a verdadeira liberdade consiste precisamente em assumir a responsabilidade de si próprio; aprender a responder, pelas próprias decisões, só por si.
Por isso, quando vimos de uma história difícil, a liberdade é agarrar a situação hoje e optar por deixar ir o passado, para viver da melhor maneira possível o presente; diante de alguém que nos insulta, liberdade é decidir, se o quisermos, não responder com o insulto. Diante de uma doença ou de um luto, liberdade é escolher como continuar a investir na vida; diante de alguém que nos faz mal, liberdade é decidir permanecer correto e não responder ao mal com o mal.
Se o quisermos, em cada momento da vida é-nos dada de novo esta liberdade: de corrigir aquilo que errámos, de deixar ir embora quem nos feriu, de esquecer as falhas, de usufruir plenamente do tempo presente. Na condição de deixarmos de carregar os outros com a nossa responsabilidade.
Mariolina Ceriotti Migliarese |In Avvenire | Trad.: Rui Jorge Martins in SNPC |Publicado em 14.07.2021
Tempo da Criação
A fé em família
De certa forma, a confiança que temos uns nos outros é também a confiança que temos em Jesus. Se pensarmos que é nas pequenas coisas do dia-a-dia que vemos a Sua presença na nossa vida, este jogo é para mim, sem dúvida, um exemplo disso.
Já devem ter passado uns quatro ou cinco anos desde a primeira vez que jogámos em família um jogo que trouxe da catequese. Chegámos a casa, depois da missa das sete em Santa Isabel, e ao jantar instalou-se a confusão e animação habituais. Cá em casa somos sete e à mesa todos querem contar alguma coisa: o acontecimento mais relevante do dia, as novidades, as preocupações, enfim… Às vezes até há discussão: “eu já tinha começado a falar primeiro!”, “da última vez foste tu”, “agora sou eu!”, até há quem chore por não conseguir falar ou ser ouvido… Mas naquele sábado, depois de cada um contar o seu dia, partilhei o que tínhamos falado na catequese. Não me lembro ao certo do tema, nem do nome do jogo, mas lembro-me bem da proposta. Tão bem, que ainda hoje jogamos de vez em quando.
O jogo dividia-se em duas rondas: na primeira cada um dizia o que mais gostava em cada um dos outros, uma coisa que dizia ou fazia. Até foi fácil identificar as qualidades dos outros e soube bem saber que o que fazemos ou dizemos tem um impacto positivo nos que vivem connosco, ou até mesmo perceber que o que fazemos bem é reconhecido. Passámos depois à segunda ronda, essa talvez tenha sido mais difícil. Era altura de dizer o que menos gostávamos ou que gostaríamos que o outro fizesse de maneira diferente e, tal como na primeira ronda, não podíamos repetir o que já tinha sido dito. Ao início foi mesmo estranho dizer abertamente ao pai e à mãe que não gostávamos de uma ou outra coisa que faziam ou diziam! As emoções acabaram por vir ao de cima, algum nervosismo por termos medo de magoar os irmãos ou os pais e a estranheza de podermos dizer o que gostamos menos num sentido construtivo e não ofensivo.
Não sei se seria por receio da reação ou apenas porque não estávamos habituados (e talvez por isso a minha irmã mais nova não tivesse querido jogar), mas a verdade é que, ao longo do jogo fomos percebendo que numa família podemos ser realmente verdadeiros uns com os outros. Vimos que o sentimento de desconforto inicial se traduziu numa relação de maior confiança e que nada disto nos afastou, antes pelo contrário, acabou por criar entre nós um laço de maior proximidade. Ninguém ficou magoado com o que os restantes disseram. O facto de ouvirmos o que têm a dizer sobre nós, obrigou-nos a reconhecer os nossos defeitos e, acima de tudo, fez-nos estar mais atentos às nossas ações e a fazer um esforço para melhorá-las. O tempo foi passando e nas vezes seguintes que este jogo surgiu o diálogo tornou-se bem mais fácil. Os que não quiseram jogar da primeira vez entusiasmaram-se e também participaram. Acredito que o facto de estarmos mais velhos tenha facilitado. Pensando bem, é sinal de que vamos crescendo todos juntos.
Quando me lembro destes momentos fico a pensar que, de certa forma, a confiança que temos uns nos outros é também a confiança que temos em Jesus. Se pensarmos que é nas pequenas coisas do dia-a-dia que vemos a Sua presença na nossa vida, este jogo é para mim, sem dúvida, um exemplo disso. O que começou por ser um momento de jogo em família, despertou em mim uma maior consciência sobre mim mesma. Fiquei a conhecer-me melhor e a estar mais atenta ao impacto que as minhas ações ou comportamentos têm, ou podem ter, nos outros, não só em família mas também entre amigos.
Voltando ao início da história, e ao dia em que trouxe este jogo para casa, não deixo de me lembrar da sorte que tive em ter tido a tia Sofia como catequista! Para além de nos ter proporcionado momentos de reflexão e aprendizagem, deixar-nos à vontade para colocarmos todas as nossas dúvidas, acho que uma das melhores coisas que retive foi a vontade de viver a verdade e a fé em família. Aquilo que dizia ainda há pouco sobre, muitas vezes, não termos noção do impacto que os outros têm na nossa vida, aplica-se agora aqui: uma simples sugestão num dia de catequese mudou a forma como vivemos em família.
Maria Inês Gonçalves | In Ponto sj – O portal dos Jesuítas em Portugal | 7 Julho 2021
Tempo da Criação
Começar pelos últimos, amar o Evangelho, ser criativo
O caminho dos últimos
É deles que se parte, dos mais frágeis e indefesos. Deles. Se não se parte deles, não se percebe nada. (…) A caridade é a misericórdia que vai em busca dos mais frágeis, que se estende até às fronteiras mais difíceis para libertar as pessoas das escravidões que as oprimem e torná-las protagonistas das suas vidas. Há muitas opções significativas (…) que ajudam a praticar esta misericórdia: da objeção de consciência ao apoio ao voluntariado; do compromisso com a cooperação com o Sul do planeta às intervenções no contexto de emergências humanitárias; da perspetiva global ao complexo fenómeno das migrações, com propostas inovadoras como os corredores humanitários, à ativação de instrumentos capazes de permitir a aproximação à realidade, como os centros de escuta, os observatórios da pobreza e dos recursos.
É belo alargar as veredas da caridade, tempo sempre o olhar fixo nos últimos de cada tempo. Ampliar o olhar, sim, mas partir dos olhos do pobre que tenho à minha frente. É assim que se aprende. Se não somos capazes de olhar os pobres nos olhos, de olhá-los nos olhos, de os tocar com um abraço, com a mão, não faremos nada. É com os seus olhos que é preciso ver a realidade, porque ao olhar os olhos dos pobres vemos a realidade de uma maneira diferente daquela que provém da nossa mentalidade. A história não se vê da perspetiva dos vencedores, que a fazem aparecer bela e perfeita, mas da perspetiva dos pobres, porque é a perspetiva de Jesus. São os pobres que põem o dedo na chaga das nossas contradições e inquietam a nossa consciência de maneira salutar, convidando-nos à mudança. E quando o nosso coração, a nossa consciência, veem o pobre, os pobres, não se inquieta, temos de parar: porque há alguma coisa que não está a funcionar.
O caminho do Evangelho
Refiro-me ao estilo que se deve ter, que é só um, precisamente o do Evangelho. É o estilo do amor humilde, concreto mas não vistoso, que se propõe mas não se impõe. É o estilo do amor gratuito, que não busca recompensas. É o estilo da disponibilidade e do serviço, na imitação de Jesus, que se fez nosso servo. É o estilo descrito por S. Paulo, quando diz que a caridade «tudo cobre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta».
Toca-me a palavra «tudo». Tudo. É dita a nós, que gostamos de fazer distinções. Tudo. A caridade é inclusiva, não se ocupa apenas do aspeto material nem apenas do espiritual. A salvação de Jesus abraça a pessoa inteira. Precisamos de uma caridade dedicada ao desenvolvimento integral da pessoa: uma caridade espiritual, material, intelectual. (…)
O caminho do Evangelho indica-nos que Jesus está presente em cada pobre. Faz-nos bem recordá-lo para nos libertarmos da tentação, sempre recorrente, da autorreferencialidade eclesiástica e ser uma Igreja da ternura e da proximidade, onde os pobres são bem-aventurados, onde a missão está no centro, onde a alegria nasce do serviço. Recordemos que o estilo de Deus é o estilo da proximidade, da compaixão e da ternura. Este é o estilo de Deus. Há dois mapas evangélicos que nos ajudam a não nos perdermos no caminho: as Bem-aventuranças (Mateus 5, 3-12) e Mateus 25 (31-46). Nas Bem-aventuranças a condição dos pobres reveste-se de esperança, e a sua consolação torna-se realidade, enquanto as palavras do Juízo final – o protocolo segundo o qual seremos julgados – fazem-nos encontrar Jesus presente nos pobres de cada tempo. E das fortes expressões de juízo do Senhor extraímos também o convite à parrésia da denúncia. Esta nunca é polémica contra alguém, mas profecia para todos: é proclamar a dignidade humana quando é pisada, é fazer ouvir o grito sufocado dos pobres, é dar voz a quem não a tem.
O caminho da criatividade
A experiência (…) não é uma bagagem de coisas a repetir; é a base sobre a qual construir para declinar de maneira constante aquela que S. João Paulo II chamou «fantasia da caridade». Não nos deixemos desencorajar diante dos números crescentes de novos pobres e de novas pobrezas. Há muitas e crescem. Continuemos a cultivar sonhos de fraternidade e a ser sinais de esperança. Imunizemo-nos contra o vírus do pessimismo, partilhando a alegria de ser uma grande família. Nesta atmosfera fraterna o Espírito Santo, que é criador e criativo, e também poeta, sugerirá novas ideias, adaptadas aos tempos que vivemos. (…)
Gostaria que se prestasse atenção aos jovens. São as vítimas mais frágeis desta época de mudança, mas também os potenciais artífices de uma mudança de época. São eles os protagonistas do amanhã. Não são o amanhã, são o futuro, mas protagonistas do amanhã. Nunca é desperdiçado o tempo que se dedica a eles, para tecer em conjunto, com amizade, entusiasmo, paciência, relações que superem as culturas da indiferença e da aparência. Os “like” não chegam para viver: é preciso fraternidade, é preciso alegria verdadeira. (…) Não esquecer o modelo das crianças: para o Alto e para o outro.
Papa Francisco
Discurso à Cáritas Italiana, 26.6.2021 | Trad./Edição: Rui Jorge Martins
Publicado em 28.06.2021
Tempo da Criação
Tocar e deixar-se tocar
O que é a impureza? Quando é que uma pessoa é impura, isto é, indigna de estar com os outros e com Deus? Quando é que uma pessoa fica “marcada” por uma condição maléfica? E poderíamos continuar a colocar perguntas semelhantes ou paralelas, porque desde sempre estas interrogações emergem nos nossos corações nas diferentes situações da nossa vida. E as respostas que nós, seres humanos, demos, e possivelmente continuamos a dar, nem sempre refletem a vontade do Criador, os sentimentos de Deus. Infelizmente, os caminhos religiosos traçados pela humanidade refletem muitas vezes não o pensamento de Deus, mas são antes o fruto de sentimentos humanos para os quais se encontraram justificações que são fonte de alienação ou de separação entre os humanos.
Nestes percursos, o sangue, sinal da vida nos animais e nos humanos, atraiu fortemente a atenção sobre si. Cada um de nós nasceu no sangue que flui do útero da mãe e cada um de nós morre quando o seu sangue deixa de correr. Eis, portanto, a Lei e as leis: o sangue que sai de uma mulher na menstruação ou no nascimento de um filho torna-a impura, assim como cada pessoa quando morre entra na situação de impureza, porque está à mercê da corrupção do seu corpo. O sangue torna impuro, torna indigno, e esta, para a mulher, é uma escravidão traçada pela sua condição segundo a Lei, e por isso – dizem os homens religiosos – de Deus. A mulher impura por causa da menstruação ou da gravidez não tocará coisas santas, não entrará no templo (no Santo), e para purificar-se deverá oferecer um sacrifício; também quem tocar uma mulher impura ficará impuro, impuro como um leproso e quem o toca, impuro como um morto e quem o toca. Daqui erguem-se barreiras, muros, separações entre pessoas, em síntese, a imposição da exclusão e da marginalização. É verdade que com o objetivo de “salvaguardar o bem”, para evitar o contágio, para instaurar um regime de imunidade; mas ao preço da criação de uma barreira e da indignidade-impureza colocada como selo sobre algumas pessoas. Mesmo as medidas de precaução acabam por se tornar uma condenação.
Mas Jesus veio precisamente para fazer cair estas barreiras: Ele sabia que não é possível que o sangue de um animal oferecido em sacrifício possa eliminar o pecado e tornar a pessoa pura, como da mesma maneira o sangue de uma mulher derramado pelo natural ciclo menstrual ou o corpo de um morto não podem gerar impureza, indignidade de estar com os outros e diante de Deus. Por isso os Evangelhos sublinham que Jesus não só curava os doentes, os impuros, como os leprosos ou como as mulheres atingidas por hemorragia, mas tocava-os e por eles se fazia tocar. Jesus abole toda a espécie de separação imposta pela lógica sacral, dado que Ele não era um homem sacral como os sacerdotes, sendo um judeu leigo, não de estirpe sacerdotal, e porque via nas leis da sacralidade uma contradição à caridade, à relação tão vital para os seres humanos. Amar o outro vale mais que a oferta a Deus de um sacrifício, ser misericordioso é viver o preceito, o mandamento dado pelo Deus misericordioso e compassivo. Em Jesus havia a presença de Deus, e por isso era «o Santo de Deus», mas não temia contrair a impureza; pelo contrário, proclamava e mostrava que a santidade de Deus santifica, em vez de tornar impuro, consome e queima o pecado e a impureza, porque é uma santidade que é misericórdia. Nesta ação de Jesus, além disso, é impossível não ver uma libertação da mulher da escravidão e alienação impostas pela cultura dominante.
Por isso Jesus deixava que os doentes o tocassem, tivessem contacto com o seu corpo, por isso Ele tocava os doentes: toca o leproso para o curar, toca as orelhas e a língua do surdo-mudo para as abrir, toca os olhos do cego para voltar a dar-lhe a vista, toca as crianças e impõe as suas mãos sobre elas, toca o morto para o ressuscitar; e por sua vez deixa tocar-se pelos doentes, por uma prostituta, pelos discípulos, pelas multidões… Tocar, esta experiência de comunicação, de con-tacto, de corpo a corpo, ação sempre recíproca (toca-se e é-se tocado, incindivelmente), este comunicar a sua alteridade e sentir a alteridade de outro… Tocar é o sentido fundamental, o primeiro a manifestar-se em cada um de nós, e é também o sentido que mais nos envolve e faz experimentar a intimidade do outro. Tocar é sempre proximidade, reciprocidade, relação, é sempre o vibrar de todo o corpo ao contacto com o corpo do outro.
As duas ações de Jesus reportadas por Marcos 5, 21-43 estão unidas entre elas pelo tocar: Jesus é tocado por uma mulher hemorroíssa e toca o cadáver de uma criança. Duas ações proibidas pela Lei, e no entanto aqui colocadas em relevo como ações de libertação e de caridade. Este tocar não é uma ação mágica, mas eminentemente humana, humaníssima: “toco-te, logo estou contigo!”. Enquanto Jesus passa com a força da sua santidade no meio das pessoas, uma mulher doente de hemorragia vaginal pensa que pode ser curada tocando apenas o seu manto, o “tallit”, o xaile da oração. Consegue-o, e então, amedrontada e a tremer, na convicção de ter cometido um gesto interdito pela Lei, um ato que torna Jesus impuro, uma vez descoberta confessa o seu “pecado”. Mas Jesus, que com o seu olhar a procura entre a multidão, escutada a confissão diz-lhe com ternura e compaixão: «Filha, a tua fé salvou-te. Vai em paz e fica curada do teu mal». Ele comporta-se desta maneira não para infringir a Lei, mas porque se refere à vontade de Deus, sem se deter no preceituário humano. E se Deus tinha descido para libertar o seu povo no Egito, terra impura, habitada por gente impura, também Jesus sente que pode estar entre impuros e encontrar-se com eles, dando-lhes a libertação. Por isso Ele sentiu sair de si «uma energia» quando a mulher o tocou, porque a sua santidade passava para aquela mulher impura.
Logo depois Jesus é conduzido à casa do chefe da sinagoga, Jairo, onde jaz a sua filhinha de doze anos há pouco morta. Levando consigo apenas Pedro, Tiago e João, mal entra na casa ouve tumulto, lamentos e gritos por aquela morte; então, mandando todos para fora do quarto, naquele silêncio toma a mão da menina e diz-lhe em aramaico. «Talità kum», menina, Eu te digo: levanta-te! Também aqui a santidade de Jesus vence a impureza do cadáver, vence a possível corrupção e comunica à criança uma força que é ressurreição, possibilidade de voltar a pôr-se de pé e retomar a vida.
Tocar o outro é um movimento de compaixão;
tocar o outro é desejar com ele;
tocar o outro é falar-lhe silenciosamente com o seu corpo, com a sua mão;
tocar o outro é dizer-lhe: «estou aqui para ti»;
tocar o outro é dizer-lhe: «quero-te bem»;
tocar o outro é comunicar-lhe aquilo que sou e aceitar aquilo que ele é;
tocar o outro é um ato de reverência, de reconhecimento, de veneração.
Da contemplação desta página do Evangelho é-nos revelado que a nossa carne, o nosso corpo não era indigno de Deus: por isso o Filho de Deus se fez carne, não de modo aparente, mas de modo real e autêntico. É a nossa carne que se tornou a carne de Deus, e Jesus, o Filho, assumiu-a não como um peso de que libertar-se voltando ao Pai, mas como um meio para encontrar a humanidade, para ser nosso irmão em plena solidariedade, igual a nós em tudo exceto no pecado. É graças a esta carne que Jesus pôde tocar e ser tocado, viver o sentimento da misericórdia e da compaixão, e revelar-nos a proximidade e a ternura de Deus. Também nós, como seus discípulos e discípulas, também a Igreja deve “ousar a carne” e saber abraçar, tocar, curar a “carne de Cristo” nos sofrimentos, nos doentes, nos pecadores, em todos os corpos dos homens e das mulheres que, com gritos fortes ou mudos, invocam a salvação das suas vidas.
Enzo Bianchi | In SNPC | Trad.: Rui Jorge Martins | Publicado em 25.06.2021
Tempo da Criação
Papa incentiva a «modelo de retoma» capaz de gerar «soluções mais inclusivas e sustentáveis»
Vídeo mensagem do papa Francisco
por ocasião da 16ª edição do Fórum Globsec Bratislava
(15 a 17 de junho de 2021)
Sr. Presidente ,
Obrigado pelo seu amável convite para participar, através desta mensagem de vídeo, na 16ª edição do Fórum GLOBSEC de Bratislava , dedicado ao tema: «Reconstruamos melhor o mundo».
Saúdo-vos a todos os organizadores e participantes desta conferência. Gostaria de expressar a minha gratidão pela plataforma que o Fórum de Bratislava oferece ao importante debate sobre a reconstrução do nosso mundo após a experiência da pandemia, que nos obriga a enfrentar uma série de graves questões socioeconómicas, ecológicas e políticas, todas elas relacionadas entre si.
A esse respeito, gostaria de oferecer algumas ideias, inspirando-me no método do trinómio ver - julgar - agir.
Ver
Uma análise séria e honesta do passado, que inclui o reconhecimento das deficiências sistémicas, dos erros cometidos e da falta de responsabilidade para com o Criador, o próximo e a criação, parece-me essencial para desenvolver uma ideia de recuperação que visa não só em reconstruir o que havia, mas corrigir o que não funcionava antes do advento do Coronavírus e que contribuiu para agravar a crise. Quem quiser levantar-se de uma queda deve enfrentar as circunstâncias de seu próprio colapso e reconhecer os elementos de responsabilidade.
Vejo, portanto, um mundo que foi enganado por uma sensação ilusória de segurança baseada na fome de lucro.
Vejo um modelo de vida económico e social, caracterizado por tantas desigualdades e egoísmo, em que uma pequena minoria da população mundial é dona da maioria dos bens, muitas vezes não hesitando em explorar pessoas e recursos.
Vejo um estilo de vida que não se preocupa o suficiente com o meio ambiente. Estamos acostumados a consumir e destruir sem restrições o que é de todos e deve ser salvaguardado com respeito, criando uma "dívida ecológica" a ser suportada sobretudo pelos pobres e pelas gerações futuras.
Julgar
A segunda etapa é avaliar o que foi visto. Ao saudar os meus colaboradores da Cúria Romana por ocasião do último Natal, fiz uma breve reflexão sobre o significado da crise. A crise abre novas possibilidades: é de facto um desafio aberto para enfrentar a situação atual, para transformar o tempo da prova num tempo de escolha. Uma crise, de facto, obriga a escolher, para o bem ou para o mal. De uma crise, como já repeti, ninguém sai igual: ou sai melhor ou sai pior. Mas nunca o mesmo.
Julgar o que vimos e experimentámos incentiva-nos a melhorar. Vamos aproveitar esse tempo para dar alguns passos em frente. A crise que atingiu a todos lembra-nos que ninguém se salva sozinho. A crise abre-nos o caminho para um futuro que reconhece a verdadeira igualdade de cada ser humano: não uma igualdade abstrata, mas concreta, que oferece às pessoas oportunidades justas e reais de desenvolvimento.
Agir
Quem não age desperdiça as oportunidades oferecidas pela crise. Atuar diante das injustiças sociais e da marginalização requer um modelo de desenvolvimento que coloque "cada homem e todo o homem" no centro "como pilar fundamental para respeitar e proteger, adotando uma metodologia que inclui a ética da solidariedade e da“ caridade política ”. ”( Mensagem ao Diretor da UNESCO , Sra. Audrey Azoulay , 24 de março de 2021).
Cada ação precisa de uma visão, uma visão integral e de esperança : uma visão como a do profeta bíblico Isaías, que viu as espadas transformarem-se em arados, as lanças em foices (cf. Is 2,4 ). Atuar para o desenvolvimento de todos é realizar uma obra de conversão. E, sobretudo, decisões que convertem morte em vida, armas em comida.
Mas todos nós precisamos de empreender também uma conversão ecológica. Na verdade, a visão global inclui a perspectiva de uma criação entendida como uma "casa comum" e requer ações urgentes para protegê-la.
Caros amigos, animados pela esperança que vem de Deus, espero que as vossas trocas de ideias destes dias contribuam para um modelo de recuperação capaz de gerar soluções mais inclusivas e sustentáveis; um modelo de desenvolvimento baseado na convivência pacífica entre os povos e na harmonia com a criação. Bom trabalho e obrigado!
Tempo da Criação
50 anos do Copic
Católicos, protestantes e evangélicos assinam programa Eco-Igrejas com organizações ambientais
António Marujo | 11 Jun 21| in Sete Margens
A Conferência Episcopal Portuguesa (CEP, católica), o Conselho Português de Igrejas Cristãs (Copic, protestante) e a Aliança Evangélica Portuguesa (AEP) subscrevem neste sábado, 12 de Junho, o memorando para o programa Eco-Igrejas Portugal, que será liderado pela organização não governamental de ambiente A Rocha e subscrito ainda pela Rede Cuidar da Casa Comum.
Com base em indicadores de sustentabilidade, o programa pretende apoiar o diagnóstico, a melhoria contínua e a comunicação da sustentabilidade das comunidades cristãs. Ao mesmo tempo, procurará promover a ética da sustentabilidade, “contida nos princípios eco-teológicos do cristianismo, e a aplicação nas diferentes Igrejas e comunidades cristãs de indicadores de diagnóstico, educação e gestão ambiental visando uma melhoria contínua da sustentabilidade ecológica”.
Entre os objectivos do memorando, a cujo texto o 7MARGENS teve acesso em primeira mão, estão o de “partilhar exemplos de boas práticas que possam ser tidos em conta na tomada de decisão orientada para a sustentabilidade ecológica das comunidades cristãs”. Outro dos propósitos é o de “atender a uma adequada formação ao nível dos respectivos fundamentos bíblicos e teológicos”. Esta ideia será olhada “em particular no âmbito das gerações mais jovens, em ordem ao compromisso concreto na salvaguarda da criação”.
“Pela primeira vez em Portugal, três instituições cristãs representativas vão assinar um memorando conjunto”, diz ao 7MARGENS o bispo da Igreja Lusitana (Comunhão Anglicana) e presidente do Copic, Jorge Pina Cabral, perguntado sobre o significado do acto que neste sábado se realizará.
“É sinal de que, em assuntos concretos, as diferentes igrejas cristãs conseguem um entendimento. E isso pode dar alguma dinâmica à caminhada ecuménica, mesmo entre a juventude” tendo em conta o âmbito do documento, acrescenta Pina Cabral.
O documento será subscrito dias depois de o 7MARGENS a revista Família Cristã terem realizado um inquérito a meia centena de instituições católicas sobre a aplicação da encíclica Laudato Si’ na Igreja em Portugal.
Um organismo para a unidade
A assinatura do documento decorre numa cerimónia inicialmente convocada pelo Copic para assinalar os 50 anos da criação deste organismo. Com efeito, em 10 de Junho de 1971, no Centro Ecuménico Reconciliação (Figueira da Foz), as igrejas Evangélica Metodista, Evangélica Presbiteriana e Lusitana Católica Apostólica reuniram-se para criar um organismo que “pretende dar no contexto religioso e sociológico português um testemunho de consenso, de cooperação, de unidade, em obediência” à Palavra de Deus. Actualmente, a Igreja Evangélica Alemã do Porto integra também o Copic.
O acto deste sábado é também “uma forma de dar expressão ao compromisso ecuménico actual”, na perspectiva do que tem sido a reflexão cristão já desde a década de 1970, aliando os temas da justiça, paz e integridade da criação, recorda Pina Cabral.
Podendo ser acompanhada através do canal YouTube do Copic, a cerimónia deste sábado tem início às 15h na catedral lusitana de S. Paulo (Rua das Janelas Verdes, Lisboa).
O memorando aponta ainda outros objectivos às igrejas que o subscrevem – e que representam grande parte do universo de igrejas e comunidades cristãs em Portugal: “Facilitar o acesso à opinião de peritos em transição ecológica que efetuem recomendações concretas no âmbito de uma ecologia sustentável e integral; promover a comunicação da sustentabilidade das comunidades cristãs, locais de culto e equipamentos em Portugal; criar impactos ambientais positivos de grande escala; (…) contribuir para a mudança de estilos de vida na linha de uma ecologia sustentável e integral.”
Estes objectivos são assumidos “como um elemento fundamental e estruturante” da identidade e missão das igrejas e comunidades cristãs, “bem como um caminho para um testemunho comum e mais credível do Evangelho”.
Os indicadores que estão na base do programa, desenvolvidos pel’A Rocha, são inspirados em modelos já postos em prática no Reino Unido e em França (onde o projecto Église Verte, ou igreja verde, já atribuiu mais de 550 selos verdes). E pretendem “contribuir para dar visibilidade às comunidades que já adoptam estas práticas ambientais, motivando-as para a melhoria contínua”.
A gestão de edifícios e propriedades, o envolvimento comunitário e global, a celebração e formação, bem como os estilos de vida serão as áreas a abarcar, a partir de uma lista de cinco pontos que medirão os indicadores para atribuição do certificado eco igreja.
Impactos ambientais, sociais, económicos e culturais
Os indicadores medirão os impactos ambiental (incentivo à descarbonização, economia circular e eficiente) e social (apoio dos mais vulneráveis, combate à pobreza e às desigualdades sociais, acolhimento e integração de minorias étnicas e de migrantes e consolidação de comunidades de fé comprometidas com a construção de um mundo mais justo e fraterno). Outras duas dimensões a medir serão o impacto económico (melhorar o equilíbrio das contas das comunidades cristãs e aumentar a retenção de proventos económicos para a economia local) e cultural (mudança de estilos de vida apoiados em novas maneiras de habitar e transformar o mundo).
O programa inspira-se ainda nas “reflexões e apelos” feitos por entidades como o Conselho Mundial das Igrejas, o patriarca ortodoxo Bartolomeu, o arcebispo de Cantuária (primaz anglicano) Justin Welby, a Aliança Evangélica Mundial ou o Papa Francisco com as encíclicas Laudato Si’, de 2015, e Fratelli Tutti, de 2020. Também a assembleia ecuménica de Basileia, em 1989, sobre Justiça, Paz e Integridade da Criação, e a Charta Oecumenica de 2001.
“Integrar a preocupação e o cuidado com a casa comum, numa perspectiva integral”, de forma a “conduzir a uma mudança de comportamentos e atitudes” é também um desiderato do memorando. “Contrariando populismos e outro tipo de apropriações e manipulações das preocupações ambientais, as tradições religiosas podem conduzir (…) a uma ética do cuidado, responsável e solidária”, diz o documento a assinar, que promete ainda a disponibilização dos resultados através de uma aplicação digital.
O memorando será assinado por Maria da Conceição Almeida Santos (A Rocha), António Calaim (Aliança Evangélica Portuguesa), Jorge Pina Cabral (Copic), Rita Veiga (Rede Cuidar da Casa Comum) e o bispo de Setúbal e presidente da CEP, José Ornelas Carvalho.
Na cerimónia, que conta com a presença do Presidente da República, serão ainda assinalados o 20º aniversário da Lei da Liberdade Religiosa em Portugal e o 20º aniversário da Carta Ecuménica para a Europa. A celebração conta ainda com a presença do presidente da Conferência das Igrejas Europeias (que reúne 114 igrejas de diferentes tradições), Christian Krieger.
Tempo da Criação
MENSAGEM DE SUA SANTIDADE PAPA FRANCISCO
PARA O LANÇAMENTO DA DÉCADA
DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE A RESTAURAÇÃO DE ECOSSISTEMAS
27 de maio de 2021
A Sua Excelência a Sra. Inger Andersen, Diretora Executiva do PNUMA
e a Sua Excelência o Sr. Qu Dongyu, Diretor Geral da FAO
Excelências,
Amanhã celebraremos o Dia Mundial do Meio Ambiente. Esta comemoração anual incentiva-nos a lembrar que tudo está interligado. Uma verdadeira «preocupação com o meio ambiente [...] deve estar associada a um amor sincero pelo próximo e a um compromisso inabalável para resolver os problemas da sociedade».
A festa de amanhã, porém, terá um significado especial, pois acontecerá no ano em que se inicia a Década das Nações Unidas para a Restauração do Ecossistema. Esta década convida-nos a fazer compromissos de dez anos com o objetivo de cuidar de nossa casa comum, «apoiando e intensificando os esforços para prevenir, deter e reverter a degradação dos ecossistemas em todo o mundo e aumentar a consciência sobre a importância de uma restauração bem-sucedida dos ecossistemas».
Na Bíblia lemos que: «Os céus proclamam a glória de Deus; / os céus proclamam a obra das suas mãos. / Dia após dia eles falam; / noite após noite eles revelam conhecimento. / Eles não falam, não usam palavras; / nenhum som é ouvido deles».
Todos nós fazemos parte deste dom da criação. Somos uma parte da natureza, não separados dela. Isso é o que a Bíblia nos diz.
A atual situação ambiental chama-nos a agir agora com urgência para nos tornarmos cada vez mais guardiões responsáveis da criação e restaurar a natureza que temos destruído e explorado por muito tempo. Caso contrário, corremos o risco de destruir a própria base da qual dependemos. Corremos o risco de inundações, fome e graves consequências para nós e para as gerações futuras. Isso é o que muitos cientistas nos dizem.
Precisamos de cuidar uns dos outros e dos mais fracos entre nós. Continuar neste caminho de exploração e destruição - de humanos e da natureza - é injusto e imprudente. Isso é o que uma consciência responsável nos diria.
Temos a responsabilidade de deixar um lar comum habitável para nossos filhos e para as gerações futuras.
No entanto, quando olhamos ao nosso redor, o que vemos? Vemos crises levando a crises. Vemos a destruição da natureza, bem como uma pandemia global levando à morte de milhões de pessoas. Vemos as consequências injustas de alguns aspetos dos nossos sistemas económicos atuais e inúmeras crises climáticas catastróficas que produzem graves efeitos nas sociedades humanas e até mesmo a extinção em massa de espécies.
E ainda há esperança. «Temos a liberdade necessária para limitar e direcionar a tecnologia; podemos colocá-la ao serviço de outro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral ».
Estamos a testemunhar um novo compromisso de vários Estados e atores não-governamentais: autoridades locais, setor privado, sociedade civil, juventude ... esforços para promover o que podemos chamar de “ecologia integral”, que é um conceito complexo e multidimensional: apela a uma visão de longo prazo; destaca a indissociabilidade da «preocupação com a natureza, justiça para os pobres, compromisso com a sociedade e paz interior»; visa restaurar «os vários níveis de equilíbrio ecológico, estabelecendo a harmonia dentro de nós, com os outros, com a natureza e com os outros seres vivos, e com Deus». Torna cada um de nós consciente da nossa responsabilidade como seres humanos, para connosco próprios, para com o nosso próximo, para com a criação e para com o Criador.
No entanto, somos alertados de que nos resta pouco tempo - os cientistas dizem nos próximos dez anos, o período desta Década da ONU - para restaurar o ecossistema, o que significará a restauração integral da nossa relação com a natureza.
Os muitos “avisos” que estamos a experimentar, entre os quais podemos ver a Covid-19 e o aquecimento global, estão a pressionar-nos a tomar medidas urgentes. Espero que a COP26 sobre mudança climática, a ser realizada em Glasgow em novembro próximo, ajude a dar-nos as respostas certas para restaurar os ecossistemas, tanto por meio de uma ação climática fortalecida quanto da disseminação do conhecimento e da consciência.
Também somos impelidos a repensar as nossas economias. Exigimos «uma reflexão mais aprofundada sobre o sentido da economia e os seus objectivos, bem como uma revisão profunda e perspicaz do atual modelo de desenvolvimento, de forma a corrigir as suas disfunções e desvios». A degradação do ecossistema é um resultado claro da disfunção económica.
Restaurar a natureza que danificamos significa, em primeiro lugar, restaurar-nos a nós mesmos. Ao darmos as boas-vindas a esta Década das Nações Unidas para a Restauração do Ecossistema, sejamos compassivos, criativos e corajosos. Que possamos ocupar o nosso devido lugar como uma “Geração da Restauração”.
Tempo da Criação
VÍDEO MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
PARA O LANÇAMENTO DA PLATAFORMA LAUDATO SI '
Queridos irmãos e irmãs:
Com a encíclica Laudato si', promulgada em 2015, convidei todas as pessoas de boa vontade a cuidar da Terra, que é a nossa casa comum. Há muito que esta casa que nos acolhe sofre as feridas que causamos por uma atitude predatória, que nos faz sentir donos do planeta e dos seus recursos e nos autoriza a uma utilização irresponsável dos bens que Deus nos deu. Hoje, essas feridas manifestam-se de forma dramática numa crise ecológica sem precedentes que afeta o solo, o ar, a água e, em geral, o ecossistema em que vive o ser humano. A atual pandemia também trouxe à luz ainda mais o grito da natureza e dos pobres, que são os que mais sofrem,
Precisamos, portanto, de uma nova abordagem ecológica que transforme a nossa forma de habitar o mundo, o nosso estilo de vida, a nossa relação com os recursos da Terra e, em geral, a nossa maneira de ver o ser humano e de viver a vida. Uma ecologia humana integral, que envolve não só as questões ambientais, mas também o homem como um todo, torna-se capaz de ouvir o grito dos pobres e de ser fermento para uma nova sociedade.
Temos uma grande responsabilidade, principalmente com as gerações futuras. Que mundo queremos deixar para nossos filhos e jovens? O nosso egoísmo, a nossa indiferença e a nossa irresponsabilidade ameaçam o seu futuro! Por isso renovo o meu apelo: cuidemos da nossa mãe terra, superemos a tentação do egoísmo que nos torna predadores dos recursos, cultivemos o respeito pelos dons da terra e da criação, inauguremos finalmente um estilo de vida e uma sociedade Eco-sustentável: temos a oportunidade de preparar um amanhã melhor para todos. Das mãos de Deus recebemos um jardim; não podemos deixar os nossos filhos no deserto.
Neste contexto, no dia 24 de maio de 2020, proclamei o ano Laudato si' , cuja organização foi confiada ao Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral. Agradeço a todos os que celebraram este ano com tantas iniciativas. Hoje tenho o prazer de anunciar que o ano Laudato si' se traduzirá num projeto de ação concreto, a Plataforma de Ação Laudato si' , uma jornada de sete anos em que as nossas comunidades se empenharão de maneiras diferentes para se tornarem plenamente sustentáveis, no espírito de ecologia integral.
Gostaria, então, de convidar todos a empreenderem juntos este caminho e, em particular, dirijo-me a estas sete realidades: famílias - paróquias e dioceses - escolas e universidades - hospitais - empresas e fazendas agrícolas - organizações, grupos e movimentos - instituições religiosas. Trabalhar juntos. Só assim podemos criar o futuro que desejamos: um mundo mais inclusivo, fraterno, pacífico e sustentável.
Numa jornada que durará sete anos, seremos guiados pelos sete objetivos do Laudato si', que nos apontarão na direção à medida que buscamos a visão da ecologia integral: a resposta ao grito da Terra, a resposta ao grito dos pobres, economia verde, adoção de um estilo de vida simples, educação verde, espiritualidade verde e envolvimento da comunidade.
Há esperança. Todos podemos colaborar, cada um com a sua cultura e experiência, cada um com as suas iniciativas e capacidades, para que a nossa Mãe Terra recupere a sua beleza original e a criação volte a brilhar segundo o desígnio de Deus.
Que Deus abençoe cada um de vocês e abençoe nossa missão de reconstruir nossa casa comum. Obrigado.
Tempo da Criação
Quanta alegria nos é possível?
«Na plenitude da alegria pascal, exultam os homens por toda a terra…»: durante os cinquentas dias entre a vigília pascal e o Pentecostes, o prefácio da oração eucarística da missa convida-nos diariamente a viver a alegria da ressurreição. Uma alegria universal que deveria envolver toda a humanidade. «Alegrai-vos e exultai», exortava-nos o papa Francisco há três anos, ao citar as palavras de Jesus dirigidas «a quantos são perseguidos ou humilhados por causa dele» (“Gaudete et exsultate”, 1). toda a liturgia é um convite constante a fazer festa: do “Exsultet” da grande vigília ao canto do “Regina coeli”.
Podemos perguntar-nos se em tudo isto não há retórica a mais. O que é esta «plenitude da alegria que canta o prefácio? Quanta alegria é possível verdadeiramente experimentar «neste vale de lágrimas»? Qual é a felicidade a que podemos realisticamente aspirar nas contradições da vida? A humanidade que deveria exultar sobre toda a Terra continua ferida e sofredora. As catástrofes naturais continuam a acontecer, e para populações inteiras as carestias não são uma recordação do passado. As guerras recomeçam sempre, apesar do empenho de muitos construtores de paz. Os acidentes nas estradas acontecem e os casamentos falham. O mal não cessa de morder a carne dos mais frágeis, nas formas mais diversas, mas também não poupa ricos e poderosos. É possível, é lícito a alegria nestas condições? Não se trata de uma alegria falsa, forçada, ou que no máximo abrange apenas poucos momentos da vida ou um restrito número de afortunados?
A alegria cristã existe, e é autêntica. Precisamos dela precisamente para enfrentar os compromissos e os cansaços da vida, como ensinava às suas irmãs Santa Teresa de Calcutá. Mas não é uma alegria excessiva, impudente, agressiva. Não solicita manifestações eufóricas e intemperantes. Manifesta-se na luz dos olhos, mas brota e permanece no íntimo. É alegria incontida, mas moderada. É inebriamento sóbrio e espiritual. É uma felicidade visível, mas nunca ostentada. Não suscita a inveja dos sofredores: antes, consola-os e contagia-os. A alegria cristã não é cega diante das dores da vida. Não é otimismo obstinado e obtuso, nem voluntária autoilusão. Não se contenta com um pensamento cor-de-rosa perante o persistente mal de viver. O ano passado ouvimos repetir, como um mantra, «correrá tudo bem», e nas redes sociais partilhavam-se fotografias coloridas e tolas. Tentativas miseramente fracassadas de exorcizar o medo. Não correu tudo bem. Muitas pessoas adoeceram e muitas morreram. Muitíssimas sofreram pesadíssimos danos económicos. E ainda não acabou. Os males do mundo não são apenas a pandemia.
Contudo, tudo isto não prejudica a verdadeira alegria cristã. Podemos, devemos, continuar a entoar o aleluia pascal. Porque, como cantava Leonard Cohen, «love is not a victory march: it’s a cold and it’s a broken “Halleluja”». A exultação pascal é filha do amor, e o amor, quando verdadeiro, não é uma marcha triunfal. Ainda não, por agora. O amor é empastado de felicidade e de sacrifício, em simultâneo, incindivelmente. O tempo da História é ainda o tempo de um aleluia muitas vezes «frio e despedaçado». Um aleluia firmemente desejado, consciente, ferido pelas provações da vida, e todavia pleno de confiança, porque animado por uma esperança invencível. Porque é um fio estendido entre a certeza histórica da ressurreição de Jesus e a espera escatológica da nossa ressurreição. A alegria cristã radica-se no “já” do acontecimento pascal – o túmulo vazio – e estende-se até ao «não ainda» das bodas do Cordeiro. Aquele túmulo vazio é profecia da Jerusalém celeste, quando finalmente «all shall will be well, and all manner of thing shal be well», como Juliana de Norwich ouviu dizer-lhe do Senhor Jesus.
Sim, ainda não está tudo bem, mas a alegria cristã não é um sonho para gente iludida. Estamos nas mãos de Deus. Sempre. «Alegra-se o meu coração e exulta a minha alma: (…) porque não abandonarás a minha vida nos infernos…» (Salmo 15). Eis a fonte da verdadeira alegria pascal, a viver em plenitude. Esta certeza de fé torna possível e lícito cantar o aleluia também nos claros-escuros do presente. Melhor: não só é lícito, como é «nosso dever, é nossa salvação».
Filippo Morlacchi | In L'Osservatore Romano | Trad.: Rui Jorge Martins | in SNPC | Publicado em 18.05.2021
Tempo da Criação
Semana Laudato Si’: Porque sabemos que as coisas podem mudar
Para celebrar o fim do Ano Especial de aniversário da Laudato Si’, o papa Francisco convida os 1.300 milhões de católicos do mundo a participar com alegria na Semana Laudato Si’, que se celebra de 16 a 24 de Maio.
A celebração, patrocinada pelo vaticano, reunirá os católicos para se regozijarem com os grandes progressos realizados para levar a Laudato Si’ para a vida e para planificar uma acção forte perantea Conferência das Nações Unidas sobre a Biodiversidade (COP15), a Conferência das Nações Unidas cobre a Mudança Climática (COP26) e a década que começa.
O tema da semana de celebração é «porque sabemos que as coisas podem mudar» (Laudato Si’, 13).
O evento coincide com o sexto aniversário (24 de Maio) da conclusão da encíclica por parte do papa Francisco. A Laudato Si’ animou as comunidades católicas de todo o mundo a trabalhar contra a crise ecológica e a emergência climática.
Mas, como é evidente diante do rápido ritmo de extinção das espécies e da mudança climática, é necessária uma acção mais urgente para criar um futuro mais justo e sustentável.
Como disse o papa Francisco no Dia da Terra: «quando se atinge este grau de destruição da natureza é muito difícil travá-la, mas ainda estamos a tempo. E vamos ser mais resilientes quando trabalharmos juntos em vez de fazê-lo sozinhos».
Para além de outras iniciativas (palestras, diálogos, oração) com o objectivo de encontrar e propor acções concretas para cuidar da nossa Casa Comum, a Semana Laudato Si’ contará também com um envio missionário que animará os fiéis a ir e anunciar o Evangelho da Criação a todos os lugares da Terra.
A Semana Laudato Si’, patrocinada pelo Dicastério do Vaticano para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral (juntamente com outras Instituições), terminará com uma antecipação da ‘ferramenta’ que ajudará a Igreja mundial a fazer mais progressos na próxima década: a Plataforma de Acção Laudato Si’. Este projecto. Liderado pelo Vaticano, capacitará as instituições, comunidades e famílias católicas para pôr em prática a Laudato Si’.
Na nossa paróquia de Esmoriz, um dos projectos é o Projecto Laudato Si’. Por causa das dificuldades provocadas pela pandemia ainda não conseguimos torná-lo muito visível. Mas lá chegaremos.
Tempo da Criação
Aproxima-se a Semana da Vida (9 a 16 de maio), com o tema “A vida que nos toca, a vida que sempre cuidamos”.
A vida que se faz no agir de cada dia, a vida que acontece na história, a vida que se realiza na doação, a vida que é novidade quando buscamos incansavelmente o “ser mais”, a vida que é missão quando tocada pela força do evangelho “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo. 14,6).
No contexto de pandemia que temos vivido, a nossa vida, marcada por tantas privações e dificuldades, veio mostrar-nos de forma mais clara a nossa fragilidade, mas por outro lado, conduziu-nos a saborear a vida como um bem tão precioso. Foi-nos possível redescobrir o sentido da família, onde a vida acontece, valorizar a importância dos amigos, quando tantas crianças e jovens se viram privados de se encontrarem, estimar o lugar dos idosos na família e na sociedade que marcados por uma profunda solidão, nos fizeram sentir a necessidade e o valor do encontro.
É a partir deste contexto que a Semana da Vida nos há de tocar cada um de nós, a não perdermos tempo na vida, mas a gastarmos tempo uns com os outros. Temos tanto para dar e para receber. É urgente amarmos a vida mesmo no meio das dificuldades e das dores.
Os evangelhos dão-nos o verdadeiro sentido da vida, que não se esgota nas nossas limitações humanas, mas que vai muito além das nossas fragilidades. Jesus toca, e salva aqueles com quem se cruza ou d’Ele se abeiram. No evangelho de Marcos, Jesus toca a sogra de Pedro (1,31), toca o leproso (1,41), a filha de Jairo (5,41). São exemplos claros que estes encontros fazem a vida acontecer. Vida que não se fecha em si mesma, mas que se abre ao outro como fonte de realização e de descoberta. Vida que é relação com o meio ambiente na preocupação pela casa comum, vida que se quer de ternura em qualquer fase da vida, vida que é entrega e generosidade perante a necessidade do irmão, vida que sempre cuidamos.
Celebrar a Semana da Vida é não ficarmos confinados a alguns dias, mas um caminho que se abre a que sejamos capazes de não ficarmos estagnados, a encetarmos um caminho feito de entusiasmo e alegria, onde a rotina dá lugar à surpresa, onde o lamento dá lugar à esperança, onde a coragem é mais forte que o desânimo, onde o encontro quebra a solidão, onde o tocar a vida nos conduz ao cuidado.
Neste ano de S. José, figura ímpar na história da salvação, ensina-nos a acolher a vida com serenidade, a vivê-la com ternura, e a cuidarmos com coragem criativa (cf Patris Corde, Papa Francisco).
Que o Ano “Família Amoris Laetitia”, seja um incentivo para vivermos a vida como um projeto de amor, de nos deixarmos tocar por Cristo e a disponibilidade para cuidarmos da casa comum e dos irmãos.
Pe. Francisco Ruivo; Assistente do DNPF
Tempo da Criação
Uma meditação a partir da passagem do Evangelho do V Domingo de Páscoa: Eu sou a verdadeira vide e vós os ramos.
Mais do que mãos limpas, Deus quere-as repletas de vindima
Jesus comunica-nos Deus através do espelho das criaturas mais simples: Cristo videira, eu sarmento, eu e Ele a mesma planta, mesma vida, única raiz, uma só linfa (João 15, 1-8).
E depois a maravilhosa metáfora do Deus camponês, um vinhateiro perfumado de sol e de terra, que cuida de mim e aplica toda a sua inteligência para que eu dê muito fruto; que não empunha o cetro do alto do trono, mas lavra e olha o mundo dobrado sobre mim, como rebento, sarmento, cacho, com olhos belos de esperança.
Entre todos os campos, a vinha era o preferido do meu pai, no qual investia mais tempo e paixão, até poesia. E acredito que é assim para todos os camponeses. Narrar a vinha é desvelar um amor de preferência da parte do nosso Deus camponês.
Tu, eu, nós somos o campo preferido de Deus. A metáfora da videira cresce para um cume já antecipado nas palavras: Eu sou a vida, vós os sarmentos. Estamos diante de uma afirmação inédita, nunca escutada antes nas Escrituras: as criaturas (sarmentos) são parte do Criador (a videira).
O que trouxe Jesus ao mundo? Talvez uma moral mais nobre ou o perdão dos pecados? Demasiado escasso; veio trazer muito mais, trouxe-se a si próprio, a sua vida em nós, o cromossoma divino dentro do nosso ADN. O grande oleiro que plasmava Adão com o pó do solo fez-se argila deste solo, linfa deste cacho.
E se o sarmento para viver tem de permanecer enxertado na videira, acontece que também a videira vide dos seus sarmentos, sem eles não há fruto, nem propósito, nem história. Sem os seus filhos, Deus seria pai de ninguém.
A metáfora do trabalho em torno à videira tem o seu sentido último no “dar fruto”. O fio dourado que atravessa e cose todo o excerto, a palavra repetida que ilumina todas as outras palavras de Jesus é “fruto”: que deis muito fruto, nisto é glorificado o meu Pai.
O peso da imagem camponesa do Evangelho aporta às mãos repletas da vindima, muito mais que às mãos limpas, talvez, mas vazias, de quem não se quis sujar com a matéria incandescente e cheia de nódoas da vida.
A moral evangélica consiste na fecundidade, e não na observância de normas, traz consigo felizes canções de vindima. Ao anoitecer da vida terrena, a interrogação última, a dizer a verdade última da existência, não dirá respeito a mandamentos ou interditos, sacrifícios e renúncias.
Antes, é uma pergunta que apontará toda a sua dulcíssima luz para o fruto: depois daquilo que passaste no mundo, na família, no trabalho, na Igreja, das tuas videiras amadureceram cachos de bondade ou uma vindima de lágrimas? Atrás de ti ficou mais vida ou menos vida?
Ermes Ronchi
In Avvenire, Traduzido por Rui Jorge Martins para o SNPC
Publicado em 30.04.2021
Tempo da Criação
No passado dia 22 de Abril, foi o Dia da Terra. O papa Francisco, num breve vídeo, deixou uma mensagem. Na nossa paróquia, através do Projecto Laudato tínhamos até calendarizado uma acção para o Domingo mais próximo (25 de Abril). Mas tivemos de adiar para quando as coisas estiverem mais ‘normalizadas’. Aqui ficam as palavras do papa Francisco.
Irmãos e irmãs ,
Nesta comemoração do Dia da Terra, é sempre bom lembrar que as coisas que temos falado há muito tempo não podem cair no esquecimento. Há algum tempo tornamo-nos mais conscientes de que a natureza merece ser protegida, também pelo simples fato de que as interações do homem com a biodiversidade de Deus [que Deus nos deu] devem ocorrer com a máxima atenção e respeito: cuidar da biodiversidade, cuidar da natureza. E aprendemos muito mais com esta pandemia. Essa pandemia também nos mostrou o que acontece quando o mundo pára, faz uma pausa, mesmo que por alguns meses. E o impacto que isso tem na natureza e nas mudanças climáticas, com força, de uma forma tristemente positiva, não é? Por outras palavras, dói.
E isso mostra-nos que a natureza global precisa das nossas vidas neste planeta. Envolve a todos nós, ainda que de formas múltiplas, diferentes e inequívocas; e assim nos ensina ainda mais sobre o que precisamos fazer para criar um planeta justo, equitativo e ambientalmente seguro.
Em resumo, a pandemia da Covid ensinou-nos essa interdependência, esse compartilhamento do planeta. E ambos os desastres globais, Covid e o clima, mostram que não temos tempo para esperar mais. Esse tempo está a pressionar-nos e, como a Covid-19 nos ensinou, sim, temos os meios para enfrentar o desafio. Temos os meios. É hora de agir, estamos no limite.
Gostaria de repetir um velho ditado espanhol: “Deus sempre perdoa, nós, homens, perdoamos de vez em quando, a natureza não perdoa nunca”. E quando essa destruição da natureza ocorre, é muito difícil pará-la. Mas ainda temos tempo. E seremos mais resilientes se trabalharmos juntos em vez de fazermos sozinhos. A adversidade que vivemos com a pandemia e que já sentimos nas mudanças climáticas deve impulsionar-nos, à inovação, à invenção, à busca de novos caminhos. Não saímos iguais de uma crise, saímos melhor ou pior. Este é o desafio e, se não sairmos melhor, trilharemos o caminho da autodestruição.
Que todos vocês ... Eu também me uno a vocês, num apelo a todos os líderes do mundo para agirem com coragem, agirem com justiça e sempre dizerem a verdade às pessoas, para que as pessoas saibam como se proteger da destruição de o planeta, como proteger o planeta da destruição que muitas vezes desencadeamos.
Obrigado pelo que fazem, obrigado pelas boas intenções, obrigado por terem vindo juntos. E os melhores votos a todos [e prosperidade a todos].
Tempo da Criação
Um pequeno texto a partir de uma leitura, para ajudar a aprofundar o que é a ressurreição e o que ela deve significar – transformar – na vida de quem a professa.
“A ressurreição é, verdadeiramente, libertação de todo o tipo de escravidões interiores, rancores, xenofobias, supremacismos, ódios, ficar agarrados ao passado, medos, pensamentos tóxicos, preocupações com coisas que não têm sentido, obsessão por acumular dinheiro, prestígio e prazeres. É assumir um estilo de vida novo, ético, dialogante, crítico e respeitoso para com todos, acolhedor e serviçal, compassivo e solidário com as pessoas que sofrem, defensor dos direitos humanos, forjador da paz que nasce da justiça e sempre agente de perdão e reconciliação.
Ressurreição é um novo nascimento como homens novos e mulheres novas ao estilo de Jesus.
O amor é eterno e a eternidade começa já aqui, na vida presente e desafia o tempo e o espaço. A eternidade é um presente absoluto.
A ideia de imortalidade e a ânsia de viver eternamente atravessam a história da humanidade e a natureza. Uma sede tão grande não pode ficar sem água. Eu, como crente, intuo e tenho a esperança de que tanto crentes como não crentes, cristãos como não cristãos, todos estamos salvos por Cristo Jesus e todos temos o mesmo destino de acordo com a ética que tivermos vivido na história.
O próprio Jesus, no Evangelho, diz-nos que o critério de salvação não é ter sido crente ou não crente, ter pertencido a esta ou aquela religião, ter cumprido uma série de práticas rituais, mas ter passado pela vida compartilhando com o pobre e o necessitado. Leia-se o ‘Juízo Final’, em Mateus 25, 34-36.
Pela fé, confessamos que todos ressuscitaremos, entendendo por ressurreição não a reanimação de um cadáver (como aconteceu com Lázaro), não o voltar à vida mortal anterior. O teólogo Julio Lois diz que “a ressurreição é a continuidade pessoal depois da morte no seio da descontinuidade indubitável que essa morte implica.” Não há continuidade do corpo, porque o corpo desaparece, mas sim continuidade da pessoa, da sua vida, do seu destino.
Morrer não é morrer. É caminhar ao encontro da Fonte para beber da água da Vida e do Amor. Morrer é nascer para a plenitude de uma vida nova. Este é o grito que arranca da experiência de Deus no silêncio da alma. E é esta a essência da esperança pascal.”
(Fernando Bermúdez López, in Religion Digital, 03.04.2021)
Tempo da Criação
Que significado tem a Páscoa e a Ressurreição nestes tempos de pandemia e de crise?
É a pergunta de Teresa Casillas, num texto escrito no site Religión Digital, a 5 de Abril.
Na semana passada, terminávamos assim: A Esperança nem sempre é tão rotunda e resplandecente como nos disseram. A Esperança é uma pequena lâmpada diante dos nossos pés que dá luz para o passo seguinte.
A autora continua:
A nossa vida entretece-se com a de Maria de Magdala, Salomé, Maria, mãe de Tiago, e as amigas que acompanharam Jesus desde a Galileia, com os caminhantes de Emaús. E com elas e eles sentimos que arde no nosso coração a esperança de uma Vida com maiúsculas, com alegria, banquete e dignidade para todas as pessoas. Regamos e damos a ver a esperança, para que cresça no nosso mundo assustado.
Nestes dias de confinamento pascal, recebi muitos presentes, e este texto é uma espécie de guisado que cozinhei com um pouco de cada um deles, uma síntese do que Deus me oferece através de cada pessoa que me falou através do computador. Obrigado por ser ressurreição para mim.
Mariola López dizia que o Ressuscitado coloca no centro estes três P para restaurar a vida e torná-la mais bela: Perdão, Pão e Perfume.
Nesta Páscoa traduzo assim estes três P:
Partilhamos o Perfume: assim começou a história da Páscoa. Umas mulheres caminhando de madrugada com perfumes para ungir um corpo morto. O Perfume esteve, desde o princípio, entre nós, como sinal de amor transbordante, como sinal de cuidado, de beleza, como sinal da vida toda impregnada pelo seu aroma. (nota: Somos ungidos com o óleo do Crisma, para espalharmos o bom perfume de Cristo)
É urgente o Pão partido. É urgente o desejo de justiça, de ‘pão e rosas’ para todas as pessoas. Temos as mãos cheias de farinha para fazermos Eucaristia com as nossas vidas. Uma Eucaristia, como dizia o santo da Amazónia, Pedro Casaldáliga, profundamente subversiva. Nesta inspiradora Quinta-feira Santa dizia Yolanda que o Lava-Pés e a Eucaristia são a mesma entrega de Jesus para nos dar a sua Vida.
O Perdão: o rosto de Jesus reflectido nos rostos daqueles que me perdoaram e daqueles a quem eu perdoei. Ama mais aquele/a a quem mais se perdoou. A paz do Ressuscitado nasce do Perdão. Nós, as mulheres, temos muito que perdoar: a violência e a injustiça que sofremos ao longo da História e que continuamos a sofrer são grandes.
A maioria dos crucificados do nosso mundo são mulheres. Creio que nós, as mulheres, temos muito por construir neste caminho de reconciliação.
Vamos à Galileia (lugar onde há pessoas de todas as condições e situações) e sejamos abraço de Ressurreição e de Vida.
Tempo da Criação
Que significado tem a Páscoa e a Ressurreição nestes tempos de pandemia e de crise?
É a pergunta de Teresa Casillas, num texto escrito no site Religión Digital, a 5 de Abril.
“Tocou-me viver esta Semana Santa, mais um ano e como tantas outras pessoas no mundo, de maneira especial. Com a incerteza de ter uma pessoa querida doente, o desejo de a cuidar e o medo de adoecer marcaram estes dias. por isso, nestes tempos excepcionais de pandemia e insegurança, esta linguagem de triunfo e derrota não ressoam na minha fé. Neste ano de 2021 sinto nascer em mim uma pergunta: Foi vencida a morte no nosso mundo? como cristãs e cristãos, podemos olhar o sofrimento e a dor de tantas pessoas e dizer-lhes que a Vida venceu definitivamente a morte?
Este estribilho que cantava com força e entusiasmo em anos anteriores, gerou em mim dúvidas. Que significado tem a Páscoa e a Ressurreição nestes tempos de pandemia e de crise? Que significado tem para mim?
As respostas vão chegando, não como certezas absolutas, mas como pequenas pistas, partilhadas por outras buscadoras e buscadores. Partilho algumas delas:
Ensinaram-nos a pensar em termos de triunfos e derrotas. Ensinaram-nos a imaginar um Jesus vitorioso e a morte definitivamente derrotada. No entanto, no nosso mundo vida e morte convivem. A morte, que antes víamos mias longe, nos telejornais, hoje está mais próxima a ponto de a tocarmos. Mas a vida também está aí, sempre à nossa frente, abrindo caminho de forma misteriosa e tenaz. Obstinada, como essas fotos que enviam de pequenas plantas quebrando o asfalto.
Ressurreição é descobrir essa vida que brota da árvore cortada, na mulher migrante que se reencontra com a filha que tinha deixado três anos antes na sua Costa do Marfim, na médica jubilada que dedica o seu tempo aos que não têm cuidados de saúde (pondo em prática o Lava-Pés)… Às vezes, a Vida está escondida e imperceptível, e só as pessoas com olhos acostumados a ver são capazes de a reconhecer, animá-la, cuidá-la, apoiá-la e ajudá-la a crescer.
Luz e sombra são duas faces da mesma realidade. Só há sombra quando há luz, não é verdade? Nos lugares mais iluminados, nos dias de sol e de Verão, há zonas de sombra. Segundo nos narram as Escrituras, o próprio Jesus desceu aos ínferos, e se esteve aí, continua a estar. O Ressuscitado faz-Se presente nos infernos das nossas vidas para nos elevar.
Quando a obscuridade e a sombra nos caem em cima, e penso neste momento nas pessoas que estão num hospital sentindo solidão e medo pela sua vida, nas pessoas que perderam o trabalho e não têm esperança de o recuperar, nas pessoas migrantes que abandonaram o que tinham e chegaram a uma terra que as recusa, nas mulheres vítimas de violência que não vislumbram a libertação… aí, no meio das sombras, está Jesus Ressuscitado, tocando-nos com a sua mão, abraçando-nos. Quando o Ressuscitado Se faz presente, amanhece… a noite começa a clarear.
(…) A Esperança nem sempre é tão rotunda e resplandecente como nos disseram. A Esperança é uma pequena lâmpada diante dos nossos pés que dá luz para o passo seguinte.”
Continuaremos a traduzir o texto na próxima semana.
Tempo da Criação
Fez um ano, nesta sábado passado, dia 27, que o Mundo ficou impressionado com a imagem do papa Francisco, na Praça de São Pedro, a caminhar sozinho, naquele fim de tarde chuvoso, como quem ‘carregava toda a dor do mundo’ causada pela pandemia. Não sabíamos ainda como ela seria longa, quase interminável; como afectaria – afecta ainda – tantos homens e mulheres, de tantas maneiras.
Aqui se recorda, com um texto do cardeal Tolentino Mendonça essa imagem indelével.
O vazio é uma barca: Um ano do papa solitário na Praça de S. Pedro lido pelo Cardeal Tolentino Mendonça
É sabido que vivemos na era da massificação das imagens. Em nenhuma época precedente da História foram produzidas tantas imagens, e para além disso nenhuma outra, como a nossa, assistiu à sua radical banalização. Em vez de imagens únicas e autênticas, temos produtos realizados em série, “selfies” fabricadas num instante e num instante prontas a ser devoradas pelo esquecimento. O filósofo Walter Benjamim falou justamente de “perda da aura”, isto é, a imagem que deixa de constituir «a aparição única de uma coisa distante», fixando-se antes na sonâmbula repetição de um “déjà vu”. Por isso, o tocante consenso em torno à imagem do papa Francisco numa Praça de S. Pedro vazia [27 de março de 2020] é algo que faz pensar, fora e dentro do espaço eclesiástico.
A um ano de distância, vale a pena revisitar aquela imagem, que na realidade nunca deixou de estar presente, e questionar-se de onde provém o seu excecional poder icónico. Porquê aquela imagem que continuou a representar aquilo que estamos a viver, e não outra qualquer? E que coisa nos revela de si mesma ou que coisa nos ensina sobre nós próprios? Procurando sintetizar o que, seguramente, mereceria uma reflexão mais ampla, indicarei quatro razões.
1. A audácia de habitar a vulnerabilidade como lugar da experiência humana e crente.
É verdade que a cultura dominante, o “mainstream” modelado como um automatismo pelas nossas sociedades consumistas, fez da vulnerabilidade uma espécie de tabu. A fragilidade está sujeita a um ocultamento. E à força de interditar-nos o encontro com o sofrimento humano, cada vez menos sabemos reconhecer-nos nele, ou partimos dela para aprofundar o sentido da nossa humanidade comum. (…)
O papa Francisco ousou habitar a vulnerabilidade. Não se limitou a falar da vulnerabilidade do mundo, como se dela fosse isenta. Na medida em que aceitou expor-se como um qualquer, emergiu como uma figura sacerdotal capaz de representar todos.
2. A audácia de abraçar e voltar a dar significado ao vazio.
Uma das experiências mais impactantes do confinamento foi, no início da pandemia, assistir ao esvaziamento das cidades. De um momento para o outro espalhou-se um estranho e desconhecido silêncio. Incrédulos, olhávamos das nossas janelas as ruas e as praças vazias numa solidão absoluta, sentindo-nos como expropriados do mundo. A nossa primeira reação foi a de ler o vazio como algo de hostil que nos ameaçava. Pois bem, Francisco teve a grande sabedoria de abraçar o vazio em vez de o repudiar, sublinhando o seu potencial simbólico e revelador. Por isso foi muito importante o texto evangélico escolhido, a cena da tempestade acalmada segundo Marcos 4, 35-41. Porque se, por um lado, se aceitava o vazio, abraçando-o como lugar existencial e teológico, por outro a Palavra de Deus fornecia a chave para voltar a dar-lhe significado. O vazio tornava-se uma barca. «Demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento. E, neste barco, estamos todos». O vazio oferecia uma nova gramática para nos descobrirmos não como fragmentos isolados, mas como “Fratelli tutti” [todos irmãos].
3. A audácia de encontrar uma metáfora.
Ao comentar o texto evangélico de Marcos 4, 35-41, o papa Francisco cumpriu um gesto de grande alcance: reorientou a perceção em relação à pandemia. (…) O papa foi o primeiro a falar desta como de uma tempestade. Esta passagem do estrito plano beligerante para o plano cosmológico coincidiu com um alargamento de visão. Permitiu, por exemplo, desmantelar o impulso inicial de encontrar um culpado, aceitando, antes, que a tempestade nos mostrasse a todos numa vulnerabilidade que não queríamos ver e que nos envolve a todos numa reconstrução que nos compromete globalmente.
4. A audácia de rezar a Deus no silêncio de Deus.
As tempestades são experiências de crise também para os crentes. Há um escândalo implícito no grito dos discípulos que procuram despertar Jesus: «Mestre, não te importa que nos percamos?» (Marcos 4, 38). Como explica o papa, esta «é uma frase que fere e desencadeia turbulência no coração». Perante a disseminação do mal e da sua proximidade traumática, escutamos com sofrimento aquilo que parece ser o incompreensível silêncio de Deus. (…) A imagem do papa que reza e que concede a bênção eucarística, num contexto universalmente experimentado como de desolação, faz ver como o invisível de Deus perfura os bloqueios da História, e o seu silêncio dá-nos a possibilidade de viver, seguindo os passos de Jesus, a situação de abandono como confiança e entrega nas suas mãos. Francisco pediu: «Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus». E assim foi.
Card. José Tolentino Mendonça (in SNPC. Trad. Rui Jorge Martins. Publicado em 26.03.2021)
Tempo da Criação
Nesta quinta semana da Quaresma que hoje iniciamos (em bom rigor a última, porque a próxima será já a Semana Santa: continuamos a caminhar para a Páscoa em modo de conversão e penitência, mas o tom muda um pouco), descobrimos na Arca da Aliança o magnífico tesouro que é o sacramento do Matrimónio, a aliança conjugal, celebrar e viver o amor em Cristo.
De modo diferente – talvez possa servir para rezar ao longo da semana – fica aqui a Oração Universal feita na Eucaristia de hoje:
Escreve o papa Francisco na Exortação ‘A Alegria do Amor’: “O matrimónio cristão é um sinal que não só indica quanto Cristo amou a sua Igreja na aliança selada na Cruz, mas torna presente esse amor na comunhão dos esposos”.
Neste Domingo em que somos convidados a descobrir e aprofundar o tesouro da Aliança conjugal, rezemos por todas as famílias e por todos os que se amam, e também pela Igreja, família dos filhos e filhas de Deus. Para que a nossa fé seja fecunda, cantamos: Como os ramos unidos à videira, faz-nos, ó Pai, dar frutos de vida verdadeira.
1. “O evangelho da família atravessa a história do mundo desde a criação do homem à imagem e semelhança de Deus até à realização do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro”, escreve o papa Francisco.
Para que a Igreja, respeitando e acolhendo todas as opções, não se canse nunca de anunciar o sonho originário de Deus para a família, cantemos:
2. “A aliança de amor e fidelidade, vivida pela Sagrada Família de Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a torna capaz de enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história”, escreve o papa Francisco.
Para que, na nossa paróquia, o Projecto Nazaré seja capaz de dinamizar acções e encontros que ajudem ‘as famílias a descobrir como é preciosa e insubstituível a educação familiar’ em todos os campos da vida, cantemos:
3. “Temos dificuldade em apresentar o matrimónio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira”, alerta o papa Francisco.
Para que a Igreja e o testemunho das famílias cristãs, nesta ‘cultura do provisório’ e das redes sociais, saiba mostrar como o matrimónio é a imagem mais plena e perfeita do amor de Deus, cantemos:
4. “Correndo o risco de simplificar, reconhece o papa Francisco, poderemos dizer que vivemos numa cultura que impele os jovens a não formarem uma família, porque os priva de possibilidades para o futuro”.
Para que os poderes políticos, económicos e culturais acreditem que ‘o bem da família é decisivo para o futuro do mundo’ e criem políticas que apoiem e favoreçam este caminho, cantemos:
Deus, nosso Pai e nosso Criador, é muito bela a missão que confias à família, mas são muitas também as suas dificuldades. Por isso Te pedimos que o Espírito Santo derrame nos corações das famílias o teu amor forte e indestrutível, que seja reflexo do amor de Cristo pela humanidade. Ele que é Deus contigo na unidade do Espírito Santo.
Tempo da Criação
Na Dinâmica quaresmal que nos está proposta pela nossa diocese, este Domingo – esta semana que começa no Domingo – são dedicadas a descobrir na Arca da Aliança o tesouro do perdão. É mesmo um grande tesouro. Recordemos algumas palavras do papa Francisco. Escreve ele na ‘Fratelli tutti’:
“O perdão e a reconciliação são temas de grande importância no Cristianismo e, de várias maneiras, noutras religiões. O risco está em não compreender adequadamente as convicções dos crentes e apresentá-las de tal modo, que acabem por alimentar o fatalismo, a inércia ou a injustiça, e, por outro lado, a intolerância e a violência.” (237)
Mais adiante esclarece: “Perdoar não significa permitir que continuem a espezinhar a própria dignidade e a do outro, ou deixar que um criminoso continue a fazer mal. Quem sofre injustiça tem de defender com firmeza os seus direitos e os da sua família, precisamente porque deve salvaguardar a dignidade que lhes foi dada, uma dignidade que Deus ama. Se um criminoso cometeu um delito contra mim ou contra um ente querido, ninguém me proíbe de exigir justiça e de me acautelar para que essa pessoa - ou qualquer outra - não volte a lesar-nos cause a outros o mesmo dano. Depende de mim fazer isso, e o perdão não só não anula esta necessidade, mas reclama-a.” (241)
O papa também fala na necessidade de não esquecer, de não cair na ingenuidade de confundir perdão com esquecimento:
“Quem se pode arrogar o direito de perdoar em nome dos outros? É comovente ver a capacidade de perdão de algumas pessoas que conseguiram ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano compreender aqueles que não conseguem. Em todo caso, o que nunca se deve propor é o esquecimento.” (246)
Na Igreja da “Imaculada Conceição” em Qaraqosh, na recente visita ao Iraque, o papa Francisco não deixou de falar nisso:
“Caros amigos, este é o momento de restaurar não só os edifícios, mas antes de tudo os laços que unem as comunidades e as famílias, jovens e idosos… Quando os mais velhos e os jovens se unem, preservamos e passamos os dons que Deus dá. Olhamos para nossos filhos, sabendo que eles herdarão não apenas uma terra, uma cultura e uma tradição, mas também os frutos vivos da fé que são as bênçãos de Deus nesta terra. Eu encorajo-vos a não esquecer de quem são e de onde vêm! Para valorizar os laços que vos mantêm unidos, encorajo-vos a valorizar as vossas raízes!
Certamente há momentos em que a fé pode vacilar, quando parece que Deus não vê e não age. Isso foi verdade para vós nos dias mais sombrios da guerra e também é verdade nestes dias de crise de saúde global e grande insegurança. Nesses momentos, lembrai-vos que Jesus está ao vosso lado. Não parem de sonhar! Não desistam, não percam a esperança! Os santos velam-nos do céu: invoquemo-los e não nos cansemos de pedir a sua intercessão. E há também "os santos da porta ao lado" "que, vivendo entre nós, refletem a presença de Deus" ( Gaudete et exsultate , 7). Esta terra tem muitos, é uma terra de muitos homens e mulheres santos. Deixem-os acompanhar-vos para um futuro melhor, um futuro de esperança.
Uma coisa que a Sra. Doha disse comoveu-me: ela disse que é necessário o perdão daqueles que sobreviveram aos ataques terroristas. Perdão: esta é uma palavra-chave. O perdão é necessário para permanecer apaixonado, para permanecer cristão. O caminho para a recuperação total ainda pode ser longo, mas peço-vos, por favor, que não desanimem. É preciso capacidade de perdoar e, ao mesmo tempo, coragem de lutar. Eu sei que isso é muito difícil. Mas acreditamos que Deus pode trazer paz a esta terra. Confiamos nele e, juntamente com todas as pessoas de boa vontade, dizemos "não" ao terrorismo e à exploração da religião…
A cada momento, agradeçamos a Deus pelos seus dons e peçamos-lhe que conceda paz, perdão e fraternidade a esta terra e ao seu povo. Não nos cansemos de rezar pela conversão dos corações e pelo triunfo de uma cultura da vida, da reconciliação e do amor fraterno, respeitando as diferenças, as diversas tradições religiosas, no esforço por construir um futuro de unidade e colaboração entre todas as pessoas de boa vontade. Um amor fraterno que reconhece “os valores fundamentais de nossa humanidade comum, valores em nome dos quais podemos e devemos cooperar, construir e dialogar, perdoar e crescer” (FT, 283).
Tempo da Criação
Nesta terceira etapa da nossa caminhada quaresmal-pascal (não esquecer que o objectivo é chegar renovados à celebração da Páscoa de Cristo, nossa Páscoa) somos convidados a ir à Arca da Aliança e encontrar o tesouro que é a Educação.
Vale a pena lembrar uma ideia que me lembro de ler no papa Bento XVI que dizia que educar não é meter coisas dentro da cabeça de ninguém mas fazer com que cada pessoa faça aparecer, o mais plenamente que for capaz, a riqueza que tem dentro de si. Assim como dizia, creio, o escultor Miguel Ângelo, por exemplo quando fez a Pietá: que não fez nada mas se limitou a retirar o que estava a mais para que se visse o que a pedra tinha escondido.
E vale também muito a pena ler estas palavras do papa Francisco. Primeiro na Amoris Laetitia, 261:
“A obsessão, porém, não é educativa; e também não é possível ter o controle de todas as situações onde um filho poderá chegar a encontrar-se. Vale aqui o princípio de que «o tempo é superior ao espaço», isto é, trata-se mais de gerar processos que de dominar espaços. Se um progenitor está obcecado com saber onde está o seu filho e controlar todos os seus movimentos, procurará apenas dominar o seu espaço. Mas, desta forma, não o educará, não o reforçará, não o preparará para enfrentar os desafios. O que interessa acima de tudo é gerar no filho, com muito amor, processos de amadurecimento da sua liberdade, de preparação, de crescimento integral, de cultivo da autêntica autonomia. Só assim este filho terá em si mesmo os elementos de que precisa para saber defender-se e agir com inteligência e cautela em circunstâncias difíceis. Assim, a grande questão não é onde está fisicamente o filho, com quem está neste momento, mas onde se encontra em sentido existencial, onde está posicionado do ponto de vista das suas convicções, dos seus objectivos, dos seus desejos, do seu projecto de vida. Por isso, eis as perguntas que faço aos pais: «Procuramos compreender “onde” os filhos verdadeiramente estão no seu caminho? Sabemos onde está realmente a sua alma? E, sobretudo, queremos sabê-lo?»”
Depois, na audiência de 20 de Maio de 2015:
“Mas sobretudo uma pergunta: como educar? Que tradição temos hoje para transmitir aos nossos filhos?
Intelectuais «críticos» de todos os tipos silenciaram os pais de mil maneiras, para defender as jovens gerações contra os danos — verdadeiros ou presumíveis — da educação familiar. A família foi acusada, entre outros, de autoritarismo, favoritismo, conformismo e repressão afectiva que gera conflitos.
Com efeito, abriu-se uma ruptura entre família e sociedade, entre família e escola; hoje o pacto educativo interrompeu-se; e assim, a aliança educativa da sociedade com a família entrou em crise, porque foi minada a confiança recíproca. Os sintomas são numerosos. Por exemplo, na escola comprometeram-se as relações entre os pais e os professores. Às vezes existem tensões e desconfiança mútua; e naturalmente as consequências recaem sobre os filhos. Por outro lado, multiplicaram-se os chamados «peritos», que passaram a ocupar o papel dos pais até nos aspectos mais íntimos da educação. Sobre a vida afectiva, a personalidade e o desenvolvimento, sobre os direitos e os deveres, os «peritos» sabem tudo: finalidades, motivações, técnicas. E os pais só devem ouvir, aprender a adaptar-se. Privados da sua função, tornam-se muitas vezes excessivamente apreensivos e possessivos em relação aos seus filhos, a ponto de nunca os corrigir: «Tu não podes corrigir o teu filho!». Tendem a confiá-los cada vez mais aos «peritos», até nos aspectos mais delicados e pessoais da sua vida, pondo-se de parte sozinhos; e assim, hoje, os pais correm o risco de se auto-excluir da vida dos próprios filhos. E isto é gravíssimo! Hoje existem casos deste tipo. Não digo que acontece sempre, mas existem. Na escola, a professora repreende a criança e manda uma nota aos pais. Recordo-me de uma anedota pessoal. Certa vez, quando estava na quarta classe, eu disse uma palavra feia à professora e ela, uma mulher boa, mandou chamar a minha mãe. No dia seguinte ela veio, falaram entre elas e depois chamaram-me. Diante da professora, a minha mãe explicou-me que aquilo que eu tinha feito era feio, algo que não se devia fazer; mas a minha mãe fê-lo com muita delicadeza, dizendo-me que devia pedir desculpa à professora à sua frente. Fi-lo e depois senti-me feliz e disse: a história acabou bem! Mas aquele era o primeiro capítulo! Quando voltei para casa, teve início o segundo... Imaginai hoje, se a professora faz algo assim; no dia seguinte encontra os pais ou um deles a repreendê-la, porque os «peritos» dizem que as crianças não devem ser repreendidas assim... A situação mudou! Portanto, os pais não devem auto-excluir-se da educação dos filhos.”
Foi também partindo daqui e tendo presentes as leituras do terceiro Domingo da Quaresma, a começar na primeira, que a dinâmica da nossa diocese nos convida a encontrar este magnífico tesouro. Vamos a isso.
3.º Domingo: A Educação
Na 1.ª leitura do 3.º Domingo da Quaresma, temos o Código da Aliança, que se exprime nas Dez Palavras, cujas regras protegem a fidelidade à mesma Aliança. O Salmo Responsorial recorda-nos que “os preceitos do Senhor valem mais do que o ouro mais fino” (Sl 18/19). A família, no meio desta cultura relativista, pode deixar-se guiar pelos mandamentos, como verdadeira bússola e tábua de salvação, que ensinam a viver e a crescer na liberdade do amor. Aqui podemos dizer que a lei do amor é “um tesouro que vale mais do que o ouro”. A partir dos dez Mandamentos, do dom da Lei, e dentro da pedagogia divina, poderíamos refletir esta semana sobre a necessária formação ética dos filhos e a urgente Aliança educativa ou pacto educativo entre famílias, escolas, sociedade, de que tantas vezes nos fala o Papa (cf. Papa Francisco, Audiência, 20.5.2015; AL 84; 263-267).
Pode acentuar-se aqui o tesouro da educação e a necessidade de reconstruir um verdadeiro pacto educativo global, de modo que o direito à educação seja respeitado em toda a parte.
Em família, esta é uma ocasião oportuna para:
Recordar, homenagear e agradecer aos nossos educadores (pais, avós, educadores de infância, professores, catequistas, padrinhos, pároco e todos os que têm influência na formação humana e cristã).
Tempo da Criação
Se nos recordarmos da importância que a Arca da Aliança tinha para o povo de Israel durante a sua caminhada pelo deserto até chegar um dia à Terra Prometida, construir, bem mais tarde, o Templo e colocar a Arca no ‘santo dos santos’, no lugar mais sagrado do Templo, poderemos perceber melhor como é interessante a proposta que nos é feita este ano pela nossa diocese: Todos juntos na Arca da Aliança, abrindo-a e descobrindo os valiosíssimos tesouros que ela encerra. Se puderem não deixem de ler o episódio e festa que é narrada no Segundo livro de Samuel, capítulo 6.
A Arca é a nossa Fé, é a Igreja, é a nossa comunidade paroquial, é a nossa família, é a nossa vida… A Arca guarda a nossa história de amor e de vida com Deus e com os nossos irmãos e irmãs.
1.º Domingo: As nossas Raízes
O 2.º Domingo da Quaresma apresenta-nos, na 1.ª leitura, a cena do chamado sacrifício de Isaac, mas que, na verdade, é o sacrifício do nosso patriarca Abraão, nosso pai na fé. É ele – ainda com uma imagem errada de Deus, certamente influenciado pelas religiões vizinhas que praticavam os sacrifícios humanos – que está disposto a oferecer o melhor que tem: o seu filho único. Vai perceber, afinal, como o seu Deus é o Deus da vida, da promessa de vida para todas as gerações.
Essa promessa da descendência a Abraão, no qual são abençoadas todas as nações da Terra, permite-nos lançar um olhar sobre os nossos ascendentes, sobre os nossos maiores, sobre as nossas raízes familiares e mesmo sobre os que nos precederam na fé e no-la transmitiram. E dar graças por eles, pelos que ainda estão connosco, mas também pelos que já partiram e estão vivos na ‘terra de Deus’, o céu. Nunca é demais sabermos reconhecer e estar gratos. O que somos muito o devemos a muitos.
A sugestão é fazer a evocação dos avós, bisavós, como verdadeiro tesouro da família. Aproveitar para dialogar e reforçar a ideia da urgência de uma verdadeira Aliança entre gerações… um sonho do Papa Francisco. Por exemplo:
“As raízes não são âncoras que nos prendem a outras épocas e nos impedem de encarnar no mundo atual para fazer nascer algo novo. Pelo contrário, são uma base que nos permite crescer e responder a novos desafios.” (Cristo Vive, 200)
Mas recorde-se também que um dos percursos propostos pelo Ano Família Amoris laetitia é desenvolver uma pastoral dos idosos (cf. AL 191-193) que vise superar a cultura do descarte e a indiferença e promover propostas transversais em relação às diferentes idades da vida, tornando também os idosos protagonistas da pastoral comunitária. Foi já anunciado, por exemplo, o Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, que passa a ser celebrado no quarto Domingo de Julho, próximo da memória dos santos Joaquim e Ana, avós de Jesus.
Em família, encontraremos formas de valorizar as nossas raízes, por exemplo:
Realizar a Liturgia Familiar proposta e/ou adaptada.
Construir e colocar no cantinho da oração a nossa árvore genealógica.
Rebuscar fotos antigas e colocá-las no cantinho da oração.
Homenagear ou prendar os nossos avós… ou outros idosos.
Rezar pelos que já partiram.
Tempo da Criação
A Quaresma, melhor a celebração da Páscoa – manhã da nova criação – que a Quaresma prepara, é também tempo de olhar e cuidar para a criação que nos rodeia. Ela é um dom e uma tarefa para nós: ‘crescei, cuidai…’
É tempo portanto para darmos mais um passo no cumprimento da missão que Deus nos confiou.
Da proposta da Dinâmica quaresmal da nossa diocese:
«Para dar uma perspetiva própria à proposta desta caminhada diocesana, mais uma vez eminentemente familiar, encontramos inspiração na metáfora bíblica da Aliança, tema dominante na Sagrada Escritura (287 vezes) e especialmente presente nas primeiras leituras da Liturgia Dominical da Palavra de Deus, nos Domingos da Quaresma e, implicitamente, na Semana Santa.
O significado bíblico da palavra Aliança move-se fundamentalmente em duas direções. Por um lado, é um pacto entre dois sujeitos: entre Deus e o seu povo. Por outro lado, este encontro entre Deus e o seu povo é querido primeiro pelo Senhor, que decide livremente unir-Se a nós, num laço de solidariedade: é, portanto, antes de tudo, iniciativa de Deus, um compromisso divino, uma promessa do Senhor, cujo amor nos precede e excede».
1.º Domingo: A nossa Casa
Neste 1.º Domingo da Quaresma, a cena bíblica da Aliança com Noé mostra-nos como tudo está interligado, o cuidado da Terra e o cuidado dos irmãos (cf. LS 70).
O número 40, o mesmo dos dias do dilúvio, é o algarismo bíblico da penitência e da conversão, da prova e da suspensão da normalidade, com vista a um novo início. Assim é na Quaresma. O pico europeu da primeira onda da pandemia coincidiu com o período litúrgico da Quaresma. Vamos atravessar a Quaresma de 2021 em clima de confinamento ou, pelo menos, de grandes restrições por causa da pandemia. Nesta coincidência, a Aliança com Noé, que põe a salvo a sua família, dentro da sua arca, sugere-nos a ideia de que também nós devemos cuidar da nossa Casa, da nossa casa familiar como abrigo, como refúgio, como lugar de salvação, para a preservação do mundo. O apelo “fique em casa” do tempo de confinamento pode ser vivido como experiência de preservação da nossa vida e da vida dos irmãos. É também, a partir da vida em nossa casa, que podemos aprender a cuidar da Casa comum, que é o nosso mundo.
“Na família, cultivam-se os primeiros hábitos de amor e cuidado da vida, como, por exemplo, o uso correto das coisas, a ordem e a limpeza, o respeito pelo ecossistema local e a proteção de todas as criaturas. A família é o lugar da formação integral, onde se desenvolvem os distintos aspetos, intimamente relacionados entre si, do amadurecimento pessoal” (LS 213).
Como cuidar da Casa comum, a partir da nossa Casa familiar, promovendo uma aliança entre a humanidade e o ambiente (cf. LS 209-215)?
O Papa recorda-o na Encíclica Laudato Si’, de forma muito concreta: “evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar com desvelo os outros seres vivos, plantar árvores, apagar as luzes desnecessárias… Tudo isto faz parte duma criatividade generosa e dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano” (LS 211).
Em casa e em família podemos realizar gestos significativos do cuidado da nossa casa familiar, da nossa Casa comum, tais como:
Elaborar um plano de privação (de jejum e abstinência), de modo a desenvolver hábitos de maior sobriedade e simplicidade, no consumo de comida, gás, luz, etc. Plantar uma árvore, cuidar das plantas.»
Tempo da Criação
«Ora, aqui joga-se com coragem profética exatamente o contrário: a certeza de que ou nos constituímos como um “nós” que habita a casa comum que é a terra ou veremos apenas crescer a guerra de interesses e egoísmos que nos põe a “todos contra todos”, escreve o cardeal Tolentino Mendonça.
«Cuidar do mundo que nos rodeia e nos apoiar significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos nos tornar um "nós" que mora na casa comum. Esse cuidado não interessa às potências económicas que precisam de receita rápida. Muitas vezes as vozes que se levantam em defesa do meio ambiente são silenciadas ou ridicularizadas, disfarçando de racionalidade aqueles que são apenas interesses particulares. Nesta cultura que estamos a produzir, vazia, indo ao encontro do imediato e destituído de um projecto comum, “é previsível que, face ao esgotamento de alguns recursos, se crie um cenário favorável para novas guerras, disfarçado de reivindicações nobres”.» (FT, 17)
“Sem dúvida, esta é outra lógica. Se você não tentar entrar nessa lógica, minhas palavras soarão como fantasias. Mas se aceitarmos o grande princípio dos direitos que emanam do simples fato de possuir a dignidade humana inalienável, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar outra humanidade. É possível querer um planeta que garanta terra, casa e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho para a paz, e não a estratégia tola e míope de semear o medo e a desconfiança das ameaças externas. Porque a paz real e duradoura só é possível «a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro marcado pela interdependência e corresponsabilidade em toda a família humana».” (FT, 127)
“O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos, nascemos nesta terra com a mesma dignidade. As diferenças de cor, religião, capacidade, local de origem, local de residência e tantos outros não podem ser precedidos ou usados para justificar os privilégios de alguns em detrimento dos direitos de todos. Consequentemente, como comunidade, devemos assegurar que cada pessoa viva com dignidade e tenha oportunidades adequadas para seu desenvolvimento integral.” (FT, 118)
DA MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA O DIA MUNDIAL DE ORAÇÃO PELA CRIAÇÃO 1
«Santificareis o quinquagésimo ano, proclamando na vossa terra a liberdade de todos os que a habitam. Este ano será para vós um Jubileu» (Lv 25, 10).
Queridos irmãos e irmãs,
Anualmente, sobretudo desde a publicação da carta encíclica Laudato si’ (24/V/2015; daqui em diante, citada com a sigla LS), o primeiro dia de setembro assinala, para a família cristã, o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação; e com ele se abre o Tempo da Criação que conclui no dia 4 de outubro, memória de São Francisco de Assis. Durante este período, os cristãos renovam em todo o mundo a fé em Deus criador e unem-se de maneira especial na oração e na ação pela preservação da casa comum.
Alegro-me com o tema escolhido pela família ecuménica para a celebração do Tempo da Criação 2020, ou seja, um «Jubileu pela Terra», tendo em vista que se celebra precisamente este ano o quinquagésimo aniversário do Dia da Terra.
Na Sagrada Escritura, o Jubileu é um tempo sagrado para recordar, regressar, repousar, restaurar e rejubilar.
1. Um tempo para recordar
Somos convidados a lembrar sobretudo que o destino último da criação é entrar no «sábado eterno» de Deus. É uma viagem que se realiza no tempo, abraçando o ritmo dos sete dias da semana, o ciclo dos sete anos e o grande Ano Jubilar que sobrevém ao concluírem-se os sete anos sabáticos.
Depois o Jubileu é um tempo de graça para recordar a vocação primordial da criação: ser e prosperar como comunidade de amor. Existimos apenas graças às relações com Deus criador, com os irmãos e irmãs enquanto membros duma família comum e com todas as criaturas que habitam na mesma casa que nós. «Tudo está relacionado, e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs numa peregrinação maravilhosa, entrelaçados pelo amor que Deus tem a cada uma das suas criaturas e que nos une também, com terna afeição, ao irmão sol, à irmã lua, ao irmão rio e à mãe terra» (LS, 92).
Por isso o Jubileu é um tempo para a recordação, repassando na memória a nossa existência inter-relacional. Temos necessidade constante de nos lembrar que «tudo está inter-relacionado e o cuidado autêntico da nossa própria vida e das nossas relações com a natureza é inseparável da fraternidade, da justiça e da fidelidade aos outros» (LS, 70).
4 Outubro 2020
Dia de S. Francisco de Assis
São Francisco de Assis (1182-1226) foi um religioso italiano, fundador da Ordem dos Franciscanos. Era filho de um rico comerciante, mas fez votos de pobreza. Foi canonizado pelo papa Gregório IX, dois anos depois de sua morte. É conhecido como o protetor dos animais.
Tempo da Criação
“Estamos a espremer os bens do planeta. Espremendo-os, como se fossem uma laranja. Países e empresas do Norte enriqueceram explorando dons naturais do Sul, gerando uma ‘dívida ecológica’”, denuncia o papa Francisco no seu vídeo de Setembro a propósito do Dia Mundial de Oração pela Criação, que se assinala a 1 de Setembro por iniciativa do Patriarca Bartolomeu (ortodoxo), de Constantinopla, e ao qual depois se foram juntando várias outras igrejas cristãs. O Papa Francisco envolveu a Igreja Católica há cinco anos, depois de ter publicado a encíclica Laudato Si’, “sobre o cuidado da Casa Comum”.
O Dia Mundial de Oração pela Criação dá início ao “Tempo da Criação”, que decorre até 4 de Outubro, dia de São Francisco de Assis (ao qual se pode aderir com a hashtag #TempoDaCriação), e durante a qual diferentes igrejas (e também organizações não-governamentais) promovem acções de sensibilização, formação ou, mesmo, de concretização de medidas que ajudem a inverter a marcha de destruição que se regista no ambiente. Este ano, o Tempo da Criação surge quando o papa Francisco decidiu promover um Ano Laudato Si’, para assinalar os cinco anos da publicação da encíclica, convidando toda a Igreja a estar atenta a esta questão e promover acções de sensibilização.
Em Portugal, a Comissão Episcopal da Pastoral Social e Mobilidade Humana publicou uma Nota a este propósito. Começa com esta citação:
Quando somos capazes de superar o individualismo pode realmente desenvolver-se um estilo de vida alternativo e torna-se possível uma mudança relevante na sociedade. (Papa Francisco, Laudato si’, 208)
Instituído pelo Papa Francisco em 2015, logo depois da publicação da encíclica Laudato si’, este Dia Mundial de Oração pelo Cuidado da Criação surge-nos neste ano com uma oportunidade extraordinária. Porque extraordinários são os meses que temos vivido desde março, marcados pela incerteza e pelo medo, às vezes pela angústia, pela aflição e pela dor de tantos.
Um tempo marcado também pelo cuidado com os mais frágeis. Tantos exemplos que conhecemos – direta ou indiretamente – de vidas vividas na entrega aos outros, vidas dadas para que os outros vivam!
Mas também sabemos de situações em que a falta de esperança parece ter poder para fechar os corações, deixando-nos indiferentes à sorte e ao sofrimento dos outros. O Papa chama a essa atitude “auto-referencialidade”; e tem-nos alertado, em diversíssimas ocasiões, para o perigo de morte que ela comporta.
Nesta pandemia verificamos que o novo coronavírus «encontrou grandes desigualdades e discriminações no seu caminho devastador; e aumentou-as», como disse o Papa Francisco na audiência do passado dia 19 de agosto. E acrescentou: «Por um lado, é essencial encontrar uma cura para um pequeno mas terrível vírus que põe o mundo inteiro de joelhos. Por outro, temos de nos curar de um grande vírus: o da injustiça social, da desigualdade de oportunidades, da marginalização e da falta de proteção dos mais vulneráveis».
O novo estilo de vida que procuramos deixou de ter o carácter opcional. A Laudato si’, de que celebramos o quinto aniversário, apresenta-nos diversas propostas concretas, todas oportunas, muitas delas urgentes. Não deixemos de as pôr em prática!
A Comissão Episcopal de Pastoral Social e Mobilidade Humana deseja a todas as comunidades cristãs que este Ano Laudato si’ seja rico de concretizações nas suas vidas concretas, convida-as a dar graças a Deus pela Criação e a pedir ao Criador a conversão dos nossos corações e a dos corações daqueles de quem dependem as efetivas mudanças nas políticas públicas que têm tido «dramáticas consequências da degradação ambiental na vida dos mais pobres do mundo» (LS, 13).
(28 de Agosto de 2020)
Ao longo deste Ano, aqui na nossa paróquia de Esmoriz, vamos tentar trabalhar nesse sentido. É uma questão fundamental e uma dimensão essencial da nossa Fé, nas suas várias dimensões.
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