Ninguém Nasce Cristão

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A PORTUGAL
POR OCASIÃO DA
XXXVII JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
[2 - 6 DE AGOSTO DE 2023]

VIGÍLIA COM OS JOVENS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Parque do Tejo, Lisboa
Sábado, 5 de agosto de 2023

Queridos irmãos e irmãs, boa noite!

Dá-me tanta alegria ver-vos! Obrigado por terdes viajado, por terdes caminhado e obrigado por estardes aqui! Estou a pensar que também a Virgem Maria teve de viajar para ver Isabel: «Levantou-Se e partiu apressadamente» (Lc 1, 39). Poderíamos perguntar-nos: Mas porque é que Maria Se levanta e vai apressadamente ter com a prima? Certamente porque acaba de saber que a prima está grávida; mas também Ela está. Então por que foi, se ninguém Lho pedira? Maria realiza um gesto não solicitado e sem ser obrigada; Maria vai porque ama e «quem ama voa, corre feliz» (A Imitação de Cristo, III, 5). Isto é o que o amor nos faz.

A alegria de Maria é dupla: acabara de receber o anúncio do anjo de que acolheria n’Ela o Redentor e também a notícia de que a prima estava grávida. Interessante! Em vez de pensar em Si mesma, pensa na outra. Porquê? Porque a alegria é missionária, a alegria não é para ficar numa pessoa, mas para levar alguma coisa. Pergunto: vós, que estais aqui, que viestes para vos encontrar, para encontrar a mensagem de Cristo, encontrar o sentido bom na vida… Isto, ides guardá-lo para vós ou levá-lo-eis aos outros? Que pensais fazer? Não ouço! (...) É para o levar aos outros, porque a alegria é missionária. Repitamos isto todos juntos: «a alegria é missionária». Concluindo, eu levo esta alegria aos outros.

Mas esta alegria que temos, houve outros que nos prepararam para a receber. Agora olhemos em retrospetiva tudo o que recebemos; tudo isso predispôs o nosso coração para a alegria. Todos nós, se olharmos para trás, veremos pessoas que foram um raio de luz na nossa vida: pais, avós, amigos, sacerdotes, religiosos, catequistas, animadores, professores… São como que as raízes da nossa alegria. Façamos agora um momento de silêncio, e cada qual pense nas pessoas que nos deram algo na vida, naqueles que são como que as raízes da alegria.

[momento de silêncio]

Encontrastes alguém? Encontrastes rostos, histórias? A alegria que nos veio de tais raízes é a que devemos dar, porque nós temos raízes de alegria e, simultaneamente, podemos ser raízes de alegria para os outros. Não se trata de levar uma alegria passageira, uma alegria momentânea, mas uma alegria que cria raízes. Uma pergunta: como podemos tornar-nos raízes de alegria?

A alegria não está fechada na biblioteca – embora seja necessário estudar –, encontra-se noutra parte. Não está guardada à chave. A alegria, é preciso procurá-la, é preciso descobri-la. É preciso descobri-la no diálogo com os outros, onde devemos dar as raízes de alegria que recebemos. Por vezes, isto cansa. Faço-vos uma pergunta: às vezes cansais-vos? Pensai no que acontece, quando uma pessoa está cansada: não tem vontade de fazer nada e, como se costuma dizer, atira-se por terra. Não tem vontade de continuar; então desiste, deixa de caminhar e cai. Pensai numa pessoa que caia na vida, tenha um fracasso, cometa erros mesmo graves, sérios: achais que a sua vida acabou? Não! O que é preciso fazer? Levantar-se! Como recordação, quero deixar-vos o caso dos alpinistas, que gostam de escalar as montanhas; eles têm uma canção linda, onde se diz: «Na arte de subir a montanha, o que conta não é não cair, mas não ficar caído». Está certo!

Quem fica caído, a sua vida já «passou à reforma», está encerrada! Fechou-se à esperança, fechou-se aos anseios, fica por terra. E quando virmos alguém, um amigo nosso, que caiu, que devemos fazer? Levantá-lo. Reparai, quando alguém tem de levantar ou ajudar uma pessoa a levantar-se, que gesto faz? Olha-a de cima para baixo. Trata-se da única ocasião, do único momento em que é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo: quando queremos ajudá-la a levantar-se. Quantas vezes vemos pessoas que nos olham sobranceiras, por cima do ombro, de cima para baixo! É triste. O único modo, a única situação em que é lícito olhar de cima para baixo uma pessoa é (dizei-o vós... forte!) para a ajudar a levantar-se.

Pois bem! O segredo do caminho está um pouco nisto: na constância em caminhar. Na vida, para se conseguir algo, é preciso treinar a caminhar. Às vezes não temos vontade de caminhar, não temos vontade de nos esforçar; copiamos os exames, porque não temos vontade de estudar e não chegamos ao resultado desejado. Não sei se algum de vós gosta de futebol… Eu gosto. Por trás dum golo, que temos? Muito treino. Por trás dum resultado, que há? Muito treino. E, na vida, nem sempre se pode fazer o que apetece, mas aquilo que nos leva a realizar a vocação que temos dentro de nós… Cada um tem a sua vocação. É preciso caminhar. E, se cair, levanto-me ou haja alguém que ajude a pôr-me de pé. Não ficar caído; e treinar-me, treinar-me a caminhar. E tudo isto é possível, não porque fizemos um curso sobre o caminhar; não há cursos que nos ensinem a caminhar na vida! Isto aprendemo-lo dos pais, aprendemo-lo dos avós, aprendemo-lo dos amigos, ajudando-se mutuamente. Na vida, aprende-se, e isto é treino para caminhar.

Deixo-vos estas ideias. É preciso caminhar e, no caso de cair, levantar-se; caminhar com uma meta; treinar-se todos os dias na vida. Na vida, nada é de graça; tudo se paga. Só uma coisa é gratuita: o amor de Jesus! Assim, com este dom gratuito que temos – o amor de Jesus – e com a vontade de caminhar, caminhemos na esperança, olhemos para as nossas raízes e continuemos para diante, sem medo. Não tenhais medo. Obrigado! Adeus.


Ninguém Nasce Cristão

Paris 1997

Lígia Silveira, Agência ECCLESIA, 28 Julho, 2023

Tinha 18 anos e na verdade não sabia bem ao que ia.

O meu percurso na Igreja fez-me descobrir a inserção paroquial dois anos antes, altura em que decidi fazer a primeira comunhão. Portanto o grupo de jovens era o meu quintal, a Mosteiro de Santa Maria do Mar, em Sassoeiros, a minha comunidade, e o padre Ribeiro, responsável pela paróquia, que se desdobrava em comunidades, a pessoa que nos alertava para a importância de não formarmos grupos à parte.

Tenho até dificuldade em perceber como ali cheguei, mas a verdade é que quando soou o convite para ir à Jornada Mundial da Juventude a Paris, e alguns amigos da comunidade se entusiasmaram, vi-me na estação de Santa Apolónia, no meio de muitos jovens, com destino à capital francesa. Recordações de uma avaria no comboio e da necessidade de trocar de locomotiva, jovens vestidos com polos que lembravam a bandeira portuguesa, muita música e violas, alegria no seu estado mais genuíno, e hoje, um álbum cheio de fotografias de momentos, sorrisos, abraços de encontro e unidade.

Um casal de cabelos brancos recebeu-me, e a mais seis peregrinas portuguesas, numa casa em Le Vesinet, um bairro na periferia onde se chegava de metro, e, recordo a amabilidade, o chá e os bolinhos antes de dormir, que acompanhavam a conversa animada que uma das minhas colegas procurava traduzir dado o meu francês titubeante; lembro o conforto de um sótão tomado por jovens entusiasmadas e cansadas; recordo a fotografia à porta de casa antes de sairmos para a vigília em Longchamp quando nos entregavam laranjas, sumos, pizzas pequenas, para que mais logo não tivéssemos fome.

Para me referir a palavras de João Paulo II teria de ir em busca delas e seria uma memória reconstruída, mas lembro a alegria de o ter visto passar bem próximo e o entusiasmo que isso gerava entre todos. Talvez isso seja suficiente para sentir que não estamos sós, e sentir que a empatia, a fraternidade, o encontro, têm início nas estações de metro, entre canções, na estrada partilhada durante vários quilómetros, nas bandeiras que se agitam ao vento e formam uma unidade. Simplista? Sem dúvida, mas com sementes de futuro.

Hoje, ao regressar a essa semana de agosto, não sei aferir o quão transformador foi, mas sei que depositou em mim a certeza de uma Igreja jovem que se mobiliza, que convida com simplicidade a participar. Talvez sejam esses os primeiros passos, que nestes dias serão os passos de tantas nacionalidades a caminhar juntas, que devemos afirmar, para que depois, a partir da empatia e da humanidade comum, possamos colher essas sementes germinadas.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 23 de julho de 2023

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho de hoje oferece-nos a parábola do trigo e do joio (cf. Mt 13, 24-43). Um agricultor, que lançou uma boa semente no seu campo, descobre que um inimigo, de noite, semeou o joio, uma planta muito parecida com o trigo, mas é uma erva daninha.

Desta forma, Jesus fala do nosso mundo que, na realidade, é como um grande campo, onde Deus semeia o trigo e o maligno o joio, e assim o bem e o mal crescem juntos. O bem e o mal crescem juntos. Vemo-lo nas notícias, na sociedade, mas também na família e na Igreja. E quando, ao lado do trigo bom, vemos as ervas daninhas, temos vontade de as arrancar imediatamente, para fazer “limpeza”. Mas hoje o Senhor adverte-nos que fazer isto é uma tentação: não se pode criar um mundo perfeito, nem fazer o bem destruindo apressadamente o que não é bom, porque isto tem efeitos piores: acaba-se – como se diz – por “deitar fora o bebé com a água do banho”.

No entanto, há um segundo campo onde podemos fazer limpeza: o campo do nosso coração, o único onde podemos intervir diretamente. Também ali há trigo e joio, aliás, é a partir dali que ambos se espalham no grande campo do mundo. Irmãos e irmãs, com efeito, o nosso coração é o campo da liberdade: não é um laboratório assético, mas um espaço aberto e, por conseguinte, vulnerável. Para o cultivar como se deve é preciso, por um lado, cuidar constantemente dos delicados rebentos do bem e, por outro, identificar e arrancar as ervas daninhas no momento certo. Olhemos, pois, para dentro de nós e examinemos o que se passa, o que cresce em mim, o que cresce em mim de bom e de mau. Há um bom método para o fazer: chama-se exame de consciência, que consiste em ver o que aconteceu na minha vida hoje, o que atingiu o meu coração e quais decisões tomei. Precisamente para ver, à luz de Deus, onde está o joio e onde está a boa semente.

Depois do campo do mundo e do campo do coração, há um terceiro campo. Podemos chamar-lhe o campo do próximo. São as pessoas com quem nos relacionamos todos os dias e que muitas vezes julgamos. Como é fácil para nós reconhecer o joio delas, como gostamos de “esfolar” os outros! E pelo contrário, como é difícil ver o bom trigo que cresce! Contudo, lembremo-nos que se quisermos cultivar os campos da vida, é importante procurar antes de mais nada a obra de Deus: aprender a ver nos outros, no mundo e em nós mesmos a beleza daquilo que o Senhor semeou, o trigo beijado pelo sol com as suas espigas douradas. Irmãos e irmãs, peçamos a graça de ser capazes de o ver em nós, mas também nos outros, a começar pelos que nos estão próximos. Não se trata de um olhar ingénuo, mas de um olhar crente, porque Deus, o agricultor do grande campo do mundo, gosta de ver o bem e de o deixar crescer até ao ponto de fazer da colheita uma festa!

Por isso, também hoje podemos formular-nos algumas perguntas. Pensando no campo do mundo: sei vencer a tentação de “fazer de toda a erva um feixe”, de limpar o campo dos outros com os meus juízos? Depois, pensando no campo do coração: sou honesto em procurar a erva daninha que há em mim e estou decidido a lançá-la no fogo da misericórdia de Deus? E, pensando no campo do próximo: tenho a sabedoria de ver o que é bom, sem me deixar desanimar pelos limites e pela lentidão dos outros?

Que a Virgem Maria nos ajude a cultivar com paciência o que o Senhor semeia no campo da vida, no meu campo, no campo do meu próximo, no campo de todos.


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

Hoje, enquanto muitos jovens se preparam para partir para a Jornada Mundial da Juventude, celebramos o Dia Mundial dos Avós e dos Idosos. Por isso, um jovem e uma avó estão ao meu lado: o neto e a avó. Um aplauso aos dois! A proximidade entre as duas celebrações seja um convite a promover uma aliança entre as gerações, que é muito necessária, pois o futuro constrói-se em conjunto, na partilha de experiências e no cuidado recíproco entre jovens e idosos. Não nos esqueçamos deles. E um aplauso a todos os avôs e a todas as avós! Bem forte!

Aqui e em muitos países verificam-se fenómenos climáticos extremos: por um lado, em várias regiões, há ondas de calor anormais e incêndios devastadores; por outro, em não poucos lugares, há tempestades e inundações, como aquelas que flagelaram a Coreia do Sul nos últimos dias: estou próximo de quem sofre e de quem assiste as vítimas e os desabrigados. E, por favor, renovo o meu apelo aos líderes das nações, a fim de que se faça algo mais concreto para limitar as emissões poluentes: é um desafio urgente e inadiável, que diz respeito a todos. Protejamos a nossa casa comum!

E agora gostaria de chamar a atenção para o drama que continua a consumar-se para os migrantes na parte norte da África. Milhares deles, num sofrimento indescritível, há semanas estão bloqueados e abandonados em áreas desérticas. Apelo, em particular aos Chefes de Estado e de Governo europeus e africanos, a fim de que prestem urgentemente socorro e assistência a estes irmãos e irmãs. Que o Mediterrâneo não volte a ser teatro de morte e de desumanidade. O Senhor ilumine a mente e o coração de todos, suscitando sentimentos de fraternidade, solidariedade e acolhimento.

E continuemos a rezar pela paz, de modo especial pela querida Ucrânia, que continua a sofrer mortes e destruições, como infelizmente aconteceu de novo esta noite em Odessa.

Desejo bom domingo a todos e, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. E rezemos também por esta avó e este neto, e por todos os avós e netos.

Bom almoço e até à vista!


Ninguém Nasce Cristão

OPINIÃO LIVRO

Ainda Bento XVI: os últimos escritos

P. Andreas Lind, sj |12 Julho 2023 | in Ponto SJ

Chegou recentemente às livrarias portuguesas o último livro assinado por Bento XVI: O que é o Cristianismo. Quase um Testamento Espiritual, tradução de Luísa Silva Maneiras (Cascais: Lucerna, 2023). Trata-se de uma «recolha de textos já publicados ou parcialmente novos» (p. 7) que Elio Guerriero organizou, com o aval de Bento XVI, por forma a reunir num único volume todos os escritos redigidos após a renúncia de 2013. A edição de referência é a italiana e alguns dos textos aqui reunidos são inéditos em português.

A última obra que Bento XVI havia publicado durante o seu pontificado fora A Infância de Jesus (2012). E, apesar de se sentir «exausto» aquando da renúncia, percebemos que, afinal, acabou por continuar o trabalho teológico, apanágio de toda a sua vida (p. 9).

À medida que ia lendo estes textos, senti claramente estar diante de um homem que pertence a um tempo muito concreto da história recente. Senti que ele escreve e pensa a partir de um contexto cultural diferente do meu. É normal. Embora seja o primeiro Papa eleito no terceiro milénio, a sua teologia permanecerá profundamente ligada ao século XX. Os temas que o inquietam têm a ver com a receção do Concílio Vaticano II e os exageros, nomeadamente litúrgicos, que se seguiram nas décadas de sessenta e setenta do século passado. Preocupa-se com o maio de 68, cuja libertinagem moral continua presente na sua reflexão. Considera que os cristãos devem, depois de Auschwitz, rever a sua interpretação do judaísmo. Harmoniza a fé com a razão. Procura ligar a experiência do belo, que ele vive ao escutar as missas de Mozart, com os conteúdos da doutrina católica. E manifesta, como não podia deixar de ser, um enorme apreço por São João Paulo II. Podemos fruir, a este respeito, do texto que Bento XVI aqui nos deixa de homenagem ao Papa que o precedeu no centenário do seu nascimento. É interessante observar a sua admiração pelo facto deste santo não ter aprendido teologia só com os livros, mas também enquanto operário próximo dos simples mortais deste mundo, vivendo com eles as suas «questões atuais» (p. 182).

Provavelmente, este livro será de difícil leitura para quem não se assumir como cristão convicto: não só porque pressupõe algum conhecimento da tradição bíblica e teológica da qual Ratzinger faz parte, mas também pelo tom de quem recorrentemente escreve «para nós, cristãos». Apesar de tudo, Bento XVI mostra-se preocupado com as pessoas do tempo presente. Assume a dificuldade de expressarmos hoje a doutrina católica a partir do conceito clássico de «substância» (p. 144), ao mesmo tempo que se abre a certas correntes filosóficas, mais contemporâneas, para as quais a «categoria fundamental de todo o real em termos gerais já não é a substância, mas a relação». A este respeito, diz-nos: «para nós, cristãos, podemos apenas dizer que para a nossa fé o próprio Deus é relação» (p. 145). No mesmo sentido, agradece o esforço que a Comissão Teológica Internacional o obrigou a fazer em relacionar-se com «outras línguas e formas de pensamento» (p. 179).

Por um lado, Bento XVI gosta de sublinhar, num sentido bem oposto ao de muita teologia que hoje se faz, a particularidade do cristianismo em relação às outras religiões e culturas. Refiro-me à diferença que a tradição cristã manifesta, segundo Bento XVI, face ao Islão, ao judaísmo e, sobretudo, à presente «cultura pós-moderna» (a expressão é sua). Também insiste em mostrar, neste contexto, a dissemelhança entre o seu entendimento da teologia católica e a de Lutero.

Por outro lado, procura sublinhar a continuidade dinâmica da História da Salvação. Há, para ele, uma continuidade, não sem reforma, da Tradição viva da Igreja. A este respeito, é interessante notar como ele procura refutar «a teoria da substituição», segundo a qual o povo que se forma a partir de Jesus Cristo substitui o povo de Israel. Este último deixaria, então, de «ser portador das promessas de Deus» (p. 63). Para Bento XVI, trata-se de uma «aliança nunca revogada», apesar de ser uma «realidade dinâmica» (p. 78). Há, assim, uma clara continuidade entre o Antigo e o Novo Testamentos, os quais foram excessivamente separados pela teologia de Lutero. Segundo Bento XVI, este Reformador aproximou-se perigosamente da heresia de Marcião, o que, aliás, explica o antissemitismo de ambos. Destaca-se, neste âmbito, a interpretação que Bento XVI propõe do desabamento do Templo com Cristo: esse evento vem significar o fim da linha divisória que «se entrepõe entre o espaço linguístico e existencial da legislação mosaica, por um lado, e o do movimento que se reuniu em torno de Jesus Cristo, por outro lado». Desse modo, «os ministérios cristãos (episkopos, presbyteros, diáconos) e os regulados pela lei mosaica (sumo-sacerdotes, sacerdotes, levitas) passam a estar abertamente lado a lado e podem, portanto, com uma nova clareza, ser também identificados uns com os outros» (p. 115). Com isto, Bento XVI defende que o celibato é mais conforme à condição dos presbíteros: até porque corresponde à prática da Igreja primitiva, onde se exigia «a abstinência sexual» mesmo aos padres casados (p. 119).

Sabemos que um dos aspetos fundamentais da teologia de Ratzinger diz respeito à continuidade entre a razão natural e a Revelação sobrenatural. E isso volta a aparecer nestes textos. «As sementes do Logos» estão presentes em todos os povos e tempos da história. Já Clemente de Alexandria o dizia (p. 40). É, pois, fundamental para a religião católica, isto é, universal, não só a harmonia entre fé e razão, mas também a unidade entre judeus e gentios. São Paulo compreendeu-o bem ao não querer separar-se dos gregos. Pois, segundo Bento XVI, a «reconciliação entre a fé e a razão» só se cumpre plenamente quando, depois de assumirmos que Deus é Criador do céu e da terra, assentimos que Ele também reúne toda a humanidade num povo em caminho (p. 77).

Esta harmonia entre a luz natural da razão e a Revelação implica que, apesar de distintas, a filosofia e a teologia jamais se separam radicalmente. Se «o conceito de Criação», que o povo hebreu parece ter desenvolvido sobretudo durante o exílio, tem que ver com as questões metafísicas sobre as primeiras e últimas causas do universo e do ser humano, a dependência para com Deus acarreta fortes implicações antropológicas e morais (p. 36). Sem a ligação ao Criador, que estabelece o Amor na origem de todas as coisas, as pessoas separam-se umas das outras. Na medida em que perdem o fundamento que as liga como irmãs umas às outras, as pessoas ficam apenas entregues às suas próprias forças. Centradas nos seus desejos e caprichos, desvinculam-se da Verdade que poderia uni-las em harmonia. A lei do mais forte impõe-se nesse horizonte, que rejeita colocar Deus no centro e na origem de todas as coisas. É assim que Bento XVI procura mostrar como a autonomia radical da presente «cultura pós-moderna» tende a gerar violência e intolerância, contrariamente ao monoteísmo cristão.

Neste contexto, é ainda de referir a homenagem a Alfred Delp, mártir do nazismo. Trata-se de um jesuíta que teve a coragem de defender a doutrina social da Igreja pagando o preço de ser cruelmente executado pelo regime nazi (p. 187). Para Bento XVI, a vida de Delp mostra-nos como a experiência de fé nunca se desassocia do compromisso em prol da justiça neste mundo. O «testemunho cruento dos mártires» revela-nos que a fé não nos afasta deste mundo e do empenho pela construção da justiça já nesta vida. Eles, os mártires, vivem da esperança que os leva a darem a vida pela verdade e pela justiça (p. 189).

Bento XVI afirma, ainda, a continuidade entre os últimos pontificados. Chama a atenção para o facto do último livro de João Paulo II ter versado sobre a misericórdia de Deus. É essa a marca do atual pontificado de Francisco, cuja autoridade Bento XVI respeita claramente. É um «sinal dos tempos» a necessidade de perdão, de acolhimento, de misericórdia (p. 96). Esta constitui um ponto de contato entre os homens e as mulheres de hoje e o tesouro que Deus confiou à Igreja. Com efeito, segundo Bento XVI, as pessoas de hoje estão carentes de misericórdia: «num mundo “tecnicizado”, em que os sentimentos já não contam, aumenta todavia a espera de um amor salvífico que seja dado gratuitamente» (p. 97).

Essa continuidade também se manifesta na junção, ou tensão, entre aparentes opostos que a teologia católica recusa separar. Não é só a fé, mas também as obras que nos abrem à redenção e salvação de Deus. Nem a graça fica sozinha, por pressupor a natureza. Quanto à Escritura, é evidente que ela surge numa Tradição viva que a vai produzindo e estabelecendo em termos canónicos.

Neste contexto, é interessante perceber como, para Bento XVI, a Missa é simultaneamente ceia, qual banquete, e sacrifício. Na Missa, a gravitas própria a um culto sacrificial não apaga a alegria da festa que nos reúne à volta da mesa. Não devemos escolher um aspeto em detrimento do outro. É na Missa que vivemos todos os paradoxos que a pessoa de Cristo nos revela. Sendo o Pastor eterno, não deixa de se oferecer para nós como o Cordeiro de Deus. Apesar de ser Rei, lava-nos os pés como um Escravo. Na Missa, encontramo-nos com o Cristo que vem, qual bom samaritano, perdoar-nos e cuidar-nos, ao mesmo tempo que aparece como o homem que deixaram caído quase morto, sedento do nosso amor, na espera de nos fazermos próximos para lhe tocar nas chagas. Não é por acaso que as chagas de Cristo na cruz permanecem no corpo glorioso do Ressuscitado, que por nós continua a dar a vida.

É provável que não compreendamos estes paradoxos. Mas podemos viver este encontro. Afinal, como Bento XVI diz a Daniele Libanori: «a fé é um contacto profundamente pessoal com Deus». E «esta realidade tão pessoal tem inseparavelmente a ver com a comunidade. (…) Entro na Igreja não com um ato burocrático, mas através do sacramento» do Batismo. «Sou acolhido numa comunidade que não se originou a si mesma e que se projeta para além de si mesma» (p. 94-95).

Deus não pode ser reduzido a uma imagem que fabricamos a partir da nossa imaginação ou do nosso contexto histórico-cultural. Nem sequer a razão que Ele mesmo nos deu pode abarcá-Lo plenamente. Por isso, Bento XVI insiste na necessidade de abandonarmos «a ideia de uma Igreja que se faz a si mesma»: a Igreja deve «proporcionar o encontro com Jesus Cristo» (p. 95). Neste sentido, alerta para «o perigo de nos tornarmos senhores da fé, em vez de nos deixarmos renovar e dominar por ela» (p. 166). Talvez referindo-se a alguns movimentos atuais, como o Caminho Sinodal Alemão, afirma: «a crise causada por muitos casos de abuso perpetrados por sacerdotes leva inclusivamente a considerar a Igreja como algo disfuncional, a que devemos resolutamente tomar as rédeas e formar de um modo novo. Mas uma Igreja feita por nós não pode representar nenhuma esperança» (p. 167).

Mas, afinal, «o que é o Cristianismo»? Para Bento XVI, São João «exprime a [sua] autêntica natureza» no versículo 1 Jo 4, 16: «Nós conhecemos o amor que Deus nos tem». A fé consiste em ir encontrando Deus «no fundo da nossa existência», nessa experiência de sermos amados e de queremos permanecer nesse amor. Tal como a verdade e a alegria, «o amor exige ser comunicado» (p. 20). Essa é a nossa missão.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 9 de julho de 2023

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho de hoje relata uma belíssima oração de Jesus, que se dirige ao Pai dizendo: Dou-te graças, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos» (Mt 11, 25). Mas do que está a falar Jesus? E quem são esses pequeninos, a quem essas coisas são reveladas? Reflitamos sobre isto: as coisas pelas quais Jesus louva o Pai e acerca dos pequeninos que as sabem receber.

As coisas pelas quais Jesus louva o Pai. Pouco antes, o Senhor recordou algumas das suas obras: «Os cegos recuperam a vista [...] os leprosos são purificados, [...] aos pobres é anunciado o Evangelho» (Mt 11, 5), e revelou o seu significado, dizendo que são sinais da ação de Deus no mundo. Portanto, a mensagem é clara: Deus revela-se libertando e curando o homem - não o esqueçamos: Deus revela-se libertando e curando o homem - e fá-lo com um amor gratuito, um amor que salva. É por isso que Jesus louva o Pai, porque a sua grandeza consiste no amor e nunca age fora do amor. Mas esta grandeza no amor não é compreendida por aqueles que se presumem grandes e fazem de si um deus à sua imagem: poderoso, inflexível, vingativo. Por outras palavras, estes presunçosos não conseguem aceitar Deus como Pai; quem é cheio de si, orgulhoso, preocupado apenas com os próprios interesses – estes são os presunçosos – convictos de que não precisam de ninguém. A este propósito, Jesus cita os habitantes de três cidades ricas da época, Corazim, Betsaida e Cafarnaum, onde fez muitas curas, mas cujos habitantes permaneceram indiferentes à sua pregação. Para eles, os milagres não passavam de acontecimentos espetaculares, úteis para fazer notícia e alimentar os mexericos: esgotado o seu interesse passageiro, arquivavam-nos, talvez para se ocuparem de outras notícias do momento. Não souberam acolher as grandes coisas de Deus.

Os pequeninos, pelo contrário, sabem acolhê-las e Jesus louva o Pai por eles: “bendigo-te” - diz - porque revelaste o Reino dos Céus aos pequeninos. Louva-o pelos simples, que têm o coração livre da presunção e do amor-próprio. Os pequeninos são aqueles que, como as crianças, se sentem necessitados e não autossuficientes, estão abertos a Deus e ficam maravilhados com as suas obras. Sabem ler os seus sinais, maravilham-se com os milagres do seu amor! Pergunto a cada um de vós, a mim também: sabemos maravilhar-nos com as coisas de Deus, ou tomamo-las como coisas passageiras?

Irmãos e irmãs, a nossa vida, se pensarmos bem, está cheia de milagres: está cheia de gestos de amor, de sinais da bondade de Deus. Perante eles, contudo, também o nosso coração pode ficar indiferente e tornar-se habitudinário, curioso mas incapaz de se deixar “impressionar”. Um coração fechado, um coração blindado, não tem capacidade para se admirar. Impressionar é um bonito verbo que faz lembrar a película de um fotógrafo. Esta é a atitude correta perante as obras de Deus: fotografar as suas obras na mente, para que fiquem impressas no coração, e depois revelá-las na vida, através de muitos gestos de bem, para que a “fotografia” de Deus-amor se torne cada vez mais luminosa em nós e através de nós.

E agora perguntemo-nos, cada um de nós: na abundância de notícias que nos inundam, eu, como Jesus nos mostra hoje, sei deter-me nas grandes coisas de Deus, naquelas que Deus realiza? Deixo-me maravilhar como uma criança pelo bem que muda silenciosamente o mundo, ou perdi a capacidade de me admirar? E bendigo todos os dias o Pai pelas suas obras? Maria, que exultou no Senhor, nos permita maravilharmo-nos com o seu amor e louvá-lo com simplicidade.


Ninguém Nasce Cristão

OPINIÃO CONFIANÇA EM DEUS

O GOZO DA ALEGRIA DA COMUNHÃO A PARTIR DO MEDO

Inês Barreiros Mota | 30 Junho 2023 | in Ponto SJ

No evangelho do passado domingo, Jesus dirige-se aos apóstolos, advertindo: “Não tenhais medo dos homens (…)”. Cada um de nós vive, de diferentes formas, condicionado pelos seus medos, e ao ler este evangelho perguntava-me: “De que tenho medo, realmente? Tenho medo de não chegar onde quero? De não conseguir estar à altura do que os outros esperam de mim? De falhar perante as ‘normas’ pautadas pela sociedade?” Muitas outras perguntas foram levantadas e cada um terá as suas. Contudo, diante de toda esta interrogação, foi sendo evidente que na origem estava o alheamento de Jesus, a confiança deposta exclusivamente nas minhas capacidades, a sobrevalorização das necessidades e interesses dos demais desconsiderando a Sua vontade.

Por vezes, não reconhecemos que somos amados por Ele. Pomos toda a confiança em nós, apesar de termos mais ou menos consciência da nossa pequenez, fragilidade e impotência. Naturalmente, os medos surgem; porque muitas vezes o desejo é maior que a capacidade – que temos ou somos capazes de ver.

Sendo isto parte integrante da nossa humanidade, tão bem relatada por aqueles que mais perto de Jesus estiveram como Maria que se perturba perante o anúncio do anjo Gabriel (Lc 1,29-30); ou Pedro (Mt 14, 30) quando Jesus caminha sobre as águas e lhe pede que vá ter com Ele e que ao duvidar pela sua falta de fé começa a afundar-se. Com estes exemplos, podemos entender que é no temor – no desejo de não querer nada mais que a vontade de Deus que o Espirito Santo afina o nosso olhar e vontade. Assim, o surgimento de medos pode ser, um sinal de alerta da possibilidade de nos estarmos a afastar da Sua vontade. Perante este reconhecimento e confronto com a nossa humanidade, o caminho passa pela adjudicação, que com a humildade que implica nos aproxima de Jesus, criando-se espaço em nós para sentir que também é nossa vontade só n’Ele confiar. É um caminho desafiante, parece que nem todos conseguem passar pela sua estreiteza, mas é a confiança num Pai que não se cansa de esperar com os braços abertos para nos acolher, sempre, mesmo quando nos afastamos (“Parábola dos dois filhos” – Lucas 15:11-32) que nos pode conduzir.

No princípio do evangelho já citado, Jesus acrescenta: “Temei antes Aquele que pode lançar na geena a alma e o corpo. (…). Portanto, não temais.” O medo com que nos deve deter será o de desperdiçarmos a nossa vida com coisas que não nos dão a verdadeira Vida, mas que antes a consomem. O temor a Deus para que somos advertidos, passa por não sabermos gozar das oportunidades de escolher o que mais nos aproxima de Deus, deixando-nos escravos das necessidades, carências, vulnerabilidade ao material. Coisas que roubam o espaço necessário à nossa relação com Deus.

Olhemos uma vez mais para Maria no canto do Magnificat – “E o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador. Porque pôs os olhos na humildade da Sua serva’” É este caminho de libertação que permite a comunhão com Deus e com os irmãos que nos acompanham. E é a fidelidade e compromisso a este desejo de comunhão que nos faz gozar da verdadeira alegria.


Ninguém Nasce Cristão

OPINIÃO MÚSICA

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO
AOS MEMBROS DO CONSELHO DE SEGURANÇA
DAS NAÇÕES UNIDAS

Quarta-feira, 14 de junho de 2023

[Discurso do Santo Padre ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, lido por S.E. Mons. Paul R. Gallagher, Secretário para as Relações com os Estados e Organizações Internacionais]

Senhora Presidente do Conselho de Segurança
Senhor Secretário-Geral,
Querido irmão, Grão-Imame de Al-Azhar,
Senhoras e senhores!

Agradeço-vos o amável convite para me dirigir a vós, que aceitei de bom grado, porque atravessamos um momento crucial para a humanidade, no qual a paz parece sucumbir perante a guerra. Os conflitos aumentam e a estabilidade está cada vez mais ameaçada. Vivemos uma terceira uerra mundial em pedaços que, quanto mais o tempo passa, mais parece expandir-se. O Conselho, cujo mandato é velar pela segurança e pela paz no mundo, por vezes aos olhos dos povos parece impotente e paralisado. Mas o vosso trabalho, apreciado pela Santa Sé, é essencial para promover a paz e, por isso, gostaria de vos convidar a enfrentar, com urgência, os problemas comuns, distanciando-vos de ideologias e particularismos, de visões e interesses partidários, e cultivando uma única intenção: trabalhar para o bem de toda a humanidade. De facto, espera-se que o Conselho respeite e aplique «a Carta das Nações Unidas com transparência e sinceridade, sem segundas intenções, como ponto de referência obrigatório da justiça e não como instrumento para mascarar intenções ambíguas».1

No mundo globalizado de hoje, estamos todos mais próximos, mas não por isso somos mais irmãos. Pelo contrário, sofremos uma carestia de fraternidade, que emerge de tantas situações de injustiça, pobreza e desigualdade, da falta de uma cultura de solidariedade. «As novas ideologias, caraterizadas pelo individualismo generalizado, pelo egocentrismo e pelo consumismo materialista, enfraquecem os laços sociais, alimentando aquela mentalidade do “descarte”, que leva ao desprezo e ao abandono dos mais fracos, daqueles que são considerados “inúteis”. Deste modo, a convivência humana assemelha-se cada vez mais a um mero do ut des pragmático e egoísta».2 Mas o pior efeito desta carestia de fraternidade são os conflitos armados e as guerras, que antagonizam não só indivíduos, mas povos inteiros, e cujas consequências negativas se repercutem durante gerações. Com o nascimento das Nações Unidas, parecia que a humanidade tinha aprendido, depois de duas terríveis guerras mundiais, a caminhar para uma paz mais estável, a tornar-se, finalmente, uma família de nações. Ao contrário, parece que voltamos atrás na história, com o surgimento de nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos, que desencadearam conflitos não só anacrónicos e ultrapassados, mas até mais violentos.3

Como homem de fé, considero que a paz é o sonho de Deus para a humanidade. Mas vejo, infelizmente, que por causa da guerra, este sonho maravilhoso transforma-se num pesadelo. É certo que, do ponto de vista económico, a guerra é muitas vezes mais atraente do que a paz, pois favorece o lucro, mas sempre de poucos e à custa do bem-estar de populações inteiras; por isso, o dinheiro ganho com a venda de armas é dinheiro sujo de sangue inocente. É preciso mais coragem para renunciar aos lucros fáceis para preservar a paz do que para vender armas cada vez mais sofisticadas e poderosas. É preciso mais coragem para procurar a paz do que para fazer a guerra. É preciso mais coragem para favorecer o encontro do que o conflito, para se sentar à mesa das negociações do que para prosseguir as hostilidades.

Para construir a paz, temos de nos afastar da lógica da legitimidade da guerra: se isto pode ter sido verdade no passado, quando os conflitos armados tinham um alcance mais limitado, hoje, com as armas nucleares e de destruição de massa, o campo de batalha tornou-se virtualmente ilimitado e os efeitos potencialmente catastróficos. Chegou o momento de dizer seriamente “não” à guerra, de afirmar que não são as guerras que são justas, mas que só a paz é justa: uma paz estável e duradoura, não construída sobre o perigoso equilíbrio da dissuasão, mas sobre a fraternidade que nos une. Porque caminhamos na mesma terra, somos todos irmãos e irmãs, habitantes da única casa comum, e não podemos obscurecer o céu sob o qual vivemos com as nuvens dos nacionalismos. Onde iremos parar se cada um pensar só em si? É por isso que aqueles que trabalham para construir a paz devem promover a fraternidade. É um trabalho artesanal que requer paixão e paciência, experiência e clarividência, tenacidade e dedicação, diálogo e diplomacia. E escuta: ouvir os clamores dos que sofrem com os conflitos, especialmente das crianças. Os seus olhos cheios de lágrimas julgam-nos; o futuro que lhes preparamos será o tribunal das nossas escolhas presentes.

A paz é possível se for verdadeiramente desejada! Ela deve encontrar no Conselho de Segurança «as suas caraterísticas fundamentais, que um conceito erróneo da paz facilmente faz esquecer: a paz deve ser racional, não passional, magnânima, não egoísta; a paz não deve ser inerte e passiva, mas dinâmica, ativa e progressiva, de acordo com as justas exigências dos direitos declarados e equitativos do homem, que exigem novas e melhores expressões dos mesmos; a paz não deve ser débil, inepta e servil, mas forte, tanto pelas razões morais que a justificam, como pelo consenso compacto das nações que a devem apoiar».4

Ainda estamos a tempo para escrever um novo capítulo de paz na história: podemos fazer da guerra algo do passado e não do futuro. Os debates no Conselho de Segurança para isto estão orientados e para isto servem. Gostaria de sublinhar mais uma vez uma palavra, que gosto de repetir porque a considero decisiva: fraternidade. Não pode permanecer uma ideia abstrata, mas deve tornar-se o ponto de partida concreto: de facto, representa «uma dimensão essencial do homem, que é um ser relacional. Uma consciência viva desta relacionalidade leva-nos a ver e a tratar cada pessoa como uma verdadeira irmã e um verdadeiro irmão; sem ela, torna-se impossível construir uma sociedade justa, uma paz sólida e duradoura».5

Para a paz, para cada iniciativa e processo de paz, asseguro o meu apoio, a minha oração e a dos fiéis católicos. Faço votos sinceros de que não só o Conselho de Segurança, mas toda a Organização das Nações Unidas, todos os seus Estados-membros e cada um dos seus funcionários, possam prestar um serviço eficaz à humanidade, assumindo a responsabilidade de salvaguardar não só o próprio futuro, mas o de todos, com a audácia de renovar agora, sem medo, o que é necessário para promover a fraternidade e a paz em todo o planeta. «Bem-aventurados os pacificadores» (Mt 5, 9).

1. Discurso aos membros da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 25 de setembro de 2015.

2. Mensagem para o XLVII Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 2014.

3. Cf. Carta Encíclica Fratelli tutti, n. 11.

4. São Paulo VI, Mensagem para o VI Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 1973.

5. Mensagem para o XLVII Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 2014.


Ninguém Nasce Cristão

OPINIÃO MÚSICA

Coração partido: o regresso de Nick Cave

Miguel Marujo | 2 Junho 2023 | in Ponto SJ

Nick Cave está de regresso à gravação de um álbum com os seus Bad Seeds, depois de Ghosteen (2019). A notícia foi dada pelo próprio, em The Red Hand Files, o site que alimenta com respostas à correspondência dos seus fãs. Numa carta publicada a 15 de maio, Nick Cave anuncia “algumas semanas de folga” do site por, a partir desse dia, entrar em estúdio e trabalhar “nas músicas do novo disco do Bad Seeds”.

Antecipando que “as músicas estão a soar ótimas”, o compositor, cantor e músico australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não desvela muito mais sobre como vai ser esse disco. Neste intervalo, Nick não tem estado parado: gravou sozinho, numa emissão ao vivo por streaming, o disco Idiot Prayer (Nick Cave Alone at Alexandra Palace), em plena pandemia (2020), escreveu o libreto para uma ópera de câmara do belga Nicholas Lens, L.I.T.A.N.I.E.S (2020), juntou-se a Warren Ellis, seu companheiro nos Bad Seeds, para gravar um dos grandes álbuns do ano de 2021, Carnage, e acompanhou o mesmo Ellis em três bandas sonoras: La Panthère des neiges (2021), Dahmer — Monster: The Jeffrey Dahmer Story e Blonde (ambas em 2022); reuniu os seus B-Sides & Rarities Part II (2021), com os Bad Seeds; por fim, escreveu e leu Seven Psalms (2022) num disco tão breve quanto intenso. E ainda teve tempo para uma longa conversa em livro, com o jornalista Seán O’Hagan, cujo título é uma perfeita síntese da vida, obra e música de Nick Cave: Fé, Esperança e Carnificina (ed. Relógio d’Água, 2022). No meio disto tudo, passou por duas vezes no verão do ano passado pelos palcos do Porto e de Lisboa.

Respiremos: este enunciado burocrático quase esconde o caminho que Cave tem feito, nestes anos mais recentes, no qual parece ter pressa em dialogar com Deus. O músico perdeu dois filhos nos últimos anos, e — a partir da morte de Arthur, em 2015, aos 15 anos — a sua criação artística assemelhou-se a uma erupção violenta em que assomam o amor, a dor, a morte e Deus. Se estes eram temas já recorrentes na sua obra, agora Nick Cave sintetiza o que o guia: “Assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está.”

No livro Fé, Esperança e Carnificina, o australiano reconhece: “As canções que escrevo hoje em dia tendem a ser canções religiosas no sentido mais lato do termo. Essas canções comportam-se como se Deus existisse. Essencialmente, argumentam a favor da própria crença, pese embora sejam às vezes ambivalentes ou inconsistentes quanto à existência de Deus.”

E que Deus é este, então? Há tempos, na troca de correspondência com os fãs, à pergunta “o que é Deus?”, a resposta foi assertiva: “Deus é amor”, adiantando que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. E demora-se a explicar: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos dessa ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”

O coração partido revela-se de muitos modos. E neste caso salva — como a música, já se sabe. “Para mim, a canção de amor existe, em última análise, para preencher o silêncio entre nós e Deus, para diminuir a distância entre o temporal e o divino.”


Ninguém Nasce Cristão

OPINIÃO DOR

Viver a partir de que lugar?

Rita Sacramento Monteiro | 24 Maio 2023 | in Ponto SJ

Foi perto da Páscoa que soubemos que a minha Mãe tinha cancro. Quisemos adaptar o programa habitual e que ela contasse à família. Mas ela não quis alterar nada nem dizer a ninguém. Não queria entristecer ninguém antes de tempo, não era a hora. Nessa Páscoa, vi-a preparar e servir o almoço a mais de 30 pessoas como era costume. Vi-a conversar e sorrir, estar com as pessoas, entrar e sair da cozinha, aproveitar o dia. A forma como a minha Mãe viveu a doença, sempre saboreando a vida com alegria e entusiasmo, deixou-me a mim, à nossa família e amigos, uma importante herança espiritual e humana. Impressiona-me muito que, até à sua hora, a minha Mãe tenha procurado lavar os pés aos outros, acolhendo, saindo de si, indo ao encontro dos doentes e dos mais sozinhos. Ela, doente. Ela, na cruz. Mas era para os outros, para o amor que se voltava.

Depois do dia em que ouvimos a oncologista da minha Mãe dizer que já não havia mais nenhuma terapêutica disponível, mas sim cuidar e acompanhar, seguiu-se para nós uma sexta-feira de Paixão. E depois da morte da minha Mãe, um longo sábado. O caminho que se iniciou a seguir à sua morte, de luto, de fragilidade, de recomeço, esteve para mim sempre associado ao tempo Pascal. Fiquei muito tempo sentada junto ao túmulo. Sabia que não conseguiria avançar para onde quer que fosse a partir de ideias de céu ou de morte, mais ou menos espiritualizadas. E só conseguiria avançar se, como até ali, pudesse ser autêntica na minha relação com Deus. Tantas vezes, eventualmente com boas intenções, mas também por fuga, espiritualizamos a vida, em particular a morte e a dor. Ou seja, tornamos um acontecimento mais simbólico do que real, criamos distrações. Partimos de ideias e não da realidade. E isso não só não nos faz bem, como não pode ser o desejo d’Ele para nós.

O contacto com a realidade da morte traz ao de cima as imagens que temos de Deus. É duro fazer perguntas a Deus sobre o que aconteceu, ou ouvir comentários piedosos sobre um Deus que escolhe quem vem buscar!… Mas só através das perguntas, e até mesmo da zanga com Ele, foi possível descobrir um Deus que salva, não através do milagre que queremos, mas através da presença incondicional e da garantia de vida. E essa foi a minha maior descoberta, foi a minha Páscoa!

Para viver a morte a partir da raiz, nomeadamente a partir da raiz da nossa fé, é preciso, por isso, fazer a experiência humana e não ficarmos por aquilo em que deveríamos acreditar, deveríamos pensar ou deveríamos sentir. Tocar a dor é difícil e leva tempo. Para o fazermos precisamos de estar acompanhados e de nos sentirmos acolhidos. Só assim vamos percebendo que essa dor não nos vai destruir. Mas é progressivo. Não podemos querer uma liturgia rápida da morte que arrume e abafe a dor que não queremos sentir. É preciso deixar a dor ser dor, deixando-a ser em nós e nós nela. E isso vale para qualquer dor na nossa vida! Para além de um espaço individual para sentirmos, precisamos de um espaço coletivo, nas nossas famílias, nos nossos grupos de amigos, nas nossas comunidades, onde se possa falar da morte e onde se possa falar da dor, nomeadamente da dor que se sente quando alguém de quem gostamos, morre. E do processo que isso desperta, envolve. Negar isso é negar uma parte extremamente importante e identitária do que é ser humano. Em certa medida, é negar a experiência da vida.

Algumas vezes perguntaram-me como é viver sem Mãe e como é que se ultrapassa uma morte. Fui também percebendo uma resposta em mim: eu tenho Mãe (e que Mãe!) e a morte não se ultrapassa. A morte não passa. Tal como a vida não passa. Um nascimento marca e muda a vida. Uma morte também. A vida e a morte integram-se. Mas para isso é preciso encontrarmo-nos connosco e com a nossa verdade e isso é um caminho. Atravessando a dor, atravessamos a morte, e essa travessia com Deus, abre-nos ao mistério da Ressurreição.

Foram precisos 3 anos para sentir de novo a alegria do Domingo da Ressurreição. Sinto que foi preciso atravessar uma noite muito escura, estar muito tempo sentada junto ao túmulo, para um dia ter ouvido, a partir do meu coração, as perguntas: vais viver a partir de que lugar? Do túmulo ou da Ressurreição? Da morte ou da vida? Do sofrimento ou da esperança? E eu escolhi. Mas aprendi também que a escolha pode ser diária. O exercício Pascal é o exercício da nossa vida. E a vida é um exercício permanente de lugar. Vou viver a partir do medo ou da confiança? Da aparência ou da autenticidade? Vou viver a partir da ideia de que acredito em Deus ou a partir da relação com Ele?

A Páscoa, que significa passagem em hebraico, acontece no caminho, em caminho, e sempre a partir da realidade. Por isso não nos preocupemos se no tempo litúrgico da Páscoa, e mesmo chegados ao Pentecostes, ainda sentirmos trevas e teias de aranha no nosso coração. O caminho dos discípulos de Emaús, de volta a Jerusalém, de volta à integração, de volta ao encontro, leva o tempo que cada um de nós precisa. Só pode haver Páscoa a partir da verdade do que somos e sentimos. Estamos em movimento? Caminhamos acompanhados pelos outros e por Deus? Procuramos ler a vida? Então é preciso ter paciência e confiar. Leva tempo. Eu cheguei a sentir que, depois destes acontecimentos na minha vida, não haveria novidade ou mais alegria. Mas o dia chega, em que o Espírito Santo nos faz sentir que a dor re-conhecida, atravessada e cuidada se transformou em mais vida. E em que sentimos, de facto, que Jesus, o Bom Pastor, não nos deixou sós. A minha vida não é melhor sem a minha Mãe, não é pior, é diferente. É outra vida. Mas é vida! E isso parece-me ao mesmo tempo milagroso e frágil. Sim, viver a partir da realidade do que somos e do que nos acontece, é frágil. Mas a beleza da vida e da Ressurreição é essa: a Luz atravessa tudo e sempre, mesmo que os nossos olhos precisem de tempo para acreditar.


Ninguém Nasce Cristão

Papa dá início à Semana Laudato si’

7M/Agência Ecclesia | 21 Mai 2023

O Papa lançou no Vaticano a Semana ‘Laudato Si’, que assinala o oitavo aniversário da sua encíclica ecológica e social, convidando todos a “colaborar para cuidar da casa comum”. “Há muita necessidade de colocar em conjunto competências e criatividade. Recordam-no-lo, também, as recentes calamidades, como as inundações que, por estes dias, atingiram a Emília-Romanha, a cuja população renovo, do coração, a minha proximidade”, disse, após a recitação da oração do ‘Regina Coeli’, desde a janela do apartamento pontifício.
Simbolicamente, os peregrinos presentes na Praça de São Pedro receberam uma pequena publicação sobre a ‘Laudato Si’, que o Vaticano preparou em colaboração com o Instituto Ambiental de Estocolmo. O Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral explica que o guia “A nossa casa comum” procura “informar, consciencializar e oferecer conselhos práticos sobre o cuidado da criação”.
De 21 a 28 de maio, a Semana ‘Laudato Si’ vai promover momentos de debate e oração, com o tema ‘Esperança para a Terra. Esperança para a humanidade’.
A iniciativa tem, este ano, como proposta central a promoção de exibições comunitárias do documentário ‘A Carta’, estreado em outubro de 2022, que conta a história da encíclica’ Laudato Si’ e detalha a emergência ecológica.
Também ontem, domingo, o Papa assinalou no Vaticano a celebração anual do Dia Mundial das Comunicações Sociais, que em 2023 tem como tema “Falar com o coração”, agradecendo pelo trabalho dos jornalistas. “É o coração que nos move a uma comunicação aberta, acolhedora. Saúdo os jornalistas, os profissionais da Comunicação aqui presentes, e agradeço-lhes pelo seu trabalho, desejando que esteja sempre ao serviço da verdade e do bem comum”, disse, desde a janela do apartamento pontifício, após a recitação da oração do ‘Regina Coeli’.
A mensagem que Francisco escreveu para esta data intitula-se “Falar com o coração: testemunhando a verdade no amor”, inspirada numa passagem da carta de São Paulo aos Efésios (Ef 4,15).
O Papa pediu aos peregrinos presentes na Praça de São Pedro um “aplauso para todos os jornalistas”, gesto a que ele próprio se associou.

PAPA FRANCISCO
REGINA CAELI
Praça São Pedro
Domingo 21 de maio de 2023

[Multimídia]


Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje, em Itália e em muitos outros países, celebra-se a Ascensão do Senhor. É uma festa que conhecemos bem, mas que pode suscitar algumas perguntas, pelo menos duas. A primeira: por que festejar a partida de Jesus da terra? Poderia parecer que a sua partida é um momento triste, não propriamente um motivo de alegria! Por que festejar uma partida? Primeira pergunta. Segunda pergunta: o que está a fazer Jesus agora no céu? Primeira pergunta: porquê festejar? Segunda pergunta: o que está a fazer Jesus no céu?

Por que festejamos? Porque com a Ascensão aconteceu uma coisa nova e bela: Jesus levou a nossa humanidade, a nossa carne para o céu – pela primeira vez! – ou seja, levou-a a Deus. Aquela humanidade, que ele assumira na terra, não ficou aqui. Jesus ressuscitado não era um espírito, não, tinha o seu corpo humano, a carne, os ossos, tudo, ali, com Deus, estará para sempre. Podemos dizer que a partir do dia da Ascensão, o próprio Deus, “mudou”: desde então, já não é apenas um espírito, mas, por quanto nos ama, tem em si a nossa própria carne, a nossa humanidade! Pois o nosso lugar é indicado, o nosso destino está ali. Assim escrevia um antigo Pai na fé: «Notícia maravilhosa! Aquele que se fez homem por nós [...], para nos fazer seus irmãos, apresenta-se como homem diante do Pai, para levar consigo todos os que estão unidos a ele» (S. Gregório de Nissa, Discurso sobre a Ressurreição de Cristo, 1). Hoje celebramos “a conquista do céu”: Jesus que regressa ao Pai, mas com a nossa humanidade. E assim o céu já é um pouco nosso. Jesus abriu a porta e o seu corpo está lá.

Segunda pergunta: o que está a fazer Jesus no céu? Ele representa-nos perante o Pai, mostra-lhe continuamente a nossa humanidade, mostra-lhe as feridas. Gosto de pensar que Jesus, diante do Pai, mostrando-lhe as chagas, reza assim. “Eis o que sofri pelos homens: faz alguma coisa!”. Mostra-lhe o preço da redenção, e o Pai comove-se. Gosto de pensar nisto. É assim que Jesus reza. Ele, não nos deixou sozinhos. De facto, antes de ascender, disse-nos, como relata o Evangelho de hoje: «Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (Mt 28, 20). Ele está sempre connosco, olha para nós, está «sempre vivo para interceder» (Hb 7, 25) em nosso favor. Para mostrar as feridas ao Pai, por nós. Numa palavra, Jesus intercede; está no melhor “lugar”, diante do Pai seu e nosso, para interceder por nós.

A intercessão é fundamental. Também para nós esta fé é útil: ajuda-nos a não perder a esperança, a não desanimar. Perante o Pai, há alguém que lhe mostra as feridas e intercede. Que a Rainha do Céu nos ajude a interceder com a força da oração.


Depois do Regina Caeli

Prezados irmãos e irmãs!

É triste, mas, um mês depois do início da violência no Sudão, a situação continua a ser grave. Encorajo os acordos parciais alcançados até agora, renovando o meu veemente apelo para que deponham as armas e peço à comunidade internacional que não poupe esforço algum para fazer prevalecer o diálogo e aliviar o sofrimento da população. Por favor, não nos habituemos aos conflitos e às violências. Não nos habituemos à guerra! E continuemos a estar próximos do martirizado povo ucraniano.

Hoje celebra-se o Dia Mundial das Comunicações Sociais, com o tema Falar com o coração. É o coração que nos move para uma comunicação aberta e acolhedora. Saúdo os jornalistas e os profissionais da comunicação aqui presentes, agradeço-lhes pelo trabalho e desejo que o mesmo esteja sempre ao serviço da verdade e do bem comum. Uma salva de palmas a todos os jornalistas!

Hoje começa a Semana Laudato si’. Agradeço ao Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral e às numerosas organizações que aderem; e convido todos a colaborar para o cuidado da nossa casa comum: há tanta necessidade de conjugar competências e criatividade! Recordam-no também as recentes calamidades, como as inundações que atingiram a Emília Romagna nos últimos dias, a cuja população renovo de coração a minha proximidade. Agora, na Praça, serão distribuídos os opúsculos sobre a Laudato si’ que o Dicastério preparou em colaboração com o Instituto ambiental de Estocolmo.
(…)
Desejo a todos bom domingo. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Por favor, não vos esqueçais. Bom almoço e até à vista!


Ninguém Nasce Cristão

Teologia Quotidiana

João Duque | 10 Maio 2023 | in Ponto SJ

Habitualmente, situamos a teologia, enquanto discurso sobre Deus, no limite das possibilidades – ou para lá das possibilidades – das palavras humanas. Ou porque a imaginamos num estilo de reflexão de tal modo elaborada racionalmente, que dificilmente permite o acompanhamento do seu significado, a não ser por mentes muito treinadas – pensemos em certas formulações da teologia trinitária… Ou então, porque o seu “objeto” – precisamente o não-objeto Deus – é de tal modo inacessível à palavra e ao pensamento humanos, que apenas pode ser colocado para lá dos limites do formulável, sendo apenas dito como indizível.

Não pretendo negar o valor destas variantes e destes aspetos do discurso teológico. Até porque é sempre perigosa a pretensão de enjaular Deus no tecido das nossas palavras, mais ou menos ardilosas; e ainda mais perigoso é enchermos a nossa vida com a presunção orgulhosa de possuirmos Deus, de sabermos seguramente quem é e o que quer – normalmente para dominarmos os outros, com base em tal autoridade, reconhecida institucionalmente ou não.

Mas deste estatuto “extraordinário” de Deus poderíamos concluir algo diferente, que não o estatuto igualmente extraordinário do texto teológico – e de qualquer nível da reflexão teológica, mesmo na mais básica experiência de fé, também ela concebida como extraordinária. Refiro-me a assumirmos que não faz sentido falar “diretamente” de Deus, porque isso corresponde normalmente a uma ilusão, já que ele nunca será objeto direto desse discurso. Ou seja, a teologia – mas também a própria experiência crente – só é possível indiretamente, enquanto experiência do mundo e enquanto palavra a partir dessa experiência.

Mas mesmo aqui – ou especialmente aqui – continuamos a ter tendência para o “extraordinário”: realmente teológicos e, por isso, base de um discurso sobre Deus seriam apenas alguns acontecimentos ou alguns aspetos do mundo, precisamente aqueles que, devido ao seu estatuto, fossem mais do que mundanos, ou já para lá deste mundo. E esquecemos, de forma dramática, que se aplicássemos esta regra aos Evangelhos, ou melhor, à vida de Jesus, pouca coisa seria verdadeiramente teológica. Coisa estranha.

Quando afirmamos que Jesus revela Deus – e o humano – de forma plena, não nos referimos apenas a uma parte especial da sua existência (esse erro já foi recusado pelos primeiros dogmas cristológicos). Toda a sua existência é reveladora. Acontece que a quase totalidade dessa existência nem sequer entra nos relatos evangélicos, porque terá sido insignificante. Não porque não tenha significado, mas precisamente porque nada possui de extraordinário. O seu grande significado coincide, precisamente, com o significado teológico do quotidiano, enquanto não extraordinário (as ambiguidades do português não nos permitem usar o termo “ordinário”, como noutras línguas).

De facto, o quotidiano possui uma profundeza de significado inesgotável – é aí que está albergado, precisamente, o significado do humano. Só que, habitualmente, não estamos suficientemente atentos para ler esse significado – e, com isso, perdemos o significado teológico de grande parte da nossa existência. Salva-nos, no emaranhado da nossa ordinária desatenção, a atenção extraordinária de alguns de nós, a que chamamos normalmente artistas, ou poetas, ou místicos. Não porque ignorem este mundo e divaguem noutro mundo qualquer, mas porque mergulham na profundidade escondida em cada pormenor do dia a dia e aí encontram um imenso significado revelador do sentido da existência, potencialmente também de um sentido teológico. Essa será a verdadeira teologia do quotidiano, de que Jesus é paradigma, seja nos anos em que viveu no anonimato, seja na forma como assumiu a sua missão pública, mergulhado nas movimentadas ruas da vida quotidiana, entre amizades e tensões, entre comidas e jejuns, entre risos e choros.

Há dias faleceu um desses poetas místicos do quotidiano, legando-nos uma assombrosa obra de leitura do pormenor, da extraordinária força do “ordinário”, dos acontecimentos que nos rodeiam, das coisas em que estamos mergulhados, dos outros com quem tecemos redes, de nós próprios e dos nossos mistérios simples. O Padre João Aguiar Campos, que viveu o stress intenso da comunicação social como ninguém, já há muito nos tinha habituado, com os seus escritos poéticos, a uma exímia atenção aos pequenos eventos de cada instante, extraindo-lhes significados inauditos e uma graça própria. Mas, nos últimos tempos da sua vida, marcados por dura e prolongada doença, quis “ler a vida devagar, leve o tempo que levar…”. E foi partilhando – por sinal, nas redes sociais digitais, que ajudam a tecer o quotidiano contemporâneo – a sua leitura do inesgotável significado daquilo que parece insignificante. É um dos exemplos mais completos que conheço daquilo que poderíamos chamar uma teologia do quotidiano – em que Deus raramente é referido de forma direta, mas simplesmente adivinhado no tecido de outras relações. O que ouvimos, o que vemos, o que cheiramos, o que tocamos, o que saboreamos – da natureza em geral, das coisas, dos animais, dos outros humanos – atinge-nos de forma impressionante, colocando-nos perante o mistério de um mundo que não precisa de nada especial para vibrar em todos os seus elementos. E quem melhor nos pode falar de Deus, senão a sua escondida presença nos acontecimentos em que vivemos mergulhados? Uma espécie de experiência crente à flor da pele.

Aproveito a partida deste místico do quotidiano para recordar – antes de tudo, a mim mesmo – a importância de superarmos a nossa habitual desatenção ao quotidiano, enquanto “geração perversa” que busca sinais extraordinários, porque é incapaz de encontrar esses sinais onde eles verdadeiramente estão, por todo o lado, todos os dias. A teologia cristã, fundada na experiência de Jesus, ou é teologia extraída do quotidiano, ou não é nem verdadeiramente teologia – porque constrói idolatricamente o seu objeto – nem verdadeiramente cristã – porque não é fiel à incarnação. Em Jesus, a humanidade real do dia a dia é o incontornável lugar de revelação de Deus e do caminho de salvação. Quem o procurar noutro lado, não encontra o Espírito de Jesus, mas um outro espírito qualquer. Obrigado, Padre João, por nos ajudar a redescobrir o mais importante da nossa fé – e da vida, simplesmente.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

AUDIÊNCIA GERAL

Praça São Pedro
Quarta-feira, 3 de maio de 2023

Viagem à Hungria

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Há três dias regressei da viagem à Hungria. Desejo agradecer a todos aqueles que prepararam e acompanharam esta visita com a oração, e renovar a minha gratidão às Autoridades, à Igreja local e ao povo húngaro, um povo corajoso e rico de memória. Durante a minha permanência em Budapeste pude sentir o afeto de todos os húngaros. Hoje gostaria de vos falar desta visita através de duas imagens: as raízes e as pontes.

As raízes. Fui como peregrino visitar um povo cuja história - como disse São João Paulo II - foi marcada por «muitos santos e heróis, circundados por multidões de pessoas humildes e diligentes» (Discurso por ocasião da cerimónia de boas-vindas, Budapeste, 6 de setembro de 1996). É realmente verdade: vi tantas pessoas humildes e diligentes conservar com orgulho o vínculo com as suas raízes. E entre estas raízes, como salientaram os testemunhos durante os encontros com a Igreja local e com os jovens, estão sobretudo os santos: santos que deram a vida pelo povo, santos que testemunharam o Evangelho do amor e que foram luzes nos momentos de escuridão; tantos santos do passado que hoje exortam a superar o risco do derrotismo e o medo do amanhã, recordando que Cristo é o nosso futuro. Os santos recordam-nos isto: Cristo é o nosso futuro.

Contudo, as sólidas raízes cristãs do povo húngaro foram postas à prova. A sua fé foi testada no fogo. Com efeito, durante a perseguição ateia do século XX, os cristãos foram atingidos violentamente, com Bispos, sacerdotes, religiosos e leigos assassinados ou privados da liberdade. E enquanto se procurava cortar a árvore da fé, as raízes permaneceram intactas: manteve-se uma Igreja escondida, mas viva, forte, com a força do Evangelho. E na Hungria esta última perseguição, a opressão comunista foi precedida pela opressão nazista, com a trágica deportação de uma grande população judaica. Mas nesse genocídio atroz, muitos se distinguiram pela resistência e capacidade de proteger as vítimas, e isto foi possível porque as raízes da convivência eram firmes. Nós em Roma temos uma ótima poetisa húngara que passou todas estas provações e conta aos jovens a necessidade de lutar por um ideal, para não ser derrotados pelas perseguições, pelo desânimo. Esta poetisa hoje completa 92 anos: parabéns, Edith Bruck!

Mas ainda hoje a liberdade está ameaçada, como sobressaiu nos encontros com os jovens e com o mundo da cultura. Como? Sobretudo com as luvas brancas, com um consumismo que anestesia, pelo que as pessoas se contentam com um pouco de bem-estar material e, esquecendo o passado, “flutuam” num presente feito à medida do indivíduo. Esta é a perseguição perigosa da mundanidade, levada a cabo pelo consumismo. Mas quando a única coisa que conta é pensar em si próprio e fazer o que bem entender, as raízes sufocam. Trata-se de um problema que diz respeito à Europa inteira, onde dedicar-se ao próximo, sentir-se comunidade, sentir a beleza de sonhar em conjunto e de criar famílias numerosas estão em crise. A Europa inteira está em crise. Então, reflitamos sobre a importância de preservar as raízes, pois só quando elas se afundam os ramos crescerão e produzirão frutos. Cada um de nós pode perguntar-se, também como povo, cada um de nós: quais são as raízes mais importantes da minha vida? Onde estou radicado? Lembro-me delas, cuido delas?

Depois das raízes, eis a segunda imagem: as pontes. Nascida há 150 anos da união de três cidades, Budapeste é célebre pelas pontes que a atravessam e unem as suas partes. Isto evocou, especialmente nos encontros com as Autoridades, a importância de construir pontes de paz entre diferentes povos. Esta é, em particular, a vocação da Europa, chamada como “ponte de paz” a incluir as diferenças e a acolher quantos batem às suas portas. Neste sentido, é bela a ponte humanitária criada para tantos refugiados da vizinha Ucrânia, que pude encontrar, admirando também a grande rede de caridade da Igreja húngara.

Além disso, o país está muito comprometido na construção de “pontes para o amanhã”: é grande a sua atenção ao cuidado ecológico – e esta é uma coisa muito, muito bonita da Hungria – o cuidado ecológico e o futuro sustentável, e trabalha-se para edificar pontes entre as gerações, entre os idosos e os jovens, desafio hoje irrenunciável para todos. Depois há pontes que a Igreja, como emergiu do encontro específico, é chamada a lançar aos homens de hoje, pois o anúncio de Cristo não pode consistir apenas em repetir o passado, mas deve ser sempre atualizado, de modo a ajudar as mulheres e os homens do nosso tempo a redescobrir Jesus. Por fim, recordando com gratidão os belos momentos litúrgicos, a oração com a comunidade greco-católica e a solene Celebração eucarística, tão participada, penso na beleza de construir pontes entre os crentes: na Missa dominical havia cristãos de vários ritos e países, e de diferentes confissões, que juntos trabalham bem na Hungria. Construir pontes, pontes de harmonia e pontes de unidade.

Nesta visita fiquei impressionado com a importância da música, que é um traço caraterístico da cultura húngara.

Concluindo, apraz-me recordar, no início do mês de maio, que os húngaros são muito devotos à Santa Mãe de Deus. A Ela consagrados pelo primeiro rei, Santo Estêvão, por respeito costumavam dirigir-se a Ela sem pronunciar o seu nome, chamando-a unicamente com os títulos da Rainha. Portanto, confiemos à Rainha da Hungria aquele querido país, confiemos à Rainha da paz a construção de pontes no mundo, à Rainha do Céu, que aclamamos neste tempo pascal, confiemos o nosso coração para que se enraíze no amor de Deus.


Ninguém Nasce Cristão

OPINIÃO PÁSCOA

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
À HUNGRIA
(28 - 30 de abril de 2023)

HOMILIA DO SANTO PADRE

Praça Kossuth Lajos (Budapeste)
Domingo, 30 de abril de 2023

As últimas palavras que Jesus pronuncia, no Evangelho que ouvimos, resumem o sentido da sua missão: «Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância» (Jo 10, 10). É isto o que faz um bom pastor: dá a vida pelas suas ovelhas. Assim Jesus, como um pastor que vai à procura das ovelhas do seu rebanho, veio procurar-nos quando estávamos perdidos; como um pastor, veio arrebatar-nos da morte; como um pastor, que conhece as suas ovelhas uma por uma e as ama com infinita ternura, fez-nos entrar no redil do Pai, tornando-nos seus filhos.

Contemplemos, pois, a imagem do bom Pastor, detendo-nos em duas ações que Ele, segundo o Evangelho, realiza pelas suas ovelhas: primeiro chama-as, depois fá-las sair.

1. Em primeiro lugar, «chama as suas ovelhas» (10, 3). No início da nossa história de salvação, não estamos nós com os nossos méritos, as nossas capacidades, as nossas estruturas; na origem, está a chamada de Deus, o seu desejo de nos alcançar, a sua solicitude por cada um de nós, a abundância da sua misericórdia que nos quer salvar do pecado e da morte, para nos dar a vida em abundância e a alegria sem fim. Jesus veio como bom Pastor da humanidade, a fim de nos chamar e levar para casa. Assim nós, com memória agradecida, podemos recordar o seu amor por nós; por nós que estávamos longe d’Ele. Sim, enquanto «todos nós andávamos desgarrados como ovelhas perdidas, cada um seguindo o seu caminho» (Is 53, 6), Ele assumiu as nossas iniquidades e carregou as nossas culpas, trazendo-nos de volta ao coração do Pai. Assim o ouvimos, do apóstolo Pedro, na segunda Leitura: «Éreis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao Pastor e Guarda das vossas almas» (1 Pd 2, 25). E ainda hoje, em cada situação da vida, naquilo que trazemos no coração, nos nossos extravios, nos nossos medos, no sentimento de derrota que às vezes nos assalta, na prisão da tristeza que ameaça enjaular-nos, Ele chama-nos. Vem como bom Pastor e chama-nos por nome, para nos dizer quanto somos preciosos a seus olhos, para curar as nossas feridas e tomar sobre Si as nossas fraquezas, para nos reunir em unidade no seu rebanho e tornar-nos familiares do Pai e uns dos outros.

Irmãos e irmãs, reunidos aqui esta manhã, sintamos a alegria de ser povo santo de Deus: todos nascemos da sua chamada; foi Ele que nos convocou e, por isso, somos o seu povo, o seu rebanho, a sua Igreja. Reuniu-nos aqui para que, embora sendo diversos uns dos outros e pertencendo a comunidades diferentes, a grandeza do seu amor nos reúna a todos num único abraço. É bom estarmos juntos: bispos e sacerdotes, religiosos e fiéis leigos; e é bom partilhar esta alegria juntamente com as Delegações ecuménicas, os chefes da Comunidade judaica, os representantes das Instituições civis e do Corpo Diplomático. Isto é catolicidade: todos nós, chamados por nome pelo bom Pastor, somos chamados a acolher e espalhar o seu amor, a tornar o seu rebanho inclusivo, e nunca excludente. E, por conseguinte, somos todos chamados a cultivar relações de fraternidade e colaboração, sem nos dividirmos entre nós, sem considerar a nossa comunidade como um ambiente reservado, sem nos deixarmos tomar pela preocupação de defender cada um o próprio espaço, mas abrindo-nos ao amor recíproco.

2. Depois de ter chamado as ovelhas, o Pastor «fá-las sair» (Jo 10, 3). Primeiro fá-las entrar no redil chamando-as, agora impele-as para fora. Primeiro somos reunidos na família de Deus para sermos constituídos seu povo, mas depois somos enviados ao mundo para nos tornarmos, com coragem e sem medo, arautos da Boa Nova, testemunhas do Amor que nos regenerou. Este movimento – entrar e sair –, podemos captá-lo a partir doutra imagem que Jesus utiliza: a da porta. Diz Ele: «Eu sou a porta. Se alguém entrar por Mim, estará salvo; há de entrar e sair e achará pastagem» (10, 9). Ouçamos com atenção isto: há de entrar e sair. Por um lado, Jesus é a porta que se abriu de par em par a fim de nos fazer entrar na comunhão do Pai e experimentar a sua misericórdia; mas, como todos sabem, uma porta aberta serve não só para entrar, mas também para sair do lugar onde nos encontramos. Assim, depois de nos ter reconduzido ao abraço de Deus e ao redil da Igreja, Jesus é a porta que nos faz sair para o mundo: Ele impele-nos a ir ao encontro dos irmãos. E – fixemo-lo bem na memória! – todos nós, sem exceção, somos chamados a isto: sair das nossas comodidades e ter a coragem de alcançar toda a periferia que necessita da luz do Evangelho (cf. Papa Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 20).

Irmãos e irmãs, para cada um de nós, viver «em saída» significa tornar-se, como Jesus, uma porta aberta. É triste e custa ver portas fechadas: as portas fechadas do nosso egoísmo em relação a quem caminha diariamente ao nosso lado; as portas fechadas do nosso individualismo numa sociedade que corre o risco de se atrofiar na solidão; as portas fechadas da nossa indiferença em relação a quem está no sofrimento e na pobreza; as portas fechadas a quem é estrangeiro, diferente, migrante, pobre. E até as portas fechadas das nossas comunidades eclesiais: fechadas entre nós, fechadas para o mundo, fechadas para quem «não está dentro das normas», fechadas para quem aspira pelo perdão de Deus. Irmãos e irmãs, por favor, por favor: abramos as portas! Procuremos ser também nós – com as palavras, os gestos, as atividades quotidianas – como Jesus: uma porta aberta, uma porta que nunca se fecha na cara de ninguém, uma porta que a todos permite entrar para experimentar a beleza do amor e do perdão do Senhor.

Repito isto sobretudo para mim mesmo, para os irmãos bispos e sacerdotes: para nós, pastores. Porque o pastor – diz Jesus – não é um salteador nem um ladrão (cf. Jo 10, 8); isto é, não se aproveita da sua função, não oprime o rebanho que lhe está confiado, não «rouba» o espaço aos irmãos leigos, não exerce uma autoridade rígida. Irmãos, encorajemo-nos a ser portas sempre mais abertas: «facilitadores» da graça de Deus, peritos de proximidade, dispostos a oferecer a vida, como Jesus Cristo, nosso Senhor e nosso tudo, nos ensina de braços abertos a partir da cátedra da cruz e sempre no-lo mostra no altar, Pão vivo repartido para nós. Digo-o também aos irmãos e irmãs leigos, aos catequistas, aos agentes pastorais, a quem tem responsabilidades políticas e sociais, àqueles que simplesmente levam para a frente a sua vida quotidiana, por vezes com dificuldade: sede portas abertas. Deixemos entrar no coração o Senhor da vida, a sua Palavra que consola e cura, para depois sairmos fora e sermos, nós mesmos, portas abertas na sociedade. Estar abertos e ser inclusivos uns para com os outros, para ajudar a Hungria a crescer na fraternidade, caminho da paz.

Caríssimos, Jesus bom Pastor chama-nos por nome e cuida de nós com infinita ternura. É a porta e quem entra através d’Ele tem a vida eterna: portanto Ele é o nosso futuro, um futuro de «vida em abundância» (Jo 10, 10). Por isso, nunca desanimemos, nunca deixemos roubar a alegria e a paz que Ele nos deu, não nos fechemos nos problemas ou na apatia. Deixemo-nos acompanhar pelo nosso Pastor: com Ele resplandeçam de vida nova a nossa própria vida, as nossas famílias, as nossas comunidades cristãs e toda a Hungria!


Ninguém Nasce Cristão

OPINIÃO PÁSCOA

Uma caminhada com duas presenças

Inês Barreiros Mota | 12 Abril 2023 | in Ponto SJ

O evangelho de hoje, no encontro na estrada para Emaús, é talvez a representação perfeita das diferentes fases do percurso de fé, em que se pode encontrar um caminho com duas presenças distintas de Jesus.

O evangelho começa com a caminhada de dois discípulos que perante o acontecimento da morte de Jesus, partem tristes até Emaús, enquanto discutem entre si o que viveram. Apesar de desanimados, este é um caminho que fazem juntos – o que pode ser uma referência à fé vivida em comunidade e ao importante que é sabermo-nos acompanhar uns aos outros. Mais ainda, estão acompanhados por Jesus, que se faz presente, perante o desalento dos discípulos. Contudo, estando tão envolvidos no que tinham acabado de viver, não são capazes de reconhecer a Sua presença. Também nós, não raras vezes, temos as lentes do nosso olhar desajustadas aos critérios de Jesus e é-nos difícil reconhecer a Sua presença no nosso quotidiano – ‘Mas os seus olhos estavam impedidos de O reconhecerem’. Perante isto, Jesus desafia-nos e questiona-nos – ‘Que palavras são essas que trocais entre vós pelo caminho?’.

Jesus recorda-nos a nossa condição limitada – ‘Homens sem inteligência e lentos de espírito’ –, e por nossa necessidade faz-se mais próximo, e recorda aos discípulos a Sua mensagem de Amor partilhada já há vários séculos explicando-lhes as escrituras.

Permanece com eles até que lhes seja evidente a Sua identidade, com o partir do pão. Ao repetir este gesto simbólico de se dar aos outros, Jesus abre-lhes a vista e o coração para a eternidade. Este momento é a fonte de entendimento, é a fonte da verdadeira alegria, o reconhecimento de um Deus vivo que vence a Morte, e que lhes confirma o que as mulheres já lhes tinham dito.

Ao longo do nosso caminho são vários os momentos, as pessoas, as experiências, que nos permitem olhar e ver Deus, e que importante é sabermos cultivá-las para vivermos focados no essencial, a alegria do encontro com Jesus. Este é o horizonte da nossa vida: estar hoje, já, agora com Jesus, no tempo presente, que como o próprio indica nos é dado em cada amanhecer.

Não estando Jesus já entre eles, a Sua presença permanece, é um encontro de tal modo marcante que, leva-os a anunciar a Sua vida, coloca-os desde logo em movimento. Os dois discípulos voltam a caminhar – ‘partiram imediatamente de regresso a Jerusalém’.

Que neste tempo Pascal o nosso olhar esteja atento a este Deus que se revela onde menos esperamos, o que permite que vivamos a alegria do Seu encontro e que saibamos ser mensageiros deste encontro que preenche, que dá vida.


Ninguém Nasce Cristão

Nesta décima segunda resposta, a Ir. Mafalda Leitão e a Ir. Sandra Bartolomeu, Servas de Nossa Senhora de Fátima, sugerem que as formas concretas de transformação dos abusos em caminhos de vida nova, implicam antes de mais um caminho sinodal, uma escuta atenta a partir dos critérios do Evangelho.

Igreja Católica – que caminhos de futuro? (Debate – 12)

Transformação implica caminho sinodal e escuta atenta

Ir. Mafalda Leitão e Ir. Sandra Bartolomeu | 13 Abr 2023 | in 7 Margens

As respostas encontram-se na unidade da Igreja, em diálogo com o mundo contemporâneo

Estamos em plena Páscoa. «Quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt 20, 26). Contemplámos e celebrámos a decisão livre de Cristo em levar até às últimas consequências esta máxima que dera aos seus próprios discípulos – princípio de uma nova relacionalidade, princípio de fraternidade, princípio de Igreja.

Ao assumir a nossa natureza e ao sujeitar-se às mãos dos seus contemporâneos – e das pessoas de todos os tempos – Cristo colocou, e coloca, a nu a nossa própria humanidade com todas as suas fraquezas. Somos, de facto, muito frágeis. Todos. Mas a Páscoa contém em si a força e a possibilidade da transformação, da purificação, da libertação, da passagem a uma nova condição. E todos os que fomos mergulhados nesta Páscoa (significado etimológico de batismo), temos a responsabilidade de ajudar a esse “parto”, isto é, a contribuir para, em cada momento, dar à luz essa comunidade, a que chamamos Igreja, tecida de relações libertadoras e livres quer de subjugação, quer de abuso.

A Igreja não pode jamais compaginar com atitudes que coloquem em causa a dignidade do outro a quem chama irmão e irmã, como sejam abusos de poder de qualquer espécie: de consciência, espiritual, sexual, económico, social… As formas concretas de transformação dos abusos em caminhos de vida nova implicam antes de mais um caminho sinodal, uma escuta atenta a partir dos critérios do Evangelho, quais discípulos de Emaús, no momento que consideravam ser de derrota. A resposta e resolução do problema que temos a afrontar não se encontra numa pessoa ou num determinado grupo, mas na unidade da Igreja, em diálogo com o mundo contemporâneo. A Igreja é, na imagem paulina, um corpo; e quando um membro do corpo está doente, todo o corpo está implicado. Também no processo de sanar é, portanto, toda a Igreja que é chamada a crescer, a transformar-se, a converter a sua mentalidade e os seus caminhos em maior compromisso de dignidade e integração, de escuta e intervenção, para prevenir, proteger, tratar e servir cada um na sua vulnerabilidade.

Na passagem da mulher adúltera Jesus dá-nos critérios para ver de forma abrangente e agir com justiça. A mulher, apanhada em flagrante delito, sabe que é adúltera; Jesus não o nega, mas também não a apedreja. No seu proceder Ele quer resgatar tanto a mulher, como os homens que a ameaçam. Quão desejável seria se fôssemos capazes de realizar esta atitude no momento doloroso que atravessamos, escutando mais além do imediato e cortando com mecanismos que alimentam o mal e a dor. Afrontar e tratar o problema à maneira de Cristo significaria trazer à luz a verdade e a justiça para vitimados e agressores; tratar convenientemente uns, robustecer as fragilidades de outros e trazer dignidade a cada pessoa.

Que mecanismos, então, de vida e de Ressurreição poderão surgir? Que apelo e caminhos poderemos escutar inscritos nesta dor que todos sentimos, cada um com intensidades diferentes, consoante a maior ou menor implicação?

Fazemos parte de uma mesma família, em Igreja e em humanidade. Por isso, todos somos chamados a contribuir na resposta a dar, por mais singela ou exigente que ela seja. Será sinodalmente que sairemos desta prova mais fortes, mais purificados, desenvolvendo-nos em humanidade até à medida da estatura de Cristo Ressuscitado, doador de perdão, de luz, de paz e de Vida.


Ninguém Nasce Cristão

Entre Judas e José de Arimateia

P. Miguel Neto | 5 Abril 2023 | in Ponto SJ

Na generalidade, as leituras da Semana Santa são as mesmas todos os anos. O que muda é a atualidade, o mundo, a visão que temos deste, o estado de espírito de quem ouve e de quem partilha, na Homilia, as suas reflexões.

A mim, há muito tempo que me inquietam dois personagens presentes em todos os relatos da paixão: Judas Iscariotes e José de Arimateia. Costumo dizer, talvez inspirado por uma célebre frase de W. Churchill sobre os seus inimigos, que quem traiu Jesus não foram os Fariseus, os Judeus anónimos, nem tão pouco o Império Romano, com os seus famosos oficiais e anónimos soldados. Quem traiu Jesus foi um dos seus mais importantes discípulos, Judas Iscariotes, que tinha a função de ecónomo. Os outros discípulos abandonaram-No, mas quem O traiu e recebeu dinheiro por isso, foi um dos discípulos em quem Ele mais confiava. Porque é que Judas traiu o Mestre?

Não sendo biblista e não tendo competência exegética para analisar cientificamente os textos, só me compete afirmar que a razão se encontra e se explica no facto de Jesus não ter correspondido às suas expectativas. Judas tinha opiniões e convicções sobre aquilo que deveria, ou não, ser feito por Cristo. Ou seja, era mais importante, para ele aquilo que O Galileu lhe poderia dar, do que aquilo que ele mesmo deveria fazer para corresponder às expectativas do Filho de Deus. E, todavia, como está escrito na Paixão segundo São Mateus, quando Judas se apercebeu, por fim, que afinal não tinha de carregar Jesus – nem ninguém! -, com as suas ideias, sonhos, o que fosse, mas, mais que tudo, com a sua vontade, decidiu, também ele, retirar-se deste mundo.

Judas é o personagem tipo, que carrega sobre Deus, a sua Igreja, o Santo Padre, os bispos e os imensos padres e todos os leigos, a sua vontade, os seus desejos, o seu querer e os seus creres. É exemplo de alguém que, por ter uma função relevante numa comunidade, na Igreja, em qualquer grupo cristão, se acha no pleno direito de exigir que todos cumpram um plano que, afinal, é o seu e não o de todos e se não for feito o que ele defende, então ninguém está, na visão dos Judas deste mundo, a ser fiel na sua missão. Esta pessoa, que acompanhou Jesus em todos os momentos, existe hoje. Basta olharmos à nossa volta e, por certo, encontramos alguém que nunca se questiona sobre qual é a vontade de Deus, que nunca se preocupa se está a equivaler às expectativas que o Senhor tem para si, mas que só vê se o próprio Deus e a sua criação servem as suas necessidades e lhe são úteis. Quando falo da criação, falo de tudo: seres humanos e demais seres vivos, tudo o que faz parte desta casa Comum que habitamos. Tal como Judas, podemos ver que quem assim atua e pensa, mais tarde, ou mais cedo, pode não sair deste mundo pelo seu próprio pé, mas abandona a Igreja, os seus e o próprio Deus e, sempre, com a profunda convicção de que sai porque foram eles que falharam e não foram leais à missão idealizada na cabeça de cada Judas e que só ele sabe que é a correta.

Por outro lado, temos José de Arimateia. Sendo um discípulo escondido de Jesus, por medo dos judeus (cf. Jo 19, 38), não deixa de ser um personagem tipo de alguém que, estando permanentemente anónimo e incógnito, no fundo de cada Eucaristia, no interior de cada Igreja, sofre com as injustiças infligidas a Deus e a sua Igreja, o Santo Padre, os bispos e os imensos padres e leigos. Só aparece e se revela quando é necessário, não para ele, mas para Deus. José de Arimateia foi o único discípulo que quis dar dignidade humana ao Filho de Deus, humanamente morto. E só quando não havia mais ninguém para isso, apareceu. Não para protagonismo, ou sua afirmação própria, mas para dar resposta a uma necessidade dos outros e do Outro, do Senhor, que amava no seu coração. Não para satisfação dos seus sonhos e desejos, mas para que o seu Senhor encontrasse a paz e a dignidade devida a alguém que era amado e amado de verdade.

Encontramos estes dois personagens há séculos, na nossa vivência de fé, mas enquanto Igreja, o que me faz refletir, mais ainda, é como reagimos face a eles. Que atitude tomamos? Como nos posicionamos? Porque, a bem da verdade, assim, como para o bem e para o mal, ambos foram corajosos à sua maneira, ambos afirmaram o seu pensamento, em liberdade e em sentidos opostos, sim, mas com clareza. Já os restantes discípulos – nós todos! – fugiram, esconderam-se, não tiveram força e valentia para dizerem quem eram, quem seguiam, em quem acreditavam. E hoje, tantos estão aí, igualmente sentados nos bancos das Igrejas, buscando respostazinhas individuais, muitas vezes propondo trocas de favores a Deus, para a resolução dos seus problemitas; ou esperando os gestos rituais, como quem assiste a um ato de magia, sem compreender que a fé é muito mais que isso; ou apenas porque é importante estar em determinados sítios, ser visto, fazer parte de uma estrutura social, mas sem uma verdadeira e profunda ligação a Cristo e, sobretudo, sem uma compreensão do que é ser cristão. Nem Judas, nem Josés de Arimateia. E o que será pior?

Fica a proposta de reflexão para esta Páscoa, para este tempo em que O Ressuscitado nos pede, cada vez mais, que olhemos para Ele, com verdade, com a certeza de que é caminho, que se fez vida eterna e livre.

Santa Páscoa!


Ninguém Nasce Cristão

CELEBRAÇÃO DO DOMINGO DE RAMOS
E DA PAIXÃO DO SENHOR

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Praça São Pedro
Domingo, 2 de abril de 2023

«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mt 27, 46): é a invocação que a Liturgia nos fez repetir hoje no Salmo Responsorial (cf. Sal 22/21, 2), sendo também – no Evangelho que ouvimos – a única pronunciada na cruz por Jesus. Representam, pois, as palavras que nos conduzem ao coração da paixão de Cristo, ao ponto culminante dos sofrimentos que padeceu para nos salvar. «Porque Me abandonaste?».

Muitos foram os sofrimentos de Jesus e, sempre que ouvimos a narração da paixão, penetram-nos na alma. Foram sofrimentos do corpo: pensemos nas bofetadas, nas pancadas, na flagelação, na coroa de espinhos, na tortura da cruz. Foram sofrimentos da alma: a traição de Judas, as negações de Pedro, as condenações religiosa e civil, a zombaria dos guardas, os insultos ao pé da cruz, a rejeição de tantos, a falência de tudo, o abandono dos discípulos. E contudo, no meio de todo este sofrimento, restava a Jesus uma certeza: a proximidade do Pai. Mas agora acontece o impensável; antes de morrer, clama: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» O abandono de Jesus.

Estamos perante o sofrimento mais dilacerante, que é o sofrimento do espírito: na hora mais trágica, Jesus experimenta o abandono por parte de Deus. Antes disto, nunca chamara o Pai pelo nome genérico de Deus. Para nos fazer sentir a intensidade daquele momento, o Evangelho apresenta a frase também em aramaico; dentre as palavras pronunciadas por Jesus na cruz, esta é a única que nos chega na língua original. O acontecimento real é o abaixamento extremo, ou seja, o abandono de seu Pai, o abandono de Deus. Aquilo que o Senhor chega a sofrer por nosso amor, até temos dificuldade de o entender. Vê o céu fechado, experimenta o viver no seu amargo limite, o naufrágio da existência, o colapso de toda a certeza: grita «o porquê dos porquês». «Tu, ó Deus, porquê?»

«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» Na Bíblia, o verbo «abandonar» é forte; aparece em momentos de dor extrema: em amores fracassados, rejeitados e traídos; em filhos enjeitados e abortados; em situações de repúdio, viuvez e orfandade; em casamentos gorados, em exclusões que privam dos laços sociais, na opressão da injustiça e na solidão da doença. Em suma, nas mais drásticas dilacerações dos vínculos, aplica-se esta palavra: «abandono». Cristo levou tudo isto para a cruz, ao carregar sobre Si o pecado do mundo. E, no auge, Ele – Filho unigénito e predileto – experimentou a situação mais estranha no seu caso: o abandono, a distância de Deus.

E porque foi tão longe? Por nós; não há outra resposta. Por nós. Irmãos e irmãs, isto hoje não é um espetáculo. Cada um de nós, ouvindo referir o abandono sofrido por Jesus, diga para si mesmo: por mim. Este abandono é o preço que pagou por mim. Fez-Se solidário com cada um de nós até ao ponto extremo, para estar connosco até ao fim. Experimentou o abandono para não nos deixar reféns da desolação e permanecer ao nosso lado para sempre. Fê-lo por mim, por ti, para que, quando eu, tu ou qualquer outro se vir encurralado à parede, perdido num beco sem saída, precipitado no abismo do abandono, sorvido no redemoinho de tantos «porquês» sem resposta, saibamos que há uma esperança: Ele, uma esperança para ti, para mim. Não é o fim, porque Jesus esteve ali e agora está contigo: Ele que sofreu a distância causada pelo abandono para acolher no seu amor todas as nossas distâncias. A fim de que possa cada um de nós dizer: nas minhas quedas (cada um de nós caiu tantas vezes!), na minha desolação, quando me sinto traído ou traí os outros, quando me sinto descartado ou descarto os outros, quando me sinto abandonado ou abandonei os outros, pensemos que Ele foi abandonado, traído, descartado. Nisto encontramo-Lo a Ele. Quando me sinto transviado e perdido, quando não aguento mais, Ele está comigo; nos meus tantos porquês sem resposta, Ele está neles.

É assim que o Senhor nos salva: a partir de dentro dos nossos «porquês». De lá, descerra a esperança que não desilude. De facto, na cruz, enquanto experimenta o abandono extremo, não Se deixa cair no desespero – este é o limite –, mas reza e entrega-Se: grita o seu «porquê» com as palavras de um Salmo (22/21, 2) e entrega-Se nas mãos do Pai, embora O sinta distante (cf. Lc 23, 46) ou nem O sinta sequer, porque Se encontra abandonado. No abandono, entrega-Se. No abandono, continua a amar os Seus que O deixaram sozinho. No abandono, perdoa aos que O crucificaram (cf. Lc 23, 34). E assim o abismo dos nossos inúmeros males é imerso num amor maior, de tal modo que cada uma das nossas separações se transforma em comunhão.

Irmãos e irmãs, um amor assim como o de Jesus, que dá tudo por nós, até ao fim, é capaz de transformar os nossos corações de pedra em corações de carne. É um amor de piedade, ternura e compaixão. Este é o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura. Deus é assim. Cristo, abandonado, impele-nos a procurá-Lo e a amá-Lo nos abandonados. Porque neles, não temos apenas necessitados, mas temo-Lo a Ele, Jesus Abandonado, Aquele que nos salvou descendo até ao fundo da nossa condição humana. Ele está com cada um deles, abandonados até à morte... Penso naquele homem dito «vadio por estrada», alemão, que morreu sob a colunata, sozinho, abandonado. É Jesus para cada um de nós. Muitos precisam da nossa proximidade, tantos abandonados. Também eu preciso que Jesus me acaricie e Se aproxime de mim, e, para isso, vou encontrá-Lo nos abandonados, nas pessoas sozinhas. Ele deseja que cuidemos dos irmãos e irmãs que mais se parecem com Ele, com Ele no ato extremo do sofrimento e da solidão. Hoje, queridos irmãos e irmãs, há tantos «cristos abandonados». Há povos inteiros explorados e deixados à própria sorte; há pobres que vivem nas encruzilhadas das nossas estradas e cujo olhar não temos a coragem de fixar; há migrantes, que já não são rostos, mas números; há reclusos rejeitados, pessoas catalogadas como problema. Mas há também muitos cristos abandonados invisíveis, escondidos, que são descartados de forma «elegante»: crianças nascituras, idosos deixados sozinhos – podem porventura ser o teu pai, a tua mãe, o avô, a avó, abandonados nos lares de terceira idade –, doentes não visitados, pessoas portadoras de deficiência ignoradas, jovens que sentem dentro um grande vazio sem que ninguém escute verdadeiramente o seu grito de dor. E não encontram outra estrada senão o suicídio. Os abandonados de hoje. Os cristos de hoje.

Jesus abandonado pede-nos para termos olhos e coração para os abandonados. Para nós, discípulos do Abandonado, ninguém pode ser marginalizado, ninguém pode ser deixado a si mesmo; porque – recordemo-lo – as pessoas rejeitadas e excluídas são ícones vivos de Cristo, recordam-nos o seu amor louco, o seu abandono que nos salva de toda a solidão e desolação. Irmãos e irmãs, peçamos hoje esta graça: saber amar Jesus abandonado e saber amar Jesus em cada abandonado, em cada abandonada. Peçamos a graça de saber ver, saber reconhecer o Senhor que continua a clamar neles. Não permitamos que a sua voz se perca no silêncio ensurdecedor da indiferença. Não fomos deixados sozinhos por Deus; cuidemos de quem é deixado só. Então, só então, faremos nossos os desejos e os sentimentos d’Aquele que por nós «Se esvaziou a Si mesmo» (Flp 2, 7).

Esvaziou-se totalmente por nós.


Ninguém Nasce Cristão

Opinião PAIXÃO DE JESUS

Nas sombras, arrancar a esperança ao amanhã

P. Nelson Faria, sj | in Ponto SJ | 23 Março 2023

É-nos complicado manter a alegria no tempo da dor. Quando vivemos momentos de escuridão, mesmo as sombras refrescantes de verão, onde outrora encontrámos descanso, se tornam reinos gelados. E nada queima tanto como o frio.

Quando o sofrimento nos envolve e invade, é comum encontrar-nos perdidos, sem horizonte, sem palavras, sem verbo. O Verbo parece estar fora do nosso alcance. Buscamos consolo em suaves lugares-comuns como “isto passa”, “o tempo cura todas as feridas”, ou “amanhã será melhor”, palavras que, contendo alguma verdade, acabam por não responder à nossa necessidade quando se encontram desenraizadas de um genuíno horizonte de futuro.

Para que estas ganhem carne, é necessário termos raízes fundas na realidade, uma realidade cujo tecido é a bondade de Deus. Também esta afirmação pode parecer vazia, pelo que o melhor é apontar o lugar onde podemos encontrar esta luz: a agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras.

A passagem é sobejamente conhecida: depois de comer a Páscoa com os seus amigos, Jesus e os discípulos vão até ao Jardim das Oliveiras entoando salmos. Uma vez aí, Jesus retira-se para rezar. Ele encontra-se numa tristeza mortal, sente-se só e desamparado, sem forças para viver o que está por vir. Após muitas súplicas, Ele diz ao Pai: “Pai, afasta de mim este cálice. Mas não seja feita a minha vontade, mas a tua”.

Qual é a vontade do Pai? A vontade do Pai é que todos se salvem, sejam plenamente felizes, vivam na liberdade do amor. A vontade do Pai é que o bem vença, que não ceda nem se resigne ao mal, e que os nossos gestos rasguem horizontes de alegria antes inimagináveis.

No meio das nossas noites, deixamo-nos frequentemente envolver pelo frio abraço do mal no mundo. Contudo, o mundo criado por Deus está cheio da bondade divina: o amor, a bondade, é a matéria da qual toda a Criação é feita, como nos recorda o Génesis (“e Deus viu que era bom”). Isto não elimina a sombra, mas recorda-nos a tessitura do planeta e do Universo: um lugar bom, propício à vida, ainda que não em todos os lugares e em todos os momentos, onde há um combate espiritual a travar.

Esse combate cósmico é travado definitivamente na Paixão de Jesus. E é a forma como Jesus vive a sua Paixão que mostra como a sombra irá retroceder diante da luz, de como Jesus, humilhado, agredido, insultado, é um raio de luz que atravessa e fere de morte o pecado do mundo, na forma como fala, como cuida, como consola, como perdoa.

Onde é que Jesus encontra as forças para viver, como vive, a sua Paixão? No Jardim das Oliveiras. A oração de confiança de Jesus, ao entregar-se ao Pai, é a forma como Ele arranca a esperança ao que já foi e ao que está por vir. Ele age confiante de que, sendo fiel a quem verdadeiramente é, à matéria da Criação e à sua identidade de Filho, poderá elevar com Ele toda a Humanidade. E esta sua esperança será confirmada na sua Ressurreição. Aliás, vai sendo confirmada nas profissões de fé que vemos ao longo da Paixão, como a do Bom Ladrão e a do centurião junto à cruz.

Assim como, nos relatos da ressurreição, as mulheres ouvem da boca dos anjos que o Senhor os precede na Galileia, também na nossa vida a graça de Deus precede a tormenta. E espera-nos do outro lado da sombra. O nosso Deus não abole as sombras, a dor ou o sofrimento. O nosso Deus é Aquele que traça um itinerário de luz através das sombras, que só a esperança de futuro permite calcorrear, amorosa e generosamente. Vivendo desta forma em Deus, elevamos todo o mundo. Vivemos a salvação e somos seus instrumentos.

Nos momentos da nossa dor, entregamo-nos demasiadas vezes à tormenta, aguardando que esta passe sem mais. O nosso Deus anima-nos a arrancar a esperança à bonança que virá, confirmados pela graça que já precedia o momento presente.

A sabedoria de Cristo, a luz que a sua vida traz às nossas vidas, está em fazer coincidir dois momentos que insistimos em separar, em juntar dois movimentos que nos parecem irreconciliáveis: a graça antes recebida e a graça ainda por acolher; as mãos elevadas para o Céu numa prece e o agarrar da orla do manto de Deus, da graça que está por viver e que podemos trazer até ao presente.

Cada momento de dor é um potencial abismo, no qual podemos tropeçar e cair. Mas o Senhor ressuscitado habita os abismos. Aí O encontraremos, aí encontraremos as suas mãos feridas, apontando com uma o Céu aberto ao qual estamos destinados, e guiando-nos com a outra, suavemente, até ao topo.

É esta a nossa fé. O engano da esperança vazia dissipa-se acreditando, voltando os nossos olhos para o Crucificado que mostra que a cruz não é o destino nem o fim da história: é um pórtico. É uma passagem que, vivida no Senhor, nos leva a lugares de felicidade e paz. Isto só será possível viver com entrega e fé, como Jesus no Jardim das Oliveiras.

Ao vivermos o Tríduo Pascal deste ano, não nos apressemos no Jardim das Oliveiras. Fiquemos com Jesus, e aprendamos dele a esperança que salva o mundo.


Ninguém Nasce Cristão

O tempo dos três P

O excerto evangélico de Quarta-feira de Cinzas (Mateus 6, 1-6 e 16-18) é como o diapasão que dá a nota musical para que a Quaresma tenha ressonância na nossa existência concreta. O evangelista coloca diante dos nossos olhos, em sequência, os ensinamentos de Jesus sobre os três pilares da piedade judaica: a esmola (o Pão a dar ao pobre), a oração (a Palavra de Deus a observar) e o jejum (a Penitência a viver). Os três ensinamentos estão claramente dispostos em paralelo, apresentando a mesma construção literária: o exemplo de um comportamento a evitar que se revela autorreferencial; a enunciação do verdadeiro sentido da obra de piedade; a certeza na recompensa da parte do Pai.

O versículo 1 constitui uma espécie de chapéu introdutório relativamente às três obras de justiça. Jesus adverte para a exibição exterior na sua execução. Podemos interrogar-nos em que relação se coloca aquela recomendação com uma outra frase do discurso da montanha: «Assim resplandeça a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e deem graças ao vosso Pai que está nos Céus» (5, 16). As obras, então, devem permanecer ocultas ou devem ser conhecidas. A relação entre 6,1 e 5,16 não é, efetivamente, simples de articular, quanto à materialidade da ação. Certamente, entre os dois passos há uma diferença de perspetiva: em 5, 13-16 Jesus evidenciava as consequências positivas do comportamento segundo as bem-aventuranças, quando se torna um estilo de vida comunitário; em 6, 1-18, por seu lado, a atenção é colocada sobre a interioridade, isto é, sobre a intencionalidade com que cada crente realiza as obras de justiça. Por isso, para Jesus a boa obra não deve ser realizada para segundas intenções, estranhas ao bem que a própria obra traz consigo.

A polémica de Jesus é deliberadamente irónica: não está atestada, em algum texto antigo, o uso de tocar a trompa no momento de dar a esmola. A imagem, deliberadamente exagerada, é funcional para colocar em evidência a intenção do coração. Tornar público um ato de caridade demonstra que o coração não se saciou com o ato em si, que por isso se revela instrumentalizado para obter uma gratificação posterior, que resulta ser o verdadeiro propósito da boa obra realizada. Se o ato de caridade não é o objetivo, deixa de ser sincero, pelo que aquele que o está a realizar está a fazer um papel. A isso alude o termo “hypokrités”, de que deriva o nosso “hipócrita”, mas que na origem indicava o ator de teatro. À hipérbole da trompa corresponde a imagem das duas mãos: a esmola dever ser de tal maneira reservada, que nem a mão esquerda deve saber que a mão direita a realizou.

O segundo quadro concentra-se na atitude interior no momento da oração. Como dito antes, em relação à evidenciação com que se realiza a obra, Jesus não renega a oração comunitária, que, de resto, está implicitamente contida no texto do Pai-nosso, em que as petições se expressam no plural. Aqui, todavia, com uma outra imagem deliberadamente exagerada, preocupa-se em mostrar os riscos da ausência de cuidado da própria interioridade. Especificamente, uma oração apenas exterior coloca em risco a relação com o Pai. Jesus mostra, constantemente, com as palavras e com o exemplo, a exigência de uma relação pessoal e estreita com Deus; isto é possível quanto mais sincero e contínuo é o diálogo com Ele. A oração solitária, portanto, não está em oposição com a oração pública e comunitária; antes, torna-se o meio para manter vivo o diálogo com Deus e exprimir, com toda a liberdade, aquilo que se move no próprio coração.

No Antigo Testamento o jejum assume diversos significados: penitência pelos pecados, dor por um luto, esconjuro contra uma desgraça, preparação para receber um dom particular de Deus. A crítica de Jesus também aqui está contida numa hipérbole: como os atores se maquilham de usam máscaras para a sua interpretação, assim também os hipócritas não só mostram os sinais do jejum mas acentuam-nos, chegando a desfigurar-se o a cobrir o rosto, de maneira a fazerem-se notar ainda mais. Jesus convida a assumir a atitude exatamente contrária, mantendo os hábitos comuns, de maneira que só Deus conheça o jejum que se está a praticar. Em toda a perícope, Deus é sempre definido como Pai; isto está certamente em conexão com a presença do Pai-nosso nesta secção do discurso da montanha. O propósito das três obras de justiça, apartadas daquilo que poderia constituir aparência e vanglória, resulta ser a conservação da relação com Deus; uma relação não genérica, funcional ou servil, mas caracterizada pela experiência da paternidade.

Os três “P”, expressões de fé que a Igreja recomenda, designam o campo das relações que nos fazem viver. O Pão a dar em esmola abraça todas as nossas relações com os outros, consideradas como dom de si, sob o timbre da solidariedade. A Penitência, expressa com o jejum, diz respeito às nossas relações com a natureza, de quem recebemos os bens para a nossa subsistência, mas também a relação com o nosso corpo. A Palavra de Deus a escutar em oração reenvia para a nossa relação com Ele, que se vive através das duas anteriores. O que acontece quando tudo aquilo que constitui a nossa existência é realizado «para se ser feito admirar», «para se ser considerado justo» sob todos os aspetos? A relação vai inexoravelmente rumo ao fracasso. Deixamos de estar ligados / unidos ao outro, porque o ato que partia de nós para os outros / o Outro regressa a nós. O círculo fecha-se e não saímos de nós mesmos. A “salvação”, porém, inclusive do ponto de vista simplesmente humano, só pode ser um êxodo do círculo da morte (o pó que retorna ao pó). A solução que nos é proposta é o regresso à fonte da nossa vida, que nós chamamos Deus, e este regresso acontece através de todas as nossas relações, quando são autênticas.

Simone Caleffi | In SNPC | Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 11.03.2023


Ninguém Nasce Cristão

Comissão Justiça e Paz de Braga

Proposta para esta quaresma: mudar os comportamentos com os aparelhos eletrónicos

In 7 Margens | 28 Fev 2023

“Impõe-se que o relacionamento pessoal presencial tenha a primazia sobre as relações virtuais” associadas ao uso imoderado das tecnologias, propõe a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Braga, numa mensagem que acaba de divulgar para o tempo quaresmal.

“A sobriedade, designadamente a digital, permite prestar atenção ao que é mais relevante. Em vez de uma imponderada submissão perante as tecnologias, importa dar prioridade ao estabelecimento de vínculos com as pessoas”, pode ler-se no texto, enviado ao 7MARGENS nesta terça-feira, 28 de fevereiro.

Exemplificando com práticas tão banais como é o envio de mensagens por correio eletrónico, a Comissão explica que “um simples e-mail não circula etereamente e a ‘nuvem’ em que fica armazenado é um dos muitos enormes blocos que são constantemente edificados para guardar os dados das nossas interações digitais”. Ora, esses espaços físicos funcionam 24 horas por dia, sete dias por semana, e requerem imensos consumos de energia, desde logo, por “ser necessário refrigerar potentíssimos computadores”. Mais concretamente, só os e-mails enviados e recebidos no ano de 2019 terão sido responsáveis por uma “pegada digital” de cerca de 150 milhões de toneladas de CO2 no mundo.

Maior poluição digital origina o visionamento de vídeos on-line. Dados citados no texto da mensagem indicam que a pegada digital resultante de assistir durante um mês aos 10 maiores sucessos globais da TV da Netflix é “equivalente a ir de automóvel até Saturno”.

O que fazemos online pode, a muitos, parecer irrelevante, mas coisas tão rotineiras como o envio de um e-mail, a colocação de um “gosto” numa rede social, uma pesquisa num motor de busca ou o visionamento de um vídeo são ações poluentes.

“Embora os comportamentos individuais adequados não sejam suficientes para combater a crise climática, não são, de modo algum, desprezíveis”, observa a Comissão Justiça e Paz. “O somatório dos nossos consumos digitais acaba por ter um impacto ambiental significativo, mesmo que disso, tantas vezes, não tenhamos cabal consciência”.

Por isso, alerta a mensagem quaresmal, “o rasto de informações sobre tudo o que fazemos online – susceptível, aliás, de ser usado perversamente – é a nossa pegada digital e é, simultaneamente, uma parte relevante da nossa pegada de carbono e do volume total de gases com efeito de estufa que geramos”.

A “sobriedade digital” que é recomendada, passa por “pequenos gestos, como, por exemplo, desligar os dispositivos tecnológicos, particularmente os smartphones” e outros aparelhos eletrónicos, de forma a poupar e aumentar o seu tempo de vida útil, já que a sua fabricação obriga à extração de grandes quantidades de metais, em condições e contextos muito problemáticos.

Os benefícios variados que podem resultar de atitudes e comportamentos de “sobriedade digital” e baseados no “discernimento tecnológico” são “de natureza global e pessoal”, sendo que “a quaresma proporciona uma boa oportunidade” para olhar para a relação que cada um tem com a tecnologia, “refletindo sobre o que têm sido as nossas prioridades de vida”.

A Comissão Justiça e Paz de Braga recorda ainda que “as tecnologias são instrumentos, não são finalidades”, para defender o que designa por “soberania digital”, que permite a cada pessoa assumir “o poder de usar os dispositivos tecnológicos utilmente, em vezPegadaCrise de ser por eles seduzido e escravizado”.

Invocando a inspiração de escritos dos papas Bento XVI e Francisco, o comunicado termina recomendando: “Olhemos menos para os ecrãs – tenhamo-los desligados durante um período diário. Olhemos mais para o que está à nossa volta. Prestemos mais atenção uns aos outros”.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 26 de fevereiro de 2023

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho deste primeiro Domingo da Quaresma apresenta-nos Jesus no deserto tentado pelo diabo (cf. Mt 4, 1-11). Diabo significa “divisor”. O diabo quer sempre criar divisão, e é isto que procura fazer também tentando Jesus. Vejamos então de quem o quer dividir e de que modo o tenta.

De quem o diabo quer dividir Jesus? Depois de ter recebido o Batismo por João no Jordão, Jesus foi chamado pelo Pai «meu Filho muito amado» (Mt 3, 17) e o Espírito Santo desceu sobre Ele sob forma de pomba (cf. v. 16). Assim, o Evangelho apresenta-nos as três Pessoas divinas unidas no amor. Depois, o próprio Jesus dirá que veio ao mundo para nos tornar também participantes da unidade entre Ele e o Pai (cf. Jo 17, 11). Por outro lado, o diabo faz o contrário: entra em cena para dividir Jesus do Pai e desviar da sua missão de unidade para nós. Divide sempre.

Vejamos agora de que modo tenta fazê-lo. O diabo quer aproveitar da condição humana de Jesus, que é frágil porque jejuou durante quarenta dias e tem fome (cf. Mt 4, 2). Então, o maligno procura incutir-lhe três poderosos “venenos” para paralisar a sua missão de unidade. Estes venenos são o apego, a desconfiança e o poder. Antes de mais, o veneno do apego às coisas, às necessidades; com raciocínio persuasivo, o diabo tenta sugestionar Jesus: “Tens fome, porque deves jejuar? Ouve a tua necessidade, satisfá-lo, tens o direito e o poder: transforma as pedras em pão”. Depois o segundo veneno, a desconfiança: “Tens a certeza - insinua o maligno - de que o Pai quer o teu bem? Põe-no à prova, chantageia-o! Atira-te do ponto mais alto do templo e obriga-o a fazer o que tu queres”. Enfim o poder: “Do teu Pai, não tens necessidade! Por que esperar pelos seus dons? Segue os critérios do mundo, faz tudo sozinho e serás poderoso!”. As três tentações de Jesus. E também nós vivemos estas três tentações, sempre. É terrível, mas é assim, também para nós: apego às coisas, desconfiança e sede de poder são três tentações generalizadas e perigosas, que o diabo usa para nos dividir do Pai e já não nos faz sentir como irmãos e irmãs entre nós, para nos conduzir à solidão e ao desespero. Era o que queria fazer a Jesus e quer fazer a nós: levar-nos ao desespero.

Mas Jesus vence as tentações. E como as vence? Evitando discutir com o diabo e respondendo com a Palavra de Deus. Isto é importante: com o diabo não se discute, com o diabo não se dialoga! Jesus enfrenta-o com a Palavra de Deus. Ele cita três frases da Escritura que falam de liberdade das coisas (cf. Dt 8, 3), de confiança (cf. Dt 6, 16), e de serviço a Deus (cf. Dt 6, 13), três frases opostas às tentações. Nunca dialoga com o diabo, não negocia com ele, mas rejeita as suas insinuações com as palavras benéficas da Escritura. É um convite também para nós: com o diabo não se discute! Não se negocia, não se dialoga; não o derrotamos negociando com ele, é mais forte do que nós. Derrotamos o diabo, opondo-lhe com fé a Palavra divina. Desta forma, Jesus ensina-nos a defender a unidade com Deus e entre nós dos ataques do divisor. A Palavra divina é a resposta de Jesus à tentação do diabo.

Perguntemo-nos: que lugar tem a Palavra de Deus na minha vida? Será que recorro a ela nas minhas lutas espirituais? Se tenho um vício ou uma tentação frequente, por que, ao procurar ajuda, não procuro um versículo da Palavra de Deus que responda a esse vício? Depois, quando tenho a tentação, recito-o, rezo-o, confiando na graça de Cristo. Experimentemos fazer isto, ajudar-nos-á nas tentações, ajudar-nos-á muito, pois, entre as vozes que se agitam dentro de nós, ressoará aquela benéfica da Palavra de Deus. Maria, que aceitou a Palavra de Deus e pela sua humildade venceu a soberba do divisor, nos acompanhe na luta espiritual da Quaresma.


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

Continuam a chegar da Terra Santa notícias dolorosas: tantas pessoas assassinadas, inclusive crianças... Como se pode impedir esta espiral de violência? Renovo o meu apelo para que o diálogo prevaleça sobre o ódio e a vingança, e rezo a Deus pelos palestinianos e israelenses, para que possam encontrar o caminho da fraternidade e da paz, com a ajuda da comunidade internacional.

Estou também muito preocupado com a situação no Burkina Faso, onde continuam os ataques terroristas. Convido-vos a rezar pelo povo daquele querido país, para que a violência que sofreram não os faça perder a fé no caminho da democracia, da justiça e da paz.

Esta manhã tomei conhecimento com tristeza do naufrágio que ocorreu na costa da Calábria, perto de Crotone. Já foram recuperados quarenta mortos, incluindo muitas crianças. Rezo por cada um deles, pelos desaparecidos e pelos outros migrantes sobreviventes. Agradeço aos que levaram socorro e a quantos estão a dar acolhimento. Que Nossa Senhora ampare estes nossos irmãos e irmãs. E não esqueçamos a tragédia da guerra na Ucrânia. E não esqueçamos a dor do povo sírio e turco por causa do terramoto.

Desejo a todos bom domingo. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 19 de fevereiro de 2023

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

As palavras que Jesus nos dirige no Evangelho deste domingo são exigentes e parecem paradoxais: Ele convida-nos a dar a outra face e a amar até os inimigos (cf. Mt 5, 38-48). É normal para nós amarmos aqueles que nos amam e sermos amigos daqueles que são nossos amigos; no entanto, Jesus provoca-nos dizendo: se agirdes desta forma, «o que fazeis de extraordinário?» (v. 47). O que fazeis de extraordinário? Eis o ponto para o qual gostaria de chamar a vossa atenção hoje, para este o que fazeis de extraordinário.

“Extraordinário” é aquilo que ultrapassa os limites do habitual, que excede as práticas habituais e os cálculos normais ditados pela prudência. Geralmente, procuramos ter tudo em ordem e sob controlo, para que corresponda às nossas expetativas, à nossa medida: temendo não termos reciprocidade ou de nos expormos demasiado e depois ficar dececionados, preferimos amar apenas aqueles que nos amam para evitar desilusões, fazer bem apenas àqueles que são bons para connosco, ser generosos apenas com aqueles que podem retribuir o favor; e àqueles que nos tratam mal respondemos com a mesma moeda, para estarmos em equilíbrio. Mas o Senhor admoesta-nos: isto não é suficiente! Diríamos: isto não é cristão! Se permanecermos no normal, no equilíbrio entre dar e receber, as coisas não mudam. Se Deus seguisse esta lógica, não teríamos esperança alguma de salvação! Mas, felizmente para nós, o amor de Deus é sempre “extraordinário”, ou seja, vai além, vai além dos critérios habituais com os quais nós, humanos, vivemos as nossas relações.

Por conseguinte, as palavras de Jesus desafiam-nos. Enquanto procuramos permanecer no ordinário do raciocínio utilitarista, Ele pede-nos que nos abramos ao extraordinário, ao extraordinário de um amor gratuito; enquanto nós tentamos acertar as contas, Cristo encoraja-nos a viver o desequilíbrio do amor. Jesus não é um bom contabilista: não! Ele conduz sempre ao desequilíbrio do amor. Não nos surpreendamos com isto. Se Deus não se tivesse desequilibrado, nunca teríamos sido salvos: foi o desequilíbrio da cruz que nos salvou! Jesus não teria vindo à nossa procura quando estávamos perdidos e distantes, não nos teria amado até ao fim, não teria abraçado a cruz por nós, que não merecíamos tudo isto e nada lhe podíamos dar em troca. Como escreve o apóstolo Paulo, «dificilmente alguém morrerá por um justo: por um homem bom, talvez alguém resolva morrer. Deus, porém, demonstra o seu amor para connosco, pelo facto de Cristo haver morrido por nós, quando ainda éramos pecadores» (Rm 5, 7-8). Então, Deus ama-nos enquanto somos pecadores, não porque somos bons ou capazes de lhe dar algo em troca. Irmãos e irmãs, o amor de Deus é um amor sempre em excesso, sempre para além do cálculo, sempre desproporcionado. E hoje Ele pede também a nós que vivamos desta forma, porque só desta maneira o testemunharemos verdadeiramente.

Irmãos e irmãs, o Senhor propõe-nos sair da lógica do interesse próprio e não medir o amor nas escalas dos cálculos e da conveniência. Ele convida-nos a não responder ao mal com o mal, a ousar no bem, a arriscar na doação, mesmo que recebamos pouco ou nada em troca. Pois é este amor que lentamente transforma conflitos, encurta distâncias, supera inimizades e cura as feridas do ódio. Então podemos perguntar-nos, cada um de nós: será que eu, na minha vida, sigo a lógica do retorno ou a da gratuidade, como Deus? O amor extraordinário de Cristo não é fácil, mas é possível; é possível porque Ele mesmo nos ajuda, dando-nos o seu Espírito, o seu amor sem medida.

Oremos a Nossa Senhora que, respondendo a Deus o seu “sim” sem cálculos, permitiu que fizesse dela a obra-prima da sua Graça.


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

O amor de Jesus pede-nos que nos deixemos comover com as situações de quantos sofrem. Estou a pensar especialmente na Síria e na Turquia, nas muitas vítimas do terramoto, mas também nos dramas diários do querido povo ucraniano e de tantos povos que sofrem por causa da guerra ou da pobreza, devido à falta de liberdade ou às devastações ambientais: muitos povos... Neste sentido, estou próximo do povo da Nova Zelândia, atingido nos últimos dias por um ciclone devastador. Irmãos e irmãs, não esqueçamos aqueles que sofrem e deixemos que a nossa caridade esteja atenta, que seja uma caridade concreta!

Desejo a todos bom domingo. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista.


Ninguém Nasce Cristão

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
À REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO E SUDÃO DO SUL
(Peregrinação Ecumênica de Paz no Sudão do Sul)
[31 de janeiro - 5 de fevereiro de 2023]

SANTA MISSA PELA PAZ E A JUSTIÇA

HOMILIA DO SANTO PADRE

Aeroporto "Ndolo"
Quarta-feira, 1° de fevereiro de 2023

Bandeko, boboto [irmãos e irmãs, paz] R/ Bondeko [fraternidade].

Bondeko [fraternidade] R/ Esengo [alegria].

Esengo – alegria! A alegria de vos ver e encontrar é grande; muito desejei este momento (fez-nos esperar um ano!). Obrigado por terdes vindo aqui!

O Evangelho acaba de nos dizer que também a alegria dos discípulos era grande na tarde de Páscoa, e que esta alegria brotou ao «verem o Senhor» (Jo 20, 20). Naquele clima de alegria e maravilha, o Ressuscitado fala aos seus. E que lhes diz? Começa por quatro palavras: «A paz esteja convosco!» (20, 19). Trata-se de uma saudação, mas é mais do que uma saudação: é um dom. Porque a paz, aquela paz anunciada pelos anjos na noite de Belém (cf. Lc 2, 14), aquela paz que Jesus prometeu deixar aos seus (cf. Jo 14, 27), é agora, pela primeira vez, entregue solenemente aos discípulos. A paz de Jesus, que também nos é dada em cada Missa, é pascal: chega com a ressurreição, porque antes o Senhor devia derrotar os nossos inimigos, o pecado e a morte, e reconciliar o mundo com o Pai; devia experimentar a nossa solidão e o nosso abandono, os nossos infernos, abraçar e preencher as distâncias que nos separavam da vida e da esperança. Agora, superadas as distâncias entre Céu e terra, entre Deus e homem, a paz de Jesus é dada aos discípulos.

Metamo-nos, pois, na pele deles. Naquele dia, estavam completamente atordoados pelo escândalo da cruz, feridos interiormente por terem abandonado Jesus pondo-se em fuga, dececionados com o epílogo do seu caso, temerosos de acabar como Ele. Havia neles sentimentos de culpa, frustração, tristeza, medo... Pois bem! Jesus proclama a paz enquanto no coração dos discípulos existem os escombros, anuncia a vida enquanto eles sentem dentro a morte. Por outras palavras, a paz de Jesus chega no momento em que, para eles, tudo parecia acabado, no momento menos aguardado e mais inesperado, quando não havia vislumbres de paz. Assim faz o Senhor: surpreende-nos, estende-nos a mão quando estamos prestes a afundar, levanta-nos quando tocamos o fundo. Irmãos, irmãs, com Jesus o mal nunca triunfa, nunca tem a última palavra. «Com efeito, Ele é a nossa paz» (Ef 2, 14), e a sua paz vence sempre. Por isso nós que pertencemos a Jesus, não podemos deixar prevalecer em nós a tristeza, não podemos permitir que se insinuem resignação e fatalismo. Se ao nosso redor se respira este clima, que não seja por nossa causa: num mundo desanimado com a violência e a guerra, os cristãos fazem como Jesus. Ele, como que insistindo, repetiu para os discípulos: Paz! A paz esteja convosco! (cf. Jo 20, 19.21); e nós somos chamados a assumir e proclamar ao mundo este inesperado e profético anúncio do Senhor, anúncio de paz.

Mas, podemos perguntar-nos: Como guardar e cultivar a paz de Jesus? Ele próprio nos indica três nascentes de paz, três fontes para continuar a alimentá-la. São o perdão, a comunidade e a missão.

Vejamos a primeira fonte: o perdão. Jesus diz aos seus: «Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados» (20, 23). Mas Ele, antes de dar aos apóstolos o poder de perdoar, perdoa-os; não com palavras, mas com um gesto, o primeiro que o Ressuscitado realiza diante deles. Como diz o Evangelho, «mostrou-lhes as mãos e o peito» (20, 20). Ou seja, mostra as chagas, oferece-lhas, porque o perdão nasce das feridas. Nasce quando as feridas sofridas não deixam cicatrizes de ódio, mas tornam-se o lugar onde se dá espaço aos outros acolhendo as suas debilidades. Então as fragilidades tornam-se oportunidades, e o perdão torna-se o caminho da paz. Não se trata de esquecer tudo como se nada fosse, mas de abrir aos outros o próprio coração com amor. É assim que faz Jesus: diante da miséria de quem O renegou e abandonou, mostra as feridas e abre a fonte da misericórdia. Não usa muitas palavras, mas abre de par em par o seu coração ferido, para nos dizer que Ele está sempre ferido de amor por nós.

Irmãos, irmãs, quando a culpa e a tristeza nos oprimem, quando as coisas não correm bem, sabemos para onde olhar: para as chagas de Jesus, pronto a perdoar-nos com o seu amor ferido e infinito. Ele conhece as tuas feridas, conhece as feridas do teu país, do teu povo, da tua terra! São feridas que ardem, continuamente infetadas pelo ódio e a violência, enquanto o remédio da justiça e o bálsamo da esperança parecem nunca mais chegar. Irmão, irmã, Jesus sofre contigo, vê as feridas que carregas dentro e deseja consolar-te e curar-te, oferecendo-te o seu Coração ferido. Ao teu coração, Deus repete as palavras que disse hoje por meio do profeta Isaías: «Hei de curá-lo e guiá-lo, prodigando-lhe reconforto» (Is 57, 18).

Hoje, juntos, acreditamos que, com Jesus, sempre temos a possibilidade de ser perdoados e de recomeçar, bem como a força de nos perdoarmos a nós mesmos, aos outros e à história! É isto que Cristo deseja: ungir-nos com o seu perdão, para nos dar a paz e a coragem de por nossa vez perdoar, a coragem de realizar uma grande amnistia do coração. Faz-nos tão bem limpar o coração da ira, dos remorsos, de todo o rancor e ódio! Queridos amigos, que hoje seja o momento de graça para acolher e viver o perdão de Jesus! Seja o momento certo para ti, que carregas um fardo pesado no coração e precisas que seja tirado para voltar a respirar. E que seja o momento propício para ti, que, neste país, te dizes cristão e todavia praticas a violência; a ti diz o Senhor: «Depõe as armas, abraça a misericórdia». E a todos os feridos e oprimidos deste povo, diz: «Não tenhais medo de colocar as vossas feridas nas minhas, as vossas chagas nas minhas chagas»! Façamo-lo, irmãos e irmãs! Não tenhais medo de retirar o Crucifixo do pescoço e dos bolsos, pegar nele na mão e estreitá-lo ao coração para partilhar as vossas feridas com as de Jesus. Ao regressar a casa, tomai também o Crucifixo que tendes e abraçai-o. Demos a Cristo a possibilidade de nos sarar o coração, entreguemos-Lhe o passado, todo o medo e aflição. Como é bom abrir à sua paz as portas do coração e as de casa! E por que não escrever no vosso quarto, na vossa roupa, no exterior da vossa casa as suas palavras: A paz esteja convosco? Mostrai-as; serão uma profecia para o país, a bênção do Senhor sobre quem encontrais. A paz esteja convosco: deixemo-nos perdoar por Deus e perdoemo-nos entre nós!

Vejamos agora a segunda fonte da paz: a comunidade. Jesus ressuscitado não Se dirige a cada um dos discípulos, mas encontra-os juntos: fala-lhes no plural, e confia a sua paz à primeira comunidade. Não há cristianismo sem comunidade, tal como não há paz sem fraternidade. Mas como comunidade, para onde caminhar? Aonde ir para encontrar a paz? Voltemos a fixar os discípulos. Antes da Páscoa, seguiam Jesus, mas raciocinavam ainda de forma demasiado humana: tinham as suas esperanças num Messias conquistador que expulsaria os inimigos, realizaria prodígios e milagres, aumentaria o prestígio e o sucesso deles. Mas estes desejos mundanos deixaram-nos de mãos vazias; pior, tiraram a paz à comunidade, gerando discussões e oposições (cf. Lc 9, 46; 22, 24). E o mesmo risco existe também para nós: estar juntos, mas caminhar sozinhos, procurando na sociedade, mas também na Igreja, o poder, a carreira, as ambições... Assim, porém, segue-se o próprio eu em vez do verdadeiro Deus e acaba-se como aqueles discípulos: fechados em casa, vazios de esperança e cheios de medo e desilusão. Mas na Páscoa voltam a encontrar o caminho da paz graças a Jesus, que sopra sobre eles dizendo: «Recebei o Espírito Santo» (Jo 20, 22). Graças ao Espírito Santo, deixarão de olhar para aquilo que os divide, mas fixar-se-ão no que os une; irão pelo mundo não a pensar em si mesmos, mas nos outros; não para ter visibilidade, mas para dar esperança; não para ganhar apoiantes, mas para gastar jubilosamente a vida pelo Senhor e pelos outros.

Irmãos, irmãs, o nosso perigo é seguir o espírito do mundo, e não o de Cristo. E qual é o caminho para não cair nas ciladas do poder e do dinheiro, para não ceder às divisões, às lisonjas do carreirismo que corroem a comunidade, às falsas ilusões do prazer e da feitiçaria que nos encerram em nós mesmos? O Senhor no-lo sugere, mais uma vez através do profeta Isaías, dizendo: «Estou com as pessoas acabrunhadas e humilhadas, para reanimar os humildes, para reanimar o coração dos deprimidos» (57, 15). O caminho é partilhar com os pobres: tal é o melhor antídoto contra a tentação de nos dividir e mundanizar. Ter a coragem de olhar para os pobres e escutá-los, porque são membros da nossa comunidade, e não estranhos que devem ser abolidos da vista e da consciência. Abrir o coração aos outros, em vez de o fechar nos próprios problemas ou nas próprias vaidades. Recomecemos dos pobres e descobriremos que todos compartilhamos a pobreza interior; que todos precisamos do Espírito de Deus para nos libertar do espírito do mundo; que a humildade é a grandeza do cristão, e a fraternidade a sua verdadeira riqueza. Acreditemos na comunidade e, com a ajuda de Deus, edifiquemos uma Igreja vazia de espírito mundano e cheia de Espírito Santo, livre de riquezas para nós mesmos e repleta de amor fraterno!

Chegamos, enfim, à terceira fonte da paz: a missão. Jesus diz aos discípulos: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós» (Jo 20, 21). Envia-nos como o Pai O enviou a Ele. E como foi que o Pai O enviou ao mundo? Enviou-O para servir e dar a vida em resgate pela humanidade (cf. Mc 10, 45), para manifestar a sua misericórdia por cada um (cf. Lc 15), para procurar os que andam longe (cf. Mt 9, 13). Numa palavra, enviou-O para todos: não só para os justos, mas para todos. Ressoam neste sentido ainda as palavras de Isaías: «Paz para os de longe e os de perto – diz o Senhor» (57, 19). Em primeiro lugar, aos distantes e também aos vizinhos; não só aos «nossos», mas a todos.

Irmãos, irmãs, somos chamados a ser missionários de paz, e isto nos encherá de paz. Trata-se duma opção: é dar espaço a todos no coração, é acreditar que as diferenças étnicas, regionais, sociais, religiosas e culturais vêm em segundo lugar e não são obstáculo; que os outros são irmãos e irmãs, membros da mesma comunidade humana; que cada um é destinatário da paz trazida ao mundo por Jesus. É acreditar que nós, cristãos, somos chamados a colaborar com todos, a romper a espiral da violência, a desmantelar os enredos do ódio. É verdade! Enviados por Cristo, os cristãos são chamados, por definição, a ser consciência de paz no mundo: não só consciências críticas, mas sobretudo testemunhas de amor; não pretendentes dos próprios direitos, mas dos do Evangelho, que são a fraternidade, o amor e o perdão; não indivíduos à procura dos próprios interesses, mas missionários daquele amor louco que Deus tem por cada um dos seres humanos.

A paz esteja convosco: diz Jesus hoje a cada família, comunidade, etnia, bairro e cidade deste grande país. A paz esteja convosco: deixemos que ressoem no coração, em silêncio, estas palavras de nosso Senhor. Ouçamo-las dirigidas a nós e escolhamos ser testemunhas de perdão, protagonistas na comunidade, pessoas em missão de paz no mundo.

Moto azalí na matoi ma koyoka [Quem tem ouvidos para ouvir]

R/ Ayoka [ouça]

Moto azalí na motema mwa kondima [Quem tem coração para aderir]

R/ Andima [adira]. PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 12 de fevereiro de 2023

[Multimídia]


Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

No Evangelho da liturgia de hoje Jesus diz: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas: não vim revogá-la, mas completá-la» (Mt 5, 17). Completar: esta é uma palavra-chave para compreender Jesus e a sua mensagem. Mas o que significa “completar”? Para o explicar, o Senhor começa por dizer o que não é completar. A Escritura diz “não matarás”, mas para Jesus isto não é suficiente se depois alguém ferir os irmãos com palavras; a Escritura diz “não cometerás adultério”, mas isto não é suficiente se alguém viver um amor manchado pela duplicidade e falsidade; a Escritura diz “não darás falso testemunho”, mas não é suficiente fazer um juramento solene se alguém agir com hipocrisia (cf. Mt 5, 21-37). Assim, não é completar.

Para nos dar um exemplo concreto, Jesus concentra-se no “rito do ofertório”. Ao fazer uma oferenda a Deus, retribui-se a gratuidade dos seus dons. Era um rito muito importante - fazer uma oferta para retribuir simbolicamente, digamos, a gratuidade dos seus dons - tão importante que era proibido interrompê-lo exceto por motivos graves. Mas Jesus afirma que é preciso interrompê-lo se um irmão tiver algo contra nós, para ir primeiro reconciliar-se com ele (cf. vv. 23-24): só então se completa o rito. A mensagem é clara: Deus ama-nos primeiro, gratuitamente, dando o primeiro passo na nossa direção sem que o mereçamos; e depois não podemos celebrar o seu amor sem, por nossa vez, dar o primeiro passo para nos reconciliarmos com aqueles que nos feriram. Assim, há o completamento aos olhos de Deus, caso contrário a observância externa, puramente ritual, é inútil, torna-se uma farsa. Por outras palavras, Jesus faz-nos compreender que as normas religiosas são úteis, são boas, mas são apenas o início: para as completar, é necessário ir além da letra e viver o seu significado. Os mandamentos que Deus nos deu não devem ser encerrados nos cofres asfixiados da observância formal, caso contrário, permanecemos numa religiosidade externa e desapegada, servos de um “deus-patrão” e não filhos de Deus Pai. Jesus quer isto: não ter a ideia de servir um Deus patrão, mas o Pai; e para isso é necessário ir além da letra.

Irmãos e irmãs, este problema não existia apenas no tempo de Jesus, existe também hoje. Às vezes, por exemplo, ouvimos: “Padre, eu não matei, não roubei, não fiz mal a ninguém...”, como se dissesse: “Estou bem”. Eis a observância formal, que se contenta com o mínimo indispensável, enquanto Jesus nos convida ao máximo possível. Isto é, Deus não raciocina por cálculos nem tabelas; Ele ama-nos como um apaixonado: não ao mínimo, mas ao máximo! Não nos diz: “Amo-te até a um certo ponto”. Não, o amor verdadeiro nunca chega a um certo ponto e nunca se sente perfeito; o amor vai sempre mais além, não pode fazer diferentemente. O Senhor mostrou-nos isto ao dar a vida na cruz e perdoando os seus assassinos (cf. Lc 23, 34). E confiou-nos o mandamento que lhe é mais querido: que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou (cf. Jo 15, 12). Este é o amor que completa a Lei, a fé, a vida verdadeira!

Então, irmãos e irmãs, podemos perguntar-nos: como vivo a fé? É uma questão de cálculos, de formalismos, ou é uma história de amor com Deus? Contento-me apenas em não fazer mal, em manter “a fachada”, ou procuro crescer no amor a Deus e ao próximo? E, de vez em quando, verifico-me sobre o grande mandamento de Jesus, pergunto a mim mesmo se amo o meu próximo como Ele me ama? Pois talvez sejamos inflexíveis no julgamento dos outros e nos esqueçamos de ser misericordiosos, como é Deus para connosco.

Que Maria, a qual observou perfeitamente a Palavra de Deus, nos ajude a cumprir a nossa fé e a nossa caridade.


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

Continuemos a estar próximos, com a oração e o apoio concreto, das populações vítimas do terramoto na Síria e na Turquia. Estava a ver no programa “A Sua Imagine”, as fotografias desta catástrofe, a dor destes povos que sofrem com o terramoto. Oremos por eles, não os esqueçamos, oremos e pensemos no que podemos fazer por eles. E não nos esqueçamos da martirizada Ucrânia: que o Senhor abra caminhos de paz e conceda aos responsáveis a coragem de os percorrer.

As notícias provenientes da Nicarágua entristeceram-me muito e não posso deixar de recordar com preocupação o Bispo de Matagalpa, D. Rolando Álvarez, a quem quero muito bem, condenado a 26 anos de prisão, e também as pessoas que foram deportadas para os Estados Unidos. Rezo por eles e por quantos sofrem naquela querida nação, e peço as vossas orações. Imploremos também ao Senhor, por intercessão da Imaculada Virgem Maria, para que converta os corações dos líderes políticos e de todos os cidadãos à busca sincera da paz, que nasce da verdade, da justiça, da liberdade e do amor, e que se alcança através do paciente exercício do diálogo. Rezemos juntos a Nossa Senhora. [Ave Maria].

E a todos desejo bom domingo. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Ninguém Nasce Cristão

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
À REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO E SUDÃO DO SUL
(Peregrinação Ecumênica de Paz no Sudão do Sul)
[31 de janeiro - 5 de fevereiro de 2023]

SANTA MISSA PELA PAZ E A JUSTIÇA

HOMILIA DO SANTO PADRE

Aeroporto "Ndolo"
Quarta-feira, 1° de fevereiro de 2023

Bandeko, boboto [irmãos e irmãs, paz] R/ Bondeko [fraternidade].

Bondeko [fraternidade] R/ Esengo [alegria].

Esengo – alegria! A alegria de vos ver e encontrar é grande; muito desejei este momento (fez-nos esperar um ano!). Obrigado por terdes vindo aqui!

O Evangelho acaba de nos dizer que também a alegria dos discípulos era grande na tarde de Páscoa, e que esta alegria brotou ao «verem o Senhor» (Jo 20, 20). Naquele clima de alegria e maravilha, o Ressuscitado fala aos seus. E que lhes diz? Começa por quatro palavras: «A paz esteja convosco!» (20, 19). Trata-se de uma saudação, mas é mais do que uma saudação: é um dom. Porque a paz, aquela paz anunciada pelos anjos na noite de Belém (cf. Lc 2, 14), aquela paz que Jesus prometeu deixar aos seus (cf. Jo 14, 27), é agora, pela primeira vez, entregue solenemente aos discípulos. A paz de Jesus, que também nos é dada em cada Missa, é pascal: chega com a ressurreição, porque antes o Senhor devia derrotar os nossos inimigos, o pecado e a morte, e reconciliar o mundo com o Pai; devia experimentar a nossa solidão e o nosso abandono, os nossos infernos, abraçar e preencher as distâncias que nos separavam da vida e da esperança. Agora, superadas as distâncias entre Céu e terra, entre Deus e homem, a paz de Jesus é dada aos discípulos.

Metamo-nos, pois, na pele deles. Naquele dia, estavam completamente atordoados pelo escândalo da cruz, feridos interiormente por terem abandonado Jesus pondo-se em fuga, dececionados com o epílogo do seu caso, temerosos de acabar como Ele. Havia neles sentimentos de culpa, frustração, tristeza, medo... Pois bem! Jesus proclama a paz enquanto no coração dos discípulos existem os escombros, anuncia a vida enquanto eles sentem dentro a morte. Por outras palavras, a paz de Jesus chega no momento em que, para eles, tudo parecia acabado, no momento menos aguardado e mais inesperado, quando não havia vislumbres de paz. Assim faz o Senhor: surpreende-nos, estende-nos a mão quando estamos prestes a afundar, levanta-nos quando tocamos o fundo. Irmãos, irmãs, com Jesus o mal nunca triunfa, nunca tem a última palavra. «Com efeito, Ele é a nossa paz» (Ef 2, 14), e a sua paz vence sempre. Por isso nós que pertencemos a Jesus, não podemos deixar prevalecer em nós a tristeza, não podemos permitir que se insinuem resignação e fatalismo. Se ao nosso redor se respira este clima, que não seja por nossa causa: num mundo desanimado com a violência e a guerra, os cristãos fazem como Jesus. Ele, como que insistindo, repetiu para os discípulos: Paz! A paz esteja convosco! (cf. Jo 20, 19.21); e nós somos chamados a assumir e proclamar ao mundo este inesperado e profético anúncio do Senhor, anúncio de paz.

Mas, podemos perguntar-nos: Como guardar e cultivar a paz de Jesus? Ele próprio nos indica três nascentes de paz, três fontes para continuar a alimentá-la. São o perdão, a comunidade e a missão.

Vejamos a primeira fonte: o perdão. Jesus diz aos seus: «Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados» (20, 23). Mas Ele, antes de dar aos apóstolos o poder de perdoar, perdoa-os; não com palavras, mas com um gesto, o primeiro que o Ressuscitado realiza diante deles. Como diz o Evangelho, «mostrou-lhes as mãos e o peito» (20, 20). Ou seja, mostra as chagas, oferece-lhas, porque o perdão nasce das feridas. Nasce quando as feridas sofridas não deixam cicatrizes de ódio, mas tornam-se o lugar onde se dá espaço aos outros acolhendo as suas debilidades. Então as fragilidades tornam-se oportunidades, e o perdão torna-se o caminho da paz. Não se trata de esquecer tudo como se nada fosse, mas de abrir aos outros o próprio coração com amor. É assim que faz Jesus: diante da miséria de quem O renegou e abandonou, mostra as feridas e abre a fonte da misericórdia. Não usa muitas palavras, mas abre de par em par o seu coração ferido, para nos dizer que Ele está sempre ferido de amor por nós.

Irmãos, irmãs, quando a culpa e a tristeza nos oprimem, quando as coisas não correm bem, sabemos para onde olhar: para as chagas de Jesus, pronto a perdoar-nos com o seu amor ferido e infinito. Ele conhece as tuas feridas, conhece as feridas do teu país, do teu povo, da tua terra! São feridas que ardem, continuamente infetadas pelo ódio e a violência, enquanto o remédio da justiça e o bálsamo da esperança parecem nunca mais chegar. Irmão, irmã, Jesus sofre contigo, vê as feridas que carregas dentro e deseja consolar-te e curar-te, oferecendo-te o seu Coração ferido. Ao teu coração, Deus repete as palavras que disse hoje por meio do profeta Isaías: «Hei de curá-lo e guiá-lo, prodigando-lhe reconforto» (Is 57, 18).

Hoje, juntos, acreditamos que, com Jesus, sempre temos a possibilidade de ser perdoados e de recomeçar, bem como a força de nos perdoarmos a nós mesmos, aos outros e à história! É isto que Cristo deseja: ungir-nos com o seu perdão, para nos dar a paz e a coragem de por nossa vez perdoar, a coragem de realizar uma grande amnistia do coração. Faz-nos tão bem limpar o coração da ira, dos remorsos, de todo o rancor e ódio! Queridos amigos, que hoje seja o momento de graça para acolher e viver o perdão de Jesus! Seja o momento certo para ti, que carregas um fardo pesado no coração e precisas que seja tirado para voltar a respirar. E que seja o momento propício para ti, que, neste país, te dizes cristão e todavia praticas a violência; a ti diz o Senhor: «Depõe as armas, abraça a misericórdia». E a todos os feridos e oprimidos deste povo, diz: «Não tenhais medo de colocar as vossas feridas nas minhas, as vossas chagas nas minhas chagas»! Façamo-lo, irmãos e irmãs! Não tenhais medo de retirar o Crucifixo do pescoço e dos bolsos, pegar nele na mão e estreitá-lo ao coração para partilhar as vossas feridas com as de Jesus. Ao regressar a casa, tomai também o Crucifixo que tendes e abraçai-o. Demos a Cristo a possibilidade de nos sarar o coração, entreguemos-Lhe o passado, todo o medo e aflição. Como é bom abrir à sua paz as portas do coração e as de casa! E por que não escrever no vosso quarto, na vossa roupa, no exterior da vossa casa as suas palavras: A paz esteja convosco? Mostrai-as; serão uma profecia para o país, a bênção do Senhor sobre quem encontrais. A paz esteja convosco: deixemo-nos perdoar por Deus e perdoemo-nos entre nós!

Vejamos agora a segunda fonte da paz: a comunidade. Jesus ressuscitado não Se dirige a cada um dos discípulos, mas encontra-os juntos: fala-lhes no plural, e confia a sua paz à primeira comunidade. Não há cristianismo sem comunidade, tal como não há paz sem fraternidade. Mas como comunidade, para onde caminhar? Aonde ir para encontrar a paz? Voltemos a fixar os discípulos. Antes da Páscoa, seguiam Jesus, mas raciocinavam ainda de forma demasiado humana: tinham as suas esperanças num Messias conquistador que expulsaria os inimigos, realizaria prodígios e milagres, aumentaria o prestígio e o sucesso deles. Mas estes desejos mundanos deixaram-nos de mãos vazias; pior, tiraram a paz à comunidade, gerando discussões e oposições (cf. Lc 9, 46; 22, 24). E o mesmo risco existe também para nós: estar juntos, mas caminhar sozinhos, procurando na sociedade, mas também na Igreja, o poder, a carreira, as ambições... Assim, porém, segue-se o próprio eu em vez do verdadeiro Deus e acaba-se como aqueles discípulos: fechados em casa, vazios de esperança e cheios de medo e desilusão. Mas na Páscoa voltam a encontrar o caminho da paz graças a Jesus, que sopra sobre eles dizendo: «Recebei o Espírito Santo» (Jo 20, 22). Graças ao Espírito Santo, deixarão de olhar para aquilo que os divide, mas fixar-se-ão no que os une; irão pelo mundo não a pensar em si mesmos, mas nos outros; não para ter visibilidade, mas para dar esperança; não para ganhar apoiantes, mas para gastar jubilosamente a vida pelo Senhor e pelos outros.

Irmãos, irmãs, o nosso perigo é seguir o espírito do mundo, e não o de Cristo. E qual é o caminho para não cair nas ciladas do poder e do dinheiro, para não ceder às divisões, às lisonjas do carreirismo que corroem a comunidade, às falsas ilusões do prazer e da feitiçaria que nos encerram em nós mesmos? O Senhor no-lo sugere, mais uma vez através do profeta Isaías, dizendo: «Estou com as pessoas acabrunhadas e humilhadas, para reanimar os humildes, para reanimar o coração dos deprimidos» (57, 15). O caminho é partilhar com os pobres: tal é o melhor antídoto contra a tentação de nos dividir e mundanizar. Ter a coragem de olhar para os pobres e escutá-los, porque são membros da nossa comunidade, e não estranhos que devem ser abolidos da vista e da consciência. Abrir o coração aos outros, em vez de o fechar nos próprios problemas ou nas próprias vaidades. Recomecemos dos pobres e descobriremos que todos compartilhamos a pobreza interior; que todos precisamos do Espírito de Deus para nos libertar do espírito do mundo; que a humildade é a grandeza do cristão, e a fraternidade a sua verdadeira riqueza. Acreditemos na comunidade e, com a ajuda de Deus, edifiquemos uma Igreja vazia de espírito mundano e cheia de Espírito Santo, livre de riquezas para nós mesmos e repleta de amor fraterno!

Chegamos, enfim, à terceira fonte da paz: a missão. Jesus diz aos discípulos: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós» (Jo 20, 21). Envia-nos como o Pai O enviou a Ele. E como foi que o Pai O enviou ao mundo? Enviou-O para servir e dar a vida em resgate pela humanidade (cf. Mc 10, 45), para manifestar a sua misericórdia por cada um (cf. Lc 15), para procurar os que andam longe (cf. Mt 9, 13). Numa palavra, enviou-O para todos: não só para os justos, mas para todos. Ressoam neste sentido ainda as palavras de Isaías: «Paz para os de longe e os de perto – diz o Senhor» (57, 19). Em primeiro lugar, aos distantes e também aos vizinhos; não só aos «nossos», mas a todos.

Irmãos, irmãs, somos chamados a ser missionários de paz, e isto nos encherá de paz. Trata-se duma opção: é dar espaço a todos no coração, é acreditar que as diferenças étnicas, regionais, sociais, religiosas e culturais vêm em segundo lugar e não são obstáculo; que os outros são irmãos e irmãs, membros da mesma comunidade humana; que cada um é destinatário da paz trazida ao mundo por Jesus. É acreditar que nós, cristãos, somos chamados a colaborar com todos, a romper a espiral da violência, a desmantelar os enredos do ódio. É verdade! Enviados por Cristo, os cristãos são chamados, por definição, a ser consciência de paz no mundo: não só consciências críticas, mas sobretudo testemunhas de amor; não pretendentes dos próprios direitos, mas dos do Evangelho, que são a fraternidade, o amor e o perdão; não indivíduos à procura dos próprios interesses, mas missionários daquele amor louco que Deus tem por cada um dos seres humanos.

A paz esteja convosco: diz Jesus hoje a cada família, comunidade, etnia, bairro e cidade deste grande país. A paz esteja convosco: deixemos que ressoem no coração, em silêncio, estas palavras de nosso Senhor. Ouçamo-las dirigidas a nós e escolhamos ser testemunhas de perdão, protagonistas na comunidade, pessoas em missão de paz no mundo.

Moto azalí na matoi ma koyoka [Quem tem ouvidos para ouvir]

R/ Ayoka [ouça]

Moto azalí na motema mwa kondima [Quem tem coração para aderir]

R/Andima [adira].


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 29 de janeiro de 2023

Prezados irmãos e irmãs, bom dia!

Na liturgia de hoje são proclamadas as bem-aventuranças segundo o Evangelho de Mateus (cf. 5, 1-12). A primeira é fundamental e diz: «Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles é o reino dos céus» (v. 3).

Quem são os “pobres em espírito”? São aqueles que sabem que não bastam a si mesmos, que não são autossuficientes, e vivem como “mendigos de Deus”: sentem necessidade de Deus e reconhecem que o bem vem d’Ele, como dom, como graça. Quem é pobre em espírito, guarda o que recebe; por isso deseja que nenhum dom seja desperdiçado. Hoje gostaria de me concentrar neste aspeto típico dos pobres em espírito: não desperdiçar. Os pobres em espírito procuram não desperdiçar nada. Jesus mostra-nos a importância de não desperdiçar, por exemplo após a multiplicação dos pães e dos peixes, quando pede para recolher a comida que sobeja para que nada se perca (cf. Jo 6, 12). Não desperdiçar permite-nos apreciar o valor de nós mesmos, das pessoas e das coisas. Infelizmente, contudo, este princípio é frequentemente ignorado, especialmente nas sociedades mais abastadas, onde dominam as culturas do desperdício e do descarte: ambas são uma peste. Gostaria, portanto, de propor três desafios contra a mentalidade do desperdício e do descarte.

Primeiro desafio: não desperdiçar o dom que nós somos. Cada um de nós é um bem, independentemente dos dotes que temos. Cada mulher, cada homem é rico não só de talentos, mas também de dignidade, é amado por Deus, vale, é precioso. Jesus lembra-nos que somos abençoados não pelo que temos, mas pelo que somos. E quando uma pessoa desanima e se dissipa, desperdiça-se a si própria. Lutemos, com a ajuda de Deus, contra a tentação de nos considerarmos inadequados, errados, e de nos lamentarmos.

Depois, o segundo desafio: não desperdiçar os dons que temos. Resulta que todos os anos no mundo cerca de um terço da produção total de alimentos é desperdiçada. E isto acontece enquanto tantos estão a morrer de fome! Os recursos da criação não podem ser utilizados dessa forma; os bens devem ser guardados e partilhados, para que a ninguém falte o necessário. Não desperdicemos o que temos, mas difundamos uma ecologia de justiça e caridade, de partilha.

Por fim, o terceiro desafio: não descartar as pessoas. A cultura do descarte diz: uso-te enquanto me serves; quando já não me interessas ou és um obstáculo para mim, ponho-te de lado. E é especialmente assim que são tratados os mais frágeis: os nascituros, os idosos, os necessitados e os desfavorecidos. Mas as pessoas não podem ser deitadas fora, os desfavorecidos não podem ser deitados fora! Cada um é um dom sagrado, cada um é um dom único, em todas as idades e em todas as condições. Respeitemos e promovamos a vida sempre! Não descartemos a vida!

Estimados irmãos e irmãs, façamo-nos algumas perguntas. Antes de mais, como vivo a pobreza de espírito? Dou espaço a Deus, acredito que Ele é o meu bem, a minha verdadeira e grande riqueza? Acredito que Ele me ama, ou desanimo com tristeza, esquecendo que sou um dom? E depois: tenho o cuidado de não desperdiçar, sou responsável na utilização das coisas, dos bens? E estou disposto a partilhá-los com os outros, ou sou egoísta? Por fim: considero os mais frágeis como dons preciosos, dos quais Deus me pede para cuidar? Lembro-me dos pobres, daqueles que não têm o necessário?

Ajude-nos Maria, Mulher das Bem-aventuranças, a testemunhar a alegria de que a vida é um dom e a beleza de fazer de nós uma dádiva.


Depois do Angelus

Caros irmãos e irmãs!

Com grande tristeza tomo conhecimento das notícias que chegam da Terra Santa, em particular da morte de dez palestinianos, incluindo uma mulher, mortos durante ações militares anti-terroristas israelenses na Palestina; e do que aconteceu perto de Jerusalém na sexta-feira à noite, quando sete judeus israelitas foram assassinados por um palestiniano e três ficaram feridos na saída da sinagoga. A espiral de morte que aumenta dia após dia fecha ainda mais os poucos vislumbres de confiança que existem entre os dois povos. Desde o início do ano, dezenas de palestinianos foram mortos em tiroteios com o exército israelense. Apelo aos dois governos e à comunidade internacional para que encontrem, imediatamente e sem demora, outros caminhos, que incluam o diálogo e a busca sincera da paz. Rezemos por isto, irmãos e irmãs!

Renovo também o meu apelo a favor da grave situação humanitária no Corredor de Lachin, no Cáucaso do Sul. Estou próximo de todos aqueles que, em pleno Inverno, são obrigados a enfrentar estas condições desumanas. Todos os esforços devem ser feitos a nível internacional para encontrar soluções pacíficas para o bem das pessoas.

Hoje celebra-se o 70º Dia Mundial dos doentes de hanseníase. Infelizmente, o estigma ligado a esta doença continua a causar graves violações dos direitos humanos em várias partes do mundo.  Expresso a minha proximidade a quantos sofrem com isso e encorajo o empenho na plena integração destes nossos irmãos e irmãs.

E agora com grande afeto saúdo os jovens da Ação Católica da Diocese de Roma! Viestes na “Caravana da Paz”. Agradeço-vos por esta iniciativa, tanto mais preciosa este ano porque, pensando na martirizada Ucrânia, o nosso empenho e a nossa oração pela paz devem ser ainda mais fortes. Pensemos na Ucrânia e rezemos pelo povo ucraniano, tão maltratado. Ouçamos agora a mensagem que os vossos amigos aqui ao meu lado irão ler para nós.

[leitura da mensagem]

Estimados irmãos e irmãs, depois de amanhã partirei para uma viagem apostólica à República Democrática do Congo e à República do Sudão do Sul. Agradeço às autoridades civis e aos Bispos locais pelos convites e pelos preparativos para estas visitas, e saúdo com afeto as queridas populações que me esperam.

Essas terras estão provadas por longos conflitos: a República Democrática do Congo sofre, especialmente no Leste do país, pelos conflitos armados e pela exploração; enquanto o Sudão do Sul, dilacerado por anos de guerra, não vê a hora que acabem as contínuas violências que obrigam tantas pessoas a viver deslocadas e em condições de grande sofrimento. Ao Sudão do Sul chegarei juntamente com o Arcebispo de Cantuária e o Moderador da Assembleia Geral da Igreja da Escócia: viveremos assim juntos, como irmãos, uma peregrinação ecuménica de paz.

A todos peço, por favor, que acompanheis esta Viagem com a oração.

E desejo a todos bom domingo. E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista.


Ninguém Nasce Cristão

Redescobrir o tesouro da fé

Padre Vítor Pereira, Diocese de Vila Real |Jan 20, 2023, in Ecclesia

Vagueava eu, um dia, pela bonita biblioteca do Seminário Maior do Porto, à procura de um novo livro que me oferecesse mais umas boas horas de agradável leitura, e, sem querer, chega-me às mãos «Introdução ao Cristianismo», do agora falecido Papa Bento XVI, versão brasileira, editado em 1968. É uma sorte termos entre mãos o livro certo para o momento certo da vida. Recomendo-o vivamente a todos os cristãos. Com a clareza e a profundidade de um proeminente teólogo e um fecundo pensador, o Papa Bento XVI (então Professor Ratzinger) reflete sobre os contornos e ambiguidades de ser crente e faz uma apresentação geral do Cristianismo, defendendo a razoabilidade e riqueza do conteúdo e da vivência da fé cristã, que não nos deixa indiferentes.

No início do livro, mais concretamente no prefácio da primeira edição e na introdução, O Papa Bento XVI conta duas histórias simples, de que se serviu para refletir sobre o valor da fé e da difícil condição de ser crente. A primeira história é a do «Joãozinho feliz», uma boa parábola daquilo que muitos crentes católicos têm feito da fé nos últimos anos e que outros poderão fazer ou não. Joãozinho tinha ganho uma barra de ouro com o seu esforço e trabalho. Achando que ela era demasiado pesada e incómoda, troco-a primeiro por um cavalo, depois trocou o cavalo por uma vaca, a vaca por um ganso e o ganso por uma pedra de amolar. Como esta lhe pareceu insignificante e de pouco valor, acabou por lançá-la ao rio. Livre de tudo, achou que, finalmente, tinha ganho o dom precioso da liberdade completa. Nem se deu conta de que teve um tesouro nas mãos e de troca em troca acabou por deitá-lo fora. Agora era livre, mas não tinha nada. E era livre para quê? Era ilusoriamente livre e o que o esperava agora era viver no vazio.

Muitos cristãos católicos, por vezes, olham para a fé cristã como um conjunto de princípios e valores demasiado pesado e incómodo, que em vez de ajudar a ser livre e apontar o verdadeiro caminho para uma vida totalmente realizada, pelo contrário, retira a liberdade e asfixia a vida. Possivelmente, tudo seria bem melhor sem a «submissão» à fé. Talvez esta convicção tenha nascido devido a um discurso moralista e regrador que a Igreja hierárquica adotou durante muitos anos. A impressão, sem dúvida errada, que impera na sociedade é que a religião ou a fé é um conjunto de mandamentos, regras e proibições que são «impostas» aos fiéis. Logo, a vida é muito mais interessante e agradável sem o jugo e o fardo dos códigos religiosos. O que se fez então? Sem terem descoberto a beleza e a grandeza da fé que têm e fortemente influenciados pela mentalidade dominante, que teima em alimentar um debate enviesado e exíguo à volta da religião, muitos católicos vão cedendo à imprudência de reinterpretar a sua fé, ano após ano, até chegarem a um mínimo essencial, que mais não é que um cristianismo light, feito à medida das conveniências, necessidades e apetites de cada um. Sem se darem conta estão na fase da pedra de amolar. Não demorará muito, até daquela «réstia» de fé vão abdicar, afirmando com ar solene que «já se deixaram dessa coisa da Igreja e da religião».

Quem nunca descobriu um tesouro, como a fé é, nunca o defenderá e lhe dará o devido valor. Este é o problema de muitos católicos. Por força de vários fatores, dos quais destacaria um percurso catequético titubeante e deficitário e influência do discurso pós-moderno sobre temas da doutrina da Igreja Católica, colocados de forma descontextualizada em relação ao todo da mensagem cristã, nunca chegaram ao âmago do conteúdo e da vivência da fé cristã, assente numa relação viva com Jesus Cristo vivo e ressuscitado, caminho, verdade e vida. Quem descobre este tesouro valioso e o partilha com os outros, dificilmente abdica dele.

Espero sinceramente que a próxima Jornada Mundial da Juventude, mais do que colecionar mais uma experiência para o currículo religioso, mais do que um grande evento ou um grande encontro ímpar, para o qual já estamos a caminhar com os motores a todo o vapor, sirva, sobretudo, para os jovens redescobrirem a beleza e o tesouro de ouro da fé, a importância de se viver de Deus e com Deus, que nos torna livres e realizados como pessoas humanas, e se tornem verdadeiramente presença de Cristo e da Igreja em todas as realidades que os envolvem e ambientes que frequentam, e protagonistas de uma humanidade tecida pelos valores do Evangelho. A Jornada será para muitos jovens um ponto de chegada de um ano vivido com muita intensidade, mas tem de ser, sobretudo, o ponto de partida para a renovação e transformação do mundo, que bem precisa de mudanças e de esperança, e os jovens católicos, com os outros também, têm de ser a força dessas mudanças e dessa esperança.


Ninguém Nasce Cristão

A minha casa é este caminho

José Luís Nunes Martins | Jan 9, 2023, in Ecclesia

Não sou de um só lugar. Sou de cada pedaço de caminho que me permite ir de onde estava para onde quero ou tenho de ir. Tenho tantas casas que sou mais do caminho que as liga do que de alguma delas.

Sou tanto do lugar onde comecei esta minha vida como daquele onde estou ou daquele em que me despedirei desta existência.

Não sou desta casa onde vivo agora, outras pessoas viveram aqui antes de mim e outros diferentes o farão depois.

Não sou alguém feito que apenas pode ser o que já é. Sou alguém que é chamado a escolher-se, a fazer-se e a avançar com os resultados de tudo isso.

Onde sou mais eu? Em todos e cada um dos momentos que me foram, são e serão dados a viver, mas em nenhum mais do que em qualquer outro.

A minha meta não é deste mundo, a casa onde espero descansar não virá ao meu encontro, sou eu que devo encontrá-la por caminhos nos quais poucas vezes há só flores. Os bons trilhos são duros e cheios de adversidades, sem atalhos, sem desculpas nem escapatórias.

Os caminhos dos infernos são fáceis e com belas paisagens ao longe. É claro que o caminho que uns sobem é o mesmo que outros descem…

… é o que buscamos que dá valor aos nossos passos.

Sobe, sobe sempre. É sempre melhor subir!

Segue em direção à luz, deixando sempre as sobras atrás de ti.

E os outros, o que encontram eles em ti?

Faz caminho e faz-te caminho. Que os outros encontrem em ti pedaços e instantes do amor que os leva à felicidade.


Ninguém Nasce Cristão

S. Paulo nos dias de hoje

Guilherme d’Oliveira Martins | 29 Dez 2022 | in 7 Margens

Metamorfose Necessária – Reler S. Paulo de José Tolentino Mendonça (Quetzal, 2022) é um livro oportuno para esta quadra de Natal como leitura utilíssima. Através de Paulo, podemos entender melhor a essência da Epifania, representada metaforicamente na presença dos Magos no presépio, mas só compreensível através do fundamental encontro na Estrada de Damasco. Numa cronologia possível elaborada no livro pelo cardeal Tolentino, mercê do que Paulo diz de si nas cartas e do que Lucas refere dele nos Atos, podemos elaborar um percurso: a conversão entre os anos 35 e 37, a evasão de Damasco entre 37 e 39, o incidente em Antioquia entre 43 e 44, a primeira viagem missionária entre 45 e 48, a assembleia de Jerusalém (48-49), a segunda viagem missionária e a estada em Corinto (49-52), a terceira viagem missionária, com estada em Éfeso e três meses em Corinto (57-60), o cativeiro de Cesareia (60-64) e a morte ocorre provavelmente em Roma, entre 64 e 68.

Paulo foi, ao que se pensa, um “fabricante de tendas”, que se orgulhava de, “graças ao seu trabalho, não depender das comunidades nem do patrocínio dos ricos”. Não sabemos quantas cartas teria escrito, mas no cânone do Novo Testamento são-lhe atribuídas treze, pondo à parte a Carta aos Hebreus. Há consenso em reconhecer a autoria paulina de sete epístolas: a primeira aos Tessalonicenses, a primeira e a segunda aos Coríntios, e ainda as cartas aos Filipenses, a Filémon, aos Gálatas e aos Romanos. A estas designamo-las como autênticas, por análise literária, teológica e histórica, sendo as outras atribuídas a discípulos posteriores.

O encadeamento dos textos permite-nos ver como o apóstolo, o primeiro escritor cristão, começou de forma simples e direta e passou, com o decurso do tempo, a usar os melhores “recursos da oficina literária” de um modo mais rigoroso, “a ponto de George Steiner dizer que poucos homens, na história da comunicação humana, acreditaram tanto no poder da palavra como Paulo”. E se há coisas algo difíceis de compreender, o certo é que há uma coerência, que nos ajuda a dar sentido ao conjunto do pensamento e das mensagens. “Paulo nunca foi um pregador solitário ou um one man show. Viveu toda a vida num ritmo comunitário, cultivou uma finíssima rede de relações pessoais, tinha um conjunto de colaboradores que partilhavam o seu quotidiano e o seu pensamento, operava numa verdadeira rede social que é parcialmente reconstruível”. E podemos acrescentar ao que nos diz o autor que se tratou de uma “rede” aberta e dialogante (em contraste com o que tantas vezes encontramos em circuitos fechados).

Trata-se de uma “teologia de pregação”, que interage com a vida concreta, que determina um sentido direto, dotado de capacidade de sedução, o que levaria supostamente Séneca, numa carta ficcionada dirigida a Paulo, a pedir-lhe: “Usa por favor uma linguagem correta, empresta aos teus nobres conceitos uma bela veste, de maneira que o generoso dom que te foi concedido possa por ti dignamente dar muito fruto.” E qual a chave do ensinamento de Paulo? Estamos diante de “um pensamento móvel, que se estende por declinações muito diversas, a partir de um centro fixo: o encontro com Cristo” – e assim se realiza a “experiência mística de um Cristo que está vivo”. E o apóstolo não pensa apenas no destino dos crentes, mas reflete sobre o destino humano e a metamorfose do mundo.

Como afirma o insuspeito Alain Badiou, o pensamento universal de Paulo supera a proliferação de alteridades (o judeu, o grego, as mulheres, os homens, os escravos, os homens livres, etc.) pela afirmação de uma equivalência igualitária. E Giorgio Agamben diz-nos que o essencial em Paulo incide sobre aquilo que resta (o “resto” que permite compreender o todo), que impede as divisões sumárias e impossibilita que as partes e o todo coincidam consigo mesmos. E assim supera a contradição do primado da lei escrita, “uma vez que divide a lei em lei das obras e lei da fé, lei do pecado e lei de Deus (Rm 7, 22-23) – e assim a torna inoperante –, Paulo pode então cumprir a lei na figura do amor”.

Mais do que viajante, Paulo é peregrino. E o seu ver “não é apenas um observar com os olhos da carne; é o ser visto, é o passar a ver com os olhos da fé”. E esta construção do anúncio cristão inscreve-se na encruzilhada dos mundos judaico-semita e helenístico-romano. “Paulo metamorfoseia o mundo e as relações, ao pensar alternativas de futuro”. E a Filémon diz, com clareza, que o dono e o escravo se devem reconhecer como irmãos. Mas então de que metamorfose falamos? Não por acaso, Lucas descreve Paulo caído por terra, com uma cegueira funcional, protagonista de uma reviravolta na vida – “Aquele que já nos perseguiu anuncia agora a fé que antes destruía” (Gal. 1, 23). E o cristão é para Paulo um sujeito crente em construção, sabendo que a fé é frágil e incompleta. Como Karl Rahner dirá: “o cristão do futuro ou será místico, ou não será cristão”. Urge que possamos experimentar, no sentido criador. “Deus, com efeito, não criou o homem; Ele cria-o e continuará a criá-lo. Nesse sentido, estamos sempre em estado de ser criados e de criar (…). Não somos simplesmente testemunhas de um passado. Cada pessoa é chamada a ser, e é já, um documento do futuro.” Eis a metamorfose necessária.

Guilherme d’Oliveira Martins é administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian.


Ninguém Nasce Cristão

Oiço alguém à porta!

José Luís Nunes Martins | Dez 24, 2022 | in Ecclesia

Há dias em que me sinto longe, meio perdido e mais vazio do que o habitual. Talvez porque abrando e me deparo com um eu sem os artifícios e as artes de fuga mais comuns no meu quotidiano.

O mundo dá-me tréguas por algum tempo e eis que sinto o desassossego que me acompanha todas as horas da minha vida, mas que, em virtude desta paz, se faz ouvir melhor. É estranho, mas sou eu! Um eu que também sou, mas que talvez pela sua inocência eu sinta que não está preparado para enfrentar o mundo e os outros.

Quase me sinto um estranho face a mim mesmo. Vejo, oiço e sinto-me alguém que apesar de muitos projetos alcançados, tem ainda em si muitas preocupações sem sentido, muitos medos e uma dose enorme de orgulhos e outros egoísmos que lhe/me impedem de ser mais livre, de ser mais o que, na verdade e no fundo, quero ser.

Mas não tenho espaço em mim. Encho-me de tudo um pouco, logo que sinto algum tipo de fome mais profunda.

Talvez o caminho seja o inverso. Preciso de despejar de mim tantas coisas que não servem senão para me distrair e adiar. Preciso de deixar de ter tantas certezas a respeito dos outros, do mundo e até de mim mesmo.

Gostava de me esvaziar de muito de mim…

Há dias, como hoje, em que gostava mesmo que houvesse espaço em mim para que Jesus pudesse nascer e ficar aqui. E eu com Ele.


Ninguém Nasce Cristão

Não matemos a curiosidade

Mariana Viana Baptista | 7 Dezembro 2022 | in Ponto SJ

A curiosidade é uma capacidade inata do ser humano, que o faz explorar e aprender. Apesar de ter gostos e interesses que gosto de descobrir, não me considero uma pessoa particularmente curiosa – tenho demasiada facilidade em conformar-me e aceitar o que não sei ou não conheço. Talvez seja pelo desconforto que encontro na insatisfação de querer saber sempre mais ou pelo que me parecem formas pouco saudáveis de se ser curioso. Mas, ultimamente, com a ajuda do exemplo próximo de famílias que esperam novos bebés, tenho vindo a descobrir como a curiosidade, pelos seus efeitos, pode ser uma grande virtude – e tenho-me proposto trabalhá-la neste tempo de espera e expectativa que é o Advento.

“A curiosidade matou o gato”, diz o ditado popular. De facto, a curiosidade pode ser mal usada ou mal vivida. Pode traduzir-se numa cusquice mesquinha, de quem, por alguma razão, se quer distrair da própria vida e se refugia na dos outros e procura saber tudo sobre todos. Ou pode ser uma curiosidade apática e impermeável, de quem explora tudo, mas não se deixa tocar por nada. As coisas parecem perder significado e sabor, nada sacia e, por isso, tudo se vai tornando descartável quando perde a aparente novidade. Parece-me haver, ainda, a curiosidade imatura e desafiadora, de quem quer testar limites que sabe que, por alguma razão, não deve ou não pode ultrapassar. Nestes casos, sim, a curiosidade pode tirar vida.

Mas não matemos a curiosidade: pode ser muito libertadora e fecunda.

A curiosidade para aprender, interessando-me genuinamente pelo mundo à minha volta, pode ajudar-me a pensar melhor, a formar opiniões mais fundamentadas e a servir melhor o mundo naquilo que me compete.

A curiosidade para perceber o que se passa em mim impede-me de me alhear do que vou sentindo, dos meus processos, do que me pode bloquear, e permite-me ir conhecendo os meus desejos mais profundos, onde Deus me fala.

A curiosidade em relação ao futuro pode tornar-me disponível para o mesmo e para que Deus me vá sonhando. Ajuda-me a desejar e procurar os próximos lugares, com esperança e sem a pressa de saltar capítulos importantes – porque, apesar do interesse para conhecer o final, vou desfrutando do caminho sempre surpreendente.

A curiosidade para conhecer pessoas pode tornar-me mais disponível. As relações alimentam-se da nossa vontade de escutar o outro, de aprender com ele, e a curiosidade, em perguntas que se desenrolam em grandes conversas, abre espaço para isso mesmo. É o que me faz querer descobrir a história do outro, como quem pisa terra sagrada, ajudando-me a largar preconceitos e a alargar o olhar. Abre-me à possibilidade de outra vida transformar a minha, aceitando a minha incompletude de forma positiva.

Parece-me, então, que a curiosidade pode ser algo a cultivar com especial dedicação neste tempo de Advento, em que aprendemos a esperar e a dar espaço a Alguém que nos completará.

Tenho reparado que a espera de um bebé desperta uma grande curiosidade e muitas perguntas: como será fisicamente? Que personalidade terá? Quais serão os seus sonhos e gostos? Como vai brincar, chorar, conversar? Qual será a primeira palavra, a primeira brincadeira? Como vai agir e reagir? Quem serão os seus amigos? Que novidades trará a sua vida à nossa? Há, num bebé, uma infinidade de possibilidades de sermos surpreendidos, um mistério que nos ultrapassa e que, por si só, aviva a hospitalidade. Há um fascínio latente na expectativa de ver alguém crescer e de crescer também com essa pessoa.

No Advento, não fingimos que esperamos um bebé novo, mas reconhecemos, com entusiasmo renovado, a novidade ilimitada do Deus que Se fez bebé e nos convida a crescer com Ele. Por isso, de todas as curiosidades que quero cultivar em mim, há, ainda, a curiosidade para conhecer Jesus – alimentar o encantamento e as perguntas sobre Ele. Então, talvez venha a descobrir que, entre as muitas maneiras de gerar vida, Deus também o pode fazer a partir do Seu olhar curioso sobre cada um e sobre o mundo.


Ninguém Nasce Cristão

Advento: a beleza do caminho inverso

Filipe Lima, sj | 25 Novembro 2022 | in Ponto SJ

«Deus amou tanto o mundo que lhe deu o Seu Filho». Se me perguntassem qual é a expressão bíblica que melhor serve de tónica para o Advento, provavelmente responderia esta. «Porquê?» é a pergunta. E responderia que o sentido do Advento enquanto «espera de Deus que vem salvar o seu povo» se funda no contemplar esta intenção amorosa de Deus, que escolhe «vir ter com» aqueles que ama.

Ora, é verdade que estamos de tal forma habituados a falar do «apontar o caminho para Deus» que nos esquecemos facilmente de que, no Natal, celebramos a iniciativa de Deus que vem ao nosso encontro. Todos os anos, as nossas preocupações religiosas pelo Natal são as típicas preparações interiores e exteriores do Advento: uma confissão, um pouco mais de oração, uma intenção caridosa, a preparação da casa, os convites dos amigos e família… No entanto, creio que a contemplação da Encarnação dos Exercícios Espirituais [E.E. 101-109] nos pode desafiar a um bocadinho mais do que aquilo a que estamos habituados.

Através desta contemplação, Santo Inácio desafia-nos a ligar a realidade dura e desoladora do nosso mundo ao modo como Deus a vê e a quer acolher e salvar. Por isso, «re-aprofundar» o tempo do Advento é como que «re-aprender» a procurar a esperança na ação misericordiosa de Deus sobre uma realidade por Ele amada e que, para nós, tantas vezes não transparece cenários possíveis de esperança; pelo contrário, entristece-nos quando olhamos e vemos somente coisas más a acontecer à nossa volta: coisas que obviamente não podem ser ignoradas, mas que, contudo, nos fazem cair em processos de descredibilização da humanidade, convencendo-nos de que a «palavra dada por alguém», mais tarde ou mais cedo, sairá frustrada. Neste sentido, quer os grandes quer os pequenos dramas tendem a colocar em causa a nossa confiança num futuro bom para a humanidade e esta é a tendência que a contemplação da Encarnação inverte.

Sabemos bem que são tantos os dramas que assolam o nosso tempo de desconfianças e inseguranças: a guerra que nos faz desconfiar dos líderes das nações; os casos de abusos que nos fazem desconfiar das relações humanas; os casos de corrupção que nos fazem deixar de acreditar na honestidade; os casos de traição que nos fazem desconfiar daqueles que são mais próximos de nós. E tudo isto é a humanidade a precisar de ser salva pela Encarnação de Deus no meio do seu povo. Como é possível haver ainda uma luz que brilha no fundo da gruta de Belém? Parece ser um contrassenso, mas talvez seja possível, porque o Natal é isso mesmo: tudo, menos uma história romântica e agradável. Ao invés, o Natal é a contemplação de um Deus que entra na história de uma humanidade muito destruída e lhe acende a luz de uma esperança que lhe muda a vida.

Portanto, este é o tempo em que somos convidados a aprofundar o sentido dessa esperança cristã; não porque esperamos coisinhas, mas porque esperamos Aquele que é a nossa verdadeira Paz, Aquele que dá uma nova esperança aos homens e mulheres de todos os tempos, Aquele que nos faz voltar acreditar que o ser humano pode ter um futuro que não esteja à partida condenado ao fracasso. Por isso, o desafio para este Advento é o de contemplar a Encarnação que se dá numa realidade ferida e nos faz compreender que o «caminho para Deus» é também o caminho pelo qual Deus vem ao encontro daqueles que ama.

Concluindo, fica o desafio adventício de ter presente durante este tempo (se calhar até escrito na mesa de cabeceira) uma situação concreta que precisa de ser tocada por esta confiança e esperança de que Deus vem salvar o seu povo. É verdade que um dos principais desafios do Advento é apontar o caminho para Deus, onde possivelmente a nossa confiança em encontrá-Lo não está tão disposta a aceitá-Lo; mas a verdade é que a escolha da Encarnação sempre foi do próprio Deus e não nossa, de modo que o desafio é sempre o de me exercitar no «procurar para encontrar», muitas vezes nas próprias ruínas da vida, porque é aí que a Encarnação se dá. Vai-se a ver e o caminho para Deus é um caminho de Deus para nós, no qual os E.E. nos ajudam a perceber que o Advento é um preparar o coração para acolher o Deus que vem à nossa realidade.


Ninguém Nasce Cristão

Crise de fé ou a fé em crise?

Maria Inês Gonçalves | 16 Novembro 2022 | in Ponto SJ

É normal chegar uma altura em que achamos que a fé já não nos diz tanto ou não nos faz tanto sentido. São as chamadas crises de fé. Não é que esteja a passar por um destes momentos, mas, nos últimos meses, tenho sido levada a pensar naquilo que pode fazer com que as outras pessoas se afastem de Jesus, nomeadamente os jovens.

Nesse sentido, uma das minhas conclusões é que, no caso dos jovens, uma das coisas que os leva a afastarem-se de Jesus pode estar relacionada com a sua vida em Igreja. Talvez porque quando surge a primeira (pequena ou grande) questão, não encontram um espaço aberto e seguro para expô-la.

Lembro-me da minha primeira pergunta. Surgiu quando cheguei ao sétimo ano do ensino básico. Na disciplina de físico-química, a primeira matéria lecionada era o sistema solar e as teorias da origem do universo, e foi então que ouvi falar da teoria do Big Bang. “Então, não tinha Deus criado o mundo em sete dias?!” pensei. Fiquei tão indignada com este “paradigma” que o levei para a catequese.

Agora que olho para trás reconheço que foi muito importante ter encontrado no meu grupo de catequese um espaço aberto e pronto a acolher as minhas questões, mesmo que elas não fizessem parte do manual do catequista. Lembro-me que chegámos a fazer duas ou três catequeses à volta do tema “a vida depois da morte” que um de nós tinha trazido, assim como tantos outros temas que resultaram do conflito entre o nosso dia a dia e o meio católico. Estes momentos de diálogo em Igreja foram para mim muito importantes, diria até decisivos, para continuar a dizer que Jesus é meu amigo. Observando o que se passa à minha volta, e pensando naqueles que podem estar a passar por uma crise de fé, sinto que os momentos em Igreja têm de ir para além de pregar e fazer com que as crianças e jovens saibam tudo sobre a vida de Jesus. Parece-me que o primeiro passo é criar este ambiente onde todos se sintam bem e à vontade, fazendo com que através dos momentos bons que se vivem, das conversas que surgem, da partilha constante, conheçam Jesus e, reconhecendo-O nos outros, O procurem em tudo o que está à sua volta.

Muitas vezes é mais fácil encontrá-Lo do que pensamos, porque está nos sítios mais improváveis também. Gosto de dar o exemplo do meu grupo de melhores amigos, que são agnósticos ou ateus. No entanto, a quantidade de vezes que encontro Jesus neles é surpreendente! Seja pela preocupação com o bem estar uns dos outros, pela presença nos momentos mais importantes de cada um, ou mesmo a certeza de que estarão comigo em qualquer momento que precise.

É a partir desta vivência que retiro a ideia de que pode ser muito mais eficaz dar a conhecer Jesus a partir do exemplo ao invés de pregar e dizer no que se deve ou não acreditar. Se me puser ao serviço e der de mim aos outros, fazendo perceber que é como Ele e por Ele que o faço, talvez então consiga espalhar a Sua mensagem. A este propósito, numa noite de oração de preparação para a Jornada Mundial da Juventude, lemos a parábola sobre ser Sal da Terra (Mt 5, 13-16). Numa das reflexões propostas, destaquei um parágrafo que para mim resume esta ideia: “O sal tempera e preserva, impedindo que as coisas se estraguem e apodreçam. É isto que Jesus nos pede quando escolhemos uma vida com Ele. Que tal como o sal tempera e realça o sabor dos outros alimentos, discretamente e sem ser a estrela do prato, também nós possamos levar alegria e mais humanidade à vida dos outros. Somos também chamados a ajudar à preservação. Da nossa fé, da fé dos outros, da nossa identidade cristã. Como dizia S. João Paulo II, a sabermos estar no mundo sem sermos mundanos.”

Volto à minha inquietação inicial: o afastamento. Em Setembro tive oportunidade de ler com atenção o relatório de Portugal com as conclusões do sínodo. Menciona-se, num dos pontos, que o principal motivo que afasta os jovens da Igreja e os impede de caminhar juntos “assenta na diferença existente entre o seu modo de pensar e a doutrina da Igreja Católica, referindo que a Igreja tem uma mentalidade retrógrada e desajustada dos tempos em que vivemos.”. Quando as perguntas não têm resposta, a fé fica em crise.


Ninguém Nasce Cristão

O Evangelho todos os dias, para encontrar Jesus

Papa Francisco | 13 Nov 2022 in 7 Margens

A editora Dom Quixote coloca à venda nesta terça-feira, 15, um’A Vida de Jesus, que se apresenta como se fosse uma biografia. O seu autor é Andrea Tornielli, diretor editorial dos media vaticanos no Dicastério para a Comunicação da Santa Sé, que utiliza excertos de discursos, homilias e intervenções do Papa Francisco para a escrever.

O livro propõe-se ser um relato da vida de Jesus de Nazaré baseado em estudos históricos: do nascimento à morte na cruz, Tornielli utiliza episódios dos quatro Evangelhos que congrega numa narrativa única dos textos, mesclando-os com uma “tentativa pessoal de reconstruir com a imaginação, e com a ajuda dos mais autorizados estudos históricos, tudo aquilo que os apóstolos não escreveram”.

Comentários e reflexões que o autor coligiu do Papa Francisco acompanham cada episódio, numa reflexão que pretende também atualizar a mensagem dos evangelhos trazendo-a para a contemporaneidade.

Andrea Tornielli é diretor editorial dos media vaticanos no Dicastério para a Comunicação da Santa Sé. Anteriormente trabalhou como jornalista na revista mensal 30 Giorni, do movimento Comunhão e Libertação, nos diários Il Giornale e La Stampa e no sítio da internet Vatican Insider. É autor de vários livros, entre os quais O Nome de Deus é Misericórdia (ed. Planeta), que resultou de uma entrevista com o Papa Francisco, a propósito do Ano da Misericórdia.

0 7MARGENS publica a seguir alguns excertos da apresentação do Papa Francisco e da introdução do autor.

O Evangelho todos os dias, para encontrar Jesus

(Apresentação – Papa Francisco)

Há muito que venho aconselhando a todos um contacto direto e quotidiano com os Evangelhos. Porquê? Porque se não temos um contacto diário com a pessoa amada, dificilmente poderemos amá-la. O amor não se vive pelo correio, não se pode cultivar apenas à distância: certamente, algumas vezes pode acontecer, mas são exceções. O amor precisa do contacto contínuo, do diálogo constante; ouvir o outro, acolhê-lo, olhá-lo. É partilhar a vida. Se não experimentamos Cristo vivo, aquele com quem o Evangelho nos põe em contacto, arriscamo-nos a alcançar apenas ideias ou, pior, ideologias sobre o Evangelho. Teremos contacto não com Jesus, o Vivente, mas com opiniões e pensamentos sobre Ele, alguns dos quais verdadeiros, outros não. Mas não fomos salvos por ideias, mas por uma pessoa, Jesus Cristo. Então, levar consigo um Evangelho de bolso e ir lendo alguma coisa, até várias vezes por dia, é como levar consigo a «refeição» quotidiana. É fundamental «alimentar-se» com Jesus, alimentar-se de Jesus. Há duas mesas, como nos ensinou o Concílio: a Eucaristia e a Palavra. Ir ao Evangelho – ao pequeno Evangelho de bolso, ao grande Evangelho que temos em casa, às leituras do dia que nos chegam no nosso smartphone – é um modo para ver Jesus concreto, para o encontrar. É a via para o acolher diversamente de como nos é apresentado pelos teólogos e pelos exegetas, o que é precioso, mas é outra coisa. A salvação na verdade é algo, Alguém concreto, e acontece por isso na concretização de um encontro pessoal. Deus comunicou durante séculos o anúncio da salvação através da voz dos profetas, mas a certa altura aquele tempo chegou ao fim e Ele próprio se fez carne, se fez homem, veio viver no meio de nós. Ter o Evangelho à mão para o ler várias vezes por dia – basta pouco tempo – é acolher o Verbo incarnado, é compreender que o nosso credo não é apenas uma lista de artigos de Fé, mas uma pessoa viva, Jesus. A nossa Fé é Jesus. Podemos conhecer todos os dogmas, ser católicos esclarecidos, mas sem um contacto constante com o Evangelho permaneceremos cristãos só na cabeça, e a Fé não descerá ao coração, não habitará a vida. Para ser cristão é preciso, pelo contrário, que o Verbo, isto é a Palavra, desça em nós e venha habitar em nós.

O Evangelho não é apenas uma história do passado ou um relato edificante com bons ensinamentos morais. O objetivo da Palavra de Deus não é tanto o de falar à nossa mente: o objetivo é o encontro. A Palavra de Deus é um dom para o encontro: o Senhor veio a nós com o Seu Filho – que é a Sua Palavra – para nos encontrar. Sem encontro, o Evangelho permanece uma história que leio, que me fala de um Mestre que oferece ensinamentos de vida. Pelo contrário, quando me encontro com o Senhor na Sua Palavra, nasce e renasce um sentimento de espanto, coisa que dificilmente provamos lendo o Evangelho apenas intelectualmente, como uma narração histórica. O espanto é o perfume de Deus que está a passar naquele instante. (…) Nos Evangelhos encontraremos, sine glossa, o estilo de Deus: a proximidade. E no interior desta proximidade estão mesmo compaixão e ternura. (…)

Um aspeto decisivo que sempre me impressiona ao ler o Evangelho é a importância dos olhares, um pormenor sobre o qual se detém também este A Vida de Jesus. Alguns olhares cruzam-se: pensemos em Zaqueu, em cima de uma árvore de um modo algo grotesco, que deseja ver Jesus sem ser visto, e é pelo contrário olhado pelo Senhor, o qual lhe diz que irá a sua casa. Pensemos no cego de Jericó: não podia ver, mas procurava o olhar de Deus, queria ser olhado por Jesus, e até ter encontrado esse olhar pousado sobre si, não deixou de gritar, de pedir, de suplicar. (…) Não basta apenas ler, não basta ouvir, é belo entrar na primeira pessoa nos episódios evangélicos, compondo na mente e no coração o olhar de Jesus. Imaginar, por exemplo, os Seus olhos a pousar-se, entre tantas pessoas, sobre uma pobre viúva que dá uma pequena esmola no Templo: o olhar de Jesus perscrutava os mestres da Lei que passavam no Templo para se fazer notar e mostrar-se perfeitos, mas depois foi atraído por aquela viúva que doa duas pequenas moedas, dois trocos, mais do que todos porque era tudo o que tinha. Aquele olhar é a canonização da generosidade. (…) Outras vezes, estamos diante de olhares incapazes, que num primeiro momento não conseguem ver o Senhor: pensemos nos discípulos de Emaús. Os seus olhos estavam como que velados. Pensemos em Madalena, quando vai ao sepulcro, e pensa que Jesus ressuscitado seja o jardineiro. E depois o Senhor manifesta-Se: o mesmo nos acontece a nós, quando pegamos no Evangelho, lemos alguma coisa e ao nosso olhar a certa altura o Senhor se revela, se manifesta, e temos a experiência espiritual única do espanto, que nos faz encontrar Jesus.

Repito: não há Fé sem encontro, porque a Fé é o encontro pessoal com Jesus. É aquele «Acredito, Senhor, mas ajuda-me para que a minha Fé cresça; ajuda-me porque sou débil.» Uma das coisas que nos ajudará quando estivermos diante do Evangelho é imaginar os encontros com Jesus: recriá-los, olhar para Ele também nós, encontrarmo-nos com Ele. Nos Evangelhos, olhar e ver são dois verbos importantíssimos. Aproximemo-nos então dos episódios da vida de Jesus com os olhos cheios de contemplação. É verdade que a Fé começa com a escuta, mas o encontro começa com o ver. Por isso é importante ouvir e ver Jesus nos Evangelhos. O ver une-se mais facilmente à memória, que faz crescer a Fé cristã: é, como ensina São João, e em geral toda a Sagrada Escritura, a memória das coisas que vimos e ouvimos. (…)

Um telefonema

(Introdução do autor)

Na origem deste livro está um telefonema de um amigo padre, Primo Soldi, que um dia de manhã, durante o lockdown de 2020 me telefonou e me disse à queima-roupa:

«Porque é que não escreves uma vida de Jesus com os comentários do Papa Francisco?» Eram os dias dramáticos da primeira fase da pandemia e o bispo de Roma acompanhava milhões de pessoas em todo o mundo com a missa em Santa Marta transmitida em direto pela rádio, televisão e na Internet.

Respondi ao padre Primo que iria pensar, apesar de o desafio me parecer inultrapassável. Como poderia eu pretender escrever uma vida de Jesus? Sobretudo, como poderia ter tal pretensão sem ter uma específica preparação teológica, bíblica, filológica?

É certo que era reconfortante o facto de que quem comentaria ao longo da narrativa seria o Papa, porque eu usaria os seus textos, homilias, documentos, discursos improvisados.

Sempre me impressionou a insistência com que Francisco continua a pedir aos fiéis para sair de casa com um pequeno Evangelho sempre no bolso, para não perder o contacto quotidiano com os encontros, os rostos, as palavras de Jesus. (…) Também me impressionou muito a insistência com que nas homilias, especialmente nas improvisadas, o Papa Francisco convida a «ir lá», a entrar nas cenas evangélicas, a deter-se para olhar para os personagens descritos. Pertence de modo especial à tradição jesuítica esta prática de meditar «entrando» no Evangelho, revivendo-o e tornando-o atual. (…)

Tratava-se (…) de me pôr em causa a mim próprio. Era preciso medir-me por aquilo que sou – portanto, com os meus próprios e evidentes limites – com o facto cristão relatado nos Evangelhos. Era preciso identificar-me, entrar naquelas cenas definidas há quase dois mil anos por testemunhas apaixonadas por Jesus, que acreditavam Nele, e, por isso mesmo, atentas e escrupulosas ao transmitir o que d’Ele tinham visto, ouvido, experimentado, recolhido, vivido. Era preciso tentar estar ali, deixar-me impressionar, surpreender, espantar, comover pelo olhar e pelas palavras do Nazareno. Para o encontrar a Ele, à Sua Pessoa, que é o autêntico coração da Fé cristã.

Precisamente para sublinhar isto, com a consciência de ser um anão sobre os ombros de gigantes, quis permitir que o livro citasse o místico sacerdote franciscano Maurice Zundel. É uma frase que «roubei» a um outro bem mais profundo e respeitável A Vida de Jesus, o que foi escrito em 1936 pelo jornalista e dramaturgo francês François Mauriac, prémio Nobel de Literatura. Mauriac antepôs estas palavras de Zundel ao seu afortunadíssimo best-seller: «O Cristianismo reside essencialmente em Cristo.»

Sublinhar isso neste prólogo não significa de modo algum distanciar-me do precioso trabalho dos filólogos, dos exegetas e dos teólogos que cem vezes olharam à lupa cada versículo dos Evangelhos comentando-o e explicando-o. Significa, pelo contrário, reconhecer que o encontro com Jesus, hoje como há dois mil anos, é uma questão de coração, de olhares, de comoção que nos agarra visceralmente: isto é, é mais na Sua pessoa do que na Sua doutrina. (…)

Há algum tempo, enquanto ouvia a leitura de uma passagem do Evangelho de São Lucas durante uma missa matinal na capela da Rádio Vaticana, surpreendi-me ao voltar a ouvir a lista dos doze apóstolos que refere três nomes repetidos duas vezes: entre aqueles que seguiram Jesus, vivendo com ele todos os momentos da sua vida pública, havia dois chamados Simão, dois Tiago e dois Judas.

Ouvira aquela passagem tantas vezes. Mas só então pensei: que romancista, que dramaturgo, que escritor livre de «inventar» e moldar os dados que possui para fins catequéticos, teria podido introduzir um elemento de confusão semelhante nos nomes dos protagonistas da sua história? Uma confusão que o teria sempre constrangido a dever especificar o cognome ou o nome do pai para distinguir sobre qual dos dois Simão, dos dois Tiago e dos dois Judas se estava a referir naquele momento.

A mim, que não sou exegeta nem sei fazer a crítica do texto, pareceu-me mais um minúsculo indício do facto de que aqueles homens – na sua maior parte pescadores ou cobradores de impostos e, portanto, homens concretíssimos – tinham contado, descrito, transmitido tudo aquilo de que haviam sido testemunhas oculares. Os seus olhos eram os olhos da Fé pascal, mas a sua Fé era baseada na experiência vivida com Jesus e com os outros apóstolos e discípulos. E deve haver um motivo pelo qual até hoje não foi feita nenhuma descoberta credível capaz de desmentir nem sequer um dos versículos evangélicos.

Sobre estes assuntos já correram rios de tinta e também eu, como jornalista e divulgador, me ocupei deles amiúde em artigos, entrevistas, recensões, ensaios. É como se agora, depois de um «catecumenato» de interesses e curiosidades que durou quase meio século e de uma atividade profissional de mais de trinta anos, tivesse sido desafiado a dar mais um passo: já não escrever detendo-se nos pormenores, nas discussões sobre a historicidade dos Evangelhos, nas muitas razões para acreditar, mas em vez disso «entrar» no Evangelho para encontrar o seu Protagonista, «vivê-l’O», «vê-l’O» falar, comover-se, difundir o Seu olhar de misericórdia e a Sua Palavra de redenção e libertação.

O Evangelho, a história da vida de Jesus graças ao testemunho dos Seus amigos, assume o seu pleno significado apenas na consciência e na experiência de que Ele, o Nazareno, está vivo hoje e sem Ele não podemos fazer nada. E é possível encontrá-l’O hoje da mesma idêntica maneira que há dois mil anos nas margens do lago de Tiberíades, deparando-se com o Seu rosto, com os Seus gestos, com as Suas palavras, com os Seus sinais e com os rostos e os relatos dos Seus amigos fascinados por Ele.

Precisamos, portanto, de encontrar Jesus vivo hoje, precisamos de O aperceber no rosto dos que estão longe, dos que sofrem.

Precisamos de O encontrar procurando «factos de Evangelho» (copyright do meu amigo e mestre Luigi Accattoli). Aqueles factos de Evangelho presentes à nossa volta. Precisamos de O encontrar vivo hoje no rosto de quem vive para Ele e nos testemunha o que quer dizer amar, acolher, abraçar, ser misericordiosos e livres como Jesus nos ensina e nos permite ser todas as vezes que, em vez de perseguir o poder, os aparelhos, as estruturas, doutrinas e regras, lhe damos espaço a Ele e permitimos que venha ao nosso encontro para nos dizer: «Vem e vê.»


Ninguém Nasce Cristão

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO REINO DO BAHREIN
por ocasião do "Bahrain Forum for Dialogue: East and West for Human Coexistence"
(3 - 6 DE NOVEMBRO DE 2022)

SANTA MISSA PELA PAZ E A JUSTIÇA

HOMILIA DO SANTO PADRE

"Bahrain National Stadium" (Awali)
Sábado, 5 de novembro de 2022

O profeta Isaías diz que Deus fará surgir um Messias que «dilatará o seu domínio com uma paz sem limites» (Is 9, 6). Parece uma contradição! Com efeito, no palco deste mundo, muitas vezes vemos que quanto mais se procura o poder, tanto mais ameaçada está a paz. Ao contrário, o profeta anuncia uma novidade extraordinária: o Messias que vem é verdadeiramente poderoso, mas não como um líder que guerreia e domina sobre os outros, mas como «Príncipe da paz» (9, 5), como Aquele que reconcilia os homens com Deus e entre si. A grandeza do seu poder não se serve da força da violência, mas da debilidade do amor. Este é o poder de Cristo: o amor. E confere também a nós o mesmo poder, o poder de amar, de amar em seu nome, de amar como Ele amou. Como? De modo incondicional: não só quando as coisas correm bem e temos vontade de amar, mas sempre; não apenas aos nossos amigos e vizinhos, mas a todos, mesmo inimigos. Sempre e a todos.

Reflitamos um pouco sobre isto: amar sempre e amar a todos.

Comecemos pela primeira coisa: hoje as palavras de Jesus (cf. Mt 5, 38-48) convidam-nos a amar sempre, isto é, a permanecer sempre no seu amor, a cultivá-lo e praticá-lo qualquer que seja a situação onde vivemos. Mas atenção! O olhar de Jesus é realista; não diz que será fácil nem propõe um amor sentimental ou romântico, como se não houvesse, nas nossas relações humanas, momentos de conflito e não houvesse motivos de hostilidade entre os povos. Jesus não é utópico, mas realista: fala explicitamente de «maus» e de «inimigos» (cf. 5, 39.43). Sabe que acontece uma luta diária entre amor e ódio, no âmbito dos nossos relacionamentos; e, dentro de nós mesmos, verifica-se dia a dia um combate entre a luz e as trevas, entre tantos propósitos e desejos de bem e aquela fragilidade pecadora que muitas vezes nos domina e arrasta para as obras do mal. Sabe também que é o que experimentamos quando, apesar de tantos esforços generosos, nem sempre recebemos o bem que esperávamos, antes, às vezes incompreensivelmente sofremos um dano. Mais, Ele vê e sofre ao contemplar, nos nossos dias e em muitas partes do mundo, exercícios do poder que se nutrem de opressão e violência, procuram aumentar o espaço próprio restringindo o dos outros, impondo o próprio domínio, limitando as liberdades fundamentais, oprimindo os mais frágeis. Concluindo, Jesus bem sabe que há conflitos, opressões, inimizades.

À vista de tudo isto, eis a pergunta importante que se deve pôr: Que havemos de fazer quando nos encontramos em situações do género? A proposta de Jesus é surpreendente, é intrépida, é audaz. Pede aos seus a coragem de arriscar por algo que, na aparência, é perdedor; pede-lhes para permanecerem sempre, fielmente, no amor, apesar de tudo, mesmo perante o mal e o inimigo. Ora a pura e simples reação humana cinge-se ao «olho por olho e dente por dente»; mas isto equivale a fazer-se justiça com as mesmas armas do mal recebido. Jesus ousa propor-nos algo de novo, diferente, impensável, algo de Seu: «Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra» (5, 39). Aqui está o que nos pede o Senhor: que não sonhemos idealisticamente com um mundo animado pela fraternidade, mas que nos comprometamos – principiando nós mesmos – a viver concreta e corajosamente a fraternidade universal, perseverando no bem mesmo quando recebemos o mal, quebrando a espiral da vingança, desarmando a violência, desmilitarizando o coração. Um eco disto mesmo, temo-lo no apóstolo Paulo quando escreve «não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem» (Rm 12, 21).

Assim, o convite de Jesus não tem a ver primariamente com as grandes questões da humanidade, mas com as situações concretas da nossa vida: os nossos laços familiares, as relações na comunidade cristã, os vínculos que cultivamos no trabalho e na sociedade onde nos encontramos. Haverá atritos, momentos de tensão, haverá conflitos, diversidade de perspetivas, mas quem segue o Príncipe da paz deve procurar sempre a paz. E esta não se pode restabelecer se, a uma palavra ofensiva, se responde com outra pior, se a uma bofetada se responde com outra. Isto não! É preciso «desativar», quebrar a cadeia do mal, romper a espiral da violência, deixar de guardar ressentimento, pôr fim a lamúrias e lamentos acerca da própria sorte. Há que permanecer no amor, sempre: é o caminho de Jesus para dar glória ao Deus do céu e construir a paz na terra. Amar sempre.

Passemos agora ao segundo aspeto: amar a todos. Podemos empenhar-nos no amor, mas não basta se o circunscrevermos à esfera restrita das pessoas de quem recebemos igualmente amor, de quem nos é amigo, dos nossos semelhantes, familiares. Também neste caso, o convite de Jesus é surpreendente, porque amplia os confins da lei e do bom senso: já é difícil, embora razoável, amar o próximo, quem é nosso vizinho. Em geral, é aquilo que uma comunidade ou um povo procura fazer, para conservar a paz no próprio seio: se se pertence à mesma família ou à mesma nação, se se têm as mesmas ideias ou os mesmos gostos, se se professa o mesmo credo, é normal procurar ajudar-se e querer-se bem. Mas que sucede se, quem estava distante, vem para perto de nós, se quem é estrangeiro, diferente ou de outro credo se torna nosso vizinho de casa? Precisamente esta nação é uma imagem viva da convivência na diversidade, do nosso mundo marcado sempre mais pela migração permanente dos povos e pelo pluralismo de ideias, usos e tradições. Então é importante acolher esta provocação de Jesus: «Se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os publicanos?» (Mt 5, 46). O verdadeiro desafio, para ser filhos do Pai e construir um mundo de irmãos, é aprender a amar a todos, mesmo o inimigo: «Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem» (5, 43-44). Na realidade, isto significa escolher não ter inimigos: ver no outro, não um obstáculo a superar, mas um irmão e uma irmã a amar. Amar o inimigo é trazer à terra um reflexo do Céu, é fazer descer sobre o mundo o olhar e o coração do Pai, que não faz distinções nem discrimina, mas «faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores» (5, 45).

Irmãos, irmãs, o poder de Jesus é o amor, e Jesus dá-nos o poder de amar desta maneira, duma forma que nos parece sobre-humana. Na verdade, uma tal capacidade não pode ser fruto apenas dos nossos esforços; é, antes de mais nada, uma graça; uma graça que deve ser pedida com insistência: «Jesus, Vós que me amais, ensinai-me a amar como Vós. Jesus, Vós que me perdoais, ensinai-me a perdoar como Vós. Enviai sobre mim o vosso Espírito, o Espírito do amor». Peçamo-lo! Frequentemente confiamos à atenção do Senhor muitos pedidos, mas o pedido essencial para o cristão é este: saber amar como Cristo. Amar é o dom maior, e recebemo-lo quando damos espaço ao Senhor na oração, quando acolhemos a Presença d’Ele na sua Palavra que nos transforma e na revolucionária humildade do seu Pão partido. Assim, lentamente, vão caindo os muros que nos endurecem o coração e encontramos a alegria de praticar obras de misericórdia para com todos. Então compreendemos que uma vida feliz passa através das Bem-aventuranças e consiste em sermos construtores de paz (cf. Mt 5, 9).

Queridos amigos, hoje quero agradecer o vosso humilde e jubiloso testemunho de fraternidade para ser, nesta terra, sementes do amor e da paz. É o desafio que o Evangelho lança diariamente às nossas comunidades cristãs, a cada um de nós. E a vós, a todos vós que viestes, a esta Celebração, dos quatro países do Vicariato Apostólico da Arábia do Norte – Bahrein, Kuwait, Qatar e Arábia Saudita – e doutros territórios do Golfo, bem como doutros países, hoje trago-vos o carinho e a solidariedade da Igreja universal, que tem os olhos postos em vós e vos abraça, que vos ama e encoraja. Que a Virgem Santa, Nossa Senhora da Arábia, vos acompanhe ao longo do caminho e vos guarde sempre no amor para com todos.


Ninguém Nasce Cristão

As urgências da humanidade

Margarida Cordo | 30 Out 2022 | in 7 Margens

No anterior artigo que publiquei no 7MARGENS e no qual invoquei o Dia Mundial da Saúde Mental, prometi referenciar algumas urgências da humanidade, como proposta para construir a esperança num mundo melhor e, consequentemente, enfrentar e combater, no que de cada um depende, algumas fraturas relevantes da humanidade. Sou consciente de que muito mais propostas inadiáveis haveria a fazer, mas fico-me pelas que, abaixo, invoco, pois não me quero repetir face a outros meus escritos e acredito que os caminhos consistentes são aqueles que percorremos devagar, mas solidamente, simplesmente porque, de facto, temos pressa.

Diria que este texto, embora independente, é uma espécie de anexo.

Assim, para o bem-estar do humano:

– Urge (re)construir uma saudável relação com o tempo (e, sobre isto, não me canso de me repetir). Einstein dizia que a falta de tempo é a desculpa daqueles que o perdem por falta de método;
– Urge ser-se quem e como se é, tendo a coragem de começar a desenvolver contributos para aquilo a que gostaria de poder chamar a Pastoral da Autenticidade;
– Urge perceber que, diria eu, não é cristão viver de aparências;
– Urge não ignorar que a vida humana é apenas uma etapa da existência;
– Urge aprender a adiar a gratificação, sabendo que, como alguém recordou, o único lugar em que o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário;
– Urge centrar-se no essencial, vivendo de discrição e não de exibição;
– Urge ser e estar no concreto e não “atrás” do mundo virtual;
– Urge repensar a solidariedade, primeira vocação do ser humano, e empenhar-se nela;
– Urge partilhar pessoalmente e escutarmo-nos uns aos outros, vivendo o momento presente com sentido e gratidão.

E, se é verdade que cada um deve evoluir a partir do patamar em que se encontra, disse-o Walter Rizzo, nada justifica que, para mais ter, se esmague a dignidade de outros que são explorados e veem a sua liberdade limitada pelos senhores da posse e do poder.

Todo o homem deveria ser obrigado a não esquecer que um dia morrerá, não para trabalhar para o epitáfio, mas para saber que não é dono de coisa alguma.

Os que somos considerados conservadores, na maioria das vezes apenas porque somos católicos, acabamos por ser os mais progressistas, pois pomos as mãos na massa a discutir e a tentar agir de modo a colmatar as fraturas atuais do mundo chamado desenvolvido

Precisamos de arranjar disponibilidade para ESCUTAR E VER o outro, o mundo e Deus; desmistificar o ESFORÇO e melhorar a relação com este, sobretudo nas camadas mais jovens.

Parece, afinal, haver muito que está ao nosso alcance nesta mudança urgente. Cada um tem de atuar no seu território, mesmo que seja mínimo, com persistência e perseverança, que são verdadeiras chaves do sucesso.

Precisamos de acreditar que pode ser mais simples do que julgamos isto que é mudar o mundo. Está, afinal, nas mãos de todos nós. Como disse Jô Soares numa entrevista dada talvez dois anos antes da sua morte, queria ir daqui com a convicção de ter deixado, nos outros, alegria e esperança e sem ter feito mal a ninguém.

Temos, pois, algumas aquisições a pôr em marcha e, sobretudo, temos de perder o medo da tranquilidade e do silêncio–escuta, através do qual crescemos em humildade e em respeito mútuo, valorizamos a simplicidade, honramos os nossos compromissos, descontraímos do stresse do dia-a-dia e agradecemos as nossas circunstâncias, ainda que as de outros nos pareçam bem melhores.

Se nos empenharmos nestas simples propostas em que o disfarce e a representação de papéis de faz de conta deixam de ter lugar, seremos decerto mentalmente muito mais saudáveis e teremos, aqui, um lugar muito melhor para existir.

Margarida Cordo é psicóloga clínica, psicoterapeuta e autora de vários livros sobre psicologia e psicoterapia.


Ninguém Nasce Cristão

Aprender a rezar com Etty Hillesumm

Luísa Ribeiro Ferreira | 21 Out 2022 | in 7 Margens

Durante anos leccionei a cadeira de Filosofia Moderna. Com a liberdade que então nos era concedida na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, podia orientá-la à minha maneira, desde que nela fossem estudados os filósofos mais importantes do século XVII, a época que me cabia abordar. Assim, houve um ano em que trabalhei o conceito de Deus em diferentes pensadores. Constavam do meu programa Descartes e um Deus como garantia de verdade pois a sua bondade infinita não permite o erro desde que orientemos correctamente os nossos raciocínios; Espinosa e o Deus Natureza, uma totalidade impessoal que se expressa em “modos”, ou seja em tudo quanto existe; Hobbes, um precursor do ateísmo sistemático, nas suas teses de que é absurdo falar de Deus, dado que não podemos conceber o infinito; Pascal que distingue o Deus dos filósofos do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob; Leibniz e o Deus relojoeiro, criador do melhor dos mundos possíveis; Locke que ao falar-nos das limitações das nossas faculdades cognitivas sustenta a possibilidade de termos um conhecimento demonstrativo e certo da existência de Deus. Mas exceptuando Pascal, nenhuma destas concepções satisfaz a nossa necessidade de um diálogo amoroso com a transcendência, aliás porque o objectivo destes filósofos é integrar a divindade na explicação do mundo, dando-lhe um papel mais ou menos preponderante, conforme as crenças (ou descrenças) de cada um. Não se privilegia nestes pensadores um Deus a quem rezamos, mas sim, porque o terreno em que habitam é a filosofia, um Deus conceptual, que nos ajude a compreender o Universo.

Presentemente integro um grupo de trabalho luso-brasileiro – Ecocultura e ecofeminismo – em que professores e professoras de teologia e de filosofia se propõem preparar um volume para a colecção Teologia da Casa Comum. E uma das tarefas que nos coube este ano foi a análise do livro de Ivone Gebara Teologia Ecofeminista. Ensaio para repensar o Conhecimento e a Religião.[1] A obra é atravessada pelo desejo de que a Terra seja um lugar de redenção. Nos seus diferentes capítulos perpassa a denúncia de uma teologia pensada por homens, com a sua consequência lógica de valorização de princípios e critérios masculinos. Interessou-me particularmente o último capítulo cujo título é uma interrogação “Um Deus diferente?” A partir desta questão traça-se um conceito de Deus que atende à nossa existência situada e às interrogações que levantamos. A espiritualidade antropocêntrica dominante na teologia cristã é substituída pela imersão no próprio mistério da vida pois trata-se de um Deus mistério, no qual existimos e somos. A ética que aí se defende é fundada no amor à Terra e no amor ao próximo. Há que lutar em prol dos mais débeis, ou seja, em prol das mulheres, da natureza e do ecossistema. Não tem sentido referir Deus como Pai.

Por muito interessante e inovadora que seja esta perspectiva, nomeadamente pela desmitificação das projecções masculinas dominantes na teologia cristã, não nos parece que nela se encontre um Deus a quem se reze, ou seja, alguém com quem se possa partilhar alegrias e tristezas, preocupações e dúvidas.

Na conjuntura de guerra que actualmente vivemos é particularmente chocante verificar como a religião continua a ser instrumentalizada em prol de opções políticas. As imagens que frequentemente vemos do Patriarca Cirilo abençoando os exércitos russos e apelando à sua coragem, constituem um insulto ao Deus misericordioso que a todos ama. E recordo uma figura que muito admiro – Etty Hillesum – pelo modo inovador como nos ensinou a rezar. [2]

Enquanto judia holandesa sob a ocupação nazi, Etty trabalhou em Westerbork, um Campo de passagem onde estavam internados provisoriamente os que iriam seguir para Auschwitz. Aí desenvolveu uma espiritualidade própria, conseguindo ver Deus onde ele parecia estar mais afastado. Aí aprendeu a rezar em sítios insólitos conseguindo meditar, contemplar e deixar-se possuir pelo sagrado, mesmo quando se dedicava a tarefas comezinhas de limpar as latrinas do Campo. E assim foi percebendo que a relação com Deus é das coisa mais íntimas que podemos experimentar, “quase mais íntimas do que as de teor sexual.” (Diário, p. 137). Aos terríveis sofrimentos que presenciou no Campo de Westerbork Etty contrapôs a plenitude, a harmonia consigo mesma e com a natureza, a paz adveniente de um despojamento total, uma paz que a levou a ser capaz de manter acesa a esperança, numa situação que parecia totalmente negá-la.

Etty usou a oração como um muro de defesa que nos torna inexpugnáveis. Esgotada a esperança de uma alteração das condições de vida, rodeada por pessoas que aos poucos iam desaparecendo, levadas para campos de trabalho, ela tomou consciência de um Deus diferente, um Deus frágil, a precisar de ajuda: “Se Deus não me ajudar, nesse caso hei-de eu ajudar Deus” (Diário, p. 245) e “Vou ajudar-te Deus, a não me abandonares, apesar de eu não garantir nada com antecedência” (Diário pp. 251-2). Para ela a criação estava incompleta e os homens deveriam colaborar com Deus para a completar. Westerbork foi o último patamar da viagem que empreendeu ao fundo de si mesma. Foi também o lugar onde encontrou serenidade, onde se pacificou interiormente, onde quase podemos dizer que se sentiu feliz.

Aprendamos com Etty a rezar a Deus, nestes tempos de guerra em que Ele parece estar ausente.

[1] Ivone Gebara, Teologia Ecofeminista. Ensaio para repensar o Conhecimento e a Religião, S. Paulo, Olhod’água, 1997.
[2] Veja-se de Etty Hillesum as traduções portuguesas do seu Diário, (Lisboa, Assírio e Alvim, 2008) e das suas Cartas, 1941-1943 (Lisboa, Assírio e Alvim, 2009).


Ninguém Nasce Cristão

Congresso Missionário

Tolentino: “Precisamos de reabilitar o pacto comunitário” e estendê-lo a todos

7M/Agência Ecclesia | 15 Out 2022 | in 7 Margens

O cardeal José Tolentino Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação (Santa Sé), defendeu este sábado a reconstrução do “pacto comunitário”, no pós-pandemia, propondo à sociedade o “horizonte da totalidade”.

“Precisamos de reabilitar o pacto comunitário, o pacto da fraternidade, e de estendê-lo universalmente”, disse o responsável português, citado pela Agência Ecclesia, na conferência que encerrou o Congresso Missionário 2022, que decorreu em Lisboa esta sexta-feira e sábado.

“As nossas sociedades precisam de aprender a conjugar-se mais no ‘nós’, na primeira pessoa do plural, envolvendo os cidadãos numa política da esperança de dimensões coletivas”, acrescentou, numa intervenção por vídeo, apresentada na Universidade Católica Portuguesa.

A conferência do cardeal madeirense teve como tema “A Fraternidade e a Reconstrução da Esperança”. O colaborador do Papa começou por recordar que o termo pandemia, etimologicamente, remete para algo que diz respeito “a todo o povo”. “O que está em causa não é apenas o destino individual, o naufrágio ou a salvaguarda de um país, de um continente, mas a globalidade do mundo e o destino da espécie humana”, precisou.

Falando de um mundo fragmentado em “lógicas de bloco”, D. José Tolentino Mendonça convidou a projetar uma ordem internacional “qualificada eticamente, como exercício de responsabilidade”, face à “normalização do egoísmo e da indiferença”.

A conferência aludiu à “grande batalha” entre exclusão e inclusão, convidando a “alargar” a ideia de “nós”, para construir “uma sociedade mais empática, mais humana”. “Os recursos espirituais podem ajudar a viabilizar uma mudança de ótica”, sustentou o cardeal português.

O prefeito do Dicastério para a Cultura e Comunicação destacou a importância de aprender a viver com a vulnerabilidade e a fragilidade, que a Covid-19 expôs, a nível global. “A vulnerabilidade é a nossa comum condição que, se escutarmos em profundidade, tem tanto a ensinar-nos”, declarou.

A intervenção abordou ainda a categoria de “amizade social” que o Papa colocou no centro da encíclica Fratelli Tutti (2020), sublinhando que a globalização fez de todos “vizinhos”, embora “desagregados e vulneráveis”.

Para José Tolentino Mendonça, há falta de projetos que digam “respeito a todos”, pelo que é preciso procurar “novos paradigmas, novos modelos”. “Esta hora precisa, com todas as suas dificuldades, os seus constrangimentos, é uma oportunidade para relançar a nossa aliança com a vida”, apontou.

“Diálogo entre culturas e religiões dão-se a pé”

Diana de Vallescar Palanca, investigadora na área de interculturalidade e diálogo interreligioso, disse este sábado no Congresso Missionário que “o diálogo entre as culturas e as religiões dão-se a pé”.

“O diálogo entre as culturas e as diferentes religiões dão-se a pé, são hoje experiências entre vizinhos, por exemplo em Lisboa, pode dar-se no metro”, relatou a especialista no Congresso Missionário 2022.

Com a temática “Fraternidade no Diálogo Intercultural e Interreligioso”, a intervenção de Diana de Vallescar Palanca iniciou pela gratidão em variados aspetos, nomeadamente na “abundância e benefícios” que se recebe do contacto com o outro, e reforçou a “interdependência uns dos outros”.

“Não podemos perder o sentido histórico, o Concílio Vaticano II que se atreveu a colocar em agenda o diálogo intercultural e interreligioso, trazendo as preocupações de João XXIII, de conectar a Igreja ao mundo, sinto que estava longe do mundo”, referiu a investigadora espanhola, também citada pela Ecclesia.

Na sexta-feira, na abertura dos trabalhos, o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa disse que o Congresso Missionário 2022, com o tema “Fraternidade sem Fronteiras”, assume as “preocupações do Papa” sobre o “futuro da humanidade. “O Papa veio saudar este congresso, iniciativa que se reveste nas preocupações de uma grande importância, é isso que está em causa: a realização de um debate inter-religioso fundamental para o futuro da humanidade”, afirmou José Ornelas.

Também na abertura, em declarações aos jornalistas, o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, sublinhou que o primeiro apoio a dar às religiões é “garantir a máxima liberdade para o seu exercício”, acrescentando ser um fator “absolutamente adquirido em Portugal”.

“Portugal é um dos países mais bem cotados no mundo, no que diz respeito à liberdade religiosa, que é absoluta em Portugal, no reconhecimento social da importância das religiões e ao favorecimento do diálogo entre religiões”, destacou.

As Congregações Missionárias, as Obras Missionárias Pontifícias – Portugal e a Conferência Episcopal Portuguesa promoveram, sexta-feira e sábado, o congresso “Fraternidade sem fronteiras”, que decorreu no auditório Cardeal Medeiros, da Católica em Lisboa.


Ninguém Nasce Cristão

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
PAPA FRANCISCO
PARA O DIA MUNDIAL DAS MISSÕES DE 2022

[23 de outubro de 2022]

«Sereis minhas testemunhas» (At 1, 8)

(Segunda parte)

2. «Até aos confins do mundo» – A atualidade perene duma missão de evangelização universal

Ao exortar os discípulos a serem as suas testemunhas, o Senhor ressuscitado anuncia aonde são enviados: «Em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo» (At 1, 8). Aqui emerge muito claramente o caráter universal da missão dos discípulos. Coloca-se em destaque o movimento geográfico «centrífugo», quase em círculos concêntricos, desde Jerusalém – considerada pela tradição judaica como centro do mundo – à Judeia e Samaria, e até aos extremos «confins do mundo». Não são enviados para fazer proselitismo, mas para anunciar; o cristão não faz proselitismo. Os Atos dos Apóstolos narram-nos este movimento missionário: o mesmo dá-nos uma imagem muito bela da Igreja «em saída» para cumprir a sua vocação de testemunhar Cristo Senhor, orientada pela Providência divina através das circunstâncias concretas da vida. Com efeito, os primeiros cristãos foram perseguidos em Jerusalém e, por isso, dispersaram-se pela Judeia e a Samaria, testemunhando Cristo por toda a parte (cf. At 8, 1.4).

Algo semelhante acontece ainda no nosso tempo. Por causa de perseguições religiosas e situações de guerra e violência, muitos cristãos veem-se constrangidos a fugir da sua terra para outros países. Estamos agradecidos a estes irmãos e irmãs que não se fecham na tribulação, mas testemunham Cristo e o amor de Deus nos países que os acolhem. A isto mesmo os exortava São Paulo VI, ao considerar a «responsabilidade que se origina para os migrantes nos países que os recebem» (Evangelii nuntiandi, 21). Com efeito, experimentamos cada vez mais como a presença dos fiéis de várias nacionalidades enriquece o rosto das paróquias, tornando-as mais universais, mais católicas. Consequentemente, o cuidado pastoral dos migrantes é uma atividade missionária que não deve ser descurada, pois poderá ajudar também os fiéis locais a redescobrir a alegria da fé cristã que receberam.

A indicação «até aos confins do mundo» deverá interpelar os discípulos de Jesus de cada tempo, impelindo-os sempre a ir mais além dos lugares habituais para levar o testemunho d’Ele. Hoje, apesar de todas as facilidades resultantes dos progressos modernos, ainda existem áreas geográficas aonde não chegaram os missionários testemunhas de Cristo com a Boa Nova do seu amor. Por outro lado, não existe qualquer realidade humana que seja alheia à atenção dos discípulos de Cristo, na sua missão. A Igreja de Cristo sempre esteve, está e estará «em saída» rumo aos novos horizontes geográficos, sociais, existenciais, rumo aos lugares e situações humanos «de confim», para dar testemunho de Cristo e do seu amor a todos os homens e mulheres de cada povo, cultura, estado social. Neste sentido, a missão será sempre também missio ad gentes, como nos ensinou o Concílio Vaticano II (veja-se, por exemplo, o Decreto Ad Gentes, sobre a atividade missionária da Igreja, 07/XII/1965), porque a Igreja terá sempre de ir mais longe, mais além das próprias fronteiras, para testemunhar a todos o amor de Cristo. A propósito, quero lembrar e agradecer aos inúmeros missionários que gastaram a vida para «ir mais além», encarnando a caridade de Cristo por tantos irmãos e irmãs que encontraram.

3. «Recebereis a força do Espírito Santo – Deixar-se sempre fortalecer e guiar pelo Espírito

Ao anunciar aos discípulos a missão de serem suas testemunhas, Cristo ressuscitado prometeu também a graça para uma tão grande responsabilidade: «Recebereis a força do Espírito Santo e sereis minhas testemunhas» (At 1, 8). Com efeito, segundo a narração dos Atos, foi precisamente a seguir à descida do Espírito Santo sobre os discípulos de Jesus que teve lugar a primeira ação de testemunhar Cristo, morto e ressuscitado, com um anúncio querigmático: o chamado discurso missionário de São Pedro aos habitantes de Jerusalém. Assim começa a era da evangelização do mundo por parte dos discípulos de Jesus, que antes apareciam fracos, medrosos, fechados. O Espírito Santo fortaleceu-os, deu-lhes coragem e sabedoria para testemunhar Cristo diante de todos.

Como «ninguém pode dizer: “Jesus é Senhor” senão pelo Espírito Santo» (1 Cor 12, 3), também nenhum cristão poderá dar testemunho pleno e genuíno de Cristo Senhor sem a inspiração e a ajuda do Espírito. Por isso cada discípulo missionário de Cristo é chamado a reconhecer a importância fundamental da ação do Espírito, a viver com Ele no dia a dia e a receber constantemente força e inspiração d'Ele. Mais, precisamente quando nos sentirmos cansados, desmotivados, perdidos, lembremo-nos de recorrer ao Espírito Santo na oração (esta – permiti-me destacá-lo mais uma vez – tem um papel fundamental na vida missionária), para nos deixarmos restaurar e fortalecer por Ele, fonte divina inesgotável de novas energias e da alegria de partilhar com os outros a vida de Cristo. «Receber a alegria do Espírito é uma graça; e é a única força que podemos ter para pregar o Evangelho, confessar a fé no Senhor» (Francisco, Mensagem às Pontifícias Obras Missionárias, 21/V/2020). Assim, o Espírito é o verdadeiro protagonista da missão: é Ele que dá a palavra certa no momento justo e sob a devida forma.

É à luz da ação do Espírito Santo que queremos ler também os aniversários missionários deste 2022. A instituição da Sacra Congregação de Propaganda Fide, em 1622, foi motivada pelo desejo de promover o mandato missionário nos novos territórios. Uma intuição providencial! A Congregação revelou-se crucial para tornar a missão evangelizadora da Igreja verdadeiramente tal, isto é, independente das ingerências dos poderes do mundo, a fim de constituir aquelas Igrejas locais que hoje mostram tanto vigor. Esperamos que, à semelhança dos últimos quatro séculos, a Congregação, com a luz e a força do Espírito, continue e intensifique o seu trabalho de coordenar, organizar e animar as atividades missionárias da Igreja.

O mesmo Espírito, que guia a Igreja universal, inspira também homens e mulheres simples para missões extraordinárias. E foi assim que uma jovem francesa, Pauline Jaricot, há exatamente 200 anos fundou a Associação para a Propagação da Fé; celebra-se a sua beatificação neste ano jubilar. Embora em condições precárias, ela acolheu a inspiração de Deus para pôr em movimento uma rede de oração e coleta para os missionários, de modo que os fiéis pudessem participar ativamente na missão «até aos confins do mundo». Desta ideia genial, nasceu o Dia Mundial das Missões, que celebramos todos os anos, e cuja coleta em todas as comunidades se destina ao Fundo universal com que o Papa sustenta a atividade missionária.

Neste contexto, recordo também o Bispo francês Charles de Forbin-Janson, que iniciou a Obra da Santa Infância para promover a missão entre as crianças sob o lema «As crianças evangelizam as crianças, as crianças rezam pelas crianças, as crianças ajudam as crianças de todo o mundo»; e lembro ainda a senhora Jeanne Bigard, que deu vida à Obra de São Pedro Apóstolo, para apoio dos seminaristas e sacerdotes em terras de missão. Estas três obras missionárias foram reconhecidas como «pontifícias», precisamente há cem anos. E foi também sob a inspiração e guia do Espírito Santo que o Beato Paolo Manna, nascido há 150 anos, fundou a atual Pontifícia União Missionária a fim de sensibilizar e animar para a missão os sacerdotes, os religiosos e as religiosas e todo o povo de Deus. Desta última Obra, fez parte o próprio Paulo VI, que lhe confirmou o reconhecimento pontifício. Menciono estas quatro Obras Missionárias Pontifícias pelos seus grandes méritos históricos e também para vos convidar a alegrar-vos com elas, neste ano especial, pelas atividades desenvolvidas em apoio da missão evangelizadora na Igreja universal e nas Igrejas locais. Espero que as Igrejas locais possam encontrar nestas Obras um instrumento seguro para alimentar o espírito missionário no Povo de Deus.

Queridos irmãos e irmãs, continuo a sonhar com uma Igreja toda missionária e uma nova estação da ação missionária das comunidades cristãs. E repito o desejo de Moisés para o povo de Deus em caminho: «Quem dera que todo o povo do Senhor profetizasse» (Nm 11, 29). Sim, oxalá todos nós sejamos na Igreja o que já somos em virtude do Batismo: profetas, testemunhas, missionários do Senhor! Com a força do Espírito Santo e até aos extremos confins da terra. Maria, Rainha das Missões, rogai por nós!

Roma, São João de Latrão, na Solenidade da Epifania do Senhor, 6 de janeiro de 2022.


Ninguém Nasce Cristão

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE
PAPA FRANCISCO
PARA O DIA MUNDIAL DAS MISSÕES DE 2022

[23 de outubro de 2022]

«Sereis minhas testemunhas» (At 1, 8)

(Primeira parte)

Queridos irmãos e irmãs!

Estas palavras encontram-se no último colóquio de Jesus ressuscitado com os seus discípulos, antes de subir ao Céu, como se descreve nos Atos dos Apóstolos: «Recebereis a força do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo» (1, 8). E constituem também o tema do Dia Mundial das Missões de 2022, que, como sempre, nos ajuda a viver o facto de a Igreja ser, por sua natureza, missionária. Neste ano, o citado Dia proporciona-nos a ocasião de comemorar algumas efemérides relevantes para a vida e missão da Igreja: a fundação, há 400 anos, da Congregação de Propaganda Fide – hoje designada Congregação para a Evangelização dos Povos – e, há 200 anos, da «Obra da Propagação da Fé; esta, juntamente com a Obra da Santa Infância e a Obra de São Pedro Apóstolo, há 100 anos foram reconhecidas como «Pontifícias».

Detenhamo-nos nestas três expressões-chave que resumem os três alicerces da vida e da missão dos discípulos: «Sereis minhas testemunhas», «até aos confins do mundo» e «recebereis a força do Espírito Santo».

1. «Sereis minhas testemunhas» – A chamada de todos os cristãos a testemunhar Cristo

É o ponto central, o coração do ensinamento de Jesus aos discípulos em ordem à sua missão no mundo. Todos os discípulos serão testemunhas de Jesus, graças ao Espírito Santo que vão receber: será a graça a constituí-los como tais, por todo o lado aonde forem, onde quer que estejam. Tal como Cristo é o primeiro enviado, ou seja, missionário do Pai (cf. Jo 20, 21) e, enquanto tal, a sua «Testemunha fiel» (Ap 1, 5), assim também todo o cristão é chamado a ser missionário e testemunha de Cristo. E a Igreja, comunidade dos discípulos de Cristo, não tem outra missão senão a de evangelizar o mundo, dando testemunho de Cristo. A identidade da Igreja é evangelizar.

Uma releitura de conjunto mais aprofundada esclarece-nos alguns aspetos sempre atuais da missão confiada por Cristo aos discípulos: «Sereis minhas testemunhas». A forma plural destaca o caráter comunitário-eclesial da chamada missionária dos discípulos. Todo o batizado é chamado à missão na Igreja e por mandato da Igreja: por isso a missão realiza-se em conjunto, não individualmente: em comunhão com a comunidade eclesial e não por iniciativa própria. E ainda que alguém, numa situação muito particular, leve avante a missão evangelizadora sozinho, realiza-a e deve realizá-la sempre em comunhão com a Igreja que o enviou. Como ensina São Paulo VI, na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi (um documento de que muito gosto), «evangelizar não é, para quem quer que seja, um ato individual e isolado, mas profundamente eclesial. Assim, quando o mais obscuro dos pregadores, dos catequistas ou dos pastores, no rincão mais remoto, prega o Evangelho, reúne a sua pequena comunidade ou administra um Sacramento, mesmo sozinho, ele perfaz um ato de Igreja e o seu gesto está certamente conexo, por relações institucionais, como também por vínculos invisíveis e por raízes recônditas da ordem da graça, à atividade evangelizadora de toda a Igreja» (n.º 60). Com efeito, não foi por acaso que o Senhor Jesus mandou os seus discípulos em missão dois a dois; o testemunho prestado pelos cristãos a Cristo tem caráter sobretudo comunitário. Daí a importância essencial da presença duma comunidade, mesmo pequena, na realização da missão.

Em segundo lugar, é pedido aos discípulos para construírem a sua vida pessoal em chave de missão: são enviados por Jesus ao mundo não só para fazer a missão, mas também e sobretudo para viver a missão que lhes foi confiada; não só para dar testemunho, mas também e sobretudo para ser testemunhas de Cristo. Assim o diz, com palavras verdadeiramente comoventes, o apóstolo Paulo: «Trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifesta no nosso corpo» (2 Cor 4, 10). A essência da missão é testemunhar Cristo, isto é, a sua vida, paixão, morte e ressurreição por amor do Pai e da humanidade. Não foi por acaso que os Apóstolos foram procurar o substituto de Judas entre aqueles que tinham sido, como eles, testemunhas da ressurreição (cf. At 1, 22). É Cristo, e Cristo ressuscitado, Aquele que devemos testemunhar e cuja vida devemos partilhar. Os missionários de Cristo não são enviados para comunicar-se a si mesmos, mostrar as suas qualidades e capacidades persuasivas ou os seus dotes de gestão. Em vez disso, têm a honra sublime de oferecer Cristo, por palavras e ações, anunciando a todos a Boa Nova da sua salvação com alegria e ousadia, como os primeiros apóstolos.

Por isso, em última análise, a verdadeira testemunha é o «mártir», aquele que dá a vida por Cristo, retribuindo o dom que Ele nos fez de Si mesmo. «A primeira motivação para evangelizar é o amor que recebemos de Jesus, aquela experiência de sermos salvos por Ele que nos impele a amá-Lo cada vez mais» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 264).

Enfim, a propósito do testemunho cristão, permanece sempre válida esta observação de São Paulo VI: «O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres (…) ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas» (Evangelii nuntiandi, 41). Por conseguinte é fundamental, para a transmissão da fé, o testemunho de vida evangélica dos cristãos. Por outro lado, continua igualmente necessária a tarefa de anunciar a pessoa de Jesus e a sua mensagem. De facto, o mesmo Paulo VI continua mais adiante: «Sim! A pregação, a proclamação verbal duma mensagem, permanece sempre como algo indispensável. (...) A palavra continua a ser sempre atual, sobretudo quando ela for portadora da força divina. É por este motivo que permanece também com atualidade o axioma de São Paulo: “A fé vem da pregação” (Rom 10, 17). É a Palavra ouvida que leva a acreditar» (Ibid., 42).

Por isso, na evangelização, caminham juntos o exemplo de vida cristã e o anúncio de Cristo. Um serve ao outro. São os dois pulmões com que deve respirar cada comunidade para ser missionária. Este testemunho completo, coerente e jubiloso de Cristo será seguramente a força de atração para o crescimento da Igreja também no terceiro milénio. Assim, exorto todos a retomarem a coragem, a ousadia, aquela parresia dos primeiros cristãos, para testemunhar Cristo, com palavras e obras, em todos os ambientes da vida.


Ninguém Nasce Cristão

Aprender a viver, sem mais. É só um jogo

P. José Frazão Correia sj | 7 Setembro 2022 | in Ponto sj

“Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus”. Enquanto passava uns belíssimos dias de férias junto ao mar, tocou-me comentar, uma vez mais, esta passagem do Evangelho na Eucaristia. Não me é fácil aderir sem hesitação a esta exortação de Jesus. Na verdade, as crianças são exemplo de quê? Sim, bem sei que são o melhor do mundo. Porém, o que observo inúmeras vezes é que têm birras exasperantes, que podem impor-se, ora como ditadores implacáveis, ora como sofisticados sedutores, que são impiedosos quando outra criança pega no brinquedo que estava esquecido num canto da sala, que lhes bastam duas palavras, “não” e “meu”, para fazer girar o mundo inteiro à volta do seu próprio umbigo. Seriam diferentes as crianças do tempo de Jesus? Provavelmente não, mesmo se o reconhecimento social fosse radicalmente inferior àquele de que gozam hoje. Sabemo-lo pelos próprios discípulos que costumam exibir um sentido pragmático bem apurado. O que fazem às crianças quando se aproximam? Afastam-nas. Não haveria paciência para as suportar.

Mas o sentido das palavras de Jesus e a reprimenda que dá aos seus discípulos ficava por esclarecer. Teria, por isso, que voltar a olhar com mais atenção. A praia, onde há sempre tantas crianças, seria um ótimo laboratório de observação. O que notei, então? As crianças brincam. Brincam sempre. Imaginam, sonham, inventam. Vi, por exemplo, muitos castelos. Uns simples, só com uma torre e quatro ameias; outros, muito grandes, com mais de dez torreões e muralhas a toda a volta. Alguns tinham túneis. Quase todos tinham fosso com água. Não vi nenhum crocodilo. Mas é possível que também houvesse. Vi também crianças a embrulhar outros em areia – digo, em farinha – porque estavam na cozinha a fazer croquetes. Vi ainda um menino a levantar voo sobre um tapete voador. Não vi qualquer criança que caminhasse direitinha como os adultos que as acompanhavam – asseguro que estive atento. Ou saltitavam ou dançavam ou faziam movimentos com os seus corpos que não consegui perceber exatamente o que significavam.

Isto que vi foram só castelos de areia? Fantasias? Equívocos? Não me pareceu de todo. Ali, na praia, pareceu-me que, para aquelas crianças, era tudo muito real. Os castelos eram mesmo castelos. E elas eram mesmo construtores, reis, rainhas, croquetes, pessoas que voam, até deixarem de o ser e passarem a ser outra coisa. Notei que brincar é coisa séria e que a imaginação faz realidade.

Assim encontrei o jogo como chave para comentar essa nada evidente passagem do Evangelho. O jogo e o sonho. As crianças jogam e, jogando, sonham. Felizes, brincam e imaginam. As palavras de Jesus faziam-me mais sentido. “Tornar-se como as crianças que brincam e sonham”. Como confirmação, lembrei-me de Francisco de Assis, um crescido que joga, que sonha e que canta como as crianças. Não será uma dessas criancinhas a quem pertence o Reino, porque se fez como elas? Se pensarmos bem, não será um jogo chamar irmão e irmã ao sol, à lua, à água e até à morte? Imaginemos brincar aos irmãos, sem que haja senhores nem escravos, sem que uns tenham tudo e outros tenham nada. E se falássemos corretamente aos pássaros e ao lobo que ameaça a aldeia, não nos compreenderiam? Sim, é verdade, sabemos que no mundo sério das pessoas crescidas, daqueles que usam conceitos rigorosos e que sabem tudo sobre organizações não é assim. Mas tentemos imaginar. Porque não? É só um jogo. Lembrei-me também da pequena Teresa de Lisieux, alta na estatura do sonho. Imaginemos com ela que somos um corpo. Cada pessoa é um membro. No caso de Teresa, depois de muito pensar que membro poderia ser, descobriu que poderia ser o coração. Sim, ela seria o coração. Começou a brincar sendo coração. O que faz o coração? Ama. Não é fácil?

Sim, nós, adultos, sérios, práticos, rigorosos e comedidos, sabemos que a realidade não é assim, que tudo é bem mais complicado. Mas, porque não imaginar? Imaginemos. Na verdade, se pensarmos bem, não é o Evangelho um jogo? Não é Jesus como as crianças? Imaginemos que somos muito amados e que, surpreendidos continuamente por um amor imerecido, maior e permanente, também podemos amar, sem precisar de grandes porquês, como uma rosa que floresce só porque floresce. Não importa se não somos belos, inteligentes ou ricos. Imaginemos que as regras básicas deste jogo são assim: quem ganha perde e quem perde ganha; quem der a vida aos outros, salva-se, e quem tirar a vida dos outros para salvar a sua, perde-se. Impossível? Talvez. O próprio Jesus brincou com este fogo e sabemos que se queimou. Mas também sabemos muito bem quais são os frutos da lógica do mundo e das regras de jogo que determinam o curso das coisas. Porque não tentar imaginar, então, possibilidades inéditas e brincar com estas outras regras do Evangelho?

Entretanto, terminaram as férias e, a custo, deixei o mar e a praia – mesmo com vento norte, deixa muitas saudades. O eco deste Evangelho e a imagem das crianças que sonham e brincam na praia vieram comigo. Regressado a casa, fui à procura de um livro precioso de um grande teólogo alemão de origem italiana, que viveu entre os séculos XIX e XX, chamado Romano Guardini. O livro é O Espírito da Liturgia. Como se percebe, é sobre liturgia, mas tem tudo a ver com isto. Tem um capítulo sobre o jogo: “A liturgia considerada como um jogo”. Pode ler-se assim: «a alma tem de aprender a não buscar em toda a parte o fim útil, a não pretender a todo o custo encontrar um fim para todas as coisas, a esquecer ser demasiado prudente e “adulta”; terá de aprender a…viver, sem mais; a renunciar, pelo menos na oração, àquela febre de atividade acesa e fustigada pela preocupação de alcançar o fim; a desperdiçar o tempo ao serviço de Deus; a não contar, nem pesar, no jogo sagrado, cada palavra, cada pensamento, cada gesto, sempre com a pergunta em suspenso: para quê e para que fim? Precisa de se resignar a não querer sempre fazer alguma coisa, alcançar alguma coisa, cumprir alguma coisa de útil. Precisa de se resignar a executar, sob os olhos de Deus, em beleza, liberdade e santa alegria, o jogo da liturgia que o próprio Deus regulamentou. Afinal, o que será a eternidade senão a realização perfeita deste jogo?».

Se Guardini tem razão, é a viver, sem mais, que o jogo ensina. As crianças não precisam de aprender. Já sabem e nunca se cansam. Somos nós, adultos, que desaprendemos à medida que vamos aprendendo a querer “sempre fazer alguma coisa”, a “alcançar alguma coisa”, a “cumprir alguma coisa de útil”. Imaginemos, por exemplo, que somos aves do céu que não semeiam nem colhem e a quem o Pai bom alimenta ou que somos lírios do campo que não fiam nem tecem e a quem o mesmo Pai bom reveste de beleza. Não é possível para quem lida com coisas sérias e tem contas para pagar? Talvez. Mas tentemos imaginar. As crianças fazem-no. Para elas, imaginar e jogar aos pássaros do céu ou às flores do campo é real. Para Jesus também.


Ninguém Nasce Cristão

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO CAZAQUISTÃO
(13 - 15 DE SETEMBRO DE 2022)

SANTA MISSA NA FESTA DA EXALTAÇÃO DA SANTA CRUZ

HOMILIA DO SANTO PADRE

Praça da Expo (Nur-Sultan)
Quarta-feira, 14 de setembro de 2022

A cruz é um patíbulo de morte, mas, neste dia de festa, celebramos a exaltação da Cruz de Cristo. Porque, naquele madeiro, Jesus tomou sobre Si o nosso pecado e o mal do mundo, e derrotou-os com o seu amor. É por isso que fazemos festa hoje. A Palavra de Deus que escutamos narra-nos isso mesmo, contrapondo, por um lado, as serpentes que mordem e, por outro, a serpente que salva. Detenhamo-nos sobre estas duas imagens.

Em primeiro lugar, as serpentes que mordem. Atacam o povo, que se deixou cair mais uma vez no pecado da murmuração. Murmurar contra Deus não significa apenas falar mal e lamentar-se d’Ele; quer dizer também, e mais profundamente, que, no coração dos israelitas, esmoreceu a confiança n’Ele, na sua promessa. Com efeito, o povo de Deus encontrava-se a caminhar no deserto rumo à Terra Prometida e sente-se dominado pelo cansaço, não suporta a viagem (cf. Nm 21, 4). Então desanima, perde a esperança e, a certa altura, é como se esquecesse a promessa do Senhor: aquelas pessoas já não têm a força de acreditar que é Ele quem guia o seu caminho para uma terra rica e fecunda.

Não é por acaso que o povo, tendo-se esgotado a confiança em Deus, acaba mordido por serpentes que matam. Eles lembram-se da primeira serpente de que fala a Bíblia no livro do Génesis: o tentador que envenena o coração do homem para o fazer duvidar de Deus. De facto, o diabo, precisamente sob a forma de serpente, enfeitiça Adão e Eva, gera neles a desconfiança convencendo-os de que Deus não é bom, antes é invejoso da sua liberdade e felicidade. E agora, no deserto, voltam as serpentes, «serpentes ardentes» (Nm 21, 6); isto é, volta o pecado das origens: os israelitas duvidam de Deus, não se fiam d’Ele, murmuram, rebelam-se contra Aquele que lhes deu a vida e, assim, vão ao encontro da morte. Eis aonde leva a desconfiança do coração!

Queridos irmãos e irmãs, esta primeira parte da narração pede para vermos atentamente os momentos da nossa história pessoal e comunitária nos quais veio a faltar a confiança no Senhor e entre nós. Quantas vezes estiolamos, desanimados e impacientes, nos nossos desertos, perdendo de vista a meta do caminho! Aqui, no Cazaquistão, também existe o deserto que, a par da paisagem esplêndida que nos oferece, fala-nos simultaneamente do cansaço, da aridez que às vezes trazemos no coração: são os momentos de cansaço e de prova, em que já não temos forças para olhar para cima, olhar para Deus; são as situações de vida pessoal, eclesial e social em que somos mordidos pela serpente da desconfiança, injetando em nós os venenos da desilusão e do desconsolo, do pessimismo e da resignação, fechando-nos no nosso eu, apagando o entusiasmo.

Mas, na história desta terra, não faltaram outras mordeduras dolorosas: penso nas serpentes ardentes da violência, da perseguição ateísta, penso naquele caminho por vezes conturbado durante o qual foi ameaçada a liberdade do povo e ferida a sua dignidade. Faz-nos bem guardar a recordação daquilo que sofremos: certas brumas, é preciso não as cancelar da memória; caso contrário, pode-se pensar que sejam água passada e que o caminho do bem esteja delineado para sempre. E não! A paz nunca está conquistada duma vez por todas; há de ser conquistada cada dia, como também a convivência entre etnias e tradições religiosas diversas, o desenvolvimento integral, a justiça social. E, para que o Cazaquistão cresça ainda mais «na fraternidade, no diálogo e na compreensão (...) para “lançar pontes” de cooperação solidária com os outros povos, nações e culturas» (S. João Paulo II, Discurso na cerimónia de boas-vindas, 22/IX/2001), há necessidade do empenho de todos. E ainda antes há necessidade dum renovado ato de confiança no Senhor: olhar para cima, olhar para Ele, aprender com o seu amor universal e crucificado.

Passamos assim à segunda imagem: a serpente que salva. Enquanto o povo vai morrendo por causa das serpentes ardentes, Deus escuta a oração de intercessão de Moisés e diz-lhe: «Faz para ti uma serpente abrasadora e coloca-a num poste. Sucederá que todo aquele que tiver sido mordido, se olhar para ela, ficará vivo» (Nm 21, 8). De facto, «quando alguém era mordido por uma serpente e olhava para a serpente de bronze, vivia» (21, 9). Poderíamos, porém, interrogar-nos: porque é que Deus, em vez de dar estas instruções laboriosas a Moisés, não destruiu simplesmente as serpentes venenosas? Este modo de proceder revela-nos o seu modo de agir perante o mal, o pecado e a difidência da humanidade. Então como agora, na grande batalha espiritual que habita a história até ao fim, Deus não aniquila as baixezas que o homem segue livremente: as serpentes venenosas não desaparecem, continuam a existir; estão à espreita, sempre podem morder. Que mudou então? Que faz Deus?

Jesus explica-o no Evangelho: «Assim como Moisés ergueu a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do Homem seja erguido ao alto, a fim de que todo o que n’Ele crê tenha a vida eterna» (Jo 3, 14-15). Eis aqui a viragem! Chegou entre nós a serpente que salva: Jesus, elevado no poste da cruz, não permite às serpentes venenosas, que nos assaltam, não lhes permite levar-nos à morte. Perante as nossas baixezas, Deus aponta-nos uma nova altura: se mantivermos o olhar voltado para Jesus, as mordeduras do mal já não nos podem dominar, porque Ele, na cruz, tomou sobre Si o veneno do pecado e da morte, e aniquilou a sua força destruidora. Aqui temos o que fez o Pai perante a propagação do mal no mundo; deu-nos Jesus, que Se aproximou de nós como nunca poderíamos ter imaginado: «Aquele que não havia conhecido o pecado, Deus O fez pecado por nós» (2 Cor 5, 21). Tal é a grandeza infinita da misericórdia divina: Jesus que Se «fez pecado» em nosso favor, Jesus que na cruz – poderíamos dizer – «Se fez serpente» a fim de que, olhando para Ele, possamos resistir às mordeduras venenosas das serpentes malignas que nos assaltam.

Irmãos e irmãs, esta é a estrada, a estrada da nossa salvação, do nosso renascimento e ressurreição: olhar para Jesus crucificado. Daquela altura, podemos ver de maneira nova a nossa vida e a história dos nossos povos. Porque, a partir da Cruz de Cristo, aprendemos o amor, não o ódio; aprendemos a compaixão, não a indiferença; aprendemos o perdão, não a vingança. Os braços abertos de Jesus são o abraço de ternura com que Deus nos quer acolher. E mostram-nos a fraternidade que somos chamados a viver entre nós e com todos. Indicam-nos o caminho, o caminho cristão: não o da imposição e constrição, da força e da exuberância; nunca o que levanta a cruz de Cristo contra outros irmãos e irmãs por quem Ele deu a vida! É outro o caminho de Jesus, o caminho da salvação: é o caminho do amor humilde, gratuito e universal, sem «se» nem «mas».

Sim, porque, no madeiro da cruz, Cristo tirou o veneno à serpente do mal, e ser cristão significa viver sem venenos: não nos mordermos entre nós, não murmurar, não acusar, não criticar os outros, não disseminar as obras do mal, não poluir o mundo com o pecado e a desconfiança que vem do Maligno. Irmãos e irmãs, renascemos do lado aberto de Jesus na cruz: não haja em nós qualquer veneno de morte (cf. Sab 1, 14). Pelo contrário, rezemos para que, pela graça de Deus, possamos tornar-nos cada vez mais cristãos: testemunhas alegres de vida nova, de amor, de paz.


Agradecimento do Santo Padre no final da Eucaristia

Obrigado, D. Tomash Peta, pelas suas palavras! Obrigado por todo o esforço feito para preparar esta Celebração e a minha visita. A propósito, desejo renovar a minha cordial gratidão às Autoridades civis e religiosas do país. Saúdo a todos vós, irmãos e irmãs, em particular aqueles que vieram doutros países da Ásia central e dos lugares mais distantes desta terra infinda. Abençoo de coração os idosos e os doentes, as crianças e os jovens.

Hoje, festa da Exaltação da Santa Cruz, sentimo-nos espiritualmente unidos ao Santuário nacional da Rainha da Paz em Ozyornoje. D. Tomash lembrou que lá se encontra uma grande cruz na qual, entre outras coisas, está escrito: «Ao povo do Cazaquistão, gratidão» e «aos homens, paz». A gratidão ao Senhor pelo santo povo de Deus, que vive neste grande país, junta-se à gratidão pelo seu empenho na promoção do diálogo, e transforma-se numa imploração de paz; paz de que está sequioso o nosso mundo.

Penso em tantos lugares martirizados pela guerra, sobretudo na querida Ucrânia. Não nos habituemos à guerra, não nos resignemos à sua inevitabilidade. Socorramos quem sofre e insistamos para que se tente verdadeiramente alcançar a paz. Que mais terá ainda de acontecer? Quantos mortos teremos ainda de contar antes de as contraposições cederem o passo ao diálogo para bem das pessoas, dos povos e da humanidade? A única saída é a paz, e a única estrada para se chegar lá é o diálogo. Soube com preocupação que, nestas horas, surgiram novos focos de tensão na região do Cáucaso. Continuemos a rezar para que, também nestes territórios, o confronto pacífico e a concórdia prevaleçam sobre as disputas. Continuemos a rezar para que o mundo aprenda a construir a paz, inclusive limitando a corrida aos armamentos e convertendo os enormes gastos de guerra em apoio concreto às populações. Obrigado a todos aqueles que acreditam nisto! Obrigado a vós e a quantos são mensageiros de paz e de unidade!


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 11 de setembro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da Liturgia de hoje apresenta-nos as três parábolas da misericórdia (cf. Lc 15, 4-32); chamam-se assim porque mostram o coração misericordioso de Deus. Jesus narra-as em resposta às murmurações dos fariseus e dos escribas, que dizem: «Este acolhe os pecadores e come com eles» (v. 2). Escandalizavam-se porque Jesus estava entre os pecadores. Se para eles isto é religiosamente escandaloso, Jesus, acolhendo os pecadores e comendo com eles, revela-nos que Deus é exatamente assim: Deus não exclui ninguém, deseja todos no seu banquete, porque Ele ama todos como filhos, todos, sem excluir ninguém, todos. As três parábolas, então, resumem o coração do Evangelho: Deus é Pai e vem procurar-nos cada vez que nos perdemos.

Na verdade, os protagonistas das parábolas, representando Deus, são um pastor que procura a ovelha perdida, uma mulher que encontra a moeda perdida, e o pai do filho pródigo. Reflitamos sobre um aspeto comum a estes três protagonistas. No fundo, os três têm um aspeto comum, que poderíamos definir como: a inquietação pela falta - faltam as ovelhas, falta a moeda, falta o filho -; a inquietação pela falta, os três nestas parábolas estão inquietos porque lhes falta algo. Afinal, os três, se fizessem alguns cálculos, poderiam estar tranquilos: ao pastor falta uma ovelha, mas tem outras noventa e nove - “Que se perca…”; a mulher, uma moeda, mas tem outras nove; e também o Pai tem outro filho, obediente, a quem se dedicar: por que pensar naquele que partiu para uma vida dissoluta? Em vez disso, nos seus corações - o do pastor, o da mulher e o do pai - há a preocupação pelo que falta: a ovelha, a moeda, o filho que foi embora. Quem ama preocupa-se por quem falta, sente nostalgia de quem está ausente, procura aquele que se perdeu, espera por aquele que se afastou. Pois deseja que ninguém se perca.

Irmãos e irmãs, Deus é assim: Ele não está “tranquilo” se nos afastarmos d’Ele, sofre, freme no íntimo; e põe-se em movimento para ir à nossa procura, até nos reconduzir aos seus braços. O Senhor não calcula as perdas e os riscos, tem um coração de pai e de mãe, e sofre pela falta dos filhos amados. “Mas por que sofre se este filho é um desventurado, foi embora?”. Sofre, sofre. Deus sofre pela nossa distância, e quando nos desviamos, espera o nosso regresso. Lembremo-nos: Deus está sempre à nossa espera de braços abertos, seja qual for a situação na vida em que estamos perdidos. Como diz um salmo, Ele não dorme, Ele vela sempre sobre nós (cf. 121, 4-5).

Olhemos agora para nós mesmos e perguntemo-nos: imitamos o Senhor nisto, será que temos a inquietação da falta? Sentimos nostalgia por aqueles que estão ausentes, por aqueles que se afastaram da vida cristã? Carregamos esta inquietação interior, ou permanecemos serenos e sem perturbações entre nós? Por outras palavras, quem falta nas nossas comunidades, será que nos falta realmente, ou estamos a fingir e não nos comovemos no coração? Quem falta na minha vida, falta concretamente? Ou estamos bem entre nós, tranquilos e felizes nos nossos grupos - “frequento um grupo apostólico muito bom...” -, sem nutrir compaixão por aqueles que estão longe? Não se trata apenas de estarmos “abertos aos outros”, é Evangelho! O pastor da parábola não disse: “Já tenho noventa e nove ovelhas, quem me faz ir à procura da perdida e desperdiçar o meu tempo?”. Em vez disso, ele foi. Reflitamos então sobre as nossas relações: rezo por quem não crê, por quem está distante, por quem está amargurado? Atraímos os distantes através do estilo de Deus, que é a proximidade, a compaixão e a ternura? O Pai pede-nos que estejamos atentos aos filhos dos quais sente falta. Pensemos numa pessoa que conhecemos, que nos está próxima, e que talvez nunca tenha ouvido ninguém dizer-lhe: “Sabes? Tu és importante para Deus”. “Mas eu estou numa situação irregular, fiz esta coisa má, e outra ainda ...” – “És importante para Deus”, dizei-o, “não O procuras, mas Ele procura-te”.

Deixemo-nos inquietar – que sejamos homens e mulheres de coração inquieto – deixemo-nos inquietar com estas perguntas e rezemos a Nossa Senhora, mãe que nunca se cansa de nos procurar e de cuidar de nós, seus filhos.


Ninguém Nasce Cristão

Humildade e misericórdia: vamos com Francisco?

ESPECIAL PAPA FRANCISCO

Rui Saraiva | 31 Agosto 2022 | in Ponto sj

No dia 27 de agosto o Papa Francisco reuniu em Roma um Consistório para a criação de 20 novos cardeais. Foi, assim, alargado o horizonte geográfico do Colégio Cardinalício que conta agora com 226 cardeais dos quais 132 são eleitores num próximo conclave. Passam a ser 90 os países representados.

Caminhando no perdão

No dia seguinte à criação dos novos cardeais, ganhou relevo mediático a visita de Francisco a Áquila. Uma cidade do centro de Itália que ainda tem bem presentes as marcas do sismo de 2009. Francisco esteve presente para o início de mais uma edição do “Perdão Celestino”. Com a abertura da Porta Santa Basílica de Collemaggio recorda-se a promulgação da “Perdonanza” (Perdão).

Reza a história, segundo recorda a Agência Ecclesia, que o Papa Celestino V após a sua eleição pontifícia, a 29 de agosto de 1294, chegou montado num burro à cidade de Áquila, levado por Carlos II de Anjou, rei de Nápoles. E aí decidiu que todos os que visitassem a Basílica de Collemaggio, nesta cidade, entre os dias 28 e 29 de agosto, receberiam a remissão dos pecados.

Na homilia da Missa a que presidiu na Basílica dedicada a Santa Maria, Francisco refletiu sobre o perdão. Insistiu na importância de que cada um de nós deve reconhecer a sua própria miséria. Ou seja, cada pessoa deve confrontar-se consigo mesmo e passar pela experiência do perdão.

Destacou a figura de Celestino V revelando a sua humildade. “A humildade não consiste na desvalorização de si mesmo, mas naquele realismo saudável que nos faz reconhecer as nossas potencialidades e também as nossas misérias” – disse o Papa.

Francisco elogiou o Papa Celestino V e a sua atitude de renunciar ao pontificado. Apresentou-o como um exemplo de humildade para toda a Igreja. “Nele admiramos uma Igreja livre da lógica mundana e testemunha, plenamente, daquele nome de Deus que é a Misericórdia” – frisou o Papa.

O Santo Padre disse ainda na sua homilia que “o cristão sabe que a sua vida não é uma carreira à maneira deste mundo, mas uma carreira à maneira de Cristo, que dirá de si mesmo que veio para servir e não para ser servido”.

A homilia concluiu-se com uma oração a Maria: “Que a sua intercessão materna obtenha o perdão e a paz para o mundo inteiro, a consciência da própria miséria e a beleza da misericórdia” – pediu o Papa.
Nos dias seguintes, 29 e 30 de agosto, o Papa esteve reunido com todos os cardeais. Estiveram presentes 197 purpurados para uma reflexão aprofundada sobre a nova Constituição Apostólica para a Cúria Romana. “Praedicate Evangelium”, “Pregai o Evangelho” é o nome do documento recentemente publicado e que entrou em vigor no passado dia 5 de junho.

Em processo sinodal

Desde o dia da sua eleição que a inspiração sinodal de fazer “caminho conjunto” tem marcado o pontificado comunicade Francisco. E no próximo ano de 2023 terá lugar em Roma um Sínodo dos Bispos precisamente sobre a sinodalidade. Ou seja, uma reflexão profunda sobre o modo como vivem as paróquias, as comunidades, as dioceses e todos os grupos e realidades eclesiais e como anunciam Jesus no mundo.
“Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão” é o tema deste grande encontro que foi proposto pelo Papa em dinâmica trienal (2021-2023) num amplo processo sinodal de consulta em três fases: diocesana, continental e universal.

O cardeal Jean-Claude Hollerich, relator-geral da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, declarou recentemente no Vaticano na conferência de imprensa de apresentação da etapa continental estar “convencido de que estamos perante um diálogo eclesial sem precedentes na história da Igreja”.

O Sínodo entrou, assim, numa nova fase. Recolhidos os relatórios diocesanos neste mês de agosto, frutos de uma ampla participação do povo de Deus, arranca agora a fase continental. Para esta nova etapa será elaborada uma síntese dos contributos diocesanos que estará pronta em outubro.

O objetivo desta fase é o de aprofundar o discernimento de tudo aquilo que emergiu na fase de escuta local e nacional. Os encontros continentais terão lugar entre os meses de janeiro e março de 2023.

Um retrato português

A Conferência Episcopal Portuguesa publicou na passada semana a síntese sinodal nacional que enviou para o Vaticano. No texto, os católicos portugueses sublinham a sua visão de uma Igreja “hierárquica, clerical, corporativa, pouco transparente, estagnada e resistente à mudança”.

“Uma Igreja que apresenta uma atitude algo soberba e que se mostra pouco disponível para a escuta, marginalizando os anseios e as expectativas dos membros da sua comunidade, atribuindo-lhes, demasiadas vezes, um papel de recetores passivos” – pode-se ler no documento.

No relatório agora tornado público é assinalada uma situação de declínio da Igreja em Portugal, com pouca atenção ao papel da mulher e “pouco aberta à atualização dos rituais e da linguagem litúrgica”.

Segundo a síntese sinodal na Igreja existe pouca transparência nos “processos de tomada de decisão” e na “escolha de lideranças”. Aponta também debilidades na formação dos presbíteros e problemas na catequese sobre a qual são assinalados “vícios e desencontros que inviabilizam a evangelização”.

Não obstante estes e outros aspetos negativos, esta síntese salienta que a Igreja em Portugal “é tida globalmente como uma instituição credível, presente nos locais onde ninguém ousa ir e solidária com os mais desfavorecidos, a quem presta assistência, mesmo quando falham todas as outras respostas sociais”.
“De uma forma geral, salienta-se a capacidade de acolhimento da Igreja Católica, sobretudo no apoio à pobreza” – revela o texto.

Este retrato português destaca ser “urgente que a Igreja concretize os caminhos apontados pelo Concilio Vaticano II” regressando “à essência e à alegria do Evangelho”.
O relatório revela ainda que a Igreja “comunica de forma deficiente para dentro e para fora”. É uma Igreja que exercita uma atitude “mais informativa do que comunicativa”, “reagindo mais do que propondo” – pode-se ler.

A oportunidade da comunicação

Esta observação à atuação da Igreja no âmbito da sua comunicação é um tema de especial atualidade devido à recente crise mediática no âmbito de notícias publicadas sobre eventuais encobrimentos de casos de abusos sexuais de menores ocorridos na Igreja em Portugal.

Como não existe uma estrutura organizada a nível nacional, a tendência é para agir em modo de comunicação reativa. Uma tipologia que gera descoordenação e problemas de perceção.

Quando a comunicação não é objeto de um trabalho de análise estratégica que alargue a abordagem, incorporando diferentes visões, num esforço coletivo para a construção de mensagens, corremos o risco de nem sequer produzirmos informação, quanto mais realizar comunicação.

Neste caso concreto, a intervenção nesta semana do presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, D. José Ornelas, no início da 10ª edição do Simpósio do Clero, foi assertiva ao reafirmar que “não pode haver tolerância nem encobrimento” de casos de abusos sexuais.

O bispo de Leiria-Fátima manifestou a sua confiança no trabalho que está a ser desenvolvido pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa.

Neste caso como noutros verificamos que a comunicação não é um problema, mas uma oportunidade. Uma oportunidade de evangelização. Tal como refere esta semana no portal da Rádio Vaticano/Vatican News, o padre Federico Lombardi dizendo que “a comunicação para uma pessoa que vive na fé e na Igreja é uma participação na missão de evangelizar”.

O sacerdote jesuíta que nesta mesma semana completa 80 anos de vida e 50 anos de sacerdócio, foi diretor da Rádio Vaticano ao mesmo tempo que era Diretor da Sala de Imprensa da Santa Sé e revela nesta entrevista que trabalhar na comunicação da Igreja é colaborar “na própria natureza da Igreja e na relação entre Deus e a humanidade”.

Comunicar é, portanto, não só uma oportunidade, como uma função à qual deve ser dada uma atenção primordial. Na sua conceção e organização. Para que seja possível realizar uma comunicação proactiva apoiando a missão evangelizadora da Igreja. Gerando processos de comunicação e vínculos de confiança.

A um ano de um Sínodo dos Bispos que convida ao discernimento, o Papa indica a primeira mudança para superar crises: a atitude. Com humildade e misericórdia. Porque não há comunhão, participação ou missão sem disponibilidade para ouvir. Comecemos pela escuta e pela comunicação.


Ninguém Nasce Cristão

Férias com Deus – o último lugar

ESPECIAL FÉRIAS COM DEUS - JOVENS A CAMINHO DA JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

Evangelho de domingo, 28 de agosto

Lc, 14,1.7 – 14.

“Naquele tempo, Jesus entrou, num sábado, em casa de um dos principais fariseus para tomar uma refeição. Todos O observavam. Ao notar como os convidados escolhiam os primeiros lugares, Jesus disse-lhes esta parábola: «Quando fores convidado para um banquete nupcial, não tomes o primeiro lugar. Pode acontecer que
tenha sido convidado alguém mais importante do que tu; então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer: ‘Dá o lugar a este’; e ficarás depois envergonhado, se tiveres de ocupar o último lugar. Por isso, quando fores convidado, vai sentar-te no último lugar; e quando vier aquele que te convidou, dirá: ‘Amigo, sobe mais para cima’; ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados. Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado». Jesus disse ainda a quem O tinha convidado: «Quando ofereceres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos nem os teus irmãos, nem os teus parentes nem os teus vizinhos ricos, não seja que eles por sua vez te convidem e assim serás retribuído. Mas quando ofereceres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás feliz por eles não terem com que retribuir-te: ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos.“

Para meditar

Buscamos, todos os dias, formas de saciar o nosso ego. Procuramos o prestígio, associamos o destaque ao sucesso: uma vida despreocupada, valorizada, invejada.

Ansiamos importância.

Vejo as férias em Deus como uma oportunidade para nos encontrarmos com Ele: Para discernir o quão suficientes (e únicos!) somos aos olhos de Deus.

Quando permitimos que Deus verdadeiramente nos fale, somos sensibilizados. É como se nos abalasse um terramoto: de simplicidade, de pequenez, de beleza. De ligeireza. Descobrir a humildade é descobrir que há ainda muito caminho a percorrer.

Conforta-nos saber que com todas nossas as fragilidades e lutas interiores, Deus quer convidar-nos para o Seu banquete.

E não, Deus não convida a minha faceta mais afortunada, dotada, justa e pia do meu ser, que lhe poderá em certa forma retribuir, dignificar, credibilizar: Deus convida aquilo que em mim é cego. Que chora. Que é pobre e faminto. Que está escondido e arrumado.

E não, não para me condenar ou humilhar, pois não quer nada de mim, senão eu próprio. Deus quer-me autêntico.

É este um dos grandes desafios: manter presente em nós qual o reino onde queremos ser destacados, que reino queremos servir.

 

Proposta de oração

(Neste tempo de oração, começo por pedir a Graça de me dar o tempo e espaço necessários para reconhecer aquele “Eu” que tantas vezes não queremos aceitar existir, mas que é esse mesmo que é “convidado para o banquete”.)

1. Aceito-me, com todas as minhas fraquezas e fortalezas? Agradeço os dons que recebi e peço força e coragem para viver com alegria as minhas cargas mais pesadas.

2. Encaro a vida com um olhar simples, despojado e ligeiro?

3. Na minha vida, ponho-me ao serviço dos mais necessitados? Porque sirvo, como sirvo e a Quem sirvo?

4. Realizo as minhas ações com olhar sobre o outro, ou sobre mim mesmo? (“e então serás feliz por eles não terem como retribuir-te”)

Termino pedindo a Deus a Luz e a Força necessárias para nunca esquecer que viver em simplicidade é experimentar a mais genuína felicidade.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 7 de agosto de 2022

Prezados irmãos e irmãs, bom dia!

No Evangelho da Liturgia de hoje, Jesus fala aos discípulos para os tranquilizar de qualquer medo e para os convidar à vigilância. São duas as exortações fundamentais que lhes dirige: a primeira é «Não tenhais medo, pequeno rebanho» (Lc 12, 32); a segunda é: «Estai prontos» (v. 35). “Não tenhais medo” e “estai prontos”. Trata-se de duas palavras-chave para vencer os receios que às vezes nos paralisam e para superar a tentação de uma vida passiva e adormecida. “Não tenhais medo” e “estai prontos”: meditemos sobre estes dois convites.

Não ter medo. Em primeiro lugar, Jesus encoraja os discípulos. Acaba de lhes falar sobre o cuidado amoroso e providente do Pai, que se preocupa com os lírios do campo e as aves do céu, e portanto ainda mais com os seus filhos. Assim, não devemos preocupar-nos, nem agitar-nos: a nossa história está firmemente nas mãos de Deus. Este convite de Jesus a não ter medo encoraja-nos. Com efeito, às vezes sentimo-nos presos num sentimento de desconfiança e angústia: é o medo de falhar, de não ser reconhecido e amado, o receio de não ser capaz de realizar os próprios projetos, de nunca ser feliz, e assim por diante. Então lutamos para procurar soluções, para encontrar algum espaço onde sobressair, para acumular bens e riquezas, para alcançar seguranças; e como acabamos? Acabamos por viver na ansiedade e na preocupação constante. Jesus, ao contrário, tranquiliza-nos: não tenhais medo! Confiai no Pai, que quer oferecer-vos tudo aquilo de que realmente tendes necessidade. Já vos ofereceu o seu Filho, o seu Reino, e acompanha-vos sempre com a sua providência, cuidando de vós todos os dias. Não tenhais medo: eis a certeza à qual o coração deve apegar-se! Não tenhais medo: um coração apegado a esta certeza. Não temais!

Mas saber que o Senhor vela sobre nós com amor não nos dá o direito de dormir, de se deixar levar pela preguiça! Pelo contrário, devemos permanecer acordados, vigilantes. Com efeito, amar significa estar atento ao outro, prestar atenção às suas necessidades, estar disposto a ouvir e a acolher, estar pronto.

A segunda palavra: «Estai prontos». É o segundo convite de hoje. É sabedoria cristã. Jesus repete este convite várias vezes, e hoje fá-lo através de três breves parábolas, centradas num senhor que, na primeira, regressa inesperadamente das bodas, na segunda, não quer ser surpreendido pelos ladrões, e na terceira, regressa de uma longa viagem. Em todas, a mensagem é a seguinte: é preciso permanecer acordado, não adormecer, ou seja, não se distrair, não ceder à preguiça interior, pois até em situações em que não o esperamos, o Senhor vem. Estar atento ao Senhor, não adormecer. É preciso permanecer acordado.

E no final da nossa vida pedir-nos-á que prestemos contas dos bens que nos confiou; portanto, estar vigilante significa também ser responsável, isto é, preservar e administrar esses bens com fidelidade. Recebemos muito: a vida, a fé, a família, as relações, o trabalho, mas também os lugares onde vivemos, a nossa cidade, a criação. Recebemos muito. Procuremos perguntar-nos: cuidamos desta herança que o Senhor nos deixou? Tutelamos a sua beleza ou usamos as coisas apenas para nós e para as nossas conveniências do momento? Devemos pensar um pouco sobre isto: somos guardiões do que nos foi concedido?

Irmãos e irmãs, caminhemos sem medo, na certeza de que o Senhor nos acompanha sempre. E mantenhamo-nos acordados, para não estarmos a dormir quando o Senhor passar. Santo Agostinho dizia: “Tenho medo que o Senhor passe e eu não o veja”; adormecer e não ver que o Senhor passa. Permanecei acordados! Que nos ajude a Virgem Maria, que acolheu a visita do Senhor e, com prontidão e generosidade, disse o seu “eis-me”.

 

MAIS DUAS NOTÍCIAS NA ECCLESIA

Cidade do Vaticano, 14 ago 2022 (Ecclesia) – O Papa rezou hoje por “misericórdia e piedade” para o povo da Ucrânia, evocando as consequências da guerra no país.

“A misericórdia é o caminho de salvação para cada um de nós e para todo o mundo. Peçamos ao Senhor uma misericórdia especial, misericórdia e piedade, para o martirizado povo ucraniano”, disse, após a recitação do ângelus, com milhares de peregrinos

Francisco evocou o ato de dedicação levado a cabo por São João Paulo II, há 20 anos, quando o Papa polaco consagrou o mundo no Santuário da Misericórdia Divina, Lagiewniki, na Polónia.

“Hoje, mais do que nunca, vemos o sentido deste gesto, que queremos renovar na oração e no testemunho de vida”, declarou.

A reflexão dominical de Francisco partiu de uma passagem do Evangelho segundo São Lucas, na qual Jesus afirma: “Vim lançar fogo sobre a terra e que desejo Eu, senão que já estivesse ateado!” (Lc 12,49).

“Jesus veio trazer o Evangelho ao mundo, ou seja, a boa notícia do amor de Deus por cada um de nós. Por isso nos diz que o Evangelho é como um fogo, porque se trata de uma mensagem que, quando irrompe na história, queima os velhos equilíbrios de viver, desafia a sair do individualismo, a superar o egoísmo, passar da escravidão do pecado e da morte para a nova vida do Ressuscitado”, explicou.

O Evangelho não deixa as coisas como estão, mas provoca a mudança e convida à conversão. Não oferece uma falsa paz intimista, mas acende uma inquietude que nos coloca em caminho, impele a abrir-nos a Deus e aos irmãos”.

O Papa convidou a superar uma “religiosidade reduzida a práticas exteriores” e a ideia de fé remetida para o “bem-estar individual”, que leva a “fugir dos desafios da vida e do compromisso na Igreja e na sociedade”.

“Nas nossas comunidades arde o fogo do Espírito, a paixão pela oração e pela caridade, a alegria da fé, ou arrastamo-nos no cansaço e no costume, com o rosto embotado e a lamentação nos lábios?”, questionou.

Cidade do Vaticano, 15 ago 2022 (Ecclesia) – O Papa afirmou hoje que a Virgem Maria é um símbolo do “serviço”, pedindo orações pela paz no mundo.

“Olhando para Ela na glória, compreendemos que o verdadeiro poder é o serviço e que reinar significa amar. E que este é o caminho para o céu”, disse Francisco, antes da oração do ângelus, perante os peregrinos reunidos na Praça de São Pedro.

Na solenidade da Assunção, o Papa realçou que a Virgem Maria profetizou que ter o primeiro lugar “não é o poder, o sucesso e o dinheiro, mas o serviço, a humildade e o amor”.

Francisco assinalou que cada um se pode perguntar como essa “inversão profética” anunciada por Maria toca a sua vida.

“Acredito que amar é reinar e servir é poder? Que a meta do meu viver é o Céu, o paraíso? Ou me preocupo somente com coisas terrenas, materiais? E ainda, observando os acontecimentos do mundo, deixo-me tomar pelo pessimismo ou, como a Virgem, sei perceber a obra de Deus que, com mansidão e pequenez, realiza grandes coisas?”, acrescentou, desde a janela do apartamento pontifício.

O Papa assinala que Maria hoje “canta a esperança e reacende a esperança” em cada um, e vê-se a meta do caminho: “Ela é a primeira criatura que com tudo de si, de corpo e alma, chega vitoriosa à meta do Céu”.

Francisco começou a sua intervenção a recordar, a partir do Evangelho de São Lucas, que Maria acolhe a bênção de Isabel – “palavras, cheias de fé, alegria e encanto, passaram a fazer parte da ‘Ave-maria’” – e respondeu, “presenteando”, com o ‘Magnificat’, que se pode definir como “o canto da esperança”, que contempla a obra de Deus em toda a história do seu povo.

Após a recitação da oração do ângelus, o pontífice exortou os peregrinos e fiéis quem têm essa possibilidade a visitar um santuário mariano, neste dia 15 de agosto, para venerar Maria.

Francisco destacou que, quem está em Roma e vai rezar à Basílica de Santa Maria Maior, diante do ícone da Virgem ‘Salus Populi Romani’, também encontra uma imagem da Rainha da Paz.

O Papa pediu que se continue a evocar a intercessão de Nossa Senhora para que “Deus dê a paz no mundo”, e incentivou a rezar “em particular pelo povo ucraniano”, depois de neste domingo também ter evocado as consequências da guerra no país do leste da Europa.

O Papa desejou uma “boa festa da Assunção” a quem estava na Praça de São Pedro, às pessoas que estão de férias e a quem não pode ter “um período de descanso”, lembrando ainda quem está sozinho e os doentes.

Francisco manifestou “gratidão” a quem garante os “serviços essenciais para a comunidade”.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro

Domingo, 10 de julho de 2022

Prezados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da Liturgia de hoje narra a parábola do bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37); todos a conhecemos. Como pano de fundo há a estrada que de Jerusalém desce até Jericó, ao longo da qual se encontra um homem espancado brutalmente e assaltado por ladrões. Um sacerdote que passa vê-o mas não se pára, vai além; assim como um levita, ou seja, um ministro do culto no templo. «Mas um samaritano», diz o Evangelho, «que estava a caminho, chegando àquele lugar, viu-o e teve compaixão dele» (v. 33). Não esqueçamos estas palavras: “teve compaixão dele”; é o que Deus sente cada vez que nos vê com um problema, num pecado, numa miséria: “teve compaixão dele”. O Evangelista deseja especificar que o Samaritano estava a caminho. Portanto, aquele Samaritano, embora tivesse os seus programas e se dirigisse para uma meta distante, não encontra desculpas e deixa-se interpelar, deixa-se interpelar, pelo que acontece ao longo do caminho. Pensemos: não nos ensina o Senhor a fazer exatamente isto? A olhar para longe, para a meta final, contudo prestando muita atenção aos passos que devemos dar, aqui e agora, para lá chegar.

É significativo que os primeiros cristãos se chamassem “discípulos da Via” (cf. At 9, 2), ou seja, do caminho. Com efeito, o crente é muito parecido com o Samaritano: como ele, está a caminho, é um viandante. Sabe que não é alguém que “chegou”, mas quer aprender todos os dias, seguindo o Senhor Jesus, que disse: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida» (Jo 14, 6). Eu sou o caminho: o discípulo de Cristo caminha seguindo-o, e assim torna-se um “discípulo do Caminho”. Segue o Senhor, que não é um sedentário, mas está sempre a caminho: ao longo da estrada encontra pessoas, cura doentes, visita aldeias e cidades. Assim agia o Senhor, sempre a caminho!

Por isso, o “discípulo do Caminho” - ou seja, nós cristãos - vê que a sua maneira de pensar e de agir muda gradualmente, conformando-se cada vez mais com a do Mestre. Seguindo os passos de Cristo, torna-se um viandante e aprende - como o Samaritano - a ver e a ter compaixão. Vê e tem compaixão. Em primeiro lugar, vê: abre os olhos para a realidade, não permanece egoisticamente fechado dentro dos próprios pensamentos. Ao contrário, o sacerdote e o levita veem o infeliz, mas é como se não o vissem, vão além, olham para o outro lado. O Evangelho educa-nos a ver: leva cada um de nós a compreender corretamente a realidade, superando dia após dia os preconceitos e os dogmatismos. Muitos crentes refugiam-se nos dogmatismos para se defenderem da realidade. E depois ensina-nos a seguir Jesus, porque seguir Jesus nos ensina a ter compaixão: a dar-nos conta dos outros, especialmente daqueles que sofrem, dos mais necessitados. E para agir como o Samaritano: não ir além, mas parar.

Diante desta parábola evangélica, pode acontecer que demos a culpa a outros ou a nós mesmos, apontando o dedo contra o próximo, comparando-o com o sacerdote e com o levita: “Mas este ou aquele vão além, não param!”, ou culpando-nos a nós próprios, enumeramos a nossa falta de atenção ao próximo. Mas gostaria de vos sugerir outro tipo de exercício. Não tanto o de nos culparmos a nós próprios, não; sem dúvida, devemos reconhecer quando fomos indiferentes e quando nos justificámos, mas não nos limitemos a isto. Devemos reconhecê-lo, é um erro, mas peçamos ao Senhor que nos faça sair da nossa indiferença egoísta e nos coloque no Caminho. Peçamos-lhe para ver e ter compaixão. É uma graça, devemos pedi-la ao Senhor: “Senhor, que eu veja, que eu tenha compaixão, como Tu me vês e tens compaixão de mim!”. É a prece que hoje vos sugiro: “Senhor, que eu veja, que eu tenha compaixão, como Tu me vês e tens compaixão de mim!”. Tenhamos compaixão daqueles que encontramos ao longo do caminho, sobretudo de quantos sofrem e estão em necessidade, para nos aproximarmos e fazer o que pudermos para ajudar.

Muitas vezes, quando me encontro com algum cristão ou cristã que vem falar de coisas espirituais, pergunto se dá esmola. “Sim”, responde-me - “E, diz-me, tocas a mão da pessoa a quem dás a moeda?”. “Não, não, lanço-a lá”. “E fitas os olhos daquela pessoa?”. “Não, não me passa pela cabeça”. Se deres esmola sem tocares na realidade, sem fitares os olhos da pessoa em necessidade, aquela esmola é para ti, não para ela. Pensemos nisto: “Toco as misérias, até as misérias que ajudo? Fito nos olhos as pessoas que sofrem, as pessoas que ajudo?”. Deixo-vos este pensamento: ver e ter compaixão!

Que a Virgem Maria nos acompanhe neste caminho de crescimento. Ela, que “nos indica o Caminho”, ou seja, Jesus, nos ajude também a tornar-nos cada vez mais “discípulos do Caminho”!


Depois do Angelus

Caros irmãos e irmãs!

Uno-me à dor do povo do Sri Lanka, que continua a sofrer os efeitos da instabilidade política e económica. Com os Bispos do país, renovo o meu apelo à paz e imploro a quantos têm autoridade que não ignorem o clamor dos pobres e as necessidades do povo.

Desejo dirigir um pensamento especial ao povo da Líbia, em particular aos jovens e a todos aqueles que sofrem devido aos graves problemas sociais e económicos do país. Exorto todos a procurar novamente soluções convincentes, com a ajuda da comunidade internacional, através do diálogo construtivo e da reconciliação nacional.

E renovo a minha proximidade ao povo ucraniano, que é diariamente atormentado por ataques brutais cujas consequências são sofridas pelas pessoas comuns. Rezo por todas as famílias, especialmente pelas vítimas, os feridos, os doentes; rezo pelos idosos e pelas crianças. Deus indique o caminho para pôr fim a esta guerra insensata!

Hoje celebra-se o Domingo do Mar. Recordemos todos os marinheiros, com estima e gratidão pelo seu precioso trabalho, bem como os capelães e voluntários da “Stella Maris”. Confio a Nossa Senhora os marinheiros bloqueados em regiões de guerra, para que possam regressar a casa.

(…)

E desejo bom domingo a todos! Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Ninguém Nasce Cristão

Diocese do Porto

Plano Diocesano de Pastoral 2022|2023

Abraça o presente!

Juntos por um caminho novo.

V. Propostas de ações pastorais

     5.1. No âmbito da sinodalidade

1. Instituir, recriar, reativar, renovar os conselhos paroquial, interparoquial, vicarial e diocesano de pastoral e as demais instâncias organizadas da corresponsabilidade pastoral.
2. Promover, no seio das comunidades, formas de escuta, de partilha, de discernimento, de programação e de avaliação pastorais, dando voz e vez a todos, privilegiando o trabalho em grupo e por pequenos grupos.
3. Promover a hospitalidade e a comunhão da missão, entre grupos e organismos paroquiais da mesma paróquia e entre paróquias.
4. Promover uma Assembleia de leigos, contando com a participação organizada dos Movimentos, Associações e Obras da Diocese.

     5.2. No âmbito da Jornada Mundial da Juventude

5. Promover o trabalho pastoral colaborativo entre os vários Secretariados Diocesanos, os COP, os COV e o COD.
6. Organizar e viver as pré-jornadas, promovendo a vitalidade de uma Diocese hospitaleira.
7. Divulgar e dinamizar a mais ampla participação possível dos jovens (dos 14 aos 30 anos) na JMJ 2023.
8. Selecionar, formar e envolver as famílias de acolhimento para a hospitalidade e o acompanhamento de jovens de todo o mundo.

     5.3. No âmbito da hospitalidade

9. Procurar e acolher e receber com alegria os filhos de Deus, que andam dispersos e regressam a casa.
10. Promover o ministério do acolhimento e a formação de agentes pastorais, de modo que este acolhimento se alargue do plano litúrgico (acolhimento à porta da igreja e para a celebração dos sacramentos) ao âmbito pastoral (acolhimento a quem se aproxima para visitar uma igreja, para pedir uma ajuda, uma informação, um sacramento, uma orientação espiritual, um caminho de integração, etc.).
11. Formar cristãos em condições de ser guias hábeis e amorosos nas difíceis transposições de fronteiras, que ocorrem diariamente na vida das pessoas.
12. Formar colaboradores pastorais mais acolhedores nos diversos serviços (de vigilância das Igrejas, de Sacristia, de Secretaria Paroquial, de acolhimento e atendimento para os Sacramentos);
13. Manter abertas as portas das igrejas, com recurso a voluntariado, sobretudo de entre pessoas que já não estão vinculadas a compromissos laborais.
14. Criar centros de escuta especializada, se não a nível vicarial, pelo menos a nível regional (ou a título experimental nalgum lugar).
15. Cuidar do acolhimento aos turistas e a quantos visitam os espaços religiosos.
16. Ceder espaços desaproveitados das paróquias a instituições da sociedade civil, como forma de aproximação e de parceria, sinal de uma Igreja de portas abertas.
17. Fazer dos seminários lugares de hospitalidade e promover as visitas aos seminários.
18. Valorizar a visita às casas das famílias, para uma verdadeira pastoral familiar.
19. Incentivar a familiaridade pastoral, com a celebração dos Dias de… (da mãe, do pai, dos avós e idosos, dos cuidadores informais, etc.), através de convívios ou outras iniciativas, que não se limitem a reuniões e celebrações.
20. Promover encontros com os de fora, através de eventos de índole cultural.
21. Divulgar os serviços diocesanos da Pastoral Familiar, com a sua rede de apoio a famílias em risco e Equipa de apoio ao discernimento dos casais em situações irregulares.
22. Renovar e alargar os horários, espaços e itinerários de Catequese, oferecendo percursos diferenciados e alternativos para a preparação dos sacramentos, para o acompanhamento dos pais e das crianças até à idade da Catequese.
23. Criar novos grupos e serviços, em função das novas necessidades pastorais e do novo contexto pastoral de pós-pandemia, nomeadamente pela constituição e formação dos agentes das Equipas Paroquiais e Vicariais da Pastoral da Saúde.
24. Iniciar, com criatividade, novos percursos de reiniciação cristã. A um acolhimento sempre cordial alie-se uma proposta realista de caminho formativo, em ordem ao despertar, ao crescer e ao aprofundar da fé.
25. Aplicar as orientações do Novo Diretório para a Catequese e o «Itinerário de Iniciação à Vida Cristã das Crianças e dos Adolescentes com as Famílias» aprovado pela CEP.
26. Promover amplamente o catecumenato (em particular a nível vicarial, criando estruturas de promoção, divulgação e formação) e a formação permanente.
27. Evangelizar os idosos, com a família, acompanhando os diversos mundos da solidão, envolvendo nesta pastoral dos idosos e dos frágeis, além dos Ministros Extraordinários da Comunhão, os Visitadores de Doentes e os Vicentinos, as Associações, as Irmandades, as Confrarias, as IPSS, as instituições sociais em campo, com as quais se deve trabalhar em rede.
28. Desenvolver o ministério da escuta, o apostolado do ouvido, dirigido principalmente às situações de solidão presentes no tecido da comunidade. Por que não criar o «Dia da escuta»?
29. Acolher, reconhecer, formar e acompanhar os cuidadores, especialmente os cuidadores informais.
30. Evangelizar as redes socias e pelas redes sociais, como canais de anúncio do Evangelho e espaços de construção da fraternidade humana.

Acolher no amor, por amor e com amor, é o primeiro passo que devemos dar, para abrir a todos a porta da fé. Que a nossa Igreja do Porto seja, à imagem de Maria, “uma Mãe de coração aberto” (EG 46-47), onde cada um se torna uma “porta que mora à espera” (Daniel Faria), para que todos possam dizer com verdade: “A porta da fé está sempre aberta para nós” (At 14,27)!


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 26 de junho de 2022

[Multimídia]
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Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da Liturgia deste domingo fala-nos de um ponto de viragem. Diz: «Aproximando-se o tempo em que Jesus devia ser arrebatado deste mundo, ele resolveu dirigir-se a Jerusalém» (Lc 9, 51). Assim começa a “grande viagem” para a cidade santa, que requer uma decisão especial porque é a última. Os discípulos, cheios de entusiasmo ainda demasiado mundano, sonham que o Mestre está a caminho do triunfo; Jesus, por outro lado, sabe que a rejeição e a morte o esperam em Jerusalém (cf. Lc 9, 22, 43b-45); sabe que terá de sofrer muito; e isto requer uma decisão firme. Assim, Jesus vai com passo firme em direção a Jerusalém. É a mesma decisão que devemos tomar se quisermos ser discípulos de Jesus. Em que consiste esta decisão? Porque devemos ser verdadeiros discípulos de Jesus, com decisão real, e não - como costumava dizer uma senhora idosa que eu conhecia – “cristãos como água-rosa”. Não! Cristãos determinados. E somos ajudados a compreender isto pelo episódio que o Evangelista Lucas relata imediatamente a seguir.

Enquanto estavam a caminho, uma aldeia de samaritanos, tendo ouvido dizer que Jesus se dirigia para Jerusalém - que era a cidade adversária - não o recebeu. Os apóstolos Tiago e João, indignados, sugerem a Jesus que castigue aquelas pessoas, fazendo descer um fogo do céu. Jesus não só não aceita a proposta, como repreende os dois irmãos. Eles querem envolvê-lo no seu desejo de vingança e Ele não concorda com isso (cf. vv. 52-55). O “fogo” que Ele veio trazer à terra é outro, (cf. Lc 12, 49) é o Amor misericordioso do Pai. E para fazer crescer este fogo é preciso paciência, é preciso constância, é necessário um espírito penitencial.

Tiago e João, ao contrário, deixaram-se vencer pela ira. E isto também nos acontece, quando, embora façamos o bem, talvez com sacrifício, em vez de acolhimento encontramos uma porta fechada. Então surge a raiva: tentamos até envolver o próprio Deus, ameaçando castigos celestiais. Jesus, diversamente, percorre outro caminho, não o caminho da raiva, mas o da decisão firme de ir em frente, o que, longe de se traduzir em dureza, implica calma, paciência, longanimidade, sem, no entanto, diminuir minimamente no compromisso de fazer o bem. Esta forma de ser não denota fraqueza, pelo contrário, mas uma grande força interior. Deixar-se vencer pela raiva na adversidade é fácil, é instintivo. É difícil dominar-se a si mesmo, fazendo como Jesus que - diz o Evangelho – se pôs «a caminho rumo a outra aldeia» (v. 56). Isto significa que quando encontramos fechamentos, devemos dedicar-nos a fazer o bem noutro lugar, sem recriminações. Assim Jesus ajuda-nos a ser pessoas serenas, contentes com o bem praticado e que não procuram a aprovação humana.

Agora perguntemo-nos: nós, a que ponto estamos? A que ponto estamos? Perante a contrariedade, diante de incompreensões, dirigimo-nos ao Senhor, pedimos-lhe a sua firmeza para fazer o bem? Ou procuramos confirmação nos aplausos, acabando por ser amargos e ressentidos quando não os recebemos? Com que frequência, mais ou menos conscientemente, procuramos aplausos, a aprovação dos outros? Será que o fazemos pelos aplausos? Não, não pode ser. Temos de fazer o bem pelo serviço e não procurar aplausos. Por vezes pensamos que o nosso fervor se deve a um sentido de justiça por uma boa causa, mas na realidade na maioria das vezes é apenas orgulho, juntamente com debilidade, suscetibilidade e impaciência. Peçamos então a Jesus a força para ser como Ele, para O seguir com firme determinação neste caminho de serviço. Para não sermos vingativos nem intolerantes quando surgem dificuldades, quando nos dedicamos ao bem e os outros não compreendem, aliás, quando nos desqualificam. Não, silêncio e ir em frente.

Que a Virgem Maria nos ajude a fazer nossa a firme decisão de Jesus de permanecer no amor até ao fim.


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

Acompanho com preocupação o que está a acontecer no Equador. Estou próximo daquele povo e encorajo todas as partes a abandonarem a violência e as posições extremas. Aprendamos: só através do diálogo se pode encontrar, espero que em breve, a paz social, com particular atenção às populações marginalizadas e aos mais pobres, mas sempre respeitando os direitos de todos e as instituições do país.

Desejo expressar a minha proximidade aos familiares e à família religiosa da Irmã Luisa Dell’Orto, Pequena Irmã do Evangelho de Charles de Foucauld, morta ontem em Port-au-Prince, capital do Haiti. A Irmã Lúcia viveu lá durante 20 anos, dedicando-se sobretudo ao serviço das crianças de rua. Confio a sua alma a Deus e rezo pelo povo haitiano, especialmente pelos pequeninos, para que possam ter um futuro mais sereno, sem miséria nem violência. A Irmã Luísa fez da sua vida um dom aos outros, até ao martírio.

(…) Vejo que há bandeiras da Ucrânia. Lá, na Ucrânia, os bombardeamentos continuam a causar morte, destruição e sofrimento à população. Por favor, não esqueçamos este povo atormentado pela guerra. Não o esqueçamos no coração e com as nossas orações.

Desejo-vos bom domingo. E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça de São Pedro
Domingo, 19 de junho de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia e bom domingo!

Em Itália e noutros países celebramos hoje a Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo. A Eucaristia, instituída na Última Ceia, foi como o ponto de chegada de um percurso, ao longo do qual Jesus o tinha prefigurado através de certos sinais, especialmente a multiplicação dos pães, narrada no Evangelho da Liturgia de hoje (cf. Lc 9, 11b-17). Jesus cuida da grande multidão que o seguiu para ouvir a sua palavra e ser libertada de vários males. Ele abençoa cinco pães e dois peixes, parte-os, os discípulos distribuem, e «todos comeram e ficaram saciados» (Lc 9, 17), diz o Evangelho. Na Eucaristia, todos podem experimentar este cuidado amoroso e concreto do Senhor. Quem recebe o Corpo e Sangue de Cristo na fé não só come, mas fica saciado. Comer e ficar saciado: são duas necessidades fundamentais, que na Eucaristia são satisfeitas.

Comer. «Todos comeram», escreve São Lucas. No início da noite, os discípulos aconselham Jesus a dispensar a multidão para que possam ir à procura de comida. Mas o Mestre quer providenciar também isto: para aqueles que o ouviram, quer dar-lhes também de comer. O milagre dos pães e dos peixes não se realiza de forma espetacular, mas quase reservada, como nas bodas de Caná: o pão aumenta à medida que passa de mão em mão. E enquanto come, a multidão apercebe-se de que Jesus cuida de tudo. Este é o Senhor presente na Eucaristia: Ele chama-nos a ser cidadãos do Céu, mas, entretanto, Ele considera o caminho que temos de fazer aqui na terra. Se tenho pouco pão na bolsa, Ele sabe e preocupa-se.

Por vezes existe o risco de confinar a Eucaristia a uma dimensão vaga e distante, talvez brilhante e perfumada com incenso, mas longe das veredas da vida diária. Na realidade, o Senhor preocupa-se com todas as nossas necessidades, começando pelas mais básicas. E quer dar o exemplo aos discípulos, dizendo: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (v. 13), às pessoas que o escutaram durante o dia. A nossa adoração eucarística encontra a sua verificação quando cuidamos do próximo, como faz Jesus: à nossa volta há fome de comida, mas também de companhia, há fome de consolação, de amizade, de bom ânimo, há fome de atenção, há fome de ser evangelizado. Encontramos isto no Pão eucarístico: a atenção de Cristo às nossas necessidades, e o convite a fazer o mesmo àqueles que nos rodeiam. É preciso comer e dar de comer.

Contudo, além de comer, não deve faltar o ficar saciado. A multidão saciou-se com a abundância de comida, e também com a alegria e a admiração de a receber de Jesus! Precisamos certamente de ser alimentados, mas também de ser saciados, ou seja, de saber que a alimentação nos é dada por amor. No Corpo e Sangue de Cristo encontramos a sua presença, a sua vida doada por cada um de nós. Ele não nos dá apenas a ajuda para continuar, mas dá-se a si mesmo: faz-se nosso companheiro de viagem, entra nas nossas vicissitudes, visita as nossas solidões, restituindo significado e entusiasmo. Isto sacia-nos, quando o Senhor dá sentido à nossa vida, à nossa obscuridade, às nossas dúvidas, mas Ele vê o sentido e este sentido que o Senhor nos dá sacia-nos, dá-nos aquele “mais” que todos procuramos: isto é, a presença do Senhor! Porque no calor da Sua presença a nossa vida muda: sem Ele seria verdadeiramente cinzenta. Enquanto adoramos o Corpo e Sangue de Cristo, peçamos-Lhe de coração: “Senhor, dai-me o pão de cada dia para ir em frente, Senhor, saciai-me com a vossa presença!”.

A Virgem Maria nos ensine a adorar o Jesus vivo na Eucaristia e a partilhá-lo com os nossos irmãos e irmãs.


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

Ontem, em Sevilha, foram beatificados vários religiosos da família dominicana: Angelo Marina Álvarez e dezanove companheiros; Giovanni Aguilar Donis e quatro companheiros, da Ordem dos Pregadores; Isabella Sánchez Romero, monja idosa da Ordem de São Domingos, e Fruttuoso Pérez Marquez, leigo terciário dominicano. Todos assassinados por ódio à fé na perseguição religiosa que teve lugar na Espanha, no contexto da guerra civil do século passado. O seu testemunho de adesão a Cristo e o perdão dos seus assassinos mostra-nos o caminho para a santidade e encoraja-nos a fazer da vida uma oferta de amor a Deus e aos irmãos. Um aplauso aos novos Beatos.

Chega ainda de Myanmar o grito de dor de tantas pessoas que carecem de assistência humanitária básica e são forçadas a abandonar as suas casas por terem sido queimadas e para fugir da violência. Uno-me ao apelo dos Bispos daquela amada terra, para que a comunidade internacional não esqueça a população birmanesa, para que a dignidade humana e o direito à vida sejam respeitados, bem como os lugares de culto, os hospitais e as escolas. E abençoo a comunidade birmanesa em Itália, hoje aqui representada.

Na próxima quarta-feira, 22 de junho, terá início o X Encontro Mundial das Famílias, que terá lugar em Roma e, contemporaneamente de maneira difundida por todo o mundo. Agradeço aos bispos, pastores e agentes de pastoral familiar que convocaram as famílias para momentos de reflexão, celebração e festividade. Agradeço sobretudo aos cônjuges e famílias que darão testemunho do amor familiar como vocação e caminho de santidade. Feliz encontro!

E agora saúdo todos vós, romanos e peregrinos de vários países, em particular os estudantes da London Oratory School. Saúdo os participantes no primeiro Curso de pastoral do acolhimento e do cuidado “Vita nascente”; os fiéis de Gragnano e a associação ciclística “Pedale Sestese” de Sesto San Giovanni. E não esqueçamos o atormentado povo ucraniano neste momento, um povo que está a sofrer. Gostaria que uma pergunta permanecesse em todos vós: o que faço hoje pelo povo ucraniano? Rezo? Procuro fazer algo? Procuro compreender? O que faço hoje pelo povo ucraniano? Cada um responda no próprio coração.

Desejo a todos bom domingo. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Ninguém Nasce Cristão

A mão

ESPECIAL PENTECOSTES

P. Nuno Tovar de Lemos, sj | 5 Junho 2022 | in Ponto SJ

Usamos muitos símbolos para falar do Espírito Santo: a pomba, o fogo, o vento, etc. Mas ultimamente tenho pensado num símbolo menos comum: a mão. O Espírito Santo é a mão de Deus que nos encaminha. Recordo mãos que tocaram a minha vida nalgum momento – e que, por alguma razão, me ficaram na memória – para perceber melhor o Espírito Santo…

A mão no selim da minha bicicleta

Quando eu era miúdo não havia bicicletas para crianças. Muito menos bicicletas com rodinhas. Aprendíamos a andar de bicicleta sentando-nos lá em cima, pedalando e tentando não cair. Era assim que aprendíamos. Lembro-me bem da sensação. Foi durante as férias de verão, numa estrada plana de terra batida pelo meio de um pinhal. Não me sentia inseguro porque o meu pai corria a meu lado com a sua mão forte a segurar o selim da minha bicicleta. Mas lembro-me do susto que apanhei quando o vi a ultrapassar-me a rir!

Várias vezes tenho tido esta sensação de estar a ser acompanhado por Deus e seguro por Ele em situações que estão para além do meu controle. Numa das primeiras vezes em que dei Exercícios Espirituais, apareceram mais de 20 pessoas (estudantes universitários) para fazer esse retiro. Eu não tinha experiência; nem sequer era padre. Aliás, ainda nem sequer tinha começado o curso de teologia. Levava comigo para o retiro, bem preparados, os “pontos” para as meditações do 1º dia, pensando que lá teria imenso tempo para preparar os outros dias. Não imaginava que algum estudante quisesse ter orientação espiritual comigo. Mas queriam e formavam fila à porta do meu quarto. Bem ou mal, lá fui conversando com cada um. O pior é que deixei de ter tempo livre, esse tempo com que eu contava para preparar os “pontos” que daria nos outros dias do retiro. Cheguei ao ponto de dar “pontos” sem saber ao certo o que iria dizer. Lembro-me bem da aflição, percorrendo sozinho um longo corredor da casa de retiros, em direção à sala onde todos me esperavam em silêncio. Nesse corredor, enquanto caminhava, tive uma experiência espiritual tão forte que nunca mais esqueci. Vi Deus a olhar para mim, de cima para baixo, e a rir às gargalhadas. Era o Pai que ora me segurava no selim ora me ultrapassava.

A mão forte na Sé de Lisboa

Fiz o crisma com 9 anos. (Hoje penso que é um disparate fazer tão novo – penso que a confirmação do batismo deve ser feita quando se tem idade para tomar decisões para a vida – mas era assim na altura). Ajoelhei-me diante do bispo para a crismação. O bispo ungiu-me a testa, eu disse o 1º “Ámen” e – precipitadamente, porque o ritual ainda não tinha acabado – ia levantar-me logo. Foi aí que senti a mão forte do padrinho a carregar no meu ombro para baixo, para que me mantivesse ajoelhado até ao fim.

Já várias vezes senti a mão de Deus a tentar que eu não ceda à pressa e não me levante antes de tempo. Na oração, por exemplo, quando há muitos assuntos importantes à espera, e me apetece terminar antes do fim do tempo que destinei para rezar. “Estou tão distraído que não adianta estar aqui a tentar rezar! Vou mas é despachar assuntos; afinal é tudo para Ele”. Aí, frequentemente, sinto a mão de Deus a pressionar-me para que não me levante antes de tempo. Creio que é o Espírito Santo a dizer “fica!”.

Também já me aconteceu sentir que a mão de Deus me obrigava a continuar ajoelhado diante da Igreja. Parecia-me, por vezes – sobretudo quando era estudante de teologia e nos primeiros anos de padre – que, nalguns aspetos morais, a tradição da Igreja estava errada (e que eu estava certo). Hoje rio-me da minha ingenuidade (como é que eu podia pensar que a Igreja ao longo de 2000 de história via mal e eu bem!) mas na altura parecia-me sinceramente ter razão. Ainda fiz algumas intervenções em público de que hoje me arrependo. Felizmente (quase) nunca perdi o respeito pela opinião de jesuítas mais velhos a quem considerava. Esse respeito foi, várias vezes, a mão de Deus a ajudar-me a permanecer calado e ajoelhado diante da voz da Igreja, mesmo quando não a entendia.

A mão suave no meu peito

Acabei de googlar “Vick Vaporub” e de ter a alegria de ver que a pomada continua a existir no mercado! Esta expressão – “Vick Vaporub” – acorda em mim muitas recordações de infância. A principal é o cheiro, um aroma intenso de mentol e eucalipto que aspirávamos até que as narinas ficassem a arder. Uma outra recordação é a mão quente da minha mãe a pôr-me a pomada sobre o peito. O deslizar da sua mão era curativo, fazia bem à tosse, limpava as vias respiratórias e dava-me segurança de que eu nunca estaria sozinho; que – afinal – estava tudo bem e, com um pouco de sorte, graças a essa tosse, não iria à escola no dia seguinte…

Por vezes a mão de Deus é assim, mesmo no meio das dificuldades. Bálsamo. Uma voz que sussurra baixinho que “está tudo bem” mesmo quando não sabemos quando é que vai ficar tudo bem. Temos o problema na mesma, mas Deus está ali com a Sua mão sobre o nosso peito, qual óleo de catecúmenos a dar-nos confiança na adversidade. Deus está ali e isso muda tudo, sem mudar nada. E muda ao ponto de conseguirmos tirar coisas boas das coisas más que não conseguimos mudar. Creio que é o Espírito Santo. Aconteceu-me isto no último dia 25 de dezembro: sentado numa cadeira de hospital (à espera de uns exames que revelariam depois uma pneumonia associado à Covid) tive a melhor oração de todos os natais da minha vida.

A mão salvadora num oculista

Mudei recentemente de óculos e algumas pessoas reclamaram que os anteriores (pequenos e dourados, de finos aros redondos) faziam parte da minha imagem. De facto, durante mais de 20 anos acompanharam-me para toda a parte.

Mas é engraçado pensar como é que esses óculos dourados vieram parar à minha cara. Estava em Roma, num dos últimos anos de teologia, e precisava de comprar óculos. Não é nada fácil comprar óculos. É uma decisão importante: vamos ter de conviver muito perto com eles (e de os ver cada vez que nos vemos ao espelho). Ainda por cima são caros e não dá para os deitarmos fora, se depois não nos sentirmos bem com eles. Quando dei por mim tinha várias dezenas de possíveis armações sobre o balcão. Estava decidido a não complicar para não ter de passar ali o dia inteiro. Com alguma facilidade fui experimentando e excluindo armações até chegar apenas a duas. Eram muito diferentes: uma era em massa grossa e outra era a tal dos pequenos aros redondos e dourados que eu viria a comprar. Experimentava uma e depois outra e não conseguia decidir. Tinha pedido a um jesuíta meu amigo para me acompanhar e ajudar mas ele estava ainda mais confuso do que eu. O impasse era tal que cheguei a pensar que teria de deixar a compra para depois. Por uma última vez coloquei a armação em massa e olhei-me ao espelho. Foi então que reparei numa senhora sentada num sofá a olhar para mim e a chamar a minha atenção. Fez um “não” com o indicador direito e depois apontou com um dedo firme para cima do balcão, para os óculos dos pequenos aros dourados. Eram esses que eu devia comprar! Agradeci-lhe e comprei-os. Abençoada mão.

Muitas vezes na vida tenho experimentado esta mão de Deus a indicar-me, depois de algum tempo de impasse, o que devo fazer. O exemplo mais óbvio foi o do meu discernimento para entrar na Companhia. Meses de ponderação e hesitação (experimentando sucessivamente a ideia do casamento e depois a do sacerdócio…) até que um dia foi claro para mim que opção devia tomar. Uma certeza tão grande que não dava espaço para qualquer dúvida (pelo menos até hoje). Creio que foi o Espírito Santo. Senti como que a mão de Deus a dizer o que eu devia escolher e o que eu devia deixar de lado. Mas, ao contrário da mão da senhora no oculista, no fim eu entendi que a mão de Deus apontava exatamente a minha própria vontade mais profunda (aquela que frequentemente não conhecemos pois está coberta por muitos medos, manias e preconceitos).

Também é verdade que, muitas vezes, eu gostaria de perceber que caminho Deus me aponta e não percebo. Creio que, nalgumas vezes, sou eu que não vejo (é preciso ter um olhar limpo para ver a mão de Deus e o meu, frequentemente é pouco livre) mas parece-me que, noutras vezes, Deus mete as mãos nos bolsos para que eu chegue lá por mim de modo que, neste processo, eu cresça em autoconfiança, liberdade e maturidade.

A mão do braço de ferro

Não sei que idade eu teria quando costumava fazer “braços de ferro” com os meus amigos. Uma mesa, dois braços e uma série de rapazes à volta a assistir. Ainda me lembro das mãos fortes e invencíveis de alguns colegas e das mãos mais facilmente derrubáveis de outros…

Veio-me esta imagem quando pensava que a mão de Deus nem sempre é aquela mão simpática que aponta o caminho, que acaricia suavemente e que dá força. A mão de Deus, por vezes, compete connosco para nos derrubar. Luta contra nós (embora o faça por nós). Por vezes leva-nos para o ringue de boxe e não sai de cima de nós enquanto não nos ouve dizer “rendo-me!”, enquanto não Lhe damos o que Ele quer. E quanto mais nos aproximamos de Deus tanto mais o Espírito Santo nos dá luta. “Por que me tratas assim?”, perguntava-Lhe Santa Teresa de Ávila. “É assim que Eu trato os meus amigos”, respondeu Deus.

Uma vez estive na cama, sem conseguir adormecer, até altas horas da madrugada, porque eu queria uma coisa e Deus queria outra. Só adormeci depois de me levantar, ir à capela (mesmo em pijama), e render-me. Voltei para a cama cheio de paz e entrei imediatamente num sono suave e profundo. Aí o Espírito Santo foi a mão terna da mãe que acaricia e adormece o filho. Mas antes tinha sido a mão do pugilista ou do amigo que não me deixou enquanto não ganhou no braço de ferro contra mim...

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Deus não está só no Céu a olhar para nós. Está também nas nossas vidas a trabalhar por nós. É tarefa do Espírito Santo. Bem O podemos imaginar como a Mão de Deus que ampara, guia, acaricia, cura, aconselha, obriga a ajoelhar, dá luta…

Como tem agido ultimamente o Espírito Santo na vida de cada um de nós? Como tem sido a Sua mão?
Neste tempo de Pentecostes peçamos-Lhe o que mais precisamos.


Ninguém Nasce Cristão

“O sentido de resposta é a chave de compreensão da minha vida”

Especial entrevista ao P. António Vaz Pinto

Rita Carvalho | 2 Junho 2022 | in Ponto SJ

Um espírito arquitetónico e de construtor. É assim que, aos 80 anos, o P. António Vaz Pinto define o traço comum da sua vida, na qual ergueu várias obras para responder a necessidades. Neste dia do seu aniversário, uma entrevista de vida.

O P. António está prestes a completar 80 anos. Antes de começarmos a percorrer a história da sua vida, queria perguntar-lhe como se sente animicamente?

Muito bem. Como se costuma dizer, de papo cheio. Se morrer daqui até aos 80 anos, ou logo a seguir, levo desta vida uma vida que valeu a pena viver, que vivi com muito gosto, com muita alegria e muitos amigos. Estou muito grato a Deus pela vida que me deu.

Muito bem. Isso é muito inspirador. Estive a ler o livro da sua vida até aos 63 anos (A História de Deus comigo) e uma frase que o P. António usa para se descrever, e que é um traço comum da sua vida, é “um espírito arquitetónico e de construtor”. Alguém que junta vários elementos, faz várias obras, sejam físicas, espirituais. De onde vem este espírito empreendedor, já nasceu consigo ou foi Deus que foi construindo ao longo da vida?

As duas coisas. Eu tenho uma graça enorme que foi ter nascido na família em que nasci, onde muita gente fazia coisas importantes e significativas. E isso foi muito inspirador para mim. Nunca me entendi a viver dos rendimentos. Pouco a pouco fui olhando para fora da minha família, para o mundo, a realidade, e fui percebendo que era chamado – e isto ainda não tem nada a ver com vida religiosa e ser padre – a fazer qualquer coisa no mundo e na história. Mas ninguém pode agir sozinho. Pode fazer qualquer coisa – descobrir uma fórmula química ou coisa que o valha – mas o género de coisas humanas e sociais só podem ser feitas com os outros. E foi isso que me acompanhou. A ideia de construir aproxima-se muito da ideia do gerar, produzir ser e realidade humana. É qualquer coisa inata, mas tem de ser trabalhada. É curioso… olhando para trás, eu vejo: escrevi variadíssimos livros. E o que é escrever um livro? É fazer um conjunto de capítulos, e estes têm parágrafos e os parágrafos frases e as frases palavras e as palavras letras. Isso dá uma construção que depois se passa ao papel. Nas circunstâncias concretas da minha vida, para além de tudo aquilo que fui recebendo – que é imenso e sem o qual não podia ter feito o que acabei por fazer – eu percebi sempre que precisava dos outros para, em conjunto e comunitariamente – fossem leigos, leigas, padres – podermos responder às necessidades que via à minha volta. É este sentido de resposta que é a chave de compreensão da vida humana toda, e da minha vida. Há um grande historiador inglês que diz que a compreensão da história se faz por desafio-resposta. Os desafios existem, as respostas umas vezes existem, outras vezes não. Ou outras vezes respondemos a coisas que não têm importância. Foi isso que me levou a uma série de coisas: os Leigos para o Desenvolvimento, os centros universitários, o trabalho na imigração, etc. Procurei sempre responder a uma necessidade.

Dessas obras, há alguma que possa dizer que lhe deu mais gozo?

Todas me deram gozo. Quando vim dos estudos da Alemanha, com o P. Vasco Pinto de Magalhães e o P. Alberto Brito fundamos em Coimbra o primeiro centro universitário, o CUMN (Centro Universitário Manuel da Nóbrega). Fomos 3. Aqui no CUPAV já fui eu sozinho. O Provincial mandou-me para aqui para fazer uma coisa ao modelo de Coimbra. É o meu primeiro filho único, digamos. Mas depois vieram os Leigos para o Desenvolvimento, o Centro São Cirilo, a ação junto dos imigrantes… Não há momento nenhum na minha vida que não tenha sido gozoso e que possa privilegiar. Foram todos bons.

E sentiu sempre a mão de Deus nessa história? Ou sentiu que as vezes andava sozinho?

Sempre, sempre. Não sei o que acontece com os que me veem de fora, mas para mim, a minha vida não tem qualquer sentido nem preocupação maior do que Deus. É uma coisa muito anterior à vocação, que aconteceu na minha infância mais remota, eu ter percebido que Deus era o absoluto da História, das pessoas, de cada pessoa e de mim próprio. As coisas organizaram-se em função do absoluto. Quando mais tarde vim a compreender qual era a vocação da Companhia de Jesus – o serviço da fé, a promoção da justiça e o diálogo intercultural -, isso correspondeu exatamente ao que estava dentro de mim, ao desafio que senti desde o início e que foi dando origem a estas respostas.

O P. António foi, ao longo da vida, criando vários projetos. Sente que continua a haver esse ardor apostólico e esse rasgo na vida da Igreja, nos mais jovens, e até na vida da Companhia? Esse desejo de dar respostas?

Sim, sim. Nas várias obras que eu, com Deus e com os outros, criei, sempre tive o espírito de fazer algo que os outros pudessem herdar, que pudesse seguir sem mim. E não deixar dívidas! Mas do que vou vendo, aqui e acolá, há muita gente a fazer coisas tão boas ou melhores do que eu fiz.

Percorrendo os principais momentos da sua vida, começando pelas origens em Arouca. Quais as principais marcas que a sua infância lhe deixou? O que herdou dos seus pais?

Herdei imenso. Eu sou o 11º filho, só há um mais novo. Já enterrei oito dos meus irmãos, e várias cunhadas. Dos meus pais, muito diferentes, muito unidos um com o outro, bons educadores – muito mais pelo exemplo do que pelas regras e ordens – herdei a coerência. Pessoas perfeitamente normais, inteligentes, cultas, civilizadas e profundamente cristãs. Foram um paradigma e um modelo. Os meus irmãos, muito diferentes e variados, também tiveram, pela sua presença, por entrarem neste xadrez, um papel muito importante. Ninguém me desviou, desiludiu, foi uma harmonia positiva que fui sentindo ao longo da minha história. Não éramos ricos, o meu pai vivia do seu vencimento. Ter 12 filhos era difícil, mas nunca nos faltou nada do fundamental. Mas não eramos pobres. Vivi num ambiente onde o que era importante acontecia, o luxo deixava-se cair e ninguém se lamentava. Nunca nos foi dado como modelo os ricos, os grandes, os poderosos, mas a fidelidade às nossas raízes para dar frutos abundantes. A minha história é muito condicionada pelas raízes e pelo primeiro tronco que constituiu a árvore da minha vida.

Na sua juventude, não era um aluno empenhadíssimo. Mas isso fui mudando…

Nada, nada. Mas houve um momento em que isso mudou. Na instrução primária, eu e mais dez pessoas tínhamos uma professora privada – era muito comum nessa altura – uma senhora de origem goesa, a D. Cristina, que era uma ótima professora. Depois estava na altura de fazer o liceu e tinha aberto o Colégio São João de Brito e vim aqui parar. Senti-me aqui muito bem, gostei dos padres jesuítas. Não fiquei fascinado por nenhum. Às vezes uma pessoa ouve “Ah fiquei fascinado, o São Francisco Xavier passou e o padre x foi atrás dele” Não senti isso, mas vi pessoas cultas, humanas, virtuosas. Uma família positiva para além da minha família de sangue. Agora, estudar? Os mínimos.

Era preferível jogar à bola…

Sim, era preferível não fazer nada, ler… não tinha pachorra para quase nenhuma das disciplinas. Andava ali nos mínimos, queria era passar. Isto tudo envolto num ótimo ambiente humano pois o colégio era muito bom, saudável e humanamente muito positivo. Muitos amigos dessa altura continuam meus amigos.

Foi o seu primeiro contacto com os jesuítas, não tinha nenhuma ligação familiar à Companhia?

Não. Mas tinha, através do meu pai, a noção de que a Companhia de Jesus era uma instituição relevante e muito considerada e respeitável.

Como era a sua vida cristã na altura?

Era relativamente praticante. Ia à missa ao domingo, fazia umas oraçõezinhas, confessava-me de vez em quando, mas não tinha perspetiva nenhuma de ser padre. Isso era uma coisa que estava completamente fora dos meus horizontes. Era um cristão mais ou menos, ‘molezinho’… era o que era…

E porque foi estudar Direito?

O que eu queria profissionalmente era ir para diplomata e para isso era preciso um curso superior. Era mais inclinado para a área da Filosofia e das Letras do que para o Direito. Mas, como tive alguns momentos de bom senso na vida, pensei: ‘Se vou para Letras, faço aquilo com uma perna às costas e sou um preguiçoso que nunca mais me curo. Posso perfeitamente, em casa com os meus amigos, ir lendo, conversando e aprendendo e pôr-me em Direito onde me vai ser exigido mais e isso é francamente melhor para a minha autoformação’. Foi, por isso, sem grande amor ao Direito.

Escolheu o caminho mais exigente?

Sim. Percebi o que era melhor para mim. Não me deixei levar pelo facilitismo, que eu acho que na vida das pessoas as prejudica imenso.

Já tão novo e com esse sentido de exigência…

Sim, era isso mesmo.

Mas gostava de sair e estar com os amigos?

Sim, imenso, e namoradas, festas, copos. Andava sempre na boa vai ela.

Aproveitou tudo?

Tudo, tudo.

E foi depois do curso que surgiu a questão vocacional?

Direito não me deu nem mais nem menos do que eu esperava. Mantive-me cá em baixo, só queria acabar o curso. Ao longo deste percurso, mantive sempre uma certa preocupação social. Por exemplo, estive com o P. José Manuel Rocha e Mello nos primeiros dias do Bairro da Musgueira, quando veio para aqui a gente deslocada das obras da ponte. No segundo ou terceiro ano, reunimos um grupo de 30 rapazes e raparigas, de vários cursos, e todas as noites íamos para o Bairro da Quinta da Calçada dar aulas. Dividimos o bairro em áreas, eu era o ministro da Educação, outro era o da Saúde, e tomámos conta, responsabilizámo-nos pelo bairro. Manifestava uma preocupação saudável pelos outros. Admiro muito as pessoas, além de mim, que uma ou duas vezes por semana, das 8 às 10, não iam para o cinema nem jantar fora, mas dar aulas e fazer atividades ali

O chamamento vocacional vem dessa altura?

Às vezes há pessoas a quem acontece um evento: a morte de uma namorada, a perda de um pai, um fracasso num exame… Eu não tive nada disso. Vivia uma vida sossegada, com um bom futuro e bons projetos. Ia para diplomata por um certo brilho, internacionalismo, mas também – embora haja exceções – para ter uma vida relativamente sossegada, que me desse espaço para fazer outras coisas que eu achava mais importantes. Era esse o horizonte. Entretanto, estávamos em guerra em África e eu não me importava nada ir para a guerra colonial. Não que me interessasse matar pessoas, mas a minha ideia era: ‘Se for para Angola e Moçambique, posso fazer escolas, hospitais, essas coisas’.

Já tinha esse espírito empreendedor…

Sim, empreendedor e de contribuir para o serviço. Entretanto, fui tendo várias namoradas, e às tantas tinha um namoro já muito sério, quase noivado, embora ainda não formalizado. Estava no quarto ano de Direito e tinha que decidir o que queria. As pessoas que iam para África tinham algumas vantagens no tempo de estudos, podiam acelerá-los. Foi aí que, sem nenhum acontecimento, foi começando a surgir dentro de mim uma dúvida: mas o que é que tu queres? Será que o que tu queres é ser embaixador em Roma, com um Mercedes, um motorista a tirar-te o boné e a abrir-te a porta, uma casa maravilhosa, cocktails? É para isto que tu existes? E comecei a sentir: ‘Isto é pouco para mim, eu quero outra coisa’. Por outro lado, o sentido positivo de servir os outros, sem ainda ver bem como…. É aqui que as coisas se ligam. Comecei a perceber que podia servir como médico, advogado, mas o grande serviço é o serviço de Deus. E isso implica ser padre, com todas as consequências. Começou esta ideia, secretamente, dentro de mim.

Continuou com a sua vida de jantares?

Sim, continuei. Nem ao pai, nem à mãe, nem mesmo à minha namorada passava pela cabeça a combustão que acontecia dentro de mim… Até que às tantas disse: ‘Tenho de tomar uma decisão’. Vim falar com um padre, falei com ele duas vezes. Foi uma coisa muito precipitada… Mal feita… ‘Quando é que queres entrar’, perguntou ele. E eu respondi: ‘O mais depressa possível’. ‘Então pode ser no Dia de São José’. E eu dizia: ‘Eu sei lá quando é o Dia de São José’. ‘É 19 de março’. ‘Então está bem’. Estávamos no final de janeiro.

E ser jesuíta era o óbvio?

Sim, era. Não por qualquer desprezo por outras ordens, mas era aquela que eu conhecia e na qual me dava bem. Conhecia variadíssimos jesuítas admiráveis. Nem se me pôs sequer o problema. Pensei: ´´E aqui, esta é a minha casa’. Isto com todas as consequências… Para ela foi trágico… (de quem sou muito amigo agora, isso está tudo passado). Um grande espanto entre os meus amigos, a minha família…

Foi uma surpresa para todos?

Completa. E houve alguns que disseram: ‘Isso foi uma coisa que te passou pela cabeça, depois vai-te passar’. E já lá vão alguns anos… Quando entrei, entrei à séria, com os pés juntos. E foi aí que se deu a grande mudança. Eu até aí, com algumas notas positivas, tinha feito tudo mais ou menos. Mas entrei para o Noviciado e foi até ao limite. Se me dissessem ‘é preciso comer uma autoestrada’, eu comia uma autoestrada. É por aqui, é isto que eu quero, a qualquer preço. Fiz um Noviciado com uma grande força, tive momentos duros e outros muito consoladores e construtivos. Acho que esta imagem é boa: quando a gente põe um fato e diz ‘é este o meu fato’. E a figura de santo Inácio e de outros santos a fascinar-me… Não tive a menor dúvida de que, no fim do tempo do noviciado, podia fazer votos. Aí, como já tinha mudado esta mentalidade do mais ou menos, de ser calão e preguiçoso, meti-me à séria. Fiz a Filosofia e ainda hoje não sei como aguentei, tal era a intensidade com que estudava e ao mesmo tempo rezava e trabalhava. Foi fortíssimo. Não que me exigissem, eu é que me exigia a mim próprio. Gostei imenso da Filosofia.

Mas apesar de jogar à bola, já gostava muito de ler…

Sim, mas era ler devagarinho, romances, o que me agradava. Agora era estudar. A tal ponto que, desses estudos – e isso era pouco vulgar –, assim que os acabei, escrevi logo um livro de Filosofia sobre Ludwig Wittgenstein, considerado um dos filósofos mais difíceis do século XX. Isto mostra com que dedicação eu me fiz às coisas… Depois do curso de Filosofia/ Humanidades (parte em Soutelo e parte em Braga), vim fazer o magistério ao Colégio São João de Brito, ao longo de um ano. Depois punha-se a questão: ‘Para onde vou fazer Teologia?’. Estas decisões são tomadas pelo Provincial, mas sempre em diálogo connosco.

Mas o P. António sabia para onde queria ir…

Sim. Queria ir para a Alemanha porque é a melhor teologia do mundo. Mas não sabia alemão. Custa? Paciência! A minha cidade de sonho é Roma, mas nunca lá vivi. E a Alemanha – que não é a minha cidade de sonho embora me tenha dado bem lá – é onde há a melhor teologia. E era aí que eu queria, a qualquer preço.

E foi difícil?

No início foi. Chego a uma comunidade onde se fala alemão, as aulas e os livros são em alemão… Cheguei em setembro e até março foi livro, dicionário, lápis e borracha… Até que acabei, marquei o primeiro exame e nunca mais peguei no dicionário.

Foi aí que pode também conviver com os grandes teólogos?

Sim, fui para lá para isso. E tive contactos com muitos, muito bons, com o P. Karl Ranher, talvez o maior teólogo católico do século XX, cujas obras de pensamento conheço mais ou menos e é considerado admirável. Mas era um péssimo professor, complicado, confuso, era uma pessoa a atravessar o palco e a falar alto. Ele tinha outro irmão jesuíta que dizia: ‘quando tiver tempo a ver se traduzo as obras do meu irmão para alemão’. Depois fui parar a Regensburg, porque quis e porque o Provincial me deixou ir fazer um semestre fora de uma faculdade jesuíta, numa universidade civil, fora do mesmo estado e viver numa família alemã.

Foi viver para uma família?

Sim, receberam-me lindamente. Uma gente de grande categoria, quase todos judeus convertidos, onde o irmão, a tia e a avó estiveram em campos de concentração. Foi aí que encontrei o professor Joseph Ratzinger, ainda nem era bispo. Havia uma mudança de instalações e duas ou três vezes por semana vínhamos juntos, éramos companheiros de autocarro. Era um belíssimo professor, um bocadinho tímido, e às vezes os tímidos parecem arrogantes, mas não era nada. Guardo dele ótimas recordações.

Já depois da sua ordenação, teve um período difícil. Quer partilhar connosco? Está escrito em livro, por isso não cometo nenhuma inconfidência…

Muito difícil, sim. Não vou entrar em grandes pormenores, mas isto está no livro, sim… (A História de Deus comigo).

As certezas todas que tinha vieram por água abaixo?

Algumas, nem todas. A certeza de que eu queria fazer a vontade de Deus manteve-se. Esse era o Absoluto da minha vida. Mas houve circunstâncias afetivas que me fizeram encontrar uma determinada pessoa por quem me apaixonei e que se apaixonou por mim. Então, a minha questão, que foi posta com toda a seriedade e clareza aos meus superiores, foi ‘o que é que isto significa na minha vida? Quer Deus que eu continue na minha vida, onde estava, ou quer Deus que eu, como cristão leigo e casado, siga por outro caminho?’ E isso foi extraordinariamente doloroso. Uma prova terrível, demorou mais de um ano, uma tensão enorme. Fui continuando a fazer a minha vida, até que apostei na vontade de Deus e nos sinais que Ele me dava e atirei-me de paraquedas. Depois disso tive uma experiência de Deus, de morte e ressurreição, de Deus na minha vida, insuperáveis! Quando fui ordenado, fizeram-se uns santinhos e eu escolhi uma frase de São Paulo que dizia ‘Conheço Aquele a quem acreditei’. É isso, conheci, sei bem o que isso é. E nunca mais me abandonou na vida. Tenho a certeza de que Deus me chamou para isto, posso ser fiel ou infiel, mas lá que é isto que Deus quer de mim, lá isso é.

(Continua na secção: Vejo um Ramo de Amendoeira)


Ninguém Nasce Cristão

Cardeal Tolentino Mendonça:

A condição precária é necessária a quem acredita em Deus

«A experiência espiritual é uma experiência de abertura, uma experiência transfronteiriça, onde aprendemos a não temer a indeterminação e o vazio, que se tornam uma espécie de sacramento do invisível», e por isso «a condição precária é necessária àquele que acredita», afirmou hoje o cardeal José Tolentino Mendonça.

Na intervenção, previamente gravada em vídeo, que finalizou a 16.ª Jornada Nacional da Pastoral da Cultura, realizada em Fátima, sobre o tema “A condição precária”, o poeta começou por destacar a «afinidade etimológica» entre a palavra latina “precarius” e “prece”.

Para o responsável pela Biblioteca Apostólica do Vaticano, a condição precária, quando relacionada com a espiritualidade cristã, «não é um obstáculo», antes uma exigência para a sua expansão: «O precário é uma condição necessária para realizar a oração», e, no sentido inverso, «a espiritualidade é uma espécie de iniciação à condição precária».

Tendo em consideração que, desde Abraão, a fé é «capacidade de viver segundo uma promessa», então «a espiritualidade é uma itinerância, uma espécie de nomadismo», e também um lugar de «desnudamento», uma coreografia das «mãos vazias», disposições paradoxais na linha daquele “aprender a desaprender” que Fernando Pessoa referia.

«A atitude espiritual mais importante a desenvolver na vivência da condição precária talvez seja a atenção, como abertura, como disponibilidade para se deixar surpreender», apontou o primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

Por isso, prosseguiu, «a atitude espiritual mais oportuna talvez seja a do esvaziamento», porque «só um olhar que não tem defesas consegue olhar a verdadeira presença». É necessária «uma conversão do olhar, que crie uma disponibilidade para poder praticar uma hospitalidade do real, do real mais puro, aquele que é capaz de dar o sentido do invisível».

«Somos chamados a ser sentinelas, vigilantes, viajantes, enamorados», salientou o diretor do Arquivo Apostólico do Vaticano, antes de questionar: «O que é que o mundo pede à sentinela, isto é, aos homens e mulheres crentes? Pede que iluminemos a fronteira, com a nossa vida, a nossa cultura, com o construir da nossa reflexão».

Habitar o precário, declarou o cardeal Tolentino Mendonça, «é o que permite habitar a espantosa realidade das coisas, onde Deus se revela. Não viver de conceitos, de ideias, não construir prisões e armadilhas para reter, não cair na tentação de fixar, mas viver no trânsito, na viagem». E, talvez por isso, a figura do pastor, com a sua «transumância», confere desde as páginas bíblicas «inspiração para aquilo que é a vida da fé».

Conjugar a espiritualidade do precário implica «habitar o novo», o «orgânico», o «mutante», «ver que não se vive de respostas, mas de perguntas»: «Vivemos no enigma, vivemos na fronteira... mas na espiritualidade do precário percebemos que o enigma não é um limite, que o mistério não é um obstáculo, mas sim uma possibilidade».

Aludindo ao livro bíblico do Cântico dos Cânticos, o cardeal Tolentino acentuou que «os grandes amores são lugares de uma grande busca, mais do que fusão. E na experiência da fé, mais do que a resolução, tem-se a experiência do caminho».

A terminar, o biblista propôs três notas sobre a espiritualidade da condição precária, a partir do Ir. Roger Schutz, Paul Ricoeur e Alberto Caeiro, começando pela «capacidade de viver o provisório»: «A literatura, a arte ajudam-nos a perceber a importância do provisório como lugar de verdade, de autenticidade, como caminho para viver a espiritualidade».

Por outro lado, trata-se de «estabelecer percursos de reconhecimento»: «Reconhecer é perscrutar, ouvir, identificar, cartografar, mapear... e este é um processo dinâmico da espiritualidade, porque ela dá-nos acesso a uma experiência, a um acontecimento... é alguma coisa que nos transforma».

Mas «reconhecer tem igualmente o significado de gratidão, e por isso a espiritualidade do provisório é também capaz de perceber que está no interior de uma economia do dom, que há uma dinâmica da dádiva, que o não saber não é simplesmente a experiência de uma ausência, mas que a ausência fala, como aconteceu no sepulcro vazio que alou a Maria Madalena»; o que para ela era um «lugar-limite, tornou-se o lugar possível de um diálogo».

Inerente à condição precária subsiste também a «espiritualidade pascal»: «A verdadeira espiritualidade é uma dinâmica de ponte, é habitar o fluir, é não interromper, é uma vida que caminha de margem a margem, é habitar o mistério, habitar o “entre”, porque é o “entre” que nos faz viver, o “entre” é o lugar da passagem da vida, de nós próprios, é o lugar da passagem de Deus». Porque «o verdadeiro modo da experiência de Deus é a passagem».

«Viver a espiritualidade do precário, do provisório não é viver uma espiritualidade em tom menor, não é viver uma espiritualidade diminuída, insuficiente; pelo contrário, é viver intensamente a espiritualidade, é viver o coração da vida espiritual, porque também aqui a experiência do menos é abertura ao mais», concluiu o cardeal Tolentino Mendonça.

Rui Jorge Martins
Publicado em 28.05.2022 in SNPC


Ninguém Nasce Cristão

Canonização de Carlos de Foucauld

Por padre Fernando Rosas| 19 Mai 2022 | in Voz Portucalense

Diz a sabedoria Tuaregue que Deus criou o deserto para que os homens pudessem encontrar a sua alma. Muitos já fizeram a experiência que confirma esta máxima deste povo Berbere do deserto.

Foi entre os Tuaregues que Charles de Foucauld morreu com uma bala amedrontada no dia 1 de Dezembro de 1916, junto do ermitério que tinha edificado com as suas próprias mãos. Uma vida distante de todas as coisas, o mais distante possível, perdida no deserto, para se tornar próxima de todos, que se tornou um fogo que lentamente tomou o coração de muitos e que agora chega ao culto de todos, por vontade do Papa Francisco.

A encíclica Fratelli Tutti vê neste “Irmão do deserto” «uma pessoa de profunda fé, que, a partir da sua experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos» através de «uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano» (n. 286 e 287). Esse seu exemplo tornou-se um modelo de referência no universo da santidade cristã do nosso tempo.

Nascido de uma família nobre e abastada, a 15 de setembro de 1858, cedo revelou um espírito irrequieto e inquieto. Teve uma educação religiosa e burguesa, que veio a rejeitar na adolescência, para experimentar os desregramentos do mundo. Depois de ingressar no serviço militar aos 18 anos, é enviado para Argélia, onde se revelou um oficial muito apreciado pelos chefes e soldados. Deixa o exército para participar numa viagem de exploração em Marrocos, o que lhe proporcionou contactos com a pobreza e o desprezo social de seus habitantes. Ficava admirado com o caráter sagrado da hospitalidade e com a oração dos muçulmanos, cuja extraordinária religiosidade abriu caminho para a sua conversão.

Depois de muito ter peregrinado pela vida e pelo mundo, começa a operar-se uma importante mudança dentro de si. A fé de uma tia e de sua prima Maria de Bondy lança-lhe questões, que acicatam a sua inquieta e ardente procura. Entra nas igrejas de Paris para repetir esta oração: «Meu Deus, se existes, faz com que eu te conheça». Vai à igreja de Santo Agostinho para partilhar suas dúvidas com o padre Huvelin, mas este sacerdote, ao aperceber-se que as suas buscas se situam a um nível muito mais profundo que o doutrinário, convida-o a confessar-se e a comungar. Tal como aconteceu a Paulo a caminho de Damasco, também a ele «uma luz vinda do céu envolveu-o com a sua claridade» (At 9,3).

A partir desse momento, empreendeu um singular percurso espiritual, que o levaria a entrar na Trapa e a viver como criado na horta de um convento de Clarissas na Terra Santa, antes de ir para o deserto norte-africano de Beni Abbés e de Tamanrasset, à procura de uma vida humilde, pobre e escondida.

Entrando profundamente no coração, na cultura e na história dos habitantes de uma pequena tribo nómada de tuaregues, passou a ter uma prática quotidiana de oração e de adoração, numa total proximidade com os mais simples e pobres, sem fazer distinção de raça ou religião e sem qualquer desígnio de proselitismo. Numa carta a sua prima Bondy, explicava por que queria viver o amor universal em cada palpitação da sua vida oculta e frágil: “Quero habituar todos os habitantes, cristãos, muçulmanos, judeus e não crentes, a olharem para mim como seu irmão, o irmão universal (…) Começam a chamar a minha casa de ‘a fraternidade’ e isso me é caro”. De facto, tinha a sua casa sempre aberta para acolher quem lhe batia à porta, desde os tuaregues, rigidamente muçulmanos, até aos soldados franceses e turistas que visitavam o deserto.

Ao referir o Irmão Carlos como alguém que «quis ser pequeno para ser irmão de todos, a começar pelos excluídos e descartados», Edson Damian, bispo de São Gabriel da Cachoeira, no Brasil, considera que ‘a busca do último lugar’, assim testemunhada de forma existencial e geográfica, «apresenta-se hoje como um antídoto à autorreferencialidade da Igreja que se expressa no clericalismo», que sempre ameaça a Igreja.

Carlos de Foucauld inaugurou um modelo de vida contemplativa no coração do mundo. Esta modalidade, assente numa mística de imitação dos trinta anos de Jesus em Nazaré, continua a inspirar as várias fraternidades, que entre nós vivem a vocação, religiosa ou laical, através de uma vida simples e comum, nunca afastada da condição quotidiana dos mais pobres.

Talvez possamos resumir a espiritualidade de Charles de Foucauld a três palavras: pobreza (deserto), adoração (Eucaristia – oração); acolhimento (universalidade).

Hoje são muitos que procuram seguir a sua espiritualidade e o seu estilo de vida: vivem ou sobrevivem à custa do seu trabalho, graças aos pequenos salários auferidos em profissões mais ou menos indiferenciadas; habitam nos bairros mais pobres, partilhando as condições precárias dos demais residentes; compartilham o seu estilo de vida, suas expectativas e sofrimentos, sem olharem às suas crenças ou estatutos familiares; assumem compromissos com o mundo, a partir de uma vida simples e próxima com os mais desfavorecidos; reservam tempos fortes à oração e adoração, onde buscam forças para se dedicarem cada vez mais a Deus e aos irmãos. Como tudo isto faz falta à Igreja, hoje!

Em Portugal são alguns milhares que conhecem e se inspiram em Charles de Foucauld. Especialmente as Irmãzinhas de Jesus, em Fátima e em bairros de Lisboa, como o do Prior Velho, ou os Irmãozinhos de Jesus, em Setúbal, a Fraternidade Charles de Foucaudl e a Fraternidade Secular, que congrega muitos, de vários pontos do país, no mesmo testemunho de fraternidade universal.

Agora a Vida e a santidade do Irmão Carlos vai ser uma proposta para toda a Igreja. Alegramo-nos muito com isso e com a certeza, que continua a ser um estímulo e uma graça para a igreja que queremos construir e que, acreditamos, se fará presente aos homens e mulheres de hoje, procurando, como ele, encontrar Deus numa quotidiana vida oculta e gritar o Evangelho com a vida.


Ninguém Nasce Cristão

Carlos de Foucauld, antídoto contra a autorreferencialidade

Manuel António Ribeiro | 11 Mai 2022 | in 7 Margens

O Papa Francisco irá canonizar Carlos de Foucauld, no próximo domingo, 15 de maio, depois de este ter sido declarado venerável por João Paulo II em 2001 e proclamado beato em 2005 por Bento XVI. Desde o início do seu pontificado, este Papa já procedeu à beatificação de 1400 pessoas e à canonização de mais novecentas. Esta sua opção, que convida a reparar na proximidade dos “santos ao pé da porta”, homens e mulheres comuns, assenta no discernimento de que a santidade não está reservada a super-humanos. Como afirma na sua encíclica Gaudete et Exultate (nº 70), santo é aquele que, antes de tudo, é um “pobre de coração”, à imagem de Cristo. Talvez por isso, na encíclica Fratelli Tutti ele vê em Carlos de Foucauld “uma pessoa de profunda fé, que, a partir da sua experiência de Deus, realizou um caminho de transformação até se sentir irmão de todos” através de “uma identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto africano” (n. 286 e 287).

Para melhor se perceber o seu percurso de santidade, recordem-se alguns dos passos da vida deste novo santo. Aos dezasseis anos, Carlos de Foucauld perde a fé, permanecendo numa grande indiferença religiosa durante mais de doze anos. Vive a sua juventude a delapidar a rica herança, entregando-se a uma vida licenciosa de excentricidade e de excessos mundanos. Depois de ingressar no serviço militar aos 18 anos, é enviado para a Argélia, onde se revelou um oficial muito apreciado por chefes e soldados. Seguiu-se a sua participação numa exploração de territórios remotos de Marrocos, antes de ter regressado a França, onde continuou a procurar encontrar respostas para os seus desassossegos.

A fé de uma tia e de sua prima Maria de Bondy aviva-lhe as questões que acicatam a sua inquieta e ardente procura. Entra nas igrejas de Paris para repetir esta oração: “Meu Deus, se existes, faz com que eu te conheça.” Vai à igreja de Santo Agostinho para partilhar suas dúvidas com o padre Huvelin, mas este, ao aperceber-se de que as suas buscas se situam a um nível muito mais profundo que o doutrinário, convida-o a confessar-se e a comungar.

Depois de muito ter peregrinado pela vida e pelo mundo, começou a operar-se uma radical mudança dentro de si. Seduzido pela pobreza de Jesus durante os trinta anos de vida oculta de Nazaré, faz uma peregrinação à Terra Santa e decide fazer-se monge trapista. Pede, contudo, para deixar a Trapa, por considerar que a pobreza de Jesus em Nazaré não seria semelhante à que se praticava na clausura, mas às condições de vida das famílias muito pobres que viviam à volta do mosteiro. Vai viver como criado das Clarissas, cuidando da horta e entregando-se à contemplação num casebre.

Compreendendo pouco a pouco que para amar como Jesus de Nazaré, teria de fazer-se próximo dos mais abandonados, depois de ser ordenado padre, vai para o Sara argelino. Estabelece-se em Beni-Abbès, perto da fronteira com Marrocos, numa vida oculta e pobre, onde se entrega a longas horas de adoração eucarística. Quer gritar o Evangelho com a vida, considerando que a bondade de Deus deve ser proclamada pelo modo de relacionamento com os outros. Ao longo do dia acolhe pobres, doentes e soldados franceses, sem distinção de raça ou religião. Alegra-se por as pessoas começarem a dar à sua casa o nome de “fraternidade”, pois sente que a sua vocação é a de ser “irmão universal”. Reage contra a injustiça da escravatura, ainda praticada nessas paragens com a cumplicidade hipócrita do Governo francês, considerando que, diante de tal desumanidade, não podemos ficar como “cães mudos”.

Para estar o mais perto possível do povo mais desprotegido, deixa Beni-Abbès, optando por ir viver totalmente integrado na vida quotidiana de uma tribo tuaregue, num remoto aldeamento, em Tamanrasset, no sul da Argélia.

Depois de estalar a Grande Guerra 1914-18, Carlos de Foucauld chega a pensar ir para a frente do combate em França, mas não quer abandonar os seus amigos tuaregues nesse tempo de perigo em que as diferentes tribos tomavam partido pelas diversas potências dominantes. Constrói um fortim para proteger as pessoas da aldeia no caso de serem atacadas. No contexto de lutas entre grupos rivais, um bando conseguiu o assalto e o saque do fortim, deixando Foucauld manietado. Um adolescente desse grupo, que ficara encarregado de o vigiar, fica desorientado quando se apercebeu da chegada de um grupo rival e atinge-o com um disparo na cabeça. Foi nesse remoto lugar escondido, que ele, à imitação de Jesus de Nazaré, se manteve próximo dos irmãos muçulmanos até ao sacrifício da vida, no dia 1 de dezembro de 1916.

Esse seu exemplo tornou-se um modelo de referência no universo da santidade cristã do nosso tempo, ao inaugurar um exemplo de vida contemplativa não enclausurada em mosteiros, mas no coração do mundo. Uma tal modalidade, assente numa mística de imitação da vida oculta de Jesus em Nazaré, continua a inspirar as várias fraternidades, que entre nós vivem a vocação, religiosa ou laical, através de uma vida simples e comum, nunca afastada da condição quotidiana dos mais pobres. Os seus membros vivem ou sobrevivem à custa do seu trabalho, graças aos pequenos salários auferidos em profissões mais ou menos indiferenciadas, tal como acontece aos vizinhos com quem mantêm relações de total proximidade. Habitam nos bairros mais pobres, partilhando as condições precárias dos demais residentes. Compartilham o seu estilo de vida, suas expectativas e sofrimentos, sem olharem às suas crenças ou estatutos familiares. Assumem compromissos com o mundo, a partir de uma vida em comunhão com os mais desfavorecidos. Reservam tempos fortes à oração e adoração eucarística, onde buscam forças para se dedicarem cada vez mais a Deus e aos irmãos. É o que tem acontecido entre nós com as Irmãzinhas de Jesus, em Fátima e em bairros de Lisboa, como o do Prior Velho, ou com os Irmãozinhos de Jesus, em Setúbal. Igual testemunho de fraternidade universal continua a ser dado com a Fraternidade Secular Carlos de Foucauld, que congrega membros de vários pontos do país.

A Igreja deve estar muito grata a quem, através destas opções vocacionais, continua a manter vivo o testemunho do Irmão Carlos, procurando, como ele, encontrar Deus numa quotidiana vida oculta para aí “gritar o Evangelho com a vida”.

Ao referir o Irmão Carlos como alguém que “quis ser pequeno para ser irmão de todos, a começar pelos excluídos e descartados”, Edson Damian, bispo de São Gabriel da Cachoeira, no Brasil, considera que ‘a busca do último lugar’, assim testemunhada de forma existencial e geográfica, “apresenta-se hoje como um antídoto à autorreferencialidade da Igreja que se expressa no clericalismo, no carreirismo, no autoritarismo e no mundanismo de seus ministros”.

Este novo santo, que o teólogo Yves Congar considerou como “um farol que a mão de Deus acendeu no limiar do século XX” estimula um modo de presença da Igreja em estreita comunhão com pessoas de outras religiões e culturas, através de uma vida simples e próxima dos mais desfavorecidos, sem preconceitos moralizantes.

Manuel António Ribeiro é professor aposentado e faz voluntariado na docência de Português para imigrantes e refugiados. É membro do Metanoia e animador de catecumenado de adultos na Igreja Católica.


Ninguém Nasce Cristão

O Senhor espera-nos na nossa vida. Reconhecemo-lo?

Teresa Ramos, aci | in Ponto SJ | 1 Maio 2022

Depois dos primeiros encontros com o Ressuscitado, neste terceiro Domingo da Páscoa somos convidados a acompanhar os discípulos na sua intimidade e no seu regresso à rotina. Também nós, depois de termos vivido mais uma Páscoa e de termos experimentado com maior ou menor intensidade que o Senhor deu a vida por nós e venceu a morte, voltamos às nossas vidas com os seus problemas e desafios. Mesmo que nos tenhamos sentido renovados pela Ressurreição, o risco de esquecer que Jesus está vivo é grande e talvez até “normal”.

A boa notícia é que no meio desta vida-de-todos-os-dias, onde estamos “na nossa praia”, mas sobretudo nos momentos de crise em que “não pescamos nada”, o Senhor precede-nos na nossa Galileia (Mc 16,7). Será que acreditamos mesmo nisto? Temos fé que o Cristo Ressuscitado aparece através de uma conversa simples ou numa pergunta banal? Ousamos fazer o que nos pede, mesmo quando duvidamos que possa vir a funcionar, tão certos de que já tentámos tudo o que sabemos? Penso naquele problema de família, naquela relação difícil no trabalho, naquele hábito que descentra e que não consigo deixar. Mas nos dias que correm penso também na angústia de não sabermos o dia de amanhã. Acredito que a aparição deste Domingo é uma boa ajuda e dá-nos algumas chaves de leitura para deixar que o Senhor toque sem cessar a nossa vida quotidiana.

Tudo começa por aprender a reconhecer. O primeiro a reconhecer o Senhor é o discípulo muito amado. Na verdade, o programa de vida de Jesus foi mostrar-nos que somos, todos e cada um, discípulos muito amados. Lembramo-nos disso a cada dia? Se a nossa relação diária com Deus se resumir a tomar consciência deste amor, a reconhecê-lo, isso já transforma por completo a maneira como vivemos acontecimentos e relações, sem defesas, livres porque somos amados.

Outra maneira de O reconhecer e que está intimamente ligada à primeira é a Eucaristia. A mesa preparada, as brasas acesas com peixe em cima e o pão tomado e repartido (Jo 21,9) são a Eucaristia onde o Senhor se dá como na Última Ceia. Nesta entrega por amor temos o alimento para enfrentar cada desafio. Não somos ingénuos e sabemos, nem que seja por experiência própria, que a Eucaristia não resolve os problemas como num piscar de olhos. Mas em cada Eucaristia podemos reconhece-Lo e a aprender Dele a entrar em comunhão através das coisas mais pequenas: uma atitude, uma resposta, uma maneira de estar… E confiamos e sabemos que, a seu tempo, isso pode mudar de maneira profunda a realidade que vivemos.

Em seguida, podemos deixá-Lo avivar a nossa memória. Uma das infinitas características que me fascina em Deus é a maneira como faz história connosco. Fazer história passa por fazer memória. Mas, com Deus, a memória não nos subjuga. Antes é motivo de transformação do presente e de um abrir de portas para o futuro. Numa altura em que a tendência é viver com intensidade o presente e “cancelar” tudo o que no passado é motivo de vergonha, Deus, o especialista em fazer memória, vem mostrar-nos na Ressurreição de Jesus que Se aproveita de tudo como oportunidade para nos dar vida. Mesmo que isso exija uma “Páscoa” (uma passagem, da palavra hebraica “Pessach”). A memória está presente e é avivada ao longo de todo o texto do Evangelho da missa de hoje. À borda deste lago deram-se muitos encontros, nas suas águas superaram-se muitos medos. A refeição partilhada é uma entre tantas onde se construíram relações. Mas olhar os acontecimentos presentes com uma memória avivada, não é ver as coisas à nossa maneira onde o desgosto, o ressentimento e a culpabilidade batem à porta com facilidade. Antes, é deixar que o Senhor da vida mude a nossa maneira de ver para a Sua maneira de ver sempre nova. E se não sabemos como fazê-lo, podemos sempre pedir-Lhe esta luz e esta graça.

Finalmente, somos convidados a arriscar a intimidade com Jesus. O diálogo entre Jesus e Pedro faz-nos entrar na intimidade de uma relação profunda mesmo que cheia de tropeções. Mostra-nos que Jesus não só não desiste de nós, como continua a enviar-nos confiadamente à nossa rotina. Estar na vida a partir desta relação implica nem sempre saber o que nos espera e que outros (pessoas ou situações) nos levem por onde não queremos. Mas, como Pedro, que deixou que esta relação fosse o centro da sua vida, apesar de fragilidades e tropeções, podemos sempre voltar a este diálogo e dizer com confiança: «Senhor, Tu sabes tudo.» Tu sabes não só que Te amo, mas como Te amo.

Sim, Senhor, tu sabes como Te amamos e como Te desamamos na nossa vida de todos os dias e ainda assim lá nos esperas e lá nos pedes que Te sigamos. Reconheçamos a confiança que o Cristo Ressuscitado tem em nós e peçamos que seja a força primordial que nos faz encarar a vida de cada dia de maneira ressuscitada.


Ninguém Nasce Cristão

Páscoa 2022: mistério, símbolo e profecia

P. José Nuno Ferreira da Silva | 27 Abril 2022 | in Ponto SJ

Hoje é Domingo da Misericórdia, com que concluiu a Oitava da Páscoa de 2022.

Do Deserto onde me encontro e onde permanecerei ainda alguns meses, à procura do que só o silêncio da solidão pode dar, partilho esta meditação pascal sobre o tempo sombrio que vivemos. O silêncio, precisamente, a ditou.

Há dois anos disse, e há um ano repeti, que aquelas seriam “a grande Páscoa das nossas vidas”, em razão da consciência da nossa fragilidade existencial a que a experiência da vulnerabilidade face à pandemia nos reconduzia. É que a fragilidade humana é o lugar da Páscoa de Cristo.

Mas este ano faz-nos ir mais longe ainda na consciência da fragilidade humana: ela não se nos dá a experimentar apenas na vulnerabilidade que nos diz mortais; oferece-se ainda mais agudamente na experiência do mal. E a Páscoa de 2022 é a Páscoa em que, tão perto que é impossível ignorar, o mal, o escândalo perpétuo da iniquidade, se manifesta na sua porventura mais tremenda concretização: a guerra. Não libertos ainda da pandemia, vemo-nos encharcados por uma guerra. É total a expressão da fragilidade, não apenas porque diz ainda a vulnerabilidade, mas porque diz a iniquidade. A morte e o pecado, as duas dimensões da fragilidade humana, existencial e moral, são o lugar da Páscoa de Cristo. Esta, sim, é a Páscoa das nossas vidas! Como será para o ano? Será Páscoa, será sempre Páscoa, sempre será Páscoa, vitória paradoxal do Homem das Dores, Deus dorido, elevado sobre a cruz, sepultado, ressuscitado aparecido a uma mulher, na alva do Terceiro Dia.

A Páscoa é e será sempre paradoxal porque vive do íntimo paradoxo da misericórdia de Deus em diálogo com a fragilidade humana: quanto maior e mais radical for a experiência desta, tão maior e mais interiorizado será o nosso conhecimento do rosto d’Aquele que é a misericórdia, porque a nossa miséria a requer e reclama e, quanto mais funda e larga for a miséria, mais profunda e largamente Deus oferece a misericórdia. É paradoxo mesmo, mistério – como o da nossa iniquidade – ininteligível aos limites da nossa razão: a miséria humana atua a misericórdia divina, Deus deixa-se ativar pelo Homem no processamento misericordioso da História. Di-no-lo a Cruz, a cujo dinamismo redentor nada escapa. A misericórdia é o mistério. A cruz é o símbolo. Irina, ucraniana, e Albina, russa, – quem são? – a profecia. Tudo é a Páscoa!

Por isto, destaco a fotografia maior para dizer esta Páscoa. Há fotos belíssimas de Irina e Albina, empunhando já a cruz, a olhar cada uma o olhar da outra, ou Albina a olhar o chão e o olhar de Irina a atravessar o tempo. Mas destaco a primeira, em que os seus olhares, em vez de se espelharem reciprocamente, ou se perderem no chão ou no tempo, convergem e se encontram no espelho nu e límpido, intrigante e intacto, mesmo se ferido, do Cosmos, que é chão e tempo: o espelho, a Cruz.

Esta foto diz a Páscoa de 2022. Aliás, diz a Páscoa, simplesmente. Diz o mistério, o símbolo e a profecia que a Páscoa instaura – e não, em primeiro lugar, por serem as duas uma parábola do cuidado, enquanto mulheres e enfermeiras. Irina é enfermeira de cuidados paliativos; Albina é estudante de enfermagem. Irina é ucraniana; Albina é russa. E por este facto é que foram chamadas para levar a Cruz de Jesus na Estação XIII da Via Crucis da noite de Sexta-feira Santa no Coliseu, em Roma.

O Papa Francisco quis esta interpelação e não abdicou dela, resistindo a todas as pressões que vieram de vários âmbitos, tentando sobrepor as velhas razões de guerra à sempre nova novidade do Evangelho. Francisco resistiu. Razão política ou diplomática alguma poderia castrar, estancar, calar a Páscoa, impedir o mistério de se narrar, o símbolo de significar, a profecia de ser pronunciada. A persistência do Papa conseguiu inscrever, na escuridão instituída pelo tombar das bombas, o jorrar do sangue e o correr das lágrimas, um ponto de luz evangélica, verdadeiramente o radical da alternativa cristã, tão absolutamente necessário neste tempo de bélicas narrativas de diplomacia e propaganda rendidas e vendedoras ao discurso e do discurso exclusivista da violência. E Irina, ucraniana, e Albina, russa, juntaram as suas mãos e tomaram a Cruz de Jesus, a Cruz dos seus povos, como aos olhos e aos ouvidos de todos aparece e soa, povos um agredido, outro agressor. A perpétua paixão do Mundo, paixão de Deus, Deus em paixão-compaixão.

É porque uns agridem e outros são agredidos – e quem não se reconhece ator seja dum seja doutro destes papéis nos contornos mais ou menos secretos da sua existência, em que se aninham, determinante, Caim, o fratricida, e, sofrendo, Abel, a vítima-irmão? –, é porque uns matam culposamente e outros são mortos inocentemente que a Cruz de Cristo, síntese da sua Páscoa toda, Paixão, Morte e Ressurreição, irrompe no História como horizonte e fonte.

Pressionado, Francisco resistiu. Cedeu, retirando o texto da meditação da Estação XIII da Via Crucis, mas manteve Irina, ucraniana, e Albina, russa, a levar a Cruz no passo da Morte de Jesus. A Páscoa, mistério, símbolo e profecia, plenamente dados e exponenciados pelo silêncio no seu impacto transfigurador, quando se ouviu no Coliseu de tantas memórias sangrentas de martírio-semente: “Diante da morte, o silêncio é mais eloquente do que as palavras. Permaneçamos, portanto, em silêncio orante e cada um no seu coração reze pela paz no mundo”. De facto, o silêncio – este, um silêncio discutido e disputado – é a grande via de acesso ao mistério, ao símbolo e à profecia. À Páscoa! E é, o silêncio, a grande via de acesso do mistério, do símbolo e da profecia pascais ao nosso interior. O silêncio é o acesso à mais radical verdade da Páscoa!

Que palavras perdemos? Dizia assim a Meditação: “A morte em redor. A vida que parece perder valor. Tudo muda em poucos segundos. A existência, os dias, brincar com a neve de inverno, ir buscar os filhos à escola, o trabalho, os abraços, as amizades… tudo. Inesperadamente tudo perde valor. «Onde estais, Senhor? Onde Vos escondestes? Queremos a nossa vida anterior. Porquê tudo isto? Que falta cometemos? Porque é que nos abandonastes? Porque é que abandonastes os nossos povos? Porque é que dividistes assim as nossas famílias? Porque é que já não temos vontade de sonhar e de viver? Porquê se tornaram tenebrosas como o Gólgota as nossas terras?» As lágrimas acabaram-se. A raiva deu lugar à resignação. Sabemos que Vós nos amais, Senhor, mas não sentimos este amor e isto faz-nos enlouquecer. Acordamos de manhã e sentimo-nos felizes por alguns segundos, mas logo a seguir pensamos como será difícil reconciliar-nos. Senhor, onde estais? Falai no silêncio da morte e da divisão e ensinai-nos a fazer a paz, a ser irmãos e irmãs, a reconstruir aquilo que as bombas teriam querido aniquilar”.

Palavras, estas, significativas e fecundas que não foram ditas e ouvidas. Mas quão mais significativo e fecundo terá sido o silêncio imenso que acompanhou os passos de Irina, ucraniana, e Albina, russa, transportando juntas aos olhos do mundo, sofrendo intensamente, a Cruz do Redentor (vídeo da Via Crucis em Roma, minuto 1h16′)? O mistério narrou-se. O símbolo uniu. A profecia foi pronunciada. A Páscoa cumpriu-se. Porque, que mais necessário é, em tempo de violentos e de vítimas, que a narrativa do mistério do perdão?; que mais necessário, em tempos de injustiça e guerra, que o símbolo da reconciliação?; que mais necessário, em tempos de incerteza e medo, que a profecia da esperança? Que é mais necessário, em tempo de paixão, que a compaixão?

Foi a estas interrogações – e a tantas outras, tantas quantas formularam secretamente os milhares junto ao Coliseu e os milhões de pessoas que, por todo o mundo, seguiram em direto a transmissão da Via Crucis –, tão cruciais como a Cruz caminhando através delas, que o silêncio, imposto por razões políticas e diplomáticas, acabou por oferecer, afinal, uma oportunidade única de soarem mais clara e distintamente no interior de cada um, que assim pôde, não apenas limitar-se a acompanhar uma meditação previamente escrita por alguém, mas confrontar-se consigo mesmo mergulhado neste tempo de caos.

Só a nudez interior do silêncio permite reconhecer e encontrar na Cruz do Crucificado-Ressuscitado a narrativa do mistério que redime a fragilidade humana, o símbolo que une e vincula os homens entre si e com Deus, a profecia que abre o futuro à esperança no lugar do desespero, à verdade no lugar da mentira, à novidade do Reino desde já e, além morte, à plenitude do encontro, à eternidade da felicidade, à vida inteiramente realizada. É a Páscoa! Esta é a alegria da Páscoa, alegria irreversível, alegria irrevogável, alegria inexpugnável! Mesmo, ou principalmente, se as razões de sofrimento, angústia e tristeza se impõem. A alegria que a Páscoa oferece é mais profunda do que as fundas covas deixadas pelas bombas que tombam sobre Mariupol (e podemos esquecer Alepo, na Síria, e a Palestina e a Líbia e a Eritreia e a Nigéria e Myanmar e a Nicarágua e…?). A alegria da Páscoa, sempre mais além do que o destino que buscam e encontram os refugiados de toda a Ucrânia (e que hospitalidade é oferecida aos do Médio Oriente ou do seu extremo e da África e da América latina e…?). A alegria da Páscoa, só a pode conhecer quem se converte.

“A paz esteja convosco!” – três vezes o diz o Crucificado-Ressuscitado no Evangelho de hoje. “Mete o teu dedo nas chagas das minhas mãos e a tua mão no meu lado aberto”, diz a Tomé, que não O vira. “E não sejas incrédulo, mas crente”. Se não o podemos ver, porque o horizonte está encoberto pelo fumo negro do fragor da guerra, ao menos procuremos ouvi-lo, no silêncio dos corações, a dizer a cada um: “Felizes os que acreditam sem terem visto”. Todas as chagas da nossa humana fragilidade ferida, as dos ucranianos como as dos russos e… de tantos outros, todas são transfiguráveis, ilumináveis pelas chagas do corpo do Ressuscitado: o mistério da misericórdia, o símbolo da Cruz, as mãos e o olhar de Irina, ucraniana, e Albina, russa, levando e olhando convergentemente a Cruz, através da noite silenciosa do Coliseu de Roma. É noite neste Mundo rasgado por valas comuns. Mas “esta é a noite em que Jesus Cristo se levanta vitorioso do túmulo!” – canta o precónio da Vigília Pascal – para nos levantar na vida, para nos levantar da morte, para erguer o Mundo e o sarar, para fazer entrar nele, através das fendas que os disparos abrem nas paredes escurecidas e sombrias do tempo, chagas no corpo do Mundo, a luz clara do mistério, do símbolo e da profecia da Páscoa eterna a fazer-se História. Quanto mais a História a nega, mais a afirma como dom gratuito e amoroso de Deus. Dom que pede e espera, pacientemente, a resposta do compromisso livre dos homens, de cada pessoa humana. É a Misericórdia, o absoluto pascal!

O Senhor ressuscitou verdadeiramente e, paradoxalmente, vive e sofre e morre em cada pessoa humana que viva e sofra e morra às mãos de outra pessoa humana… sem esquecer que o lugar mais extremo do Evangelho é o amor aos inimigos. É, em tudo, o evangélico paradoxo pascal da Cruz de Jesus Cristo, que não poderá nunca calar o anúncio a que a Igreja – e nela cada cristão – está obrigada, por condição e missão: é sacramento de salvação.

“Mete o teu dedo nas chagas das minhas mãos e a tua mão no meu lado aberto” – e Tomé respondeu – “Meu Senhor e meu Deus”. Felizes de nós se acreditarmos, não apenas sem termos visto, mas até contra a aparência da evidência. O Crucificado é o Ressuscitado! Ressurgiremos! Aleluia!


Ninguém Nasce Cristão

SANTA MISSA DA DIVINA MISERICÓRDIA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
II Domingo de Páscoa o da Divina Misericórdia, 24 de abril de 2022

Hoje o Senhor ressuscitado aparece aos discípulos e oferece-lhes – a eles que o haviam abandonado - a sua misericórdia, mostrando as suas chagas. As palavras que lhes dirige estão cadenciadas por uma saudação, que aparece três vezes no Evangelho de hoje: “A paz esteja convosco!” (Jo 20,19.21.26). “A paz esteja convosco!” é a saudação do Ressuscitado que vem ao encontro de todas as fraquezas e erros humanos. Vamos então seguir as três saudações de paz de Jesus: descobriremos em nós três ações da misericórdia divina. Em primeiro lugar, dá alegria; depois, desperta o perdão; e finalmente, consola durante o cansaço.

1. Em primeiro lugar, a misericórdia de Deus dá alegria, uma alegria especial, a alegria de se sentir gratuitamente perdoado. Quando, na noite de Páscoa, os discípulos veem Jesus e o ouvem dizer pela primeira vez “A paz esteja convosco!”, alegram-se (cf. v. 20). Eles estavam trancados em casa com medo; mas também estavam fechados em si mesmos, dominados por uma sensação de fracasso. Eram discípulos que haviam abandonado o Mestre: no momento de sua prisão, haviam fugido. Pedro até o negou três vezes e alguém pertencente ao seu grupo – mesmo um deles! - havia sido o traidor. Tinham motivos para se sentir não apenas assustados, mas fracassados, gente sem valor algum. No passado, é claro, eles tinham feito escolhas corajosas, haviam seguido o Mestre com entusiasmo, compromisso e generosidade, mas no final tudo havia desmoronado; o medo havia prevalecido e eles tinham cometido o grande pecado: deixar Jesus sozinho no momento mais trágico. Antes da Páscoa, eles pensavam que eram feitos para grandes coisas, discutiam sobre quem era o maior entre eles e assim por diante... Agora, eles se encontram mesmo no fundo do poço.

Nesse clima, ouvem por primeira vez “A paz esteja convosco!”. Os discípulos poderiam ter-se sentido envergonhados e, em vez disso, se alegraram – Quem os entende? – Porque? Porque aquele rosto, aquela saudação, aquelas palavras desviam o foco de sua atenção de si mesmos para Jesus: de fato, “os discípulos se alegraram - o texto especifica - ao ver o Senhor” (v. 20). Eles são distraídos de si mesmos e de seus fracassos e atraídos pelo olhar do Senhor, onde não há severidade, mas misericórdia. Cristo não se queixa do passado, mas transmite-lhes a benevolência de sempre. E isso os reanima, infunde a paz perdida em seus corações, os torna homens novos, purificados por um perdão concedido sem cálculos, um perdão concedido sem méritos.

Esta é a alegria de Jesus, a alegria que também nós sentimos ao experimentar o seu perdão. Já nos aconteceu de assemelhar-nos aos discípulos da Páscoa: depois de uma queda, um pecado, um fracasso. Nesses momentos parece que não há mais nada a ser feito. Mas ali mesmo o Senhor tudo faz para nos dar a sua paz: através de uma Confissão, das palavras de uma pessoa que se aproxima, de uma consolação interior do Espírito, de um acontecimento inesperado e surpreendente... De várias maneiras Deus se desvela para fazer-nos sentir o abraço de sua misericórdia, uma alegria que vem de receber “o perdão e a paz”. Sim, a alegria de Deus é uma alegria que nasce do perdão e que traz paz. É mesmo assim: nasce do perdão e traz a paz; uma alegria que eleva sem humilhar, como se o Senhor não entendesse o que está acontecendo. Irmãos e irmãs, lembremo-nos do perdão e da paz recebidos de Jesus. Cada um de nós já os recebemos; cada um de nós já fez a experiência. Recordemo-nos brevemente: nos fará bem! Coloquemos a memória do abraço e das carícias de Deus antes da lembrança dos nossos erros e das nossas quedas. Assim alimentaremos a alegria. Porque nada pode ser como antes para quem experimenta a alegria de Deus! Esta alegria que transforma!

2. “A paz esteja convosco!” O Senhor o diz uma segunda vez, acrescentando: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio” (v. 22). E dá aos discípulos o Espírito Santo, para torná-los agentes de reconciliação: “A quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados” (v. 23). Eles não apenas recebem misericórdia, mas tornam-se dispensadores da mesma misericórdia que receberam. Eles recebem esse poder, mas não por seus méritos, por seus estudos, não: é um puro dom da graça, que, no entanto, se baseia em sua experiência como homens perdoados. Agora dirijo-me a vós, missionários da Misericórdia: se cada um de vós não se sente perdoado, que deixe de ser um missionário da Misericórdia, até o momento em que se sinta novamente perdoado. E daquela misericórdia recebida sereis capazes de dar tanta misericórdia, de dar tanto perdão. E hoje e sempre na Igreja, o perdão deve chegar-nos assim, através da humilde bondade de um confessor misericordioso, que sabe que não é detentor de algum poder, mas canal de misericórdia, que derrama sobre os outros o perdão do qual ele primeiro se beneficiou. E daqui nasce aquela disposição de perdoar tudo, pois Deus perdoa tudo. Tudo e sempre. Somos nós que nos cansamos de pedir o perdão, mas Ele perdoa sempre. E vós deveis ser canais deste perdão, através da experiência de ter sido perdoados. Não é necessário torturar os fiéis que chegam até vós com os seus pecados, mas entender o que lhes acontece, escutar, perdoar e dar bons conselhos ajudando-os a seguir em frente. Deus perdoa tudo: não é preciso fechar aquela porta...

“A quem perdoardes os pecados, lhes serão perdoados.” Estas palavras estão na origem do sacramento da Reconciliação, mas não só. Toda a Igreja foi feita por Jesus uma comunidade dispensadora de misericórdia, um sinal e um instrumento de reconciliação para a humanidade. Irmãos, irmãs, cada um de nós recebeu o Espírito Santo no Batismo para ser homem e mulher de reconciliação. Quando experimentamos a alegria de sermos libertos do peso dos nossos pecados, dos nossos fracassos; quando sabemos em primeira mão o que significa renascer, depois de uma experiência que parecia não ter saída, então precisamos compartilhar o pão da misericórdia com aqueles que nos rodeiam. Sintamo-nos chamados a isso. E perguntemo-nos: eu, aqui onde vivo, eu na minha família, eu no trabalho, na minha comunidade, promovo a comunhão, sou um “tecelão de reconciliação”? Comprometo-me a desarmar conflitos, a trazer perdão onde há ódio, paz onde há ressentimento? Ou caio no mundo das murmurações, que sempre matam? Jesus procura em nós testemunhas para o mundo destas suas palavras: “A paz esteja convosco!” Recebi a paz, devo transmiti-la ao outro.

3. “A paz esteja convosco!” repete o Senhor pela terceira vez quando reaparece oito dias depois aos discípulos, para confirmar a fé laboriosa de Tomé. Tomé quer ver e tocar. E o Senhor não se escandaliza com a sua incredulidade, mas vem ao seu encontro: “Coloque o dedo aqui e veja as minhas mãos” (v. 27). Não são palavras de desafio, mas de misericórdia. Jesus compreende a dificuldade de Tomé: não o trata com severidade e o apóstolo fica abalado interiormente com tanta benevolência. E é assim que, de incrédulo, ele se torna crente e faz a mais simples e bela confissão de fé: “Meu Senhor e meu Deus!” (v. 28). É uma bela invocação, podemos torná-la nossa e repeti-la ao longo do dia, especialmente quando experimentamos dúvidas e trevas, como Tomé.

Porque em Tomé está presente a história de cada crente, de cada um de nós, de cada fiel: há momentos difíceis, nos quais a vida parece negar a fé, nos quais estamos em crise e precisamos tocar e ver. Mas, como Tomé, é precisamente aqui que redescobrimos o coração do Senhor, a sua misericórdia. Nessas situações, Jesus não vem em nossa direção triunfante e com provas contundentes, não realiza milagres prodigiosos, mas oferece sinais calorosos de misericórdia. Ele nos conforta com o mesmo estilo do Evangelho de hoje: oferecendo-nos suas chagas. Não esqueçamos isto: diante dos pecados, do pecado mais horrendo, nosso ou dos demais, existe sempre a presença do Senhor que oferece as suas chagas. Não esqueçam disto! E, em nosso ministério como confessores, devemos fazer ver às pessoas que diante dos seus pecados estão as chagas do Senhor, que são mais poderosas que o pecado.

E também nos faz descobrir as feridas dos irmãos e irmãs. Sim, a misericórdia de Deus, nas nossas crises e nos nossos esforços, coloca-nos muitas vezes em contacto com os sofrimentos do próximo. Achávamos que estávamos no ápice do sofrimento, no auge de uma situação difícil, e então descobrimos aqui, permanecendo em silêncio, que existe alguém que está passando por momentos, períodos piores. E, se cuidarmos das feridas do próximo e derramarmos misericórdia sobre ele, renasce em nós uma nova esperança, que nos consola no cansaço. Então, perguntemo-nos se nos últimos tempos tocamos as feridas de alguém que sofre no corpo ou no espírito; se trouxemos paz a um corpo ferido ou a um espírito quebrantado; se passamos algum tempo ouvindo, acompanhando, consolando. Quando fazemos isso, encontramos Jesus que, com os olhos de quem é provado pela vida, nos olha com misericórdia e diz: “A paz esteja convosco!” E, me agrada pensar na presença de Nossa Senhora ali, em meio aos Apóstolos, e como, depois de Pentecostes, a pensamos como Mãe da Igreja: me agrada muito pensar n’Ela na segunda-feira após o Domingo da Misericórdia como Mãe da Misericórdia. Que Ela nos ajude a seguir em frente em nosso ministério que é tão belo.


Ninguém Nasce Cristão

São John Henry Newman (1801-1890)
teólogo, fundador do Oratório em Inglaterra
Sermão «A dificuldade em compreender os privilégios sagrados», PPS, t. 6, n.° 8

Este é o dia

«Este é o dia que o Senhor fez, nele cantemos e nos alegremos» (Sl 117,24). [...] Como cristãos, nascemos para o Reino de Deus desde a mais tenra infância [...]; porém, embora tenhamos consciência desta verdade e acreditemos totalmente nela, temos muita dificuldade em captar este privilégio e levamos muitos anos a compreendê-lo; aliás, ninguém o compreende totalmente. [...] E, mesmo neste grande dia, neste dia dos dias, em que Cristo ressuscitou dos mortos [...], estamos como crianças, [...] sem olhos para ver nem coração para compreender quem somos verdadeiramente. [...]

Este é o dia da Páscoa — repitamo-lo uma vez e outra, com profundo respeito e uma grande alegria. Como as crianças dizem «Chegou a primavera» ou «Olha o mar», para tentarem captar a ideia [...], digamos nós também «Eis o dia dos dias, o dia régio, o dia do Senhor. Eis o dia em que Cristo ressuscitou dos mortos, o dia que nos traz a salvação». Este dia torna-nos maiores do que podemos compreender. É o dia do nosso repouso, o nosso verdadeiro sábado, em que Cristo entrou no seu repouso (cf Heb 4), e nós com Ele. Este dia conduz-nos, em prefiguração, pelo túmulo e as portas da morte, até ao tempo do repouso no seio de Abraão (cf At 3,20; Lc 16,22).

Estamos fartos de fadiga, morosidade, lassidão, tristeza e remorso. Estamos cansados deste mundo sofrido, dos seus barulhos e da sua algazarra; a melhor música que nele se toca soa-nos a ruído. Agora, porém, reina o silêncio, e é um silêncio que fala [...]: tal é doravante a nossa beatitude. Começam os dias calmos e serenos em que Cristo Se faz ouvir com a sua «voz doce e tranquila» (1Rs 19,12), porque o mundo deixou de falar. Despojemo-nos do mundo e revistamo-nos de Cristo (cf Ef 4,22; Rom 13,14). [...] E, despojando-nos assim, revistamo-nos de coisas invisíveis e imperecíveis! Cresçamos em graça e no conhecimento do nosso Senhor e Salvador, estação após estação, ano após ano, até que Ele nos leve consigo [...] para o Reino de seu Pai e nosso Pai, do seu Deus e nosso Deus (cf Jo 20,17).


Ninguém Nasce Cristão

A conversão na perspectiva de Inácio de Loyola

P. Domingos Terra, sj | in Ponto SJ | 3 Abril 2022

Para entendermos o que é a conversão no pensar e no viver de Inácio de Loyola, temos que visitar o livro dos Exercícios Espirituais que ele escreveu. Propõe-se aí um percurso que ajude a pessoa a descobrir a vontade de Deus para a sua vida, oferecendo-lhe também a motivação e a coragem para a abraçar. Há um fio condutor naquilo que vai sendo pedido ao exercitante com vista a fazê-lo chegar a uma meta.

Assim, logo no primeiro momento de oração proposto à pessoa, no chamado “Princípio e Fundamento” (nº 23 dos Exercícios) é explicitada a ideia do “ser para”. É dito que o ser humano «é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus». Afirma-se que ele tem que ter isto presente na hora de lidar com toda a variedade de coisas que são postas à sua disposição.

Por sua vez, no momento final de oração dos Exercícios, na chamada “Contemplação para alcançar amor”, é proposto à pessoa que faça o oferecimento de si, dispondo-se a concretizar na sua vida o “ser para” atrás referido. Com efeito, é-lhe pedido no nº 234 dos Exercícios que diga: «Tomai, Senhor, e recebei toda a minha liberdade […]. Tudo é vosso, disponde de tudo, segundo toda a vossa vontade». Significa isto que o “para” que exprime a finalidade da pessoa implica a liberdade desta para o levar às suas consequências.

O itinerário dos Exercícios Espirituais aparece, então, como uma “fábrica de liberdade”. Procura-se que a pessoa atinja um grau de liberdade que se revele compatível com a expetativa que Deus tem a seu respeito. É claro que este esforço de alargamento da liberdade não é para ser efetuado de modo abstrato. Os Exercícios têm em consideração toda a circunstância exterior e interior da pessoa que os faz. É a partir desta circunstância que o dito esforço deve ser empreendido.

Ora, é precisamente neste alargamento da liberdade pessoal face a Deus Criador que se tem de aplicar o esforço de conversão segundo Inácio de Loyola. É preciso passar da falta de liberdade à existência dela. É preciso passar da menor liberdade à maior liberdade. Trata-se dum esforço que envolve a dimensão afetiva da pessoa, isto é, aquilo que atrai, move, direciona o seu coração.

Por isso, é dito no nº 1 dos Exercícios que estes visam ajudar a pessoa a «tirar de si todas as afeições desordenadas», isto é, os movimentos interiores que a impedem de viver ordenada para o fim para que foi criada. É tirando de si essas afeições que a pessoa está em condições de «buscar e achar a vontade divina, na disposição da sua vida», conforme diz o mesmo nº 1.

Deste modo, o esforço de conversão torna-se claramente personalizado. Cada pessoa vive os seus impedimentos e lutas interiores que lhe consomem as energias e roubam a disponibilidade de estar ativamente centrada em Deus. Cada pessoa tem as suas afeições desordenadas, dalguma forma ligadas à sua estrutura e circunstância. Daí que deva alcançar um formato de liberdade que venha a propósito da riqueza que ela tem e, por conseguinte, daquilo que ela é. Tem que ser uma liberdade que permita encarar todo o investimento que Deus fez nela como instrumento de serviço: serviço a Ele e, por essa via, serviço também aos outros.

Pontos de oração:

– Deus criou-me e continua a facultar-me a sua graça. Estou, de antemão, posto a existir, certamente com uma intenção. Assumo, de verdade, que existo para louvar, reverenciar e servir a Deus?

– Há a “liberdade de” e a “liberdade para”. Mas é em função da segunda que a primeira tem sentido. Que “amarras” me impedem de viver de acordo com o fim para que Deus me põe a existir?


Ninguém Nasce Cristão

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
A MALTA
(2-3 DE ABRIL DE 2022)

VISITA À GRUTA DE SÃO PAULO

ORAÇÃO DO SANTO PADRE

Basílica de São Paulo em Rabat
Domingo, 3 de abril de 2022

Deus de misericórdia,
na vossa admirável providência
quisestes que o Apóstolo Paulo
anunciasse o vosso amor aos habitantes de Malta,
que ainda não Vos conheciam.
Ele proclamou-lhes a vossa palavra
e curou as suas doenças.

Salvos do naufrágio,
São Paulo e os companheiros de viagem
encontraram aqui, acolhendo-os,
pessoas pagãs de bom coração,
que os trataram com invulgar humanidade,
apercebendo-se que precisavam
de abrigo, segurança e assistência.
Ninguém conhecia os seus nomes,
a proveniência nem a condição social;
sabiam apenas uma coisa:
que precisavam de ajuda.

Não era momento para discussões,
juízos, análises e cálculos:
era o momento de prestar socorro;
deixaram as suas ocupações
e assim fizeram.

Acenderam uma grande fogueira,
e fizeram-nos enxugar e aquecer.
Acolheram-nos com coração aberto
e, juntamente com Públio,
o primeiro no governo e na misericórdia,
encontraram alojamento para eles.

Pai bom,
concedei-nos a graça dum bom coração
que palpite de amor pelos irmãos.
Ajudai-nos a reconhecer de longe as necessidades
daqueles que lutam por entre as ondas do mar,
atirados contra as rochas duma costa desconhecida.
Fazei que a nossa compaixão
não se reduza a palavras vãs,
mas acenda a fogueira do acolhimento,
que faz esquecer o mau tempo,
aquece os corações e os une:
lareira da casa construída sobre a rocha,
da única família dos vossos filhos,
todos irmãos e irmãs.
Vós amai-los sem distinção
e quereis que nos tornemos um só
com o vosso Filho, Jesus Cristo, nosso Senhor,
pelo poder do fogo enviado do Céu,
o vosso Espírito Santo,
que queima toda a inimizade,
e de noite ilumina o caminho
rumo ao vosso reino de amor e de paz.
℟. Amen.

ORAÇÃO
na Basílica de São Paulo

Ó Deus, a vossa misericórdia é infinita
e inesgotável o tesouro da vossa bondade:
aumentai benignamente a fé do povo a Vós consagrado,
para que todos compreendam com sabedoria
o amor que os criou,
o Sangue que os redimiu,
o Espírito que os regenerou.
Por Cristo nosso Senhor.
℟. Amen.


Ninguém Nasce Cristão

Sós, mas não abandonados

P. José Frazão Correia sj | 23 Março 2022 | in Ponto SJ

Reli, recentemente, A Vitalidade da Bênção, de Elmar Salmann (Braga: AO, 2017). Devo tanto a este pensador, às suas aulas, que pude seguir há anos, e, sobretudo, aos seus livros. Vejo-me a regressar constantemente a eles, em busca de chaves de interpretação e de aberturas. É espiritual aquilo que abre. Se há pessoas, circunstâncias, livros que fecham, há muitos outros que têm a virtude de abrir. Sempre que acontece, ficamos tão reconhecidos e gratos.

«Devemos respeitar e abraçar a difícil bênção da contingência», escreveu-me uma vez, num cartão dactilografado. Conservo-o como um tesouro. Tornou-se para mim uma fórmula para a decantação da matéria da vida, ora bruta, ora gentil, um mapa de orientação para percorrer os seus caminhos, luminosos e promissores, umas vezes, arriscados e áridos, outras. Repare-se bem: respeitar e abraçar a difícil bênção da contingência. Sobre a vida, fica quase tudo dito. Respeitar as promessas e os limites da contingência de cada coisa e da nossa finitude, sem carregar os tons nem ceder à tentação de pecar por euforia (tudo é possível; posso tudo) ou por depressão (nada é possível; nada posso). É, porém, tão difícil orientar-se pela luz desta estrela – respeitar e abraçar a difícil bênção da contingência –, alcançar esta sabedoria prática. O mais fácil e comum será exigir demasiado a nós próprios, aos outros, ainda mais a quem amamos, ao espírito, ao tempo, à natureza…. Tendemos a forçar a realidade e os outros para lá dos seus limites, a fazer-lhes violência. Torturamo-los para lhes extorquir uma verdade que não podem confirmar, para extrair um retorno que não podem garantir. Pelo contrário, respeitar e abraçar a contingência é uma forma de salvaguarda. Salvaguardar a vida, o amor, a liberdade, as relações, a verdade, a justiça, a arte, a paz, também a fé. São bênçãos, mas, por vezes, tão difíceis. E, porém, no seu custo, permanecem bênção, promessa de bem sem a qual não vivemos.

Bênção difícil é também a solidão. No capítulo segundo de A Vitalidade da Bênção, enquanto observa o estado atual da vida religiosa, recorda Salmann como «todo o homem é e está só (alleinig) […] e nesse estado permanece: completamente só (all-einig). Cada homem é um mundo». Mas isso «é também, em si, um bem», porque «nada de grande pode surgir a não ser na solidão, tal como acontece à vida humana no seio materno». Reparemos, convida o autor, em figuras como Bento de Núrcia, Francisco de Assis, João da Cruz ou Inácio de Loyola, Charles de Foucuald, Teresa de Ávila, Teresa de Lisieux ou Teresa de Calcutá. Passaram todos pela solidão radical. Habitaram cavernas, alguns literalmente, de onde, por fim, se viram a renascer. Por isso, «não são de modo algum homens e mulheres incapazes, insignificantes, hesitantes, mas, antes, figuras fundamentais da história da Igreja». Revelam como «a solidão, que hoje é concebida como algo de melodramático, insuportável e depressivo, é, neles, pelo contrário, algo de grande, que é preciso aprender a enfrentar com coragem». Num tempo de comunicação contínua, de partilha sem limites, de múltiplas e ininterruptas interconectividades, podemos iludir-nos. Cada homem e cada mulher passam pelo mesmo destino «de estar só: de estar “completamente só”». É importante aprender esta lição. Somos, de facto, sós, únicos, como um universo completo, e, ao mesmo tempo, tão expostos, tão dependentes, tão precários. «Nunca nos descobrimos nem chegamos ao fundo de nós mesmos: nunca estamos à altura da nossa profundidade». O que somos e o que nos toca viver é tudo tão elevado e tudo tão frágil. Saberemos viver com paixão esta nossa solidão estrutural e fazer dela lugar de novos nascimentos, processo de abaixamento de onde nos elevamos em estatura humana?

Esta é uma face. A outra revela que «é “juntos” que nós somos sós». Somos «solidão emoldurada», diz Salmann. «Quanto mais profundamente um homem suporta e gere a sua solidão, mais se torna consciente dos mistérios da existência»: quando «chora ou ri, naqueles momentos em que é ainda criança e ei-lo já velho, em que assistiu a nascimentos e a mortes, em que se dá conta da sua grandeza e da sua precariedade, das vitórias e das derrotas da existência», aí, reconhece-se próximo dos outros, feito da mesma matéria, exposto às mesmas forças, sonhos e medos. Não é o que, agora, sentimos diante das imagens horrorosas da guerra? Aquele desespero, aquela incredulidade, aquele abandono que reconhecemos em tantos rostos, aquela exposição ao arbitrário não é de solidão humana que nos falam, da nossa própria solidão? Poderia ser eu. Nestes momentos, damo-nos conta, mutuamente, de que somos carne da mesma carne, que não podemos viver sem outros e que o destino da nossa existência se joga no destino da existência do nosso semelhante: “todos nus, todos irmãos”.

Assim estamos diante de nós mesmos e dos outros: sós e juntos. Assim estamos diante de Deus. Como Jesus, «estranho, difícil, insignificante, desconhecido Jesus». É tão pouco o que os apóstolos puderam captar d’Ele, recorda Salmann. E, como eles, assim nós. Jesus «é alguém sobremaneira só: “Eu sou!” – senhorialmente, soberanamente. […] É o senhor de si mesmo, diante do seu Deus, de andar seguro; mas precisamente por isso é também incompreendido, não reconhecido, alguém a eliminar. Só na oração, no retirar-se encontrou efectivamente um “Tu” que O protegia». Apresenta-se, assim, como «o santíssimo de Deus exposto entre os homens e, ao mesmo tempo, um homem que levanta a Deus os braços na sua solidão». Oração e gesto de cuidado, assim é Jesus. É assim que comunica, mas, precisamente por isso, e ao mesmo tempo, «é também, mais uma vez, incompreendido». Tão junto de nós e tão só. Porém, não abandonado.

Mal saídos da pandemia, entrámos num cenário de guerra. Como poderemos deixar de amadurecer, de aprender a suportar e de habitar esta nossa radical solidão, a mesma que reconhecemos nos rostos de quem é bombardeado e ferido, de quem foge, de quem ataca, de quem se defende, de quem jaz morto, sem ter sequer quem lhe dê sepultura? As nossas raízes afundam aqui, neste lugar incontornável que é a nossa solidão, mas do qual, talvez, possamos elevar-nos mais humildes e sensatos. Oração e gestos de cuidado: assim nos elevaremos, como Jesus. Diante de Deus, origem e salvaguarda da vida, ousamos rezar: “quando nos reconhecemos sós, não permitais, Pai, que nos sintamos abandonados”.


Ninguém Nasce Cristão

Da resignação à conformação

O psicólogo norte-americano Anthony Klotz definiu o fenómeno do abandono voluntário do emprego por parte de milhões de trabalhadores, através do conceito «a grande resignação», aplicado ao contexto da Covid-19.

Este professor da universidade do Texas analisou o efeito desestruturante da pandemia na vida de muitos adultos, tendo concluído que um número significativo de pessoas tinha deixado de trabalhar motivada por uma reflexão a partir de questões essenciais, tais como: porquê, onde e para quem trabalho? Segundo os dados da Labor Turnover, só em novembro de 2020/2021, cerca de 4,5 milhões de trabalhadores abandonaram os seus postos de trabalho.

Compreendemos o que está em causa porque já estivemos em situações semelhantes. Quando há incerteza, medo e desconfiança, a atitude normal é a estagnação, o bloqueio, o deixar-se ficar porque «não vale a pena o esforço». É evidente que a «grande resignação» teve um impacto na saúde das organizações e na economia de um país.

Sophia de Mello Breyner, no conto “Praia”, faz uma pungente descrição de um grupo de músicos falhados que regularmente, duas vezes por semana, se juntavam para animar uma festa de uma espécie de clube de verão, num grande casarão quadrado. Vendo-os de perto, parecia-lhe que eram sujeitos de pouca arte, sem dinheiro nem fama. E interrogava-se se eles seriam revoltados ou resignados. Admite que preferia que fossem revoltados porque «é menos triste». O revoltado, mesmo estando vencido à priori, como um soldado ucraniano desarmando diante de um poderoso exército, não desiste. Luta, até ao fim, por uma causa. A vida faz sentido. Ele está animado por um propósito. Vale a pena qualquer sacrifício, mesmo que seja aparentemente sem glória, como aquele que morreu ingloriamente num calvário. O resignado, sobretudo quando é uma «resignação passiva, a resignação por ensurdecimento progressivo do ser», é um falhado sem remédio, uma alma penada que deambula sem esperança de redenção.

Na tradição cristã, talvez se tenha confundido “conformação” com “resignação” quando, na realidade, são dois movimentos opostos. Na conformação o sujeito procura uma «nova forma» (com+forma) através da proximidade com alguém que estima e admira, nomeadamente, no âmbito espiritual, com o Mestre que segue. O aspirante nunca se resigna. Anseia alcançar uma performance e, por isso, não cruza os braços, nem encolhe os ombros, nem se autojustifica com sentenças definitivas que se assemelham a um ponto final na evolução de uma personalidade: «eu sou assim».

Aqueles que estão seriamente comprometidos com o sempre inacabado processo de conformação são os sujeitos revoltados do conto de Sophia. Eles «não aceitam a imperfeição. E por isso a sua alma é como um grande deserto sem sombra e sem frescura onde o fogo arde sem se consumir». Os crentes permanentemente insatisfeitos com a sua falta de conformidade, pedem perdão todos os dias, pelo menos sete vezes, reconhecendo que é «por minha culpa, minha tão grande culpa» que se distanciam da forma perfeita. E, por isso mesmo, aceitam que cada amanhecer é uma oportunidade para renascer de novo.

Nem sempre os revoltados são bem-vindos. Aliás, diríamos que as organizações, sobretudo quando estão fortemente estratificadas, preferem que os novos elementos tenham uma atitude resignada, mas não muito resignada, apenas o suficiente para a manutenção da instituição sem sobressaltos. Eles são bem aceites desde que não façam ondas e vivam resignadamente contentes. Os revoltados-inconformados são seres imprevisíveis e cronicamente atribulados. As suas perguntas causam mal-estar e, por isso, o melhor é deixá-los a falar sozinhos. Só Deus sabe o que dizem.

A mensagem do Papa Francisco para a Quaresma deste ano é um apelo a que «não nos cansemos de fazer o bem» que é como quem diz, permaneçamos unidos e perseveremos nos compromissos inerentes à vocação batismal, não desistamos de viver segundo a forma perfeita, Jesus. Não nos resignemos porque «o bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia».

A Quaresma, com o contínuo apelo à conversão, pode ser uma máquina aceleradora de partículas de um espírito semi-resignado, capaz de alterar uma espiritualidade morna, um seguimento de Cristo sem lavar-de-pés nem calvário, uma paz alimentada pela indiferença, um conforto selado em princípios vagos, uma caridade postiça numa aventura sem riscos. Ao resignado, que tende a abandonar a Barca, justificando a saída com os pecados da tripulação ou a falta de ritmo e rumo na viagem, é preciso dizer-lhe que este é o momento oportuno: «converte-te e ajuda-me nesta árdua tarefa de conformação».

P. Nélio Pita, CM | in SNPC | Publicado em 17.03.2022


Ninguém Nasce Cristão

EUCARISTIA POR OCASIÃO DO ANO INACIANO

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Igreja de Jesus - Roma
Sábado, 12 de março de 2022

O evangelho da Transfiguração, que ouvimos, refere quatro ações de Jesus. Far-nos-á bem seguir aquilo que realiza o Senhor, para encontrar, nos seus gestos, sugestões para o nosso caminho.

O primeiro verbo – a primeira daquelas ações de Jesus – é tomar consigo. Assim diz o texto: «tomando consigo Pedro, João e Tiago, Jesus subiu ao monte…» (Lc 9, 28). É Ele que toma consigo os discípulos, fazendo o mesmo connosco: amou-nos, escolheu-nos e chamou-nos. No princípio encontra-se o mistério duma graça, duma eleição. Não fomos nós os primeiros a tomar uma decisão, mas foi Ele que nos chamou, sem qualquer mérito da nossa parte. Antes de ser alguém que doou a vida, somos uma pessoa contemplada com um dom gratuito: o dom da gratuidade do amor de Deus. O nosso caminho, irmãos e irmãs, precisa dia a dia de recomeçar daqui, desta graça originária. Jesus procedeu connosco como fez com Pedro, João e Tiago: chamou-nos pelo nome e tomou-nos consigo. Tomou-nos pela mão. Para nos levar aonde? Ao seu monte santo, onde, já agora, nos vê para sempre com Ele, transfigurados pelo seu amor. Lá nos conduz a graça, esta graça primeira, primigénia. Assim, quando experimentarmos amarguras e deceções, quando nos sentirmos menosprezados ou incompreendidos, não nos percamos em lamentos e nostalgias. São tentações que paralisam o caminho, sendas que não levam a parte alguma. Pelo contrário, assumamos a nossa vida a partir da graça, da vocação. E acolhamos a dádiva de cada dia para o viver como um pedaço de estrada rumo à meta.

Tomou consigo Pedro, João e Tiago: o Senhor toma os discípulos em conjunto, toma-os como comunidade. A nossa vocação está enraizada na comunhão. Para recomeçar em cada dia, além do mistério da nossa eleição, é necessário reviver a graça de termos sido tomados na Igreja, nossa santa Mãe hierárquica, e pela Igreja, nossa esposa. Somos de Jesus, e somo-lo como Companhia. Não nos cansemos de pedir a força de construir e guardar a comunhão, ser fermento de fraternidade para a Igreja e para o mundo. Não somos solistas à procura de audiência, mas irmãos organizados em coro. Sintamos com a Igreja, rejeitemos a tentação de buscar sucessos pessoais e claques de apoio. Não nos deixemos sorver pelo clericalismo que nos endurece e pelas ideologias que dividem. Os Santos, que hoje recordamos, foram pilares de comunhão. Lembram-nos que no Céu, apesar da nossa diversidade de carateres e perspetivas, somos chamados a estar juntos. E se havemos de estar unidos para sempre lá em cima, por que não começar já desde agora cá em baixo? Acolhamos a beleza de ter sido tomados em conjunto por Jesus, chamados em conjunto por Jesus. Este é o primeiro verbo: tomou.

O segundo verbo: subir. «Jesus subiu ao monte» (9, 28). O caminho de Jesus não se apresenta em descida, é uma subida. A luz da Transfiguração só chega à planície depois dum fadigoso caminho. Assim, para seguir Jesus, é preciso abandonar as planícies da mediocridade e as descidas ditadas pela comodidade; é preciso deixar as próprias rotinas pacatas para cumprir um movimento de êxodo. Com efeito, tendo subido ao monte, Jesus fala com Moisés e Elias precisamente «de sua partida [êxodo], que iria consumar-se em Jerusalém» (6, 31). Moisés e Elias subiram ao Sinai ou Horeb depois de dois êxodos no deserto (cf. Ex 19; 1 Re 19); agora falam com Jesus do êxodo definitivo: o da sua páscoa. Irmãos e irmãs, só a subida à cruz conduz à meta da glória. Este é o caminho: da cruz à glória. A tentação mundana é buscar a glória sem passar pela cruz. Nós quereríamos caminhos conhecidos, direitos e desimpedidos, mas para encontrar a luz de Jesus é preciso sair continuamente de nós mesmos e subir atrás d’Ele. Como ouvimos na primeira leitura, o Senhor, que desde o início «conduziu para fora» Abrão (Gn 15, 5), convida-nos também a nós a sair e subir.

Para nós, jesuítas, a saída e a subida seguem um caminho específico, bem simbolizado pelo monte. Na Sagrada Escritura, o cimo dos montes representa a extremidade, o limite, a fronteira entre terra e céu. E nós somos chamados a sair precisamente para os confins entre terra e céu, lá onde o homem «luta» fadigosamente com Deus; somos chamados a partilhar a sua busca incómoda e inquietude religiosa. Lá devemos estar e, para o conseguirmos, é preciso sair e subir. Enquanto o inimigo da natureza humana quer convencer-nos a voltar sempre pelos mesmos passos, os da repetição estéril, da comodidade, do já visto, o Espírito sugere aberturas, dá paz sem nunca deixar em paz, envia os discípulos até aos últimos confins. Pensemos em Francisco Xavier.

E vem-me à ideia que, para seguir esta estrada, este caminho, é preciso lutar. Pensemos no pobre velho Abraão: lá, com o sacrifício, lutando contra os abutres que lhe queriam comer a oferenda (cf. Gn 15, 7-11). E ele, com a sua bengala, afugentava-os. O pobre velho. Vejamos isto: lutar para defender este caminho, este caminho, esta nossa consagração ao Senhor.

De hora em hora, o discípulo encontra-se nesta encruzilhada. E pode fazer como Pedro que, enquanto Jesus fala de êxodo, ele diz: «É bom estarmos aqui» (9, 33). Há sempre o perigo duma fé estática, «estacionada». Tenho medo da fé «estacionada». O risco é considerar-se discípulos «como se deve», mas que na realidade não seguem Jesus: permanecem parados, passivos e, sem dar por isso como os três do Evangelho, começam a cabecear e adormecem. Também no Getsémani, hão de adormecer estes mesmos discípulos. Pensemos irmãos e irmãs que, para quem segue Jesus não é tempo de dormir, deixar-se narcotizar a alma, fazer-se anestesiar pelo atual clima consumista e individualista, segundo o qual a vida corre bem se correr bem para mim; fala-se e teoriza-se, mas perde-se de vista a carne dos irmãos, a concretização do Evangelho. Um drama do nosso tempo é fechar os olhos à realidade e voltar a face para o outro lado. Que Santa Teresa nos ajude a sair de nós mesmos e subir ao monte com Jesus, para nos apercebermos que Ele Se revela também através das chagas dos irmãos, dos esforços da humanidade, dos sinais dos tempos. Não devemos ter medo de tocar as chagas: são as chagas do Senhor.

Jesus subiu ao monte, diz o Evangelho, «para orar» (6, 28). E aqui temos o terceiro verbo: orar. E, «enquanto orava – continua o texto –, o aspeto do seu rosto modificou-se» (6, 29). A transfiguração nasce da oração. Vale a pena perguntar-me, mesmo depois de muitos anos de ministério: hoje, para mim, que é rezar. Quem sabe se a força do hábito e um certo ritualismo me tenham levado a pensar que a oração não transforma o homem nem a história. Ao contrário, rezar é transformar a realidade. É uma missão ativa, uma intercessão contínua. Não é distância do mundo, mas mudança do mundo. Rezar é levar o palpitar dos acontecimentos até Deus para que o seu olhar se abra de par em par sobre a história. Para nós, que é rezar?

Por isso será bom hoje perguntar-nos se a oração nos imerge nesta transformação, lança uma luz nova sobre as pessoas e transfigura as situações. Pois se a oração é viva, «mexe dentro», reaviva o fogo da missão, reacende a alegria, provoca-nos continuamente para nos deixarmos inquietar pelo grito sofredor do mundo. Perguntemo-nos: como estamos a levar à oração a guerra em curso? E pensemos na oração de São Filipe de Néri, que lhe dilatava o coração fazendo-lhe abrir as portas aos meninos de rua. Ou em Santo Isidro, que rezava nos campos e levava à oração o trabalho agrícola.

Tomar nas mãos dia a dia a nossa vocação pessoal e a nossa história comunitária; subir para os confins indicados por Deus saindo de nós mesmos; orar para transformar o mundo em que estamos imersos. E, por fim, temos o quarto verbo, que aparece no último versículo do Evangelho de hoje: «Jesus ficou só» (9, 36). Ficou Ele, enquanto tudo havia passado e ecoava apenas «o testamento» do Pai: «Escutai-O» (6, 35). O Evangelho termina, fazendo-nos voltar ao essencial. Muitas vezes na Igreja e no mundo, tanto na vida espiritual como na sociedade, somos tentados a considerar como primárias tantas necessidades secundárias. É uma tentação diária o fazer tornarem-se primárias tantas necessidades secundárias. Por outras palavras, corremos o risco de nos concentrar em usos, costumes e tradições que fixam o coração naquilo que passa, fazendo esquecer o que permanece. Como é importante trabalhar o coração, para que saiba distinguir o que é segundo Deus, e permanece, daquilo que é segundo o mundo, e passa!

Amados irmãos e irmãs, que Santo Inácio, nosso pai, nos ajude a conservar o discernimento, nossa herança preciosa, um tesouro sempre atual para oferecer à Igreja e ao mundo. Permite «ver como novas todas as coisas em Cristo». É essencial para nós mesmos e para a Igreja, pois, como escreveu Pedro Favre, «todo o bem que se possa realizar, pensar ou organizar, faça-se com bom espírito e não com o mau» (Memorial, Paris 1959, nº 51). Assim seja!


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 6 de março de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da liturgia de hoje, primeiro domingo de Quaresma, leva-nos ao deserto, onde Jesus foi conduzido pelo Espírito Santo, durante quarenta dias, para ser tentado pelo diabo (cf. Lc 4, 1-13). Também Jesus foi tentado pelo diabo, e acompanha-nos, a cada um de nós, nas nossas tentações. O deserto simboliza a luta contra as seduções do mal, a fim de aprender a escolher a verdadeira liberdade. De facto, Jesus vive a experiência do deserto pouco antes de começar a sua missão pública. É precisamente através dessa luta espiritual que ele afirma decididamente o tipo de Messias que pretende ser. Não um Messias qualquer, mas este Messias: diria que esta é precisamente a declaração da identidade messiânica de Jesus, da via messiânica de Jesus. “Eu sou o Messias, mas por este caminho”. Vejamos então as tentações contra as quais ele luta.

O diabo dirige-se duas vezes a ele dizendo: «Se és o Filho de Deus...» (vv. 3.9). Por outras palavras, propõe-lhe que explore a sua posição: primeiro para satisfazer as necessidades materiais que sente (cf. v. 3) – a fome –; depois para aumentar o seu poder (cf. vv. 6-7); por fim para obter um sinal prodigioso de Deus (cf. vv. 9-11). Três tentações. É como se dissesse: “Se és o Filho de Deus, aproveita da situação”. Quantas vezes nos acontece isto: “Mas se estás naquela posição, aproveita! Não percas a oportunidade, a ocasião”, ou seja, “pensa na tua vantagem”. É uma proposta sedutora, mas leva-te à escravidão do coração: torna obcecados pelo desejo de possuir, reduz tudo à posse de coisas, de poder, de fama. Este é o núcleo da tentação: “o veneno das paixões”, no qual o mal se enraíza. Olhemos para dentro de nós e descobriremos que as nossas tentações têm sempre este padrão, sempre esta forma de agir.

Mas Jesus opõe-se às atrações do mal de modo vencedor. Como faz? Respondendo às tentações com a Palavra de Deus, que diz para não se aproveitar, para não usar Deus, nem os outros nem as coisas para si mesmo, para não explorar a própria posição a fim de adquirir privilégios. Pois a felicidade e a verdadeira liberdade não consistem em possuir, mas em partilhar; não em aproveitar-se dos outros, mas em amá-los; não na obsessão do poder, mas na alegria do serviço.

Irmãos e irmãs, estas tentações também nos acompanham no caminho da vida. Devemos vigiar, não nos assustar – acontece a todos – e estar atentos, pois muitas vezes elas apresentam-se sob uma forma aparente de bem. Na verdade, o diabo, que é astuto, usa sempre o engano. Queria que Jesus acreditasse que as suas propostas eram úteis para provar que ele era realmente o Filho de Deus.

E eu gostaria de salientar um aspeto. Jesus não dialoga com o diabo: Jesus nunca dialogou com o diabo. Ou o expulsava, quando curava os possuídos, ou neste caso, tendo de responder, fá-lo com a Palavra de Deus, nunca com a sua palavra. Irmãos e irmãs, nunca entreis em diálogo com o diabo: ele é mais astuto do que nós. Nunca! Apeguemo-nos à Palavra de Deus como Jesus, e no máximo respondamos sempre com a Palavra de Deus. E deste modo não erraremos.

Isto é o que o diabo faz connosco: ele chega frequentemente “com olhos doces”, “com um rosto angélico”; sabe até disfarçar-se com motivações sagradas, aparentemente religiosas! Se cedermos às suas lisonjas, acabamos por justificar a nossa falsidade, disfarçando-a de boas intenções. Por exemplo, quantas vezes ouvimos: “Fiz negócios estranhos, mas ajudei os pobres”; “aproveitei-me da minha posição – político, governante, sacerdote, bispo – mas a fim de bem”; “cedi aos meus instintos, mas no final não fiz mal a ninguém”, estas justificações, e assim por diante, uma depois da outra. Por favor: com o mal, nenhum compromisso! Com o diabo, não há diálogo! Não devemos dialogar com a tentação, não devemos cair naquele sono de consciência que nos faz dizer: “Mas, no fundo, não é grave, todos fazem assim”! Olhemos para Jesus, que não procura acomodamentos, não faz acordos com o mal. Ele opõe-se ao diabo com a Palavra de Deus, que é mais forte do que o diabo, e assim supera a tentação.

Que este tempo de Quaresma seja também para nós tempo de deserto. Obtenhamos tempos de silêncio e de oração – um pouquinho, far-nos-á bem – durante o qual paremos e olhemos para o que nos agita o coração, para a nossa verdade interior, para o que sabemos que não pode ser justificado. Façamos clareza interior, colocando-nos perante a Palavra de Deus em oração, para que uma luta benéfica contra o mal que nos escraviza, uma luta pela liberdade, possa ter lugar dentro de nós.

Peçamos a Nossa Senhora que nos acompanhe no deserto quaresmal e que nos ajude no nosso caminho de conversão.


Ninguém Nasce Cristão

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA A QUARESMA DE 2022

«Não nos cansemos de fazer o bem; porque, a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido.
Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos» (Gal 6, 9-10a).

Queridos irmãos e irmãs!

A Quaresma é um tempo favorável de renovação pessoal e comunitária que nos conduz à Páscoa de Jesus Cristo morto e ressuscitado. Aproveitemos o caminho quaresmal de 2022 para refletir sobre a exortação de São Paulo aos Gálatas: «Não nos cansemos de fazer o bem; porque, a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido. Portanto, enquanto temos tempo (kairós), pratiquemos o bem para com todos» (Gal 6, 9-10a).

1. Sementeira e colheita

Neste trecho, o Apóstolo evoca a sementeira e a colheita, uma imagem que Jesus muito prezava (cf. Mt 13). São Paulo fala-nos dum kairós: um tempo propício para semear o bem tendo em vista uma colheita. Qual poderá ser para nós este tempo favorável? Certamente é a Quaresma, mas é-o também a nossa inteira existência terrena, de que a Quaresma constitui de certa forma uma imagem [1]. Muitas vezes, na nossa vida, prevalecem a ganância e a soberba, o anseio de possuir, acumular e consumir, como se vê no homem insensato da parábola evangélica, que considerava assegurada e feliz a sua vida pela grande colheita acumulada nos seus celeiros (cf. Lc 12, 16-21). A Quaresma convida-nos à conversão, a mudar mentalidade, de tal modo que a vida encontre a sua verdade e beleza menos no possuir do que no doar, menos no acumular do que no semear o bem e partilhá-lo.

O primeiro agricultor é o próprio Deus, que generosamente «continua a espalhar sementes de bem na humanidade» (Enc. Fratelli tutti, 54). Durante a Quaresma, somos chamados a responder ao dom de Deus, acolhendo a sua Palavra «viva e eficaz» (Heb 4, 12). A escuta assídua da Palavra de Deus faz maturar uma pronta docilidade à sua ação (cf. Tg 1, 19.21), que torna fecunda a nossa vida. E se isto já é motivo para nos alegrarmos, maior motivo ainda nos vem da chamada para sermos «cooperadores de Deus» (1 Cor 3, 9), aproveitando o tempo presente (cf. Ef 5, 16) para semearmos, também nós, praticando o bem. Esta chamada para semear o bem deve ser vista, não como um peso, mas como uma graça pela qual o Criador nos quer ativamente unidos à sua fecunda magnanimidade.

E a colheita? Porventura não se faz toda a sementeira a pensar na colheita? Certamente; o laço estreito entre a sementeira e a colheita é reafirmado pelo próprio São Paulo, quando escreve: «Quem pouco semeia, também pouco há de colher; mas quem semeia com generosidade, com generosidade também colherá» (2 Cor 9, 6). Mas de que colheita se trata? Um primeiro fruto do bem semeado, temo-lo em nós mesmos e nas nossas relações diárias, incluindo os gestos mais insignificantes de bondade. Em Deus, nenhum ato de amor, por mais pequeno que seja, e nenhuma das nossas «generosas fadigas» se perde (cf. Exort. Evangelii gaudium, 279). Tal como a árvore se reconhece pelos frutos (cf. Mt 7, 16.20), assim também a vida repleta de obras boas é luminosa (cf. Mt 5, 14-16) e difunde pelo mundo o perfume de Cristo (cf. 2 Cor 2, 15). Servir a Deus, livres do pecado, faz maturar frutos de santificação para a salvação de todos (cf. Rm 6, 22).

Na realidade, só nos é concedido ver uma pequena parte do fruto daquilo que semeamos, pois, segundo o dito evangélico, «um é o que semeia e outro o que ceifa» (Jo 4, 37). É precisamente semeando para o bem do próximo que participamos na magnanimidade de Deus: constitui «grande nobreza ser capaz de desencadear processos cujos frutos serão colhidos por outros, com a esperança colocada na força secreta do bem que se semeia» (Enc. Fratelli tutti, 196). Semear o bem para os outros liberta-nos das lógicas mesquinhas do lucro pessoal e confere à nossa atividade a respiração ampla da gratuidade, inserindo-nos no horizonte maravilhoso dos desígnios benfazejos de Deus.

A Palavra de Deus alarga e eleva ainda mais a nossa perspetiva, anunciando-nos que a colheita mais autêntica é a escatológica, a do último dia, do dia sem ocaso. O fruto perfeito da nossa vida e das nossas ações é o «fruto em ordem à vida eterna» (Jo 4, 36), que será o nosso «tesouro no céu» (Lc 18, 22; cf. 12, 33). O próprio Jesus, para exprimir o mistério da sua morte e ressurreição, usa a imagem da semente que morre na terra e frutifica (cf. Jo 12, 24); e São Paulo retoma-a para falar da ressurreição do nosso corpo: «semeado corrutível, o corpo é ressuscitado incorrutível; semeado na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na fraqueza, é ressuscitado cheio de força; semeado corpo terreno, é ressuscitado corpo espiritual» (1 Cor 15, 42-44). Esta esperança é a grande luz que Cristo ressuscitado traz ao mundo: «Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram» (1 Cor 15, 19-20), para que quantos estiverem intimamente unidos a Ele no amor, «por uma morte idêntica à Sua» (Rm 6, 5), também estejam unidos à sua ressurreição para a vida eterna (cf. Jo 5, 29): «então os justos resplandecerão como o sol, no reino do seu Pai» (Mt 13, 43).

2. «Não nos cansemos de fazer o bem»

A ressurreição de Cristo anima as esperanças terrenas com a «grande esperança» da vida eterna e introduz, já no tempo presente, o germe da salvação (cf. Bento XVI, Spe salvi, 3; 7). Perante a amarga desilusão por tantos sonhos desfeitos, a inquietação com os desafios a enfrentar, o desconsolo pela pobreza de meios à disposição, a tentação é fechar-se num egoísmo individualista e, à vista dos sofrimentos alheios, refugiar-se na indiferença. Com efeito, mesmo os recursos melhores conhecem limitações: «Até os adolescentes se cansam, se fatigam, e os jovens tropeçam e vacilam» (Is 40, 30). Deus, porém, «dá forças ao cansado e enche de vigor o fraco. (…) Aqueles que confiam no Senhor, renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 29.31). A Quaresma chama-nos a repor a nossa fé e esperança no Senhor (cf. 1 Ped 1, 21), pois só com o olhar fixo em Jesus Cristo ressuscitado (cf. Heb 12, 2) é que podemos acolher a exortação do Apóstolo: «Não nos cansemos de fazer o bem» (Gal 6, 9).

Não nos cansemos de rezar. Jesus ensinou que é necessário «orar sempre, sem desfalecer» ( Lc 18, 1). Precisamos de rezar, porque necessitamos de Deus. A ilusão de nos bastar a nós mesmos é perigosa. Se a pandemia nos fez sentir de perto a nossa fragilidade pessoal e social, permita-nos esta Quaresma experimentar o conforto da fé em Deus, sem a qual não poderemos subsistir (cf. Is 7, 9). No meio das tempestades da história, encontramo-nos todos no mesmo barco, pelo que ninguém se salva sozinho [2]; mas sobretudo ninguém se salva sem Deus, porque só o mistério pascal de Jesus Cristo nos dá a vitória sobre as vagas tenebrosas da morte. A fé não nos preserva das tribulações da vida, mas permite atravessá-las unidos a Deus em Cristo, com a grande esperança que não desilude e cujo penhor é o amor que Deus derramou nos nossos corações por meio do Espírito Santo (cf. Rm 5, 1-5).

Não nos cansemos de extirpar o mal da nossa vida. Possa o jejum corporal, a que nos chama a Quaresma, fortalecer o nosso espírito para o combate contra o pecado. Não nos cansemos de pedir perdão no sacramento da Penitência e Reconciliação, sabendo que Deus nunca Se cansa de perdoar [3]. Não nos cansemos de combater a concupiscência, fragilidade esta que inclina para o egoísmo e todo o mal, encontrando no decurso dos séculos vias diferentes para fazer precipitar o homem no pecado (cf. Enc. Fratelli tutti, 166). Uma destas vias é a dependência dos meios de comunicação digitais, que empobrece as relações humanas. A Quaresma é tempo propício para contrastar estas ciladas, cultivando ao contrário uma comunicação humana mais integral (cf. ibid., 43), feita de «encontros reais» ( ibid., 50), face a face.

Não nos cansemos de fazer o bem, através duma operosa caridade para com o próximo. Durante esta Quaresma, exercitemo-nos na prática da esmola, dando com alegria (cf. 2 Cor 9, 7). Deus, «que dá a semente ao semeador e o pão em alimento» (2 Cor 9, 10), provê a cada um de nós os recursos necessários para nos nutrirmos e ainda para sermos generosos na prática do bem para com os outros. Se é verdade que toda a nossa vida é tempo para semear o bem, aproveitemos de modo particular esta Quaresma para cuidar de quem está próximo de nós, para nos aproximarmos dos irmãos e irmãs que se encontram feridos na margem da estrada da vida (cf. Lc 10, 25-37). A Quaresma é tempo propício para procurar, e não evitar, quem passa necessidade; para chamar, e não ignorar, quem deseja atenção e uma boa palavra; para visitar, e não abandonar, quem sofre a solidão. Acolhamos o apelo a praticar o bem para com todos, reservando tempo para amar os mais pequenos e indefesos, os abandonados e desprezados, os discriminados e marginalizados (cf. Enc. Fratelli tutti, 193).

3. «A seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido»

Cada ano, a Quaresma vem recordar-nos que «o bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia» (ibid., 11). Por conseguinte peçamos a Deus a constância paciente do agricultor (cf. Tg 5, 7), para não desistir na prática do bem, um passo de cada vez. Quem cai, estenda a mão ao Pai que nos levanta sempre. Quem se extraviou, enganado pelas seduções do maligno, não demore a voltar para Deus, que «é generoso em perdoar» (Is 55, 7). Neste tempo de conversão, buscando apoio na graça divina e na comunhão da Igreja, não nos cansemos de semear o bem. O jejum prepara o terreno, a oração rega, a caridade fecunda-o. Na fé, temos a certeza de que «a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido», e obteremos, com o dom da perseverança, os bens prometidos (cf. Heb 10, 36) para salvação nossa e do próximo (cf. 1 Tm 4, 16). Praticando o amor fraterno para com todos, estamos unidos a Cristo, que deu a sua vida por nós (cf. 2 Cor 5, 14-15), e saboreamos desde já a alegria do Reino dos Céus, quando Deus for «tudo em todos» (1 Cor 15, 28).

A Virgem Maria, em cujo ventre germinou o Salvador e que guardava todas as coisas «ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19), obtenha-nos o dom da paciência e acompanhe-nos com a sua presença materna, para que este tempo de conversão dê frutos de salvação eterna.

Roma, em São João de Latrão, na Memória litúrgica do bispo São Martinho, 11 de novembro de 2021.

Francisco
________________________________________
[1] Cf. Santo Agostinho, Sermones 243, 9,8; 270, 3; Enarratio in Psalmis 110, 1.
[2] Cf. Francisco, Momento extraordinário de oração em tempo de pandemia (27 de março de 2020).
[3] Cf. Idem, Angelus de 17 de março de 2013.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

AUDIÊNCIA GERAL

Sala Paulo VI
Quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Catequese sobre São José 12. São José, Padroeiro da Igreja universal

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje concluímos o ciclo de catequeses sobre a figura de São José. Estas catequeses são complementares à Carta apostólica Patris corde, escrita por ocasião dos 150 anos da proclamação de São José como Padroeiro da Igreja católica pelo Beato Pio IX. Mas o que significa este título? O que significa que São José é “padroeiro da Igreja”? Sobre isto gostaria de refletir convosco hoje.

Também neste caso, os Evangelhos nos fornecem a interpretação mais correta. De facto, no final de cada história em que José é o protagonista, o Evangelho observa que ele toma consigo o Menino e sua mãe e faz o que Deus lhe ordenou (cf. Mt 1, 24; 2, 14.21). Evidencia-se assim o facto de que a tarefa de José é proteger Jesus e Maria. Ele é o seu principal guarda: «De facto, Jesus e Maria, sua Mãe, são o tesouro mais precioso da nossa fé» (Carta ap. Patris corde, 5), e este tesouro é guardado por São José.

No plano da salvação, o Filho não pode ser separado da Mãe, daquela que «avançou pelo caminho da fé, mantendo fielmente a união com seu Filho até à cruz» (Lumen gentium, 58), como nos recorda o Concílio Vaticano II.

De certa forma, Jesus, Maria e José são o núcleo primordial da Igreja. Jesus é Homem e Deus, Maria, a primeira discípula, é a Mãe; e José, o guardião. E também nós «sempre nos devemos interrogar se estamos a proteger com todas as nossas forças Jesus e Maria, que misteriosamente estão confiados à nossa responsabilidade, ao nosso cuidado, à nossa guarda» (Patris corde, 5). E aqui há um traço muito bonito da vocação cristã: guardar. Guardar a vida, guardar o desenvolvimento humano, guardar a mente humana, guardar o coração humano, guardar o trabalho humano. O cristão é – podemos dizer – como São José: deve guardar. Ser cristão não é apenas receber a fé, confessar a fé, mas guardar a vida, a própria vida, a vida dos outros, a vida da Igreja. O Filho do Altíssimo veio ao mundo numa condição de grande fragilidade. Jesus nasceu tão frágil, débil. Ele quis precisar de ser defendido, protegido, cuidado. Deus confiou em José, como fez Maria, que encontrou nele o esposo que a amava e respeitava e sempre cuidou dela e do Menino. «Neste sentido, São José não pode deixar de ser o Guardião da Igreja, porque a Igreja é o prolongamento do Corpo de Cristo na história e ao mesmo tempo, na maternidade da Igreja, espelha-se a maternidade de Maria. José, continuando a proteger a Igreja, continua a proteger o Menino e sua mãe; e também nós, amando a Igreja, continuamos a amar o Menino e sua mãe (ibid.).

Este Menino é Aquele que dirá: «sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Portanto, cada pessoa que tem fome e sede, cada estrangeiro, cada migrante, cada pessoa sem vestuário, cada doente, cada preso é o “Menino” que José guarda. E nós somos convidados a guardar estas pessoas, estes nossos irmãos e irmãs, como fez José. É por isso que é invocado como protetor de todos os necessitados, dos exilados, dos aflitos, e também dos moribundos – falámos sobre isto na última quarta-feira. E também nós devemos aprender com José a “guardar” estes bens: amar o Menino e a sua mãe; amar os sacramentos e o povo de Deus; amar os pobres e a nossa paróquia. Cada uma destas realidades é sempre o Menino e a sua mãe (cf. Patris corde, 5). Devemos guardar, pois assim guardamos Jesus, como fez José.

Hoje é comum, é de todos os dias, criticar a Igreja, apontando as suas incoerências – há muitas – apontando os seus pecados, que na realidade são as nossas incoerências, os nossos pecados, pois a Igreja sempre foi um povo de pecadores que encontra a misericórdia de Deus. Perguntemo-nos se, no fundo do coração, amamos a Igreja tal como é. Povo de Deus a caminho, com muitos limites, mas com tanta vontade de servir e amar a Deus. De facto, só o amor nos torna capazes de falar plenamente a verdade, de uma forma não partidária; de dizer o que está errado, mas também de reconhecer toda a bondade e santidade que estão presentes na Igreja, começando precisamente por Jesus e Maria. Amar a Igreja, guardar a Igreja e caminhar com a Igreja. Mas a Igreja não é aquele grupinho que está próximo do sacerdote e manda em todos, não. A Igreja somos todos, todos. A caminho. Guardar-nos uns aos outros, guardar-nos reciprocamente. É uma boa pergunta esta: eu, quando tenho um problema com alguém, procuro guardá-lo ou condeno-o imediatamente, falo mal dele, destruo-o? Devemos guardar, guardar sempre!

Estimados irmãos e irmãs, encorajo-vos a pedir a intercessão de São José precisamente nos momentos mais difíceis da vossa vida e das vossas comunidades. Onde os nossos erros se tornam um escândalo, peçamos a São José que nos dê coragem para dizer a verdade, para pedir perdão e recomeçar humildemente. Onde a perseguição impede que o Evangelho seja proclamado, peçamos a São José a força e a paciência para suportar abusos e sofrimentos por amor ao Evangelho. Onde quer que os meios materiais e humanos sejam escassos e nos façam experimentar a pobreza, especialmente quando somos chamados a servir os últimos, os indefesos, os órfãos, os doentes, os descartados da sociedade, rezemos a São José para que seja Providência para nós. Quantos santos se dirigiram a ele! Quantas pessoas na história da Igreja encontraram nele um padroeiro, um guarda, um pai!

Imitemos o seu exemplo e por esta razão, todos juntos, rezemos hoje; rezemos a São José com a oração que conclui a Carta Patris corde, confiando-lhe as nossas intenções e, de uma forma especial, a Igreja que sofre e está na provação. E agora, tendes nas mãos em diversas línguas, penso quatro, a oração, e acho que aparecerá também no ecrã, assim juntos, cada um na própria língua, podemos rezar a São José.

Salve, guardião do Redentore esposo da Virgem Maria!
A vós, Deus confiou o seu Filho;
em vós, Maria depositou a sua confiança;
convosco, Cristo tornou-Se homem.

Ó Bem-aventurado José, mostrai-vos pai também para nós
e guiai-nos no caminho da vida.
Alcançai-nos graça, misericórdia e coragem,
e defendei-nos de todo o mal. Ámen.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 13 de fevereiro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

No centro do Evangelho da Liturgia de hoje estão as Bem-aventuranças (cf. Lc 6, 20-23). É interessante notar que Jesus, apesar de estar rodeado por uma grande multidão, proclama-as dirigindo-se «aos seus discípulos» (v. 20). Fala aos discípulos. Com efeito, as Bem-aventuranças definem a identidade do discípulo de Jesus. Podem parecer estranhas, quase incompreensíveis para aqueles que não são discípulos, mas se nos perguntarmos como é um discípulo de Jesus, a resposta é precisamente as Bem-aventuranças. Vejamos a primeira, que é a base de todas as outras: «Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso é o Reino de Deus!» (v. 20). Bem-aventurados vós, pobres. Jesus diz duas coisas sobre os seus: que são bem-aventurados e que são pobres; aliás, que são bem-aventurados porque são pobres.

Em que sentido? No sentido em que o discípulo de Jesus não encontra a sua alegria no dinheiro, no poder nem sequer noutros bens materiais, mas nos dons que recebe todos os dias de Deus: vida, criação, irmãos e irmãs, e assim por diante. São dádivas da vida. Também os bens que possui, é feliz de os partilhar, porque vive na lógica de Deus. E qual é a lógica de Deus? A gratuidade. O discípulo aprendeu a viver na gratuidade. Esta pobreza é também uma atitude em relação ao sentido da vida, porque o discípulo de Jesus não pensa que a possui, que já sabe tudo, mas sabe que deve aprender todos os dias. E esta é a pobreza: a consciência de ter de aprender todos os dias. O discípulo de Jesus, dado que assume esta atitude, é uma pessoa humilde, aberta, livre dos preconceitos e da rigidez.

Houve um belo exemplo no Evangelho do domingo passado: Simão Pedro, pescador experiente, aceita o convite de Jesus para lançar as suas redes a uma hora insólita; e depois, cheio de admiração com a pesca prodigiosa, deixa o barco e todos os seus bens para seguir o Senhor. Pedro revela-se dócil ao deixar tudo, tornando-se assim um discípulo. Por outro lado, aqueles que estão demasiado apegados às próprias ideias e certezas, quase nunca seguem realmente Jesus. Eles seguem-no um pouco, apenas naquilo em que “concordam com Ele é que Ele concorda comigo”, mas depois, quanto ao resto, não está bem. Este não é um discípulo. E assim cai na tristeza. Fica triste porque mão é exatamente como ele quer, a realidade escapa aos seus esquemas mentais e fica insatisfeito. O discípulo, por outro lado, sabe como questionar-se, como procurar humildemente Deus todos os dias, e isto permite-lhe mergulhar na realidade, apreendendo a sua riqueza e complexidade.

Por outras palavras, o discípulo aceita o paradoxo das Bem-aventuranças: elas declaram que são bem-aventurados, isto é, felizes, aqueles que são pobres, que carecem de muitas coisas e reconhecem-no. Humanamente, somos levados a pensar de outra forma: é feliz quem é rico, quem está cheio de bens, quem recebe aplausos e é invejado por muitos, aquele que tem toda a segurança. Mas isto é pensamento mundano, não é o pensamento das Bem-aventuranças! Jesus, pelo contrário, declara o sucesso mundano como um fracasso, porque se baseia num egoísmo que enche e depois deixa o coração vazio. Confrontado com o paradoxo das Bem-aventuranças, o discípulo deixa-se desafiar, consciente de que não é Deus que deve entrar na nossa lógica, mas nós na Sua. Isto requer um caminho, por vezes cansativo, mas sempre acompanhado de alegria. Porque o discípulo de Jesus é alegre com a alegria que lhe vem de Jesus. Pois, lembremo-nos, a primeira palavra que Jesus diz é: bem-aventurados; vem daqui o nome Bem-aventuranças. Este é o sinónimo de ser um discípulo de Jesus. O Senhor, ao libertar-nos da escravidão do egocentrismo, liberta os nossos fechamentos, dissolve a nossa dureza, e abre-nos à verdadeira felicidade, que muitas vezes se encontra onde não pensamos. É Ele quem guia as nossas vidas, não nós, com os nossos preconceitos ou as nossas necessidades. Por fim, o discípulo é aquele que se deixa guiar por Jesus, que abre o coração a Jesus, que o ouve e segue o seu caminho.

Podemos então perguntar-nos: eu – cada um de nós – tenho a disponibilidade do discípulo? Ou comporto-me com a rigidez de alguém que se sente no lugar certo, que se sente bem, que sente que já alcançou o que queria? Será que me deixo “escavar por dentro” pelo paradoxo das Bem-aventuranças, ou permaneço no perímetro das minhas ideias? E então, com a lógica das Bem-aventuranças, para além dos trabalhos e dificuldades, será que sinto a alegria de seguir Jesus? Esta é a caraterística saliente do discípulo: a alegria do coração. Não esqueçamos: a alegria do coração. Esta é a referência para saber se uma pessoa é discípula: tem alegria no coração? Tenho alegria no coração? Este é o ponto.

Que Nossa Senhora, primeira discípula do Senhor, nos ajude a viver como discípulos abertos e alegres.


Ninguém Nasce Cristão

FESTA DA APRESENTAÇÃO DO SENHOR
XXVI DIA MUNDIAL DA VIDA CONSAGRADA

SANTA MISSA COM OS MEMBROS DOS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA
E DAS SOCIEDADES DE VIDA APOSTÓLICA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Dois anciãos, Simeão e Ana, aguardam no templo o cumprimento da promessa que Deus fez ao seu povo: a vinda do Messias. Mas a sua espera não é passiva; está cheia de movimento. Sigamos, pois, os movimentos de Simeão: em primeiro lugar, é movido pelo Espírito, depois vê no Menino a salvação e, finalmente, acolhe-O nos braços (cf. Lc 2, 26-28). Partindo simplesmente destas três ações, deixemo-nos interpelar por algumas perguntas importantes para nós, em particular para a vida consagrada.

A primeira é esta: O que é que nos faz mover? Simeão vai ao templo «movido pelo Espírito» (2, 27). O Espírito Santo é o ator principal da cena: faz arder no coração de Simeão o desejo de Deus, reaviva no seu íntimo a expetativa, impele os seus passos para o templo e torna os seus olhos capazes de reconhecer o Messias no pobre bebé que ali aparece. Isto é o que faz o Espírito Santo: torna-nos capazes de vislumbrar a presença de Deus e a sua obra, não nas grandes coisas, nas exterioridades vistosas, nas exibições de força, mas na pequenez e na fragilidade. Pensemos na cruz: também lá nos aparece a pequenez, a fragilidade, até mesmo um drama. Mas lá está a força de Deus. A expressão «movido pelo Espírito» faz pensar naquilo que a espiritualidade designa por «moções espirituais»: motos da alma, que sentimos dentro de nós e que somos chamados a auscultar para discernir se provêm do Espírito Santo ou doutra realidade. É preciso estarmos atentos às moções interiores do Espírito.

Nesta linha, perguntemo-nos: Deixamo-nos mover principalmente pelo Espírito Santo ou pelo espírito do mundo? É uma interrogação com que devemos confrontar-nos todos nós, especialmente os consagrados. Enquanto o Espírito leva a reconhecer Deus na pequenez e fragilidade duma criança, nós às vezes corremos o risco de pensar na nossa consagração em termos de resultados, metas, sucesso: movemo-nos à procura de espaços, de visibilidade, de números: é uma tentação. Ao passo que o Espírito não pede isto; deseja que cultivemos a fidelidade diária, dóceis às pequenas coisas que nos foram confiadas. Como é bela a fidelidade de Simeão e Ana! Todos os dias vão ao templo, todos os dias esperam e rezam, não obstante vá passando o tempo e nada pareça acontecer. Esperam a vida inteira, sem desanimar nem se lamentar, mantendo-se fiéis dia a dia e alimentando a chama da esperança que o Espírito acendeu no seu coração.

Podemos perguntar-nos, irmãos e irmãs: O que é que move os nossos dias? Que amor nos impele a seguir em frente: o Espírito Santo ou a paixão do momento, isto é, uma coisa qualquer? Como nos movemos na Igreja e na sociedade? Às vezes, mesmo por trás da aparência de boas obras, podem ocultar-se a traça do narcisismo ou o frenesi do protagonismo. Noutros casos, embora realizando muitas coisas, as nossas comunidades religiosas parecem ser movidas mais pela repetição mecânica – fazer as coisas por hábito, apenas para fazê-las – do que pelo entusiasmo de aderir ao Espírito Santo. Far-nos-á bem, a todos nós, verificar hoje as nossas motivações interiores, discirnamos as moções espirituais, porque a renovação da vida consagrada passa primariamente por aqui.

Uma segunda pergunta: O que veem os nossos olhos? Simeão, movido pelo Espírito, vê e reconhece Cristo. E reza dizendo: «Meus olhos viram a Salvação» (2, 30). Eis o grande milagre da fé: abre os olhos, transforma o olhar, muda a perspetiva. Como sabemos através de muitos encontros de Jesus nos Evangelhos, a fé nasce do olhar compassivo com que Deus nos vê, dissolvendo as durezas do nosso coração, curando as suas feridas, dando-nos olhos novos para nos vermos a nós mesmos e ao mundo: olhos novos sobre nós mesmos, sobre os outros, sobre todas as situações que vivemos, mesmo as mais dolorosas. Não se trata dum olhar ingénuo, mas é sapiencial; o olhar ingénuo foge da realidade ou finge não ver os problemas; ao contrário, trata-se de olhos que sabem «ver dentro» e «ver mais além»; que não se detêm nas aparências, mas sabem entrar também nas brechas da fragilidade e dos fracassos para vislumbrar a presença de Deus.

Os olhos envelhecidos de Simeão, embora cansados pelos anos, veem o Senhor, veem a salvação. E nós? Cada qual pode interrogar-se: que veem os nossos olhos? Que visão temos da vida consagrada? Muitas vezes o mundo vê-a como um «desperdício»: «Mas vê tu! Aquele rapaz tão promissor tornar-se frade», ou «uma jovem tão promissora fazer-se freira… É um desperdício. Se ao menos valessem pouco... Não, são promissores, é um desperdício». Assim pensam; o mundo talvez veja a vida consagrada como uma realidade do passado, qualquer coisa de inútil. Mas nós, comunidade cristã, religiosas e religiosos, que vemos? Temos os nossos olhos voltados para trás, saudosos daquilo que já não existe ou somos capazes dum olhar de fé clarividente, projetado para o íntimo e mais além? Devemos ter esta sabedoria de olhar (é o Espírito que a dá): olhar bem, medir bem as distâncias, compreender as realidades. Faz-me muito bem ver consagrados e consagradas idosos, que continuam a sorrir com olhos luminosos, dando esperança aos jovens. Pensemos nas vezes em que nos cruzamos com tais olhares e bendigamos a Deus por isso. São olhares de esperança, abertos para o futuro. E talvez nos faça bem, nestes dias, ir encontrar, fazer uma visita aos nossos irmãos e irmãs religiosos idosos, para os ver, conversar, perguntar, ouvir o que pensam. Creio que será um bom remédio.

Irmãos e irmãs, o Senhor não cessa de dar sinais para nos convidar a cultivar uma visão renovada da vida consagrada. Isso faz falta, mas sob a luz, sob a moção do Espírito Santo. Não podemos fingir que não vemos esses sinais e continuar como se não importassem, repetindo as coisas de sempre, arrastando-nos por inércia nas formas do passado, paralisados pelo medo de mudar. Já o disse muitas vezes: hoje há a tentação de voltar para trás, por segurança, por medo, para manter a fé, para manter o carisma fundador... É uma tentação. A tentação de voltar para trás e manter as «tradições» com rigidez. Fixemos isto na cabeça: a rigidez é uma perversão e, sob cada rigidez, há graves problemas. Nem Simeão nem Ana eram rígidos, não! Eram livres e tinham a alegria de festejar: ele, louvando o Senhor e profetizando com coragem acerca da Mãe; e ela, como uma boa velhinha, a mover-se dum lado para o outro dizendo: «Vede estes aqui, vede isto!» Fizeram o anúncio com alegria, com os olhos cheios de esperança. Sem inércias do passado, nem rigidez. Abramos os olhos: através das crises – é verdade; existem as crises – através dos números que faltam - «Padre, não há vocações! Agora iremos até ao fim do mundo para ver se encontramos alguma» –, através das forças que esmorecem, o Espírito convida-nos a renovar a nossa vida e as nossas comunidades. Mas como fazer? Será Ele a indicar-nos o caminho. Nós abrimos o coração, com coragem, sem medo. Abrimos o coração. Olhemos para Simeão e Ana! Embora de idade avançada, não passam os dias a chorar por um passado que não volta mais, mas abrem os braços para o futuro que vem ao seu encontro. Irmãos e irmãs, não desperdicemos o hoje a olhar para o ontem ou sonhando com um amanhã que jamais virá, mas coloquemo-nos diante do Senhor, em adoração, e peçamos olhos que saibam ver o bem e vislumbrar os caminhos de Deus. O Senhor no-lo concederá, se Lho pedirmos com alegria, com fortaleza, sem medo.

Por fim, uma terceira pergunta: Que estreitamos nos braços? Simeão acolhe Jesus nos braços (cf. 2, 28). É uma cena terna e rica de significado, única nos Evangelhos. Deus colocou o seu Filho nos nossos braços, porque o essencial, o centro da fé é acolher Jesus. Às vezes corremos o risco de nos perder e dispersar em mil coisas, fixar-nos em aspetos secundários ou mergulhar-nos nas coisas que temos de fazer, mas o centro de tudo é Cristo, que devemos acolher como o Senhor da nossa vida.

Quando Simeão toma Jesus nos braços, os seus lábios pronunciam palavras de bênção, louvor, maravilha. E nós, depois de tantos anos de vida consagrada, perdemos a capacidade de nos maravilhar? Ou temos ainda essa capacidade? Examinemo-nos sobre isto e, se alguém não a tiver, peça a graça da estupefação, a estupefação diante das maravilhas que Deus está a realizar em nós, escondidas como a do templo, quando Simeão e Ana encontraram Jesus. Se aos consagrados faltam palavras que bendizem Deus e os outros, se falta a alegria, se esmorece o entusiamo, se a vida fraterna é apenas fadiga, se falta a estupefação, isso não acontece por que somos vítimas de alguém ou dalguma coisa, o verdadeiro motivo é que os nossos braços já não estreitam Jesus. E quando os braços dum consagrado, duma consagrada não estreitam Jesus, estreitam o vazio, que procuram preencher com outras coisas, mas permanece o vazio. Estreitar Jesus com os braços: este é o sinal, este é o caminho, esta é a «receita» para a renovação. Então, quando não abraçamos Jesus, o coração fecha-se na amargura. É triste ver consagrados amargos, consagradas amargas: fecham-se na lamentação pelas coisas que não funcionam a tempo e horas, num rigor que nos torna inflexíveis, em atitudes de pretensa superioridade.

Sempre se lamentam de alguma coisa: do superior, da superiora, dos irmãos, da comunidade, da cozinha... Se não têm de que lamentar-se, não vivem. Mas nós devemos abraçar Jesus em adoração e pedir olhos que saibam ver o bem e ver os caminhos de Deus. Se acolhermos Cristo de braços abertos, acolheremos também os outros com confiança e humildade. Então não se exacerbam os conflitos, as distâncias não se alongam e extingue-se a tentação de abusar e ferir a dignidade de alguma irmã ou irmão. Abramos os braços, a Cristo e aos irmãos! Lá está Jesus.

Caríssimos, caríssimas, renovemos hoje com entusiasmo a nossa consagração! Perguntemo-nos quais são as motivações que movem o nosso coração e o nosso agir, qual é a visão renovada que somos chamados a cultivar e, sobretudo, tomemos Jesus nos braços. Mesmo que experimentemos fadiga e cansaço – isto acontece! Até desilusões acontecem – façamos como Simeão e Ana que esperam com paciência na fidelidade do Senhor e não se deixam roubar a alegria do encontro. Encaminhemo-nos para a alegria do encontro. Isto é bom! Coloquemo-Lo no centro e continuemos para diante com alegria. Assim seja!


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 30 de janeiro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Na liturgia de hoje, o Evangelho narra a primeira pregação de Jesus na sua cidade, Nazaré. O êxito é amargo: em vez de receber aprovação, Jesus encontra incompreensão e até hostilidade (cf. Lc 4, 21-30). Os seus concidadãos, mais do que uma palavra de verdade, queriam milagres, sinais prodigiosos. O Senhor não os realiza e eles rejeitam-no, pois dizem que já o conheciam desde criança, que é o filho de José (cf. v. 22) e outras coisas mais. Então, Jesus pronunciou uma frase que se tornou proverbial: «Nenhum profeta é bem aceite na sua pátria» (v. 24).

Estas palavras revelam que o fracasso para Jesus não foi totalmente inesperado. Conhecia o seu povo, conhecia o coração do seu povo, conhecia o risco que estava a correr e previa a rejeição. Então podemos perguntar-nos: se é assim, se previa o fracasso, por que foi à sua cidade? Por que fazer o bem a pessoas que não estão dispostas a aceitá-lo? É uma pergunta que nos fazemos com frequência. Contudo, é uma questão que nos ajuda a compreender melhor a Deus. Face aos nossos fechamentos, ele não retrocede: não põe limites ao seu amor. Perante os nossos fechamentos, ele vai em frente. Vemos um reflexo disto nos pais que estão conscientes da ingratidão dos filhos, mas não deixam de os amar e de lhes fazer o bem. Deus é assim, mas a um nível muito mais elevado. E hoje também nos convida a acreditar no bem, a nunca deixar de procurar fazer o bem.

Mas no que aconteceu em Nazaré, encontramos outro aspeto: a hostilidade para com Jesus por parte dos “seus” provoca-nos: eles não foram acolhedores, e nós? Para verificar isto, vejamos os modelos de acolhimento que Jesus propõe hoje, aos seus concidadãos e a nós. São dois estrangeiros: uma viúva de Sarepta, na Sidónia, e Naamã, o sírio. Ambos acolheram profetas: a primeira acolheu Elias, o segundo Eliseu. Mas não foi uma receção fácil, passou através de experiências. A viúva hospedou Elias, apesar da carestia e embora o profeta fosse perseguido (cf. 1 Rs 17, 7-16), era um perseguido político-religioso. Naamã, por sua vez, não obstante fosse uma pessoa de nível muito elevado, aceitou o pedido do profeta Eliseu, que o levou a humilhar-se, a banhar-se sete vezes num rio (cf. 2 Rs 5, 1-14), como se fosse uma criança ignorante. A viúva e Naamã, em suma, acolheram através da disponibilidade e da humildade. O modo de acolher Deus é estar sempre disponível, acolhê-lo e ser humilde. A fé passa por isto: disponibilidade e humildade. A viúva e Naamã não rejeitaram os caminhos de Deus e dos seus profetas; foram dóceis, não rígidos nem fechados.

Irmãos e irmãs, Jesus também segue o caminho dos profetas: apresenta-se como não o esperaríamos. Aqueles que procuram milagres não o encontrarão – se procurarmos milagres não encontraremos Jesus – aqueles que procuram novas sensações, experiências íntimas, coisas estranhas; aqueles que procuram uma fé feita de poder e de sinais exteriores não o encontrarão. Não, eles não o encontrarão. Apenas aqueles que aceitam os seus caminhos e desafios, sem queixas, sem suspeitas, sem críticas nem caras feias, o encontrarão. Jesus, por outras palavras, pede-nos que O acolhamos na realidade quotidiana que vivemos; na Igreja de hoje, como ela é; naqueles que estão próximos todos os dias; na vida concreta dos necessitados, nos problemas das nossas famílias, nos pais, nos filhos, nos avós, ali acolhemos Deus. Ali está ele, convidando-nos a purificar-nos no rio da disponibilidade e em muitos banhos saudáveis de humildade. Precisamos de humildade para encontrar Deus, para nos deixarmos encontrar por Ele.

E nós, somos acolhedores ou parecidos com os seus concidadãos, que pensavam saber tudo sobre ele? “Estudei teologia, fiz o curso de catequese... Sei tudo sobre Jesus!”. Sim, como um estulto! Não sejas estúpido, não conheces Jesus. Talvez, após tantos anos de fé, pensamos que conhecemos bem o Senhor, muitas vezes com as nossas ideias e julgamentos. O risco é acostumar-nos, acostumar-nos a Jesus. E como nos habituamos? Fechando-nos, fechando-nos à sua novidade, ao momento em que ele bate à porta e nos diz algo novo, ele quer entrar em nós. Devemos sair deste permanecer fixados nas nossas posições. O Senhor pede uma mente aberta e um coração simples. E quando uma pessoa tem uma mente aberta, um coração simples, tem a capacidade de se surpreender, de se maravilhar. O Senhor surpreende-nos sempre, esta é a beleza do encontro com Jesus. Que Nossa Senhora, modelo de humildade e disponibilidade, nos mostre o caminho para acolher Jesus.


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 23 de janeiro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

No Evangelho da Liturgia de hoje vemos Jesus que inaugura a sua pregação (cf. Lc 4, 14-21): é a primeira pregação de Jesus. Ele vai a Nazaré, onde cresceu, e participa na oração na sinagoga. Levanta-se para ler e, no rolo do profeta Isaías, encontra a passagem relativa ao Messias, que proclama uma mensagem de consolação e libertação para os pobres e oprimidos (cf. Is 61, 1-2). No final da leitura, «os olhos de todos estavam fixos n'Ele» (v. 20). E Jesus começa assim: «Hoje cumpriu-se esta escritura» (v. 21). Reflitamos sobre este hoje. É a primeira palavra da pregação de Jesus citada no Evangelho de Lucas. Pronunciada pelo Senhor, indica um “hoje” que atravessa todas as épocas e permanece sempre válido. A Palavra de Deus é sempre “hoje”. Começa um “hoje”: quando lês a Palavra de Deus, na tua alma tem início um “hoje”, se a compreenderes bem. Hoje. A profecia de Isaías remontava a séculos, mas Jesus, «pelo poder do Espírito» (v. 14), torna-a atual e, sobretudo, leva-a a cumprimento, indicando o modo de receber a Palavra de Deus: hoje. Não como uma história antiga, não: hoje. Fala hoje ao teu coração.

Os concidadãos de Jesus impressionaram-se com a sua palavra. Não obstante enevoados pelos preconceitos, não acreditem nele, percebem que o seu ensinamento é diferente daquele dos outros mestres (cf. v. 22): intuem que em Jesus há algo mais. O quê? Há a unção do Espírito Santo. Às vezes acontece que os nossos sermões e os nossos ensinamentos permanecem genéricos, abstratos, não comovem a alma nem a vida do povo. E porquê? Porque lhes falta a força deste hoje, aquilo que Jesus “enche de significado” com o poder do Espírito é o hoje. Hoje fala-te. Sim, às vezes ouvimos palestras impecáveis, discursos bem construídos, mas não comovem o coração e por isso tudo permanece como antes. Também muitas homilias – digo isto com respeito, mas com tristeza – são abstratas, e em vez de despertar a alma, fazem-na dormir. Quando os fiéis começam a olhar para o relógio – “quando acabará isto?” – adormecem a alma. A pregação corre este risco: sem a unção do Espírito empobrece a Palavra de Deus, cai no moralismo ou em conceitos abstratos; apresenta o Evangelho com distância, como se estivesse fora do tempo, longe da realidade. E este não é o caminho. Mas uma palavra na qual a força do hoje não pulsa, não é digna de Jesus e não ajuda a vida das pessoas. É por isso que aqueles que pregam, por favor, são os primeiros a ter que experimentar o hoje de Jesus, para o poder comunicar no hoje dos outros. E se quiser dar palestras, conferências, que o faça, mas noutro lugar, não no momento da homilia, onde deve transmitir a Palavra de maneira a comover os corações.

Prezados irmãos e irmãs, neste Domingo da Palavra de Deus, gostaria de agradecer aos pregadores e anunciadores do Evangelho que permanecem fiéis à Palavra que comove o coração, que permanecem fiéis ao “hoje”. Oremos por eles, para que vivam o hoje de Jesus, o suave poder do seu Espírito, que vivifica as Escrituras. Com efeito, a Palavra de Deus é viva e eficaz (cf. Hb 4, 12), muda-nos, entra nas nossas vicissitudes, ilumina a nossa vida quotidiana, consola e traz ordem. Lembremo-nos: a Palavra de Deus transforma um dia comum no hoje em que Deus nos fala. Portanto, peguemos no Evangelho, cada dia uma pequena passagem para ler e reler. Levai o Evangelho no bolso ou na bolsa, para o ler em viagem, a qualquer momento, lendo-o calmamente. Com o tempo descobriremos que estas palavras são para nós, para a nossa vida. Ajudar-nos-ão a aceitar cada dia com uma perspetiva melhor e mais serena, porque quando o Evangelho entra no hoje, enche-o de Deus. Gostaria de vos fazer uma proposta. Nos domingos deste ano litúrgico é proclamado o Evangelho de Lucas, o Evangelho da misericórdia. Por que não o ler também pessoalmente, na íntegra, um pequeno trecho por dia? Um pequeno trecho. Familiarizemo-nos com o Evangelho, trar-nos-á a novidade e a alegria de Deus!

A Palavra de Deus é também o farol que guia o percurso sinodal, que teve início em toda a Igreja. Enquanto nos esforçamos por nos escutar uns aos outros, com atenção e discernimento – porque não é fazer uma pesquisa de opinião, não, mas discernir a Palavra – escutemos juntos a Palavra de Deus e o Espírito Santo. E que Nossa Senhora obtenha para nós a constância de nos nutrir com o Evangelho todos os dias.
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Depois do Angelus

Amados irmãos e irmãs!

Ontem em San Salvador, foram beatificados o sacerdote jesuíta Rutilio Grande García e dois companheiros leigos, e o sacerdote franciscano Cosme Spessotto, mártires da fé. Estiveram ao lado dos pobres, testemunhando o Evangelho, a verdade e a justiça, até ao derramamento do sangue. Que o seu exemplo heroico suscite em todos o desejo de ser corajosos agentes de fraternidade e paz. Um aplauso aos novos beatos!

Acompanho com preocupação o aumento das tensões que ameaçam infligir um novo golpe à paz na Ucrânia e põem em questão a segurança do continente europeu, com repercussões ainda mais vastas. Faço um premente apelo a todas as pessoas de boa vontade para que elevem orações a Deus Todo-Poderoso, a fim de que todas as ações e iniciativas políticas sirvam a fraternidade humana e não os interesses partidários. Aqueles que perseguem os próprios objetivos em detrimento dos outros desprezam a sua vocação de seres humanos, porque todos nós fomos criados irmãos. Por este motivo e com preocupação, dadas as atuais tensões, proponho que na próxima quarta-feira, 26 de janeiro, seja um dia de oração pela paz.

No contexto da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, aceitei a proposta que veio de muitos lugares e proclamei Santo Ireneu de Lião, Doutor da Igreja Universal. O ensinamento deste santo pastor e mestre é como uma ponte entre o Oriente e o Ocidente: é por isso que o indicamos como Doutor da Unidade, Doctor Unitatis. Que o Senhor nos conceda, pela sua intercessão, trabalhar juntos pela plena unidade dos cristãos.

Desejo bom domingo a todos. E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista.


Ninguém Nasce Cristão

Verónica Sousa | in Ponto SJ | 12 Janeiro 2022

Entremos no Teatro de Deus!

O silêncio, a expectativa. Os telemóveis desligados. Não é permitida a captação de som ou imagens. É que nenhum telemóvel consegue guardar com verdade o que ali acontece.

O teatro – uma arte sublime. Nele se expressa, através da exterioridade, aquilo que habita o nosso interior. Durante um bom teatro, as emoções, preocupações e anseios que trazíamos em nós ficam em suspenso, absorvidos por um mundo novo que nos envolve e fascina. Saímos do quotidiano e damos conta daquilo que em nós é mais profundo, o que na correria dos nossos dias somos incapazes de discernir. Pelo exagero que o teatro exige, na expressividade corporal, na voz alteada, nos sussurros, gritos, saltos e quedas encontramos um espelho do nosso interior que busca, em rebuliço e às vezes a qualquer custo, a harmonia e a paz.

Antes de começar: o que está por detrás da cortina? O ator que, concentrado, já encarna a vida, a voz, o gesto e a personalidade de outro. É um autêntico exercício de saída de si. A capacidade de “calçar os sapatos do outro”, como dizem os ingleses, é a descoberta do que temos em comum com ele. Consiste na tentativa – sempre curta e pobre – de levantar a ponta do véu do mistério da vida.

Sem efeitos especiais, só a pessoa humana. Tem tanto de cristão, o teatro. É que o crucial não é de todo aquilo que lá acontece: uma hora de divertimento e descanso. O fundamental é aquilo que fica no coração e na memória de quem o viveu: a semente de uma realidade capaz de transformar a vida.

Neste sentido, as mais belas histórias são também as mais difíceis de representar. Porque o superficial é muito facilmente encarnado por qualquer um. A verdadeira arte representativa reporta para o espiritual, para uma interioridade que a audiência não sabia ter. Para uma generosidade que se achava impossível. Enfim, para uma presença que nos habita: o próprio Deus.

É por isso que o teatro pode ser um excelente meio de evangelização, talvez ainda pouco explorado por nós, enquanto Igreja. Assim o acreditava Karol Wojtyla, o poeta e ator que se tornou Papa, o Papa São João Paulo II. O padre Wojtyla usava o teatro como plataforma de diálogo e resistência. Em tempos de guerra e sofrimento, a representação era janela de luz que alimentava a imaginação e a esperança de um mundo de Paz. O palco era o lugar onde se podia dizer: a vida é mais do que isto!

E tem tanto de Evangelho, o teatro. É semelhante ao momento em que abrimos a Escritura e ouvimos da boca de Jesus as seguintes palavras: tenho uma coisa para te dizer. O momento da parábola. O silêncio. A expectativa. Os telemóveis desligados. Não é permitida a captação de som ou imagens. Só a memória da vida, feita experiência, feita pão que se deixa amassar para se tornar alimento para todos, conhece o significado da parábola. Na nossa vida provocada e transformada pela Palavra de Deus vive a verdade das parábolas: o amor do samaritano, a esperança da mulher, a pressa do pastor.

Permitamo-nos, por fim, um momento de imaginação: e se a Trindade Santíssima fosse um teatro, como seria? O Pai, sem dúvida, o narrador.

O Filho amado, Jesus Cristo, a personagem principal: “por Ele e para Ele todas as coisas foram criadas” (Col 1,16). Não sendo necessariamente a figura mais evidente ao longo de toda a história, está sempre presente e, para o olhar atento, nunca sai de cena. É a personagem com quem todos se relacionam, sabendo ou não a sua verdadeira identidade.

Se assim fosse, o Espírito Santo só poderia ser o ponto. É que às vezes perdemo-nos no enredo e já não sabemos o que dizer nem o que fazer, o sentido da nossa vida parece ofuscado e não vemos o caminho. Nessas horas, cabe-nos fazer silêncio e esperar a voz do fiel Amigo a indicar-nos discretamente o nosso lugar na história, o sentido da nossa vida.

Entremos no Teatro de Deus! Desta vez, assumindo o nosso próprio papel: aqui não há guiões nem ensaios, mas a descoberta da vida a cada passo. Já sabemos quem é o protagonista – Jesus Cristo – por isso, não nos preocupemos com os primeiros lugares. Quer sejamos personagens secundárias ou nos sintamos apenas figurinos, rejubilemos por sermos participantes da bela História de Salvação, o teatro divino. E quando tivermos a tentação do protagonismo, repitamos com S. João Baptista: “É Ele quem deve crescer e eu diminuir”.


Ninguém Nasce Cristão

SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia, boa festa!

Hoje, solenidade da Epifania, contemplamos o episódio dos Magos (cf. Mt 2, 1-12). Eles empreendem uma longa e árdua viagem para ir adorar «o rei dos Judeus» (v. 2). São guiados pelo sinal prodigioso de uma estrela, e quando finalmente chegam à meta, em vez de encontrarem algo grandioso, veem um menino com a mãe. Poderiam ter protestado: “Tanta estrada, tantos sacrifícios para estar perante um menino pobre?”. No entanto, não se escandalizam, não se desiludem. Não se lamentam. O que fazem? Prostram-se. «Entrando na casa – diz o Evangelho – acharam o menino com Maria, sua mãe. Prostrando-se diante dele, adoraram-no» (v. 11).

Pensemos nestes sábios que vieram de longe, ricos, cultos, conhecidos, que se prostram, isto é, inclinam-se para adorar um menino! Parece uma contradição. Surpreende um gesto tão humilde realizado por parte de homens tão ilustres. Era habitual naquela época prostrar-se diante de uma autoridade que se apresentava com os sinais de poder e glória. E ainda hoje não seria estranho. Mas diante do Menino de Belém não é simples. Não é fácil adorar este Deus, cuja divindade permanece oculta e não parece triunfante. Significa aceitar a grandeza de Deus, que se manifesta na pequenez: esta é a mensagem. Os magos abaixam-se perante a lógica inaudita de Deus, acolhem o Senhor não como o imaginavam, mas tal como é, pequeno e pobre. A prostração é o sinal de quem põe de lado as próprias ideias e dá espaço a Deus. É necessária humildade para o fazer.

O Evangelho insiste nisto: não se limita a dizer que os magos adoraram, mas sublinha que se prostraram e adoraram. Entendamos esta indicação: adoração e prostração caminham juntas. Ao realizar este gesto, os magos demonstram que acolhem com humildade Aquele que se apresenta na humildade. E é assim que se abrem à adoração de Deus. Os cofres que abrem são imagem do seu coração aberto: a sua verdadeira riqueza não consiste na fama, no sucesso, mas na humildade, na sua crença de que precisam de salvação. Este é o exemplo que os Magos nos dão hoje.

Queridos irmãos e irmãs, se permanecermos sempre no centro de tudo com as nossas ideias e presumirmos vangloriar-nos de algo perante Deus, nunca o encontraremos plenamente, nunca o adoraremos. Se não deixarmos cair as nossas pretensões, as nossas vaidades, as nossas obsessões, os nossos esforços para sobressairmos, podemos muito bem adorar alguém ou algo na vida, mas não será o Senhor! Se, por outro lado, abandonarmos as nossas pretensões de autossuficiência, se nos fizermos pequenos por dentro, então redescobriremos a maravilha de adorar Jesus. Porque a adoração passa pela humildade do coração: aqueles que têm a vontade de superar, não se apercebem da presença do Senhor. Jesus passa ao lado e é ignorado, como aconteceu a muitos naquele tempo, mas não aos Magos.

Irmãos e irmãs, olhando para eles, perguntemo-nos hoje: como está a minha humildade? Estou convencido de que o orgulho impede o meu progresso espiritual? Aquele orgulho, manifesto ou oculto, que cobre sempre o impulso para Deus. Será que trabalho na minha docilidade, para estar disponível para Deus e para os outros, ou estou sempre centrado em mim mesmo, e nas minhas exigências, com aquele egoísmo oculto que é a soberba? Será que sei pôr de lado o meu ponto de vista para abraçar o de Deus e o dos outros? E por fim: rezo e adoro apenas quando preciso de alguma coisa, ou faço-o com constância porque acredito que preciso sempre de Jesus? Os Magos começaram a sua viagem olhando para uma estrela e encontraram Jesus. Eles percorreram um longo caminho. Hoje podemos seguir este conselho: olhar para a estrela e caminhar. Nunca deixeis de caminhar, mas não vos esqueçais de olhar para a estrela. Este é o conselho de hoje, vigoroso: olhar para a estrela e caminhar, olhar para a estrela e caminhar.

Que a Virgem Maria, serva do Senhor, nos ensine a redescobrir a necessidade vital da humildade e o gosto vivo da adoração. Que ela nos ensine a olhar para a estrela e a caminhar.


Ninguém Nasce Cristão

SANTA MISSA DA NOITE DE NATAL

SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica Vaticana
Sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Na noite, acende-se uma luz. Aparece um anjo, a glória do Senhor envolve os pastores e finalmente chega o anúncio há séculos esperado: «Hoje (…) nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor» (Lc 2, 11). Mas surpreende aquilo que o anjo acrescenta para indicar aos pastores como encontrar Deus que veio à terra. «Isto vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura» (2, 12). Eis o sinal: um menino. E é tudo: um menino na tosca pobreza duma manjedoura. Cessam luzes, fulgor, coros de anjos. Só um menino. Nada mais! Como predissera Isaías: «Um menino nasceu para nós» (Is 9, 5).

O Evangelho insiste neste contraste. Narra o nascimento de Jesus, começando por César Augusto, que ordena o recenseamento de toda a terra: mostra o primeiro imperador na sua grandeza. Mas, logo a seguir, leva-nos a Belém, onde, de grande, não há nada: apenas um menino pobre envolto em panos, rodeado por pastores. E ali está Deus, na pequenez. Eis a mensagem: Deus não cavalga a grandeza, mas desce na pequenez. A pequenez é a estrada que escolheu para chegar até nós, tocar-nos o coração, salvar-nos e levar-nos de volta para aquilo que conta.

Irmãos e irmãs, ao parar diante do presépio, fixemo-nos no centro: deixemos para trás luzes e decorações – que são belas – e contemplemos o Menino. Na sua pequenez, está Deus inteiro. Reconheçamo-Lo: «Menino, vós sois Deus, Deus-Menino». Deixemo-nos invadir por este espanto alvoroçado. Aquele que abraça o universo, precisa de ser tomado nos braços. Ele, que fez o sol, tem de ser aquecido. A ternura em pessoa precisa de ser mimada. O amor infinito tem um coração minúsculo, que emite batimentos leves. A Palavra eterna é infante, isto é, incapaz de falar. O Pão da vida tem de ser nutrido. O criador do mundo não tem onde morar. Hoje inverte-se tudo: Deus vem, pequenino, ao mundo. A sua grandeza oferece-se na pequenez.

E nós – perguntemo-nos – sabemos acolher esta estrada de Deus? É o desafio de Natal: Deus revela-Se, mas os homens não O compreendem. Faz-Se pequeno aos olhos do mundo… e nós continuamos a procurar a grandeza segundo o mundo, talvez até em nome d’Ele. Deus abaixa-Se… e nós queremos subir para o pedestal. O Altíssimo indica a humildade… e nós pretendemos sobressair. Deus vai à procura dos pastores, dos invisíveis… nós buscamos visibilidade, fazermo-nos ver. Jesus nasce para servir… e nós passamos os anos atrás do sucesso. Deus não busca força nem poder; pede ternura e pequenez interior.

Eis o que devemos pedir a Jesus no Natal: a graça da pequenez. «Senhor, ensinai-nos a amar a pequenez. Ajudai-nos a compreender que é a estrada para a verdadeira grandeza». Mas que significa, concretamente, acolher a pequenez? Em primeiro lugar, significa acreditar que Deus quer vir às pequenas coisas da nossa vida, quer habitar nas realidades quotidianas, nos gestos simples que realizamos em casa, na família, na escola, no trabalho. É na nossa existência ordinária que Ele quer realizar coisas extraordinárias. Trata-se duma mensagem de grande esperança: Jesus convida-nos a valorizar e redescobrir as pequenas coisas da vida. Se Ele está lá connosco, que nos falta? Então deixemos para trás o lamento por causa da grandeza que não temos. Renunciemos às lamúrias e rostos amuados, à avidez que nos deixa insatisfeitos. A pequenez, a maravilha daquela Criança pequenina: esta é a mensagem.

Mais ainda! Jesus não quer vir só às pequenas coisas da nossa vida, mas também à nossa pequenez: ao nosso sentir-nos fracos, frágeis, inadequados, talvez até errados. Irmã e irmão, se, como em Belém, te circunda a escuridão da noite, se em redor notas uma indiferença fria, se as feridas que trazes dentro te gritam «contas pouco, não vales nada, nunca serás amado como queres», nesta noite – se tu sentes isto – tens a resposta de Deus, que te diz: «Amo-te assim como és. A tua pequenez não Me assusta, as tuas fragilidades não Me preocupam. Fiz-Me pequeno por ti. Para ser o teu Deus, tornei-Me teu irmão. Amado irmão, amada irmã, não tenhas medo de Mim, mas reencontra em Mim a tua grandeza. Estou perto de ti e a única coisa que te peço é isto: confia em Mim e dá-Me guarida no teu coração».

Acolher a pequenez significa mais uma coisa: abraçar Jesus nos pequenos de hoje. Ou seja, amá-Lo nos últimos, servi-Lo nos pobres. São eles os mais parecidos com Jesus, nascido pobre. E é nos pobres que Ele quer ser honrado. Nesta noite de amor, um único medo nos assalte: ferir o amor de Deus, feri-lo desprezando os pobres com a nossa indiferença. São os prediletos de Jesus, que nos hão de acolher um dia no Céu. Uma poetisa escreveu: «Quem não encontrou o Céu cá em baixo, falhá-lo-á lá em cima» (E. Dickinson, Poems, XVII). Não percamos de vista o Céu, cuidemos de Jesus agora, acarinhando-O nos necessitados, porque Se identificou com eles.

Fixando de novo o presépio, vemos que, no seu nascimento, Jesus está rodeado precisamente pelos pequenos, pelos pobres. São os pastores. Eram os mais simples; e foram os que estiveram mais perto do Senhor. Encontraram-No, porque «pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite» (Lc 2, 8). Estavam lá para trabalhar, porque eram pobres e a sua vida não tinha horário, dependia do rebanho. Não podiam viver como e onde queriam, mas regulavam-se de acordo com as exigências das ovelhas que cuidavam. E Jesus nasceu lá próximo deles, perto dos esquecidos das periferias. Vem onde a dignidade do homem é posta à prova. Vem nobilitar os excluídos, revelando-Se primeiramente a eles: não a personalidades cultas e importantes, mas a gente pobre que trabalhava. Nesta noite, Deus vem encher de dignidade a dureza do trabalho. Recorda-nos como é importante dar dignidade ao homem com o trabalho, mas também dar dignidade ao trabalho do homem, porque o homem é senhor e não escravo do trabalho. No dia da Vida, repitamos: chega de mortes no trabalho! Empenhemo-nos para que cessem.

Olhemos uma última vez para o presépio, alongando a vista até às suas extremidades, onde já se vislumbram os Magos que vêm, peregrinos, para adorar o Senhor. Olhemos e compreendamos que, à volta de Jesus, tudo se compõe numa unidade: não estão só os últimos, os pastores, mas também os eruditos e os ricos, os Magos. Em Belém, estão juntos pobres e ricos, quem adora como os Magos e quem trabalha como os pastores. Tudo se harmoniza quando, no centro, está Jesus: não as nossas ideias sobre Jesus, mas Ele mesmo, o Vivente. Então, queridos irmãos e irmãs, voltemos a Belém, voltemos às origens: à essencialidade da fé, ao primeiro amor, à adoração e à caridade. Olhemos os Magos que vêm em peregrinação e, como Igreja sinodal, a caminho, vamos a Belém, onde está Deus no homem e o homem em Deus; onde o Senhor ocupa o primeiro lugar e é adorado; onde os últimos ocupam o lugar mais próximo d’Ele; onde pastores e Magos estão juntos numa fraternidade mais forte do que qualquer distinção. Que Deus nos conceda ser uma Igreja adoradora, pobre, fraterna. Isto é o essencial. Voltemos a Belém.

Faz-nos bem ir lá, dóceis ao Evangelho de Natal, que apresenta a Sagrada Família, os pastores e os Magos: são, todos, pessoas a caminho. Irmãos e irmãs, ponhamo-nos a caminho, porque a vida é uma peregrinação. Ergamo-nos, despertemos porque, nesta noite, acendeu-se uma luz. É uma luz suave e lembra-nos que, na nossa pequenez, somos filhos amados, filhos da luz (cf. 1 Tes 5, 5). Irmãos e irmãs, alegremo-nos juntos, porque ninguém apagará jamais esta luz, a luz de Jesus, que, desde esta noite, brilha no mundo.


Ninguém Nasce Cristão

Advento: a escola do inesperado

P. José Maria Brito, sj | 19 Dezembro 2021 | in Ponto SJ

Ilumina-se a quarta vela e poderíamos pensar: já está! Mas há ainda advento por viver. E no encontro de Maria e Isabel talvez possamos aprender alguma coisa sobre o inesperado como lugar em que Deus se revela.

As velas foram-se acendendo uma a uma. Chegámos ao quarto domingo do advento, ilumina-se a quarta vela e poderíamos pensar: já está! Mas há ainda advento por viver. E no encontro de Maria e Isabel talvez possamos aprender alguma coisa sobre o inesperado como lugar em que Deus se revela.

Foi inesperada a gravidez de Maria. Veio antes do tempo e foi sinal de um modo inimaginável de Deus se revelar. Deus importa-se com a nossa humanidade e habita na vida de uma jovem como outra qualquer, sem estatutos ou pergaminhos. Maria não se sentia preparada. Aquele inesperado superou-a. Mas ela não disse: “esquece Senhor, não sou capaz”, disse antes: “Aqui estou, faz Tu”. A consciência claríssima do seu limite não foi razão de bloqueio, mas antes de assentimento, de confiança e adesão. E foi também ponto de partida, saída apressada ao encontro de Isabel.

Os nossos limites e inesperados são muitas vezes razão de bloqueio, desistência e fechamento. Pensamos que já não há nada a fazer por nós, desistimos da possibilidade da nossa conversão. Podemos até achar que as guerras interiores, que tantas vezes nos aprisionam e dividem, nos tornam indignos de sair ao encontro dos outros. Maria processou o inesperado e a consciência da sua pequenez (“eis a serva”) confiando, saindo, indo ao encontro.

Foi inesperada a gravidez de Isabel. Veio depois do tempo. Uma mulher, idosa, a quem haviam chamado estéril é também lugar em que se revela o inesperado de Deus. Ao acolher em si esta surpresa, Isabel torna-se sensível ao modo de atuar de Deus. E a sua voz pode também ser eco do Espírito Santo, capaz de reconhecer a presença que Maria trazia no seu seio.

Talvez a nossa indiferença à presença de Deus, a dificuldade em encontrá-lo se deva ao desfoque das nossas expectativas: esperamos Deus no programado, nas “pessoas apropriadas”. Não ouvimos a voz e o sopro do espírito nas vidas que há muito etiquetámos de estéreis.

Não há limite, nem inesperado mais forte do que a escolha de Deus pela humanidade, do que a sua decisão de ser Deus connosco. Não há esterilidade mais forte do que a ação do Espírito da vida.

Esperamos Deus. E Deus espera-nos para que o possamos encontrar em todos os nossos inesperados. Ainda há advento por viver. Que o possamos atravessar aprendendo a viver o inesperado como lugar em que Deus se revela. Deus escolheu Isabel e Maria. E nestas mulheres arriscou inscrever a Sua imagem, a Imagem de Jesus escondido no mais pequeno e humilde, o Filho que se manifesta como servo de todos.

É escondendo-nos, sendo servos, reconhecendo-nos como filhos que podemos, com Maria e Isabel, aprender a viver o inesperado.


Ninguém Nasce Cristão

E se retornássemos ao primeiro Natal?

Vítor Rafael | 11 Dez 21| in 7MARGENS

Estamos a poucos dias de celebrar o Natal. Muito provavelmente, pelo menos no mundo ocidental, milhões e milhões de pessoas empreendem uma corrida desenfreada para comprar presentes, escolher um pinheiro juntamente com os seus enfeites, montar algures um presépio, trocar mensagens festivas, planear e preparar uma festiva refeição, incluindo os tradicionais bolos e doces, receber calorosamente os amigos e familiares nos seus lares e, por fim, fazer a tradicional troca de presentes entre todos. Tudo isto para supostamente recordar e festejar o nascimento de um menino ocorrido há cerca de dois mil anos em Belém da Judeia. Mas que significado terá para nós hoje o Natal de Jesus?

Antes de mais começaríamos por dizer que, conforme indicou o famoso exegeta padre Raymond Brown, para se compreender bem as narrativas do Natal, temos de nos lembrar que os evangelhos não se destinavam a ser biografias históricas, mas sim proclamações das boas novas da salvação na vida de Jesus. Assim, a importância dessas narrativas da infância não reside na historicidade precisa dos acontecimentos, mas no que elas nos mostram acerca de Jesus, ou melhor, sobre aquilo que os cristãos creem acerca de Jesus. Uma das peculiaridades dos Evangelhos de Mateus e de Lucas, escritos algures entre as décadas de 80 e 90 do século I, é a sua cristologia, que se reveste já de especial significado ao revelar aos seus leitores que Jesus, desde o seu nascimento, é o Filho de Deus, e o Deus connosco (Lucas 1:31, Mateus 1:23).

Sabe-se que os primeiros cristãos, pelo menos até ao terceiro século da nossa era, não celebravam o Natal. O próprio dia 25 de dezembro, o dies solis invicti nati (o dia do nascimento do sol invictus), era um dia festivo popular no Império Romano, que celebrava o solstício de inverno como um símbolo do ressurgimento do sol e o prenúncio da vinda da primavera e do verão.

De facto, depois de 25 de dezembro se ter tornado amplamente aceite como a data do nascimento de Jesus, os escritores cristãos estabeleceram frequentemente a ligação entre o renascimento do sol e o nascimento de Jesus, o Filho de Deus. Até praticamente aos nossos dias, as diversas inculturações pagãs no seio do cristianismo, trataram de travestir a celebração do nascimento de Jesus com outras tradições, que vão desde os cenários de neve dos invernos nórdicos, com os seus pinheiros, passando pela lenda de São Nicolau, do qual se diz que terá sido muito generoso para com as crianças e jovens desfavorecidos e que está na origem dos nossos hábitos de ofertar presentes uns aos outros, até às fogueiras de Natal, cujas origens remontam às celebrações do solstício de inverno.

Mas a verdadeira história do nascimento de Jesus, se é que podemos chegar a ela através dos evangelhos, pouco ou nada tem a ver com essa sumptuosa imagética com que muitas vezes revestimos as nossas celebrações natalícias. Do que se sabe das condições socioeconómicas das populações da Palestina por altura do nascimento de Jesus, a esmagadora maioria vivia muito perto do nível de subsistência ou abaixo dele, muitos deles endividados, sem as suas terras e praticamente em regime de subserviência e até de escravidão. A família de Jesus, de algures da pequena aldeia de Nazaré, seria plausivelmente tão pobre e humilde como as restantes que faziam parte do ambiente rural da Galileia. O próprio Jesus, segundo o relato lucano, terá nascido num simples estábulo e visitado por humildes pastores, por vezes desprezados por alguns escritos rabínicos que os consideravam cidadãos de segunda-classe.

Neste mundo ocidental há muito secularizado, temos celebrado esse Natal tão romantizado que nos faz esquecer por vezes o verdadeiro núcleo da sua mensagem, o próprio Jesus. Possivelmente nunca conseguiremos entender a encarnação do próprio Deus numa simples, humilde e frágil criança. O primeiro Natal inverte tudo o que possamos entender acerca do nosso Deus, esse que, tal como o apóstolo Paulo escrevia à igreja de Corinto, “que sendo rico, se fez pobre por amor de nós, para que por meio da sua pobreza nós nos tornássemos ricos” (2 Coríntios 8:9). E é interessante que esse menino divino mais tarde, e no início do seu ministério, toma como o seu manifesto a passagem de Isaías: “O espírito do Senhor [está] sobre mim, porque me ungiu para anunciar a boa-nova aos mendigos; enviou-me a proclamar aos presos a libertação e aos cegos a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano aceitável da parte do Senhor.” (Lucas 4:18-19).

E se retornássemos ao primeiro Natal para celebrarmos esse menino proscrito, cujo caminho descendente é o do encontro, libertação, inclusão e restauração? Afinal, nestes tempos de incerteza, insegurança e sem esperança para muitos, o que verdadeiramente importa, é que nos deixemos guiar por esse menino que é manso e humilde de coração e que cuja mensagem pode afinal transformar a vida de todos nós.

Vítor Rafael é investigador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo, da Universidade Lusófona


Ninguém Nasce Cristão

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
A CHIPRE E À GRÉCIA
(2-6 DE DEZEMBRO DE 2021)

SANTA MISSA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Atenas - Sala de Concertos Megaron
Domingo, 5 de dezembro de 2021

Neste II domingo do Advento, a Palavra de Deus apresenta-nos a figura de São João Baptista. O Evangelho sublinha dois aspetos: o lugar onde se encontra – o deserto – e o conteúdo da sua mensagem – a conversão. Deserto e conversão: o Evangelho de hoje insiste nisto, e com uma insistência tal que nos faz compreender que estas palavras nos dizem respeito diretamente. Acolhamo-las ambas.

O deserto. O evangelista Lucas apresenta este lugar duma maneira particular. Com efeito fala de circunstâncias solenes e de grandes personagens da época: refere o décimo quinto ano do imperador Tibério César, o governador Pôncio Pilatos, o rei Herodes e outros «líderes políticos» de então; depois menciona os chefes religiosos, Anás e Caifás, que estavam no Templo de Jerusalém (cf. Lc 3, 1-2). Neste ponto, declara: «a palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto» (Lc 3, 2). Como é possível? Esperávamos que a Palavra de Deus se dirigisse a um dos grandes, acabados de citar. Mas não. Das linhas do Evangelho emerge uma subtil ironia: dos nobres palácios onde moram os detentores do poder, passa-se inesperadamente para o deserto, para um homem desconhecido e solitário. Deus surpreende-nos, as suas opções surpreendem: não entram nas previsões humanas, não seguem o poder e a grandeza que o homem habitualmente Lhe associa. O Senhor prefere a pequenez e a humildade. A redenção não começa em Jerusalém, Atenas ou Roma, mas no deserto. Esta estratégia paradoxal oferece-nos uma mensagem muito bela: ter autoridade, ser cultos e famosos não constituem garantias para agradar a Deus; antes pelo contrário, poderia induzir-nos ao orgulho e a rejeitá-Lo. Em vez disso, ajuda ser pobres intimamente, como pobre é o deserto.

Detenhamo-nos no paradoxo do deserto. O Precursor prepara a vinda de Cristo neste lugar impérvio e inospitaleiro, cheio de perigos. Ora, se alguém quer fazer um anúncio importante, habitualmente vai a lugares belos, onde há muita gente, onde goza de visibilidade. Ao contrário, João prega no deserto. E precisamente naquele lugar da aridez, naquele espaço vazio que se estende a perder de vista e onde quase não há vida, precisamente lá se revela a glória do Senhor, que – como profetizam as Escrituras (cf. Is 40, 3-4) – transforma o deserto em lago, a terra árida em nascentes de água (cf. Is 41, 18). Aqui está outra mensagem encorajadora: agora como então, Deus volta o seu olhar para onde dominam tristeza e solidão. Podemos experimentá-lo na vida: com frequência Ele não consegue tocar-nos enquanto estamos no meio dos aplausos e só pensamos em nós mesmos; alcança-nos sobretudo nas horas da provação. Visita-nos nas situações difíceis; é nos nossos vazios, nos nossos desertos existenciais, que Lhe deixamos espaço. É aí que nos visita o Senhor.

Queridos irmãos e irmãs, na vida duma pessoa ou dum povo, não faltam momentos em que se tem a impressão de encontrar-se no deserto. E é precisamente aí que Se faz presente o Senhor, que muitas vezes não é acolhido por quem se sente bem-sucedido, mas pela pessoa que se sente incapaz de vencer. E vem com palavras de proximidade, compaixão e ternura: «Não temas, porque Eu estou contigo; não te angusties, porque Eu sou o teu Deus. Eu fortaleço-te e auxilio-te» (41, 10). Ao pregar no deserto, João assegura-nos que o Senhor vem para nos libertar e de novo nos dar vida precisamente nas situações que parecem irresgatáveis, sem vias de saída: é aqui que Ele vem. Assim, não há lugar que Deus não queira visitar. E hoje só podemos sentir alegria em vê-Lo escolher o deserto, para nos alcançar na nossa pequenez que ama e na nossa aridez que quer dessedentar. Portanto, caríssimos, não temais a pequenez, porque a questão não é ser pequenos e poucos, mas abrir-se a Deus e aos outros. E não temais sequer a aridez, pois não a teme Deus que nela nos vem visitar.

Passemos ao segundo aspeto: a conversão. João Baptista pregava-a sem parar e de forma veemente (cf. Lc 3, 7). Também esta é uma temática «incómoda». Tal como o deserto não é o primeiro lugar onde gostaríamos de ir, assim também o convite à conversão certamente não é a primeira proposta que gostaríamos de ouvir. Falar de conversão pode gerar tristeza; parece-nos difícil conciliar com o Evangelho da alegria. Mas isto verifica-se quando a conversão se reduz a um esforço moral, como se fosse fruto apenas do nosso empenho. O problema está precisamente aqui: em basear tudo sobre as nossas forças. Isto é errado! Aqui se escondem também a tristeza espiritual e a frustração: queremos converter-nos, ser melhores, superar os nossos defeitos, mudar, mas sentimos que não somos plenamente capazes e, apesar da boa vontade, sempre voltamos a cair. Provamos a mesma experiência de São Paulo que, precisamente a partir destas terras, escrevia: «O querer está ao meu alcance, mas realizar o bem, isso não. É que não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, isso é que pratico» (Rm 7, 18-19). Então se, sozinhos, não temos a capacidade de fazer o bem que queremos, que significa que devemos converter-nos?

Nisto pode ajudar-nos a vossa bela língua, o grego, com a etimologia do verbo evangélico «converter – metanoéin». Compõe-se da preposição meta, que aqui significa além, e do verbo noéin, que quer dizer pensar. Assim converter-se é pensar além, isto é, ir além da maneira habitual de pensar, além dos nossos habituais esquemas mentais. Concretamente penso nos esquemas que reduzem tudo ao nosso eu, à nossa pretensão de autossuficiência; ou nos esquemas fechados pela rigidez e o medo que paralisam, pela tentação «sempre se fez assim, para quê mudar?», pela ideia de que os desertos da vida são lugares de morte e não da presença de Deus.

Ao exortar-nos à conversão, João Batista convida-nos a ir além, não nos detendo aqui; ir além daquilo que os nossos instintos nos sugerem e os nossos pensamentos fotografam, porque a realidade é maior: é maior do que os nossos instintos, os nossos pensamentos. Na verdade Deus é maior. Então converter-se significa não dar ouvidos ao que enterra a esperança, a quem repete que nada mudará jamais na vida… os pessimistas de sempre! É recusar-se a acreditar que estamos destinados a afundar nas areias movediças da mediocridade; é não ceder aos fantasmas interiores, que surgem sobretudo nos momentos de provação para nos desanimar, dizendo que não vamos conseguir, que tudo está errado e que tornar-se santo não é para nós. Não é assim, porque há Deus. É preciso confiar n’Ele, porque é Deus o nosso além, a nossa força. Tudo muda, se se deixar a Ele o primeiro lugar. Eis a conversão: ao Senhor, basta a nossa porta aberta para entrar e fazer maravilhas, assim como Lhe bastaram um deserto e as palavras de João para vir ao mundo. Não pede mais mada!

Peçamos a graça de acreditar que, com Deus, as coisas mudam, que Ele cura os nossos medos, sara as nossas feridas, transforma lugares áridos em nascentes de água. Peçamos a graça da esperança, porque é a esperança que reanima a fé e reacende a caridade; porque é de esperança que hoje estão sequiosos os desertos do mundo. E enquanto este nosso encontro nos renova na esperança e na alegria de Jesus, e eu rejubilo por estar convosco, peçamos à nossa Mãe, a Toda Santa, que nos ajude a ser, como Ela, testemunhas de esperança – a esperança, irmãos e irmãs, não dececiona, nunca dececiona –, semeadores de alegria ao nosso redor; e não só quando estamos felizes e juntos, mas todos os dias, nos desertos que habitamos. Porque é aqui, com a graça de Deus, que a nossa vida é chamada a converter-se. É aqui, nos muitos desertos do nosso interior ou do ambiente circundante, que a vida é chamada a florescer. Que o Senhor nos dê graça e coragem de acolher esta verdade!


Ninguém Nasce Cristão

VÍDEO MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS PARTICIPANTES DO FESTIVAL DE DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA

Verona, 25 a 28 de novembro de 2021

Uma saudação cordial a todos os que participam na XI edição do Festival de Doutrina Social da Igreja. O tema que escolheram este ano é “Ousado na esperança - Criativo com coragem”. É um tema que sintetiza a atitude com que tentamos enfrentar neste momento, ainda condicionado pela pandemia. Ousadia, esperança, criatividade e coragem não são sinónimos, mas representam uma conexão de intenções, virtudes, abertura e olhares para a realidade que fortalecem a alma humana. Mas não só.

Lembrar-se-ão da parábola dos talentos contada no Evangelho de Mateus (25: 14-30). “Aquele que recebera cinco talentos foi empregá-los e ganhou mais cinco”, lemos no versículo 16. Esta parábola é a última parábola antes do texto em que se diz que seremos julgados pela caridade (Mt 25,31 -46). Assim, aquele dos talentos parece ser o discurso programático de Jesus precisamente sobre a audácia necessária para ser cristão.

Contra todos os benfeitores superficiais e contra todo o fatalismo, Jesus convida as multidões a usarem os seus talentos com coragem. Não importa quantos e quais são os talentos de cada um. Jesus pede para correr riscos e investi-los, para multiplicá-los. Quando permanecemos retraídos em nós mesmos com o único objetivo de preservar o existente, para o Evangelho somos perdedores: de fato, até o que sobra nos será tirado. Ousadia, esperança, criatividade e coragem são palavras que delineiam a espiritualidade do cristão. «Porque a quem tem, será dado e terá em abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado ”(Mt 25,29).

Na Encíclica Todos Irmãos , recordo que “a pandemia permitiu-nos recuperar e valorizar muitos companheiros e companheiros de viagem que, com medo, reagiram dando a vida. Conseguimos reconhecer que as nossas vidas estão entrelaçadas e apoiadas por pessoas comuns que, sem dúvida, escreveram os eventos definidores de nossa história compartilhada: médicos, enfermeiras e enfermeiras, farmacêuticos, trabalhadores de supermercado, empregadas domésticas, cuidadores, transportadores, homens e mulheres que trabalham para fornecer serviços essenciais e segurança, voluntários, padres, religiosos ”e assim por diante. Estes "compreenderam que ninguém se salva sozinho" (n. 54). Ninguém se salva sozinho. Aqui estão os talentos colocados em uso. Aqui está a esperança que apoia e direciona a criatividade com ousadia e coragem. Por isso, renovo o convite a caminhar na esperança de que “seja ousada, saiba olhar para além do conforto pessoal, as pequenas seguranças e compensações que estreitam o horizonte, abrir-se a grandes ideais que tornam a vida mais bela e digno "(ibid, 55); cf. Saudação aos jovens do Centro Cultural Padre Félix Varela, Havana - Cuba, 20 de setembro de 2015).

A esperança, já disse em outras ocasiões, é "como lançar âncora na outra margem". É essa ousadia que inspira novas ações, direciona competências, estimula o comprometimento, dá vida à vida. Quem tem esperança sabe que faz parte de uma história construída por outros e recebida como um presente, assim como na parábola dos talentos. E ele também sabe que deve fazer com que esse presente dê frutos.

Desejo dirigir mais uma palavra aos vários atores da vida social reunidos em Verona por ocasião do Festival: empresários, profissionais, representantes do mundo institucional, da cooperação, da economia e da cultura. Continuem a empenhar-se no caminho que o P. Adriano Vincenzi traçou convosco para o conhecimento e a formação na doutrina social da Igreja. Como diz o slogan desta edição: Onde quer que esteja, construa a mudança! Onde quer que você esteja. Mas para construir a mudança, porque sabemos que a crise não sai igual: sairemos melhor ou pior.

Que o Senhor vos abençoe, que Nossa Senhora vos guarde. E, por favor, não se esqueçam de orar por mim. Obrigado!


Ninguém Nasce Cristão

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA A XXXVI JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

21 de novembro de 2021

“Levanta-te! Eu te constituo testemunha do que viste!” (cf. At 26, 16)

Queridos jovens,

Gostaria de tomar-vos pela mão, mais uma vez, para continuarmos juntos na peregrinação espiritual que nos conduz rumo à Jornada Mundial da Juventude de Lisboa em 2023. (…)

Por isso, hoje, Deus diz a cada um de vós mais uma vez: «Levanta-te!» Espero de todo o coração que esta mensagem ajude a preparar-nos para tempos novos, para uma página nova na história da humanidade. Mas não há possibilidades de recomeçar sem vós, queridos jovens. Para levantar-se, o mundo precisa da vossa força, do vosso entusiasmo, da vossa paixão. É neste sentido que gostaria de meditar, juntamente convosco, sobre o trecho dos Atos dos Apóstolos onde Jesus diz a Paulo: «Levanta-te! Constituo-te testemunha do que viste» (cf. At 26, 16). (…)

«Saulo, Saulo!»

Aprofundemos, juntos, o acontecimento. Ao chamá-lo pelo nome, o Senhor faz saber a Saulo que o conhece pessoalmente. É como se lhe dissesse: «Sei quem és, sei o que estás a tramar, mas, não obstante isso, é precisamente a ti que estou a falar». Pronuncia o seu nome duas vezes, querendo significar uma vocação especial e muito importante, como fizera com Moisés (cf. Ex 3, 4) e com Samuel (cf. 1 Sam 3, 10). Caindo por terra, Saulo reconhece que é testemunha duma manifestação divina, duma revelação vigorosa, que o transtorna mas sem o aniquilar; pelo contrário, interpela-o usando o nome.

Com efeito, só muda a vida um encontro pessoal, não anónimo, com Cristo. Jesus mostra que conhece bem Saulo, que «o conhece intimamente». Embora Saulo seja um perseguidor, embora haja ódio no seu coração contra os cristãos, Jesus sabe que isso se fica a dever à ignorância e quer manifestar nele a sua misericórdia. Será precisamente esta graça, este amor imerecido e incondicional, a luz que transformará radicalmente a vida de Saulo.

«Quem és tu, Senhor?»

Perante esta presença misteriosa que o chama pelo nome, Saulo pergunta: «Quem és tu, Senhor?» (At 26, 15). Trata-se duma questão extremamente importante, e todos nós mais cedo ou mais tarde na vida a devemos colocar. Não basta ter ouvido outros a falarem de Cristo; é necessário falar com Ele pessoalmente. No fundo, rezar é isto. É falar diretamente com Jesus, embora porventura tenhamos o coração ainda em desordem, a cabeça cheia de dúvidas ou mesmo de desprezo por Cristo e pelos cristãos. Faço votos de que cada jovem chegue, do fundo do coração, a fazer esta pergunta: «Quem és tu, Senhor?».

Não podemos presumir que todos conheçam Jesus, mesmo na era da internet. A pergunta que muitas pessoas dirigem a Jesus e à Igreja é precisamente esta: «Quem és?». Em toda a narrativa da vocação de São Paulo, esta é a única vez que ele fala. E, à sua pergunta, o Senhor responde prontamente: «Eu sou Jesus a quem tu persegues» (26, 15).

«Eu sou Jesus a quem tu persegues!»

Através desta resposta, o Senhor Jesus revela um grande mistério a Saulo: que Ele Se identifica com a Igreja, com os cristãos. Até então Saulo não vira nada de Cristo, senão os fiéis que metera na prisão (cf. At 26, 10), dando o próprio assentimento à sua condenação à morte (26, 10). E vira como os cristãos respondiam ao mal com o bem, ao ódio com o amor, aceitando as injustiças, as violências, as calúnias e as perseguições suportadas pelo nome de Cristo. Assim, bem vistas as coisas, de algum modo Saulo – sem o saber – tinha encontrado Cristo: encontrara-O nos cristãos.

Quantas vezes ouvimos dizer: «Jesus sim, a Igreja não», como se um pudesse ser alternativa à outra. Não se pode conhecer Jesus, se não se conhece a Igreja. Só se pode conhecer Jesus por meio dos irmãos e irmãs da sua comunidade. Ninguém pode dizer-se plenamente cristão, se não viver a dimensão eclesial da fé. (…)

Reconhecer a própria cegueira

Podemos imaginar que, antes do encontro com Cristo, Saulo estivesse de certo modo «cheio de si», considerando-se «grande» pela sua integridade moral, o seu zelo, as suas origens, a sua cultura. Seguramente estava convencido da justeza da sua posição. Mas, quando o Senhor se lhe revela, é «lançado por terra» e fica cego. De repente, descobre que não é capaz, física e espiritualmente, de ver. As suas certezas vacilam. No íntimo, sente que aquilo que o animava com tanta paixão, ou seja, o zelo de eliminar os cristãos, estava completamente errado. Dá-se conta de não ser o detentor absoluto da verdade; antes pelo contrário, está bem longe dela. E, juntamente com as suas certezas, cai também a sua «grandeza». De repente, descobre-se perdido, frágil, «pequeno».

Esta humildade – consciência da própria limitação – é fundamental. Quem pensa que sabe tudo sobre si mesmo, os outros e até sobre as verdades religiosas, terá dificuldade em encontrar Cristo. Tendo ficado cego, Saulo perdeu os seus pontos de referência. Ficando sozinho na escuridão, para ele as únicas coisas claras são a luz que viu e a voz que ouviu. Que paradoxo! Precisamente quando uma pessoa reconhece estar cega, começa a ver…

Depois da fulguração na estrada de Damasco, Saulo preferirá ser chamado Paulo, que significa «pequeno». Não se trata dum pseudónimo nem dum «nome artístico» (tão usado hoje mesmo entre as pessoas comuns): o encontro com Cristo fê-lo sentir-se verdadeiramente assim, derrubando o muro que o impedia de se conhecer com toda a verdade. De si mesmo afirma: «É que eu sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado Apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus» (1 Cor 15, 9).

Santa Teresa de Lisieux gostava de repetir, como aliás outros santos, que a humildade é a verdade. Hoje em dia muitas «histórias» condimentam os nossos dias, principalmente nas redes sociais, muitas vezes criadas habilmente com muitas filmagens, telecâmaras, variados cenários. Procuram-se cada vez mais as luzes da ribalta, sabiamente orientadas, para poder mostrar aos «amigos» e seguidores uma imagem de si mesmo que às vezes não reflete a própria verdade. Cristo, meridiana luz, vem iluminar-nos devolvendo-nos a nossa autenticidade, libertando-nos de todas as máscaras. Mostra-nos claramente o que somos, porque nos ama tal como somos.

Mudar de perspetiva

(…) À semelhança de Paulo, cada um de nós pode ouvir no fundo do coração esta voz que lhe diz: «Confio em ti. Conheço a tua história e tomo-a nas minhas mãos juntamente contigo. Apesar de muitas vezes teres estado contra Mim, escolho-te e torno-te minha testemunha». A lógica divina pode fazer do pior perseguidor uma grande testemunha.

O discípulo de Cristo é chamado a ser «luz do mundo» (Mt 5, 14). Paulo tem de testemunhar o que viu, mas agora está cego. Estamos de novo perante um paradoxo! Mas, precisamente através desta sua experiência pessoal, Paulo poderá identificar-se com aqueles a quem o Senhor o envia. Com efeito, é constituído testemunha «para lhes abrir os olhos e fazê-los passar das trevas à luz» (At 26, 18).

«Levanta-te e testemunha!»

Ao abraçar a vida nova que nos é dada no Batismo, recebemos também uma missão do Senhor: «Serás minha testemunha». É uma missão que pede a nossa dedicação e faz mudar a vida.

Hoje, o convite de Cristo a Paulo é dirigido a cada um e cada uma de vós, jovens: Levanta-te! Não podes ficar por terra a «lamentar-te com pena de ti mesmo»; há uma missão que te espera! Também tu podes ser testemunha das obras que Jesus começou a realizar em ti. Por isso, em nome de Cristo, eu te digo:

– Levanta-te e testemunha a tua experiência de cego que encontrou a luz, viu o bem e a beleza de Deus em si mesmo, nos outros e na comunhão da Igreja que vence toda a solidão.

– Levanta-te e testemunha o amor e o respeito que se podem estabelecer nas relações humanas, na vida familiar, no diálogo entre pais e filhos, entre jovens e idosos.

– Levanta-te e defende a justiça social, a verdade e a retidão, os direitos humanos, os perseguidos, os pobres e vulneráveis, aqueles que não têm voz na sociedade, os imigrantes.

– Levanta-te e testemunha o novo olhar que te faz ver a criação com olhos cheios de maravilha, te faz reconhecer a Terra como a nossa casa comum e te dá a coragem de defender a ecologia integral.

– Levanta-te e testemunha que as existências fracassadas podem ser reconstruídas, as pessoas já mortas no espírito podem ressuscitar, as pessoas escravizadas podem voltar a ser livres, os corações oprimidos pela tristeza podem reencontrar a esperança.

– Levanta-te e testemunha com alegria que Cristo vive! Espalha a sua mensagem de amor e salvação entre os teus coetâneos, na escola, na universidade, no trabalho, no mundo digital, por todo o lado.

O Senhor, a Igreja, o Papa confiam em vós e constituem-vos testemunhas junto de muitos outros jovens que encontrais pelos «caminhos de Damasco» do nosso tempo. Não vos esqueçais: «Se uma pessoa experimentou verdadeiramente o amor de Deus que o salva, não precisa de muito tempo de preparação para sair a anunciá-lo, não pode esperar que lhe deem muitas lições ou longas instruções. Cada cristão é missionário na medida em que se encontrou com o amor de Deus em Cristo Jesus» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 120).

Levantai-vos e celebrai a JMJ nas Igrejas Particulares!

Renovo a todos vós, jovens do mundo inteiro, o convite a tomar parte nesta peregrinação espiritual que nos levará à celebração da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa no ano de 2023. O próximo encontro, porém, é nas vossas Igrejas Particulares, nas várias dioceses e eparquias da terra, onde, na Solenidade de Cristo Rei, será celebrado – a nível local – o Dia Mundial da Juventude de 2021.

Espero que todos nós possamos viver estas etapas como verdadeiros peregrinos e não como «turistas da fé»! Abramo-nos às surpresas de Deus, que quer fazer resplandecer a sua luz sobre o nosso caminho. Abramo-nos à escuta da sua voz, inclusive através dos nossos irmãos e irmãs. Assim ajudar-nos-emos uns aos outros a levantar-nos juntos e, neste difícil momento histórico, tornar-nos-emos profetas de tempos novos, cheios de esperança! A Bem-Aventurada Virgem Maria interceda por nós.

Roma, São João de Latrão, na Festa da Exaltação da Santa Cruz, 14 de setembro de 2021.


Ninguém Nasce Cristão

Os jovens não querem imposições, mas estão prontos a caminhar

Muitas vezes tive a possibilidade – qualifico-a de graça – de encontrar-me com jovens, rapazes e raparigas que antes de tudo escuto, motivado por amplo e profundo interesse. Separam-me deles pelo menos três gerações, são realmente diferentes, um outro mundo, mas tecer também com eles relações nesta última estação da minha vida dá-me razões para sentir a responsabilidade do barqueiro que passa gente e também me inspira muita esperança.

Há um amanhã para o mundo que não acaba comigo, e começar a percebê-lo, observá-lo e escutá-lo dá plenitude aos meus dias. Sempre soube, porque disso me advertiram, que não há uma geração pior ou melhor que outra, e que todas as gerações podem ser consideradas “más” por causa da fragilidade e dos erros que a seduzem, mas podem também ser declaradas felizes devido às aquisições positivas de que são capazes.

É certo que as buscas, as perguntas dos jovens hoje não são as que eram as minhas na minha juventude, e expressões como «busca da verdade», «busca de Deus», que tanto me atraíam, agora já não dizem nada. Todavia a busca da felicidade, a pergunta «como posso ser feliz?», permanecem as mesmas, habitam no coração agora como então. Aliás, esta é uma pergunta que, significativamente, encontramos já nos textos da sabedoria egípcia do segundo milénio antes de Cristo. Desejar dias felizes, ter vida em abundância é a grande esperança dos humanos que bem conhecem o duro ofício de viver e o inexorável destino mortal. E hoje os jovens sentem esta felicidade contida no apelo a tornarem-se eles próprios. O imperativo é aquele formulado por Nietzsche: «Deves tornar-te aquilo que és!».

Mas nesta livre busca da identidade são possíveis as ilusões, e os jovens querem ser avisados para as dissipar: são capazes de escuta e sobretudo, por causa do seu desejo de autenticidade, continuam sensíveis à gramática humana. Sabem, com efeito, aprender que no espaço afetivo não é suficiente experimentar e colecionar emoções. Aquilo que faz vibrar, as aventuras que surpreendem, as sensações que se descobrem não são “sentimentos”, os quais, pelo contrário, precisam de interpretação, de tempo, não da fugacidade do instante. São os sentimentos, não as emoções, que abrem para a beleza, para o amor, para a amizade, para o sexo e para a relação com os outros.

Outra ilusão, que aparece sobretudo na adolescência, diz respeito ao conformismo, ou seja, o considerar normal o estilo de vida dos outros, os juízos exprimidos pela opinião pública, a “voz” da maioria. Para um jovem torna-se normal o estilo de vida dominante, aquilo que se encontra nas redes sociais, e o desejo torna-se o de ser aceite e aprovado… Aqui é a resistência que deve ser exercitada, se não se quer existir por procuração.

E não esqueço uma última ilusão que os jovens sabem discernir: a da substituição do ser pelo ter. Pela felicidade acaba-se por procurar ter mais, poder usufruir de muitas coisas para as poder consumir. Assim também as pessoas acabam por ser “coisificadas”, servindo para ter, dominar, poder estar no centro…

Mas ao percorrer estes caminhos, satisfazendo estas ilusões, não se vai rumo à felicidade, mas antes a um individualismo que terá como preço a solidão de uma vida sem os outros, sem o gosto das relações plasmadas pela plenitude de vida.

Os jovens não pedem para ser dirigidos e não querem imposições, mas estão prontos a caminhar juntamente com quem caminhou à sua frente e se deixa acompanhar por eles. Para mim é grande a alegria quando observo o suceder-se das relações, porque prometem sempre novas primaveras para o mundo.

Enzo Bianchi | In SNPC | Trad.: Rui Jorge Martins | Publicado em 12.11.2021


Ninguém Nasce Cristão

IRMÃ MORTE

Cardeal Tolentino Mendonça | in Expresso-Revista | 30 de Outubro 2021

A morte ocupa um capítulo importante na história das mentalidades. Desde o último quartel do século passado que a chamada História da Morte ganhou um impulso gigante, com nomes como Philippe Ariès, François Lebrun ou Pierre Chaunu, que com os seus estudos relançaram inclusive o interesse pelo tema noutras áreas disciplinares (desde a antropologia, à filosofia ou aos estudos de religião). Mas o efeito disso parece não ter chegado ao modo concreto como a morte é encarada na contemporaneidade. Caminhou-se em duas direções radicais: a privatização da morte e a sua remoção da iconografia da vida. Na sociedade da imagem a morte torna-se sempre mais invisível e anónima, como que perdendo existência civil. A única descrição que se consente é do boletim clínico, que diz tudo e não diz nada daquilo que a morte efetivamente é. Um dia se refletirá sobre a contemporânea ocultação da morte, sobre este embaraço social em que a morte se tornou, sobre esta espécie de afasia que deflagrou em nós como um sintoma a que não prestámos a atenção devida. Em “O Livro da Pobreza e da Morte”, o poeta Rainer Maria Rilke fala de duas atitudes contrapostas em relação à morte. Uma de escapismo e alheamento que torna a nossa morte “um fruto que passou/ verde e sem doçura, sem amadurecimento”. E a outra, a atitude de quem compreende que “a grande morte, que cada um em si traz,/ é o fruto à volta do qual tudo gira”. Não é certamente por acaso que tantas sabedorias, a começar desde logo por aquela bíblica, recomendam que o nosso quotidiano ponto de partida seja o “Memento Mori!” (o adágio latino “Lembra-te que és mortal!”). Conta-se que na Roma Antiga, quando os vitoriosos festejavam e eram publicamente festejados por uma conquista significativa, um escravo recebia o encargo de lhes repetir ao ouvido: “Memento Mori!” À nossa contemporaneidade, que no domínio da tecnologia e das ciências alcança metas que nenhuma época sonhou, faltam, no entanto, mestres que nos ajudem a nos avizinharmos da nossa própria morte com outra consciência e apaziguamento, seguros do que ela representa em termos da nossa humanidade. A morte justamente assumida como limite, mas também como supremo ato de confiança.

Outras épocas da história têm alguma coisa a ensinar-nos, bem como o infindo cortejo de mulheres e de homens que mantiveram perante a morte os olhos bem abertos. Penso, por exemplo, no extraordinário relato que faz Tomás de Celano (1190-1260 aprox.), o primeiro biógrafo de Francisco de Assis. Com a linguagem hagiográfica do tempo, mas que não deixa de narrar uma verdade fundamental, ele enumera quatro momentos impressionantes. O primeiro é quando o Poverello de Assis “prostrado pela doença grave que encerrou todos os seus sofrimentos, fez com que o colocassem nu sobre a terra nua”, em coerência, até ao fim, com o radical espírito de pobreza em que havia vivido. A morte surge, assim, como uma coisa indistinta da vida. O segundo surge quando Francisco ousa interpretar a morte como libertação e louvor. Diz Celano que ele “passou em ação de graças os poucos dias que ainda restavam até sua morte”. O terceiro momento corresponde ao revigoramento que ele próprio fez dos irmãos que o rodeavam, tornando-os herdeiros de uma visão profética da vida, expandindo a vida para lá das fronteiras da morte. E, no final, quando se dirigiu à própria morte para saudá-la com palavras amáveis. Testemunha Celano: “Chegou a exortar para o louvor até a própria morte, que todos temem e abominam, e, correndo alegre ao seu encontro, convidou-a com hospitalidade: ‘Bem-vinda seja a minha irmã morte!’”


Ninguém Nasce Cristão

Estamos prontos para a aventura da participação?

Como leiga considero que os espaços de verdadeira participação dentro da Igreja são ainda escassos, pouco horizontais, excessivamente formais, deficitários na qualidade e muitas vezes afastados dos verdadeiros processos de decisão.

Para alguém que, como eu, vem das organizações da sociedade civil, encontrar no lema do processo sinodal, agora lançado pelo Papa Francisco, a palavra “participação” foi motivo de alegria e reflexão. De facto, a frase enquadradora do percurso, que agora se inicia, refere: “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. Se a “comunhão” e a “missão” seriam dimensões e caminhos já expectáveis dentro da Igreja, é precisamente nesta palavra “participação”, que surge bem no centro da tríade proposta, que reside o caráter inovador e tão profundamente necessário deste sínodo. Diria mesmo que reside na participação um elemento vital para a presença atual e futura da Igreja no mundo.

Desde há varias décadas que as organizações da sociedade civil, em particular as que trabalham nas áreas sociais e do desenvolvimento, compreenderam a centralidade da participação na transformação social. Desta forma, integraram nos seus mecanismos de reflexão, de diagnóstico e nas suas metodologias de intervenção e decisão processos participativos envolvendo pessoas, comunidades e organizações. Envolvendo, não apenas os decisores, mas (e sobretudo) todos os que são afetados pelos desafios que a nossa sociedade enfrenta. Ou seja mulheres, homens, jovens, idosos, crianças, todos devem/querem ser atores e protagonistas na Casa Comum. A experiencia na área social tem demonstrado que a participação é fundamental para a apropriação (utilizando um jargão do setor!) ou, se preferirmos noutra linguagem, a participação é determinante para o compromisso e para a responsabilização de cada uma e de cada um. Por outro lado, envolver quem está mais perto da realidade ou quem vive realidades diferentes potencia a inovação, novas aprendizagens e uma maior adequação das soluções aos contextos locais. Ser verdadeiramente ouvido, explorar caminhos diversos e participar de forma efetiva na tomada de decisão são fatores chave para nos sentirmos parte integrante de um projeto, de uma comunidade, de uma organização ou, indo mais longe, participar é caminho para se formar “um corpo”, para a comunhão.

Existem naturalmente experiências muito ricas e válidas de processos participativos no seio da Igreja (em diversas latitudes com destaque para a América Latina) quer ao nível micro (comunidades, paróquias); quer ao nível mais macro (o mais recente exemplo foi o Sínodo da Amazónia). No entanto, na minha experiência como leiga considero que os espaços de verdadeira participação dentro da Igreja são ainda escassos, pouco horizontais, excessivamente formais, deficitários na qualidade (metodologias participativas e conteúdo abordados) e sobretudo muitas vezes afastados dos verdadeiros processos de decisão da Igreja. O conceito de participação na Igreja continua muito veiculado à “participação na ação, no fazer” do quotidiano da vida cristã (na liturgia, na catequese, nos movimentos, ação social) ou ainda, por exemplo, na participação nos sacramentos e menos à participação na reflexão e na decisão. Ou seja, existe ainda um grande caminho para fazer numa participação que continua muito aquém da subsidiariedade que a doutrina social da Igreja nos apresenta com um princípio.

Mas naturalmente nem tudo são rosas na participação. Raramente é simples ou fácil seguir a via dos processos participativos! Bem pelo contrário… Desde logo, é um processo moroso que exige tempo, energia, recursos. Para os impacientes e ativistas como eu, esta é com frequência uma seríssima dificuldade… Queremos chegar rapidamente às conclusões e à ação. Muitas vezes me ouvi dizer em contexto profissional “ Participativo sim, mas participativo QB”. Enquanto sociedade, a velocidade a que vivemos é um dos principais obstáculos à participação. Para este sínodo estão previstos dois anos de caminho e não será muito tempo para um processo abrangente, complexo e ambicioso. Outra dificuldade é a efetiva capacidade de escuta do outro. Sabemos que nos é difícil escutar, sobretudo o que é diferente ou o que colide com a nossa opinião. Escutar propostas que nos parecem descabidas quando a solução parece ser outra mais segura, menos arriscada. Até porque para ouvir é necessário um passo prévio que é o do encontro… Nesse sentido o Papa Francisco convida-nos a “ser peritos na arte do encontro”.

Outro desafio nos processos participativos é sabermos de onde partirmos, mas não conseguirmos antecipar a chegada. Temos um companheiro de percurso que é simultaneamente caminho e horizonte – Jesus Cristo, mas tal não impede ( pelo contrário) que o Espírito possa soprar de muitas e diversas formas. De formas surpreendentes, inesperadas, através da voz daqueles com quem fazemos caminho. Incluir na participação as vozes daqueles que discordam, daqueles que são incómodos, daqueles que não compreendemos exige coragem mas é essencial. Assim é natural que a participação provoque questões, destabilize, gere inseguranças, suscite tensões, mas nessa aparente confusão, e alicerçados na oração, a participação conduzirá ao discernimento. De facto, o Papa na homilia do passado domingo, 10 de outubro, na abertura do Sínodo, guia-nos através de três verbos: encontra, escutar e discernir.

Chegou o momento de cada uma e de cada um de nós participar nesta aventura que o Papa Francisco nos propõe. Temos um espaço e um caminho propício que somos convidados a percorrer enquanto cristãos e mulheres e homens de boa vontade.

O Papa Francisco lança-nos a questão: “Estamos prontos para a aventura do caminho ou, temerosos face ao desconhecido, preferimos refugiar-nos nas desculpas “não adianta” ou “sempre se fez assim”?

Susana Réfega | 13 Outubro 2021 | in Ponto SJ


Ninguém Nasce Cristão

Haverá tesouro mais valioso?

O Yassir e o Ali deviam ter entre 10 e 12 anos quando chegaram à Grécia, em 2018. Vieram os dois da Síria, cada um com os seus pais e irmãos, fugidos da guerra e com a esperança de conseguir asilo na Europa. Os dois gostam de jogar futebol, mas o que verdadeiramente os apaixona é fazer construções com legos. São capazes de passar tardes inteiras a brincar. Fazem aviões, barcos, monstros, criam cidades, guerras… E, no fim, é difícil convencê-los a arrumar.

Não há dúvidas de que estas duas crianças têm muito em comum. Tinham tudo para se tornarem bons amigos. No entanto, o facto de não partilharem a mesma etnia é suficiente para que não se olhem nos olhos. O Yassir nasceu numa família árabe e o Ali numa família curda. Se lhes perguntarmos porque não podem brincar juntos, não vão saber dar a resposta. Talvez seja por isso que, em algum momento de uma certa tarde, a ideia de juntar as coleções de legos para fazer uma construção ainda maior falou mais alto. Ignoraram tudo o que lhes tinha sido ensinado sobre o outro povo e deram mais importância ao que os unia.

Provavelmente cresceram a ouvir falar do povo vizinho como sendo inimigo, agressivo e criminoso. Estes adjetivos até podem ser adequados para descrever indivíduos. Contudo, quando descrevem grupos, passam a constituir estereótipos, pois criam a ideia de que todas as pessoas que nele se inserem partilham as mesmas características.

Muitos estereótipos são negativos, tal como assumir que uma pessoa é violenta. Outros são positivos, como assumir que uma pessoa é talentosa, generosa ou inteligente. Outros são neutros. Mas são todos perigosos – levam-nos a tratar o outro apenas como um membro de um grupo, moldando a forma como o percecionamos, como interagimos e como tomamos decisões.

A história do Yassir e do Ali pode levar-nos a pensar apenas em estereótipos culturais ou raciais, mas a verdade é que o nosso dia-a-dia está repleto de exemplos igualmente divisivos. É muito mais fácil para o cérebro rotular as pessoas com base na informação que já tem – seja ela certa ou errada – do que estar disposto a formular uma ideia do zero. E então arrumamos as pessoas em gavetas tão aleatórias como o nome que têm, a roupa que vestem e os meios que frequentam. No final do dia, temos opiniões fechadas sobre os valores e atitudes de determinada pessoa, sem na verdade nunca termos tido uma conversa que as fundamente. E assim vamos alimentando a cultura do “nós” versus “eles” que é a causa de tantos conflitos.

O que define as nossas ações são as nossas motivações e estas não assentam em verdades absolutas, mas naquilo que nós julgamos ser verdade. Se o primeiro passo é despertar, o segundo é dar resposta. De forma a mudarmos aquilo que são as nossas ações inconscientes, importa desafiar o que temos como as nossas verdades. Combater estereótipos passa por fomentar a mentalidade do “nós”, criando empatia e percebendo de onde é que o outro verdadeiramente parte, conhecendo os pensamentos, os sentimentos, e as experiências que constituem a sua perspetiva do mundo.

A empatia tem o poder de revolucionar as relações pessoais. E pode ser cultivada! Não nos é atribuída à nascença de forma aleatória, mas é influenciada pelo nosso ambiente e pode até ser desenvolvida como qualquer competência. Praticamos a empatia sempre que dialogamos com quem tem opinião, estilo, gosto, cor, morada, ou idade diferente da nossa.

O Ali foi ensinado a odiar o povo árabe, mas acaba por ser enganado pela sua própria mente quando tenta forçar esse ódio contra o seu novo amigo que lhe dá muito poucas razões para que não goste dele. Se a empatia tem o poder de revolucionar as relações pessoais, uma a uma, então a empatia coletiva é o recurso mais valioso que a humanidade tem.

Rita Brito e Faro | in Ponto SJ |04 Outubro 2021


Ninguém Nasce Cristão

Os filhos, o casal e as dores de cabeça

Os casais multiplicam-se mas as complicações também: com os filhos vêm os sarilhos, principalmente para a vida dos casais.

“Crescei e multiplicai-vos.” Sim Senhor – a ver pela demografa mundial, não temos falhado. Mas aquilo que Jesus não nos disse foi quem fica a mandar nos miúdos. “Crescei e multiplicai-vos, mas quem decide as mesadas são as mães”, por exemplo. Nada, nem uma palavra sobre estes temas mundanos que tanto nos transtornam. Os casais multiplicam-se, mas as complicações também: com os filhos vêm os sarilhos, principalmente para a vida dos casais. Se há fatores que agitam a vida matrimonial, conjugal, em casal ou como lhe quiserem chamar, são os filhos. E sim, não há como fugir disto: quantos mais pior.

Começa logo à nascença. Levanta-se um para aquecer o biberão, mas o outro já se levantou para mudar a fralda, sendo que o primeiro amua porque ele é que se levanta cedo para ir trabalhar e ainda por cima não consegue dormir porque o outro ressona e o bebé é insuportável e tem cólicas. Sim, é cansativo. E é num abrir e fechar de olhos que o casal se vê à beira de um ataque de nervos e a questionar a indissolubilidade do casamento, perante uma diarreia às 4 da manhã. Nunca percebi aqueles casais que em plena crise resolvem ter mais um filho para se unirem. Nada mais errado: os filhos desunem.

Os anos passam e a situação não melhora. O menino só quer a mãe e o pai fica com ciúmes – ou vice versa – , ou então, o pai fica com ciúmes porque a mãe só liga aos filhos e não liga ao pai – ou vice versa. E em vez do cocó e do sono são agora as inseguranças que intoxicam a dita indissolubilidade e as dores de cabeça voltam por mais uns tempos. Quando começa a fase da educação propriamente dita, a crispação tende a aumentar. Regras. Ora, cada um tem as suas preferidas (definição de casal é cada um ter as suas regras e ideias feitas). “Ele não pode ir para a nossa cama!” Mas não. “Ele não pode é ter medo, coitadinho”. Por outro lado. “Ele tem de começar a nadar”. Se calhar é muito cedo. “E faz mal aos ouvidos”. E as clássicas: “Este miúdo faz o que quer!”. Resposta: “Só se for contigo!”. Mais dores de cabeça. O almoço, o jantar, as horas de deitar, as horas de televisão, o tipo de brinquedos, o médico, as atividades, tudo pode ser tema de uma potencial discussão. Nunca se sabe. E as sogras: há sempre sogras por trás de regras e, por definição, todos os membros do casal desconfiam de sogras.

Vem a escola e com ela os professores, as notas e outros clássicos. “Deixa o miúdo, coitado… Eu também nunca tive boas notas e não foi o fim do mundo”. Nenhuma mãe aguenta ouvir isto: uma mãe vê os resultados do seu trabalho maternal no desempenho escolar dos filhos (não perguntem porquê que eu também não sei). Seja como for, os temas escolares raramente são consensuais o que dão azo a 12 anos letivos de alguma tensão no casal por causa dos filhos. Com a autonomia das crias – se nesta altura ainda ninguém deixou as crianças em casa da sogra – é todo o casamento que é posto à prova. Se estabelecer regras para crianças a dois pode ser difícil, estabelecer regras para adolescentes e jovens a dois pode ser um autêntico pesadelo. “Pai, posso?” Quem nunca: “Vai perguntar à mãe”, e depois a mãe diz: “Vai perguntar ao pai”. Mas ninguém se atravessa porque ambos sabem que vai dar confusão deixar e ninguém se quer comprometer. Andamos a discutir desde as diarreias às 4 da manhã, lembram-se?

A verdade é que quanto mais crescem, mais coisas se têm que decidir a dois, que decidir, que proibir e que discutir. Não há como fugir. E quanto mais filhos pior. Mais se tem de convergir, ceder e respeitar a opinião um do outro – e tudo isto sem arrancar olhos; mais se tem que respirar fundo e tomar consciência de que os filhos não são só de um para cuidar e educar, são dos dois. Quanto mais eles crescem, mais desafiam, mais opiniões têm, mais espaço ocupam, mais determinantes são as decisões, menos autoridade temos e maiores são as tensões. Mais os casais têm que conversar e conversar sobre temas cada vez mais difíceis, dizer que sim mesmo que achem que não.

Inês Teotónio Pereira | in Ponto SJ |21 Setembro 2021


Ninguém Nasce Cristão

COMUNHÃO, PARTICIPAÇÃO, MISSÃO: TRÊS PILARES
(Discurso do Papa Francisco aos fiéis da diocese de Roma, no dia 18 de Setembro de 2021) II

(Continuação de ‘Eu sou porque nós somos’)

O impulso do Espírito

Podemos ver o Espírito que impulsiona Pedro a ir a casa de Cornélio, o centurião pagão, apesar das suas hesitações. Lembrem-se: Pedro tivera uma visão que o havia perturbado, na qual lhe era pedido que comesse coisas consideradas impuras; apesar da garantia de que o que Deus purifica já não deve ser considerado impuro, ele ficou perplexo. Estava a tentar entender, e aí vieram os homens mandados por Cornélio.

Ele também tinha recebido uma visão e uma mensagem. Era um oficial romano piedoso, simpatizante do judaísmo, mas ainda não o suficiente para ser plenamente judeu ou cristão: nenhuma “alfândega” religiosa o teria deixado passar. Era um pagão, mas foi-lhe revelado que as suas orações chegaram a Deus, e que ele deve mandar alguém dizer a Pedro para ir a sua casa. Nessa suspensão, por um lado Pedro com as suas dúvidas, e, por outro, Cornélio que espera naquela zona de sombra, é o Espírito quem dissolve as resistências de Pedro e abre uma nova página da missão.

Assim se move o Espírito: assim. O encontro entre os dois sela uma das mais belas frases do cristianismo. Cornélio tinha ido ao seu encontro, havia-se lançado aos seus pés, mas Pedro, levantando-o, disse-lhe: “Levanta-te: eu também sou um homem!” (At 10,26), e todos dizemos isso: “Eu sou um homem, eu sou uma mulher, somos humanos”, e todos deveríamos dizer isso, até mesmo os bispos, todos nós: “Levanta-te: eu também sou um homem”. E o texto sublinha que ele conversou com ele de uma maneira familiar (cf. v. 27).

O cristianismo deve ser sempre humano, humanizante, deve reconciliar diferenças e distâncias, transformando-as em familiaridade, em proximidade. Um dos males da Igreja, aliás uma perversão, é esse clericalismo que separa o padre, o bispo das pessoas. O bispo e o padre separado das pessoas é um funcionário, não é um pastor. São Paulo VI gostava de citar a máxima de Terêncio: “Sou homem, nada do que é humano me é estranho”.

O encontro entre Pedro e Cornélio resolveu um problema, favoreceu a decisão de se sentir livre para pregar diretamente aos pagãos, na convicção – são as palavras de Pedro – “de que Deus não faz acepção de pessoas” (At 10,34). Em nome de Deus, não se pode discriminar. E a discriminação é um pecado também entre nós: “Nós somos os puros, nós somos os eleitos, nós somos deste movimento que sabe tudo, nós somos…”. Não. Nós somos Igreja, todos juntos.

E, vejam, não podemos entender a “catolicidade” sem nos referirmos a esse campo grande, hospitaleiro, que nunca demarca as fronteiras. Ser Igreja é um caminho para entrar nessa amplitude de Deus. Depois, voltando aos Atos dos Apóstolos, há os problemas que nascem relacionados com a organização do crescente número de cristãos e, sobretudo, para responder às necessidades dos pobres.

Alguns assinalam que as viúvas eram negligenciadas. O modo como se encontrará a solução será reunir a assembleia dos discípulos, tomando juntos a decisão de designar aqueles sete homens que se ocupariam a tempo inteiro na diakonia, no serviço às mesas (At 6,1-7). E, assim, com o discernimento, com as necessidades, com a realidade da vida e a força do Espírito, a Igreja vai em frente, caminha juntamente, é sinodal. Mas há sempre o Espírito como grande protagonista da Igreja.

Dialéticas do Espírito

Além disso, há também o confronto entre visões e expectativas diferentes. Não devemos temer que isso ocorra ainda hoje. Talvez pudéssemos discutir assim! São sinais da docilidade e abertura ao Espírito. Também podem surgir confrontos que atingem picos dramáticos, como ocorreu diante do problema da circuncisão dos pagãos, até à deliberação daquele que chamamos de Concílio de Jerusalém, o primeiro Concílio.

Como também acontece hoje, há um modo rígido de considerar as circunstâncias, que mortifica a makrothymía de Deus, isto é, aquela paciência do olhar que se alimenta de visões profundas, visões amplas, visões longas: Deus vê longe, Deus não tem pressa. A rigidez é outra perversão que é um pecado contra a paciência de Deus, é um pecado contra essa soberania de Deus. Ainda hoje isso ocorre.

Havia ocorrido naquela época: alguns, convertidos do judaísmo, consideravam, na sua autorreferencialidade, que não podia haver salvação sem submissão à Lei de Moisés. Desse modo, contestava-se Paulo, que proclamava a salvação diretamente no nome de Jesus. Contrastar a sua ação comprometeria o acolhimento dos pagãos que, entretanto, se estavam a converter.

Paulo e Barnabé foram mandados a Jerusalém pelos apóstolos e pelos anciãos. Não foi fácil: diante desse problema, as posições pareciam inconciliáveis, discutiu-se longamente. Tratava-se de reconhecer a liberdade da ação de Deus e de que não havia obstáculos que pudessem impedi-lo de chegar ao coração das pessoas, fosse qual fosse a condição de origem, moral ou religiosa.

O que desbloqueou a situação foi a adesão à evidência de que “Deus, que conhece os corações” (o cardiognosta, conhece os corações), Ele mesmo sustentava a causa em favor da possibilidade de que os pagãos pudessem ser admitidos à salvação, “concedendo também a eles o Espírito Santo, tal como a nós” (At 15,8), concedendo assim o Espírito Santo também aos pagãos, como a nós.

Desse modo, prevaleceu o respeito por todas as sensibilidades, temperando os excessos; valorizou-se a experiência tida por Pedro com Cornélio: assim, no documento final, encontramos o testemunho do protagonismo do Espírito nesse caminho de decisões e da sabedoria que é sempre capaz de inspirar: “Pareceu bem, ao Espírito Santo e a nós, não lhes impor outra obrigação”, exceto a necessária (At 15,28).

“Nós”: neste Sínodo, percorremos o caminho de poder dizer “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós”, porque vocês estarão em diálogo contínuo entre vocês, sob a ação do Espírito Santo, também em diálogo com o Espírito Santo.

Não se esqueçam desta fórmula: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não lhes impor outra obrigação”: pareceu bem ao Espírito Santo e a nós. Assim vocês deverão tentar expressar-se, nesta estrada sinodal, neste caminho sinodal.

Se não houver o Espírito, será um parlamento diocesano, mas não um Sínodo. Não é um parlamento diocesano o que estamos a fazer, não estamos a fazer um estudo sobre isto ou aquilo; não: estamos fazendo um caminho de nos escutarmos e de escutar o Espírito Santo, de discutir e também discutir com o Espírito Santo, que é um modo de rezar.

A eclesiologia substitutiva

“O Espírito Santo e nós”. Em vez disso, haverá sempre a tentação de fazer sozinho, expressando uma eclesiologia substitutiva – existem muitas eclesiologias substitutivas – como se, tendo ascendido ao Céu, o Senhor tivesse deixado um vazio a ser preenchido, e nós o tivéssemos preenchido. Não, o Senhor deixou-nos o Espírito! Mas as palavras de Jesus são claras: “Eu pedirei ao Pai, e ele dar-vos-á outro Paráclito, para que permaneça com vocês para sempre. […] Eu não vos deixarei órfãos” (Jo 14,16.18).

Para a implementação dessa promessa, a Igreja é sacramento, como afirmado na Lumen gentium 1: “A Igreja, em Cristo, é de algum modo o sacramento, ou seja, o sinal e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano”.

Nessa frase, que recolhe o testemunho do Concílio de Jerusalém, está a negação de quem se obstina em tomar o lugar de Deus, pretendendo modelar a Igreja sobre as suas próprias convicções culturais e históricas, forçando-a a fronteiras armadas, a alfândegas culpabilizantes, a espiritualidades que blasfemam contra a gratuidade da ação envolvente de Deus.

Quando a Igreja é testemunha, em palavra e factos, do amor incondicional de Deus, da sua amplitude hospitaleira, ela exprime verdadeiramente a sua própria catolicidade. E é impulsionada, interior e exteriormente, a atravessar os espaços e os tempos.

O impulso e a capacidade vêm do Espírito: “Recebereis a força do Espírito Santo que descerá sobre vós e sereis as minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (At 1,8). Receber a força do Espírito Santo para ser testemunhas: esse é o nosso caminho, Igreja, e nós seremos Igreja se andarmos nesse caminho.

(Continua em ‘Tempo da Criação’)


Ninguém Nasce Cristão

DISCURSO DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS PARTICIPANTES DA REUNIÃO PROMOVIDA PELO
PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA NOVA EVANGELIZAÇÃO SOBRE
"CATEQUESE E CATEQUISTAS PARA A NOVA EVANGELIZAÇÃO"

Sala Clementina
Sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Queridos irmãos e irmãs, bom dia, e bem-vindos!

É com prazer que vos dou as boas-vindas, nesta ocasião em que tiveram a oportunidade de discutir, como responsáveis da catequese das Igrejas particulares da Europa, a recepção do novo Diretório para a catequese, publicado no ano passado. Agradeço a D. Rino Fisichella esta iniciativa, que estou certo também se estenderá às Conferências Episcopais dos outros continentes, para que o caminho comum da catequese seja enriquecido por numerosas experiências locais.

Acabo de regressar da celebração do Congresso Eucarístico Internacional, realizado nos últimos dias em Budapeste, e a ocasião é propícia para verificar como o grande empenho da catequese pode ser eficaz na obra de evangelização se mantiver o olhar fixo no mistério eucarístico. Não podemos esquecer que o lugar privilegiado da catequese é precisamente a celebração eucarística, onde irmãos e irmãs se reúnem para descobrir cada vez mais os diferentes caminhos da presença de Deus na sua vida.

Gosto de pensar naquela passagem do Evangelho de Mateus onde os discípulos perguntam a Jesus: "Onde queres que façamos os preparativos para comermos a Páscoa?" (26,17). A resposta de Jesus mostra claramente que ele já tinha tudo preparado: ele sabia o caminho que um homem faria com um jarro de água, ele sabia da grande sala já mobilada no piso superior da casa (cf. Lc 22 : 10-12); e, sem o dizer, ele sentia plenamente o que ia nos corações dos seus amigos para o que iria acontece nos dias seguintes.

As primeiras palavras com que os envia são: «Ide à cidade» (Mt 26,18). Este pormenor - pensando em ti e no teu serviço - faz-nos reler o caminho da catequese como um momento através do qual os cristãos, que se preparam para celebrar o ápice do mistério da fé, são convidados a ir primeiro «à cidade», para encontrar pessoas ocupadas com seus compromissos diários. Catequese - como sublinha o novo Diretório- não é uma comunicação abstrata de conhecimentos teóricos a serem memorizados como se fossem fórmulas matemáticas ou químicas. Pelo contrário, é a experiência mistagógica de quem aprende a encontrar os seus irmãos onde vivem e trabalham, porque eles próprios encontraram Cristo, que os chamou a serem discípulos missionários. Devemos insistir em apontar para o coração da catequese: Jesus Cristo ressuscitado ama-te e nunca te abandona! Este primeiro anúncio nunca pode encontrar-nos cansados ou repetitivos nas várias fases do caminho catequético.

Para isso instituí o ministério de catequista. Estão a preparar o ritual para a "criação" - entre aspas - dos catequistas. Para que a comunidade cristã sinta a necessidade de despertar esta vocação e de experimentar o serviço de alguns homens e mulheres que, vivendo a celebração eucarística, sentem mais viva a paixão de transmitir a fé como evangelizadores. O catequista e a catequista são testemunhas que se colocam ao serviço da comunidade cristã, para apoiar o aprofundamento da fé no concreto da vida quotidiana. São pessoas que anunciam o Evangelho da misericórdia sem se cansar; pessoas capazes de criar os vínculos necessários de acolhimento e de proximidade que nos permitem saborear melhor a Palavra de Deus e celebrar o mistério eucarístico oferecendo os frutos das boas obras.

Recordo com amor as duas catequistas que me prepararam para a primeira comunhão e continuei a minha relação com elas como sacerdote e também, com uma delas ainda viva, como bispo. Senti um grande respeito, até um sentimento de agradecimento, sem explicitar, mas parecia uma veneração. Porquê? Porque foram elas que me prepararam para a primeira comunhão, juntamente com uma freira. Quero contar-lhes essa experiência porque foi uma coisa linda para mim, acompanhá-las até o fim da vida, às duas. E também a freira, que me preparou para a parte litúrgica da Comunhão: ela morreu, e eu estava lá, com ela, acompanhando-a. Existe uma proximidade, um vínculo muito importante com os catequistas.

Como disse na segunda-feira passada na Catedral de Bratislava, a evangelização nunca é uma mera repetição do passado. Os grandes santos evangelizadores, como Cirilo e Metódio, como Bonifácio, foram criativos, com a criatividade do Espírito Santo. Abriram novos caminhos, inventaram novas linguagens, novos "alfabetos", para transmitir o Evangelho, para a inculturação da fé. Isso exige saber ouvir as pessoas, ouvir os povos a quem se anuncia: ouvir a sua cultura, a sua história; escutar não superficialmente, já a pensar nas respostas pré-embaladas que temos na pasta, não! Escutar realmente e comparar essas culturas, essas línguas, também e sobretudo o não dito, o não expresso, com a Palavra de Deus, com Jesus Cristo, o Evangelho vivo. E repito a pergunta: Não é esta a tarefa mais urgente da Igreja entre os povos da Europa? A grande tradição cristã do continente não deve tornar-se uma relíquia histórica, caso contrário, não é mais ”tradição "! A tradição ou está viva ou não. E a catequese é tradição, é tradere, mas uma tradição viva, de coração a coração, de mente a mente, de vida a vida. Portanto: apaixonado e criativo, com o impulso do Espírito Santo. Usei a palavra "pré-embalado" para a linguagem, mas também tenho medo de catequistas com coração, atitudes e rosto "pré-embalados". Não. Ou o catequista é livre ou não é catequista. Ou o catequista se deixa interpelar pela realidade que encontra e transmite o Evangelho com grande criatividade, ou não é catequista. Pensai bem nisso.

Queridos amigos, através de vós, desejo estender o meu agradecimento pessoal aos milhares de catequistas e catequistas da Europa. Penso em particular naqueles que, a partir das próximas semanas, se empenharão muito pelas crianças e jovens que se preparam para completar o seu caminho de iniciação cristã. Mas penso em cada um e em todos. A Virgem Maria interceda por vós, para que sejais sempre assistidos pelo Espírito Santo. Acompanho-vos com a minha oração e com a Bênção Apostólica. E vocês também, por favor, não se esqueçam de orar por mim. Obrigado!


Ninguém Nasce Cristão

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS PARTICIPANTES DA 14ª PEREGRINAÇÃO NACIONAL
DE FAMÍLIAS PELA FAMÍLIA

Queridas famílias, queridos esposos, pais, avós e filhos!

Saúdo de todo o coração a todos vós que participais na XIV Peregrinação Nacional das Famílias pela Família, tanto pessoalmente como através dos meios de comunicação. Saúdo os promotores deste momento de oração: a Renovação no Espírito, a Direcção Nacional para a Pastoral da Família do CEI (Conferência Episcopal Italiana), o Fórum Nacional das Associações de Família. Obrigado pelo testemunho de comunhão e de alegria com que dizeis em uníssono que "a família está viva"!

Sei que estais reunidos, sob o olhar de Maria, em 20 santuários marianos de 19 regiões da Itália e também na Suíça. Milhares de famílias, na oração, mostram hoje o rosto luminoso da fé em Jesus Cristo, num tempo esmagado por tantas dificuldades, sofrimentos e novas formas de pobreza. Agradeço o vosso esforço para chegar ao maior número de pessoas possível, para ser sinal vivo daquela amoris laetitia que brota do Evangelho da família.

“Em comunhão… alegria!”. É este o tema da peregrinação, que exprime claramente uma opção fundamental: procurar não a alegria "consumista e individualista", que "só pesa no coração", mas "aquela alegria que se vive em comunhão, que se partilha e participa, porque «é mais bem-aventurado dar do que receber» ( At 20,35) e «Deus ama quem dá com alegria» ( 2 Cor 9,7) ». Com efeito, «o amor fraterno multiplica a nossa capacidade de alegria, porque nos permite alegrar-nos pelo bem dos outros» (cf. Exortação apostólica Gaudete et exsultate, 128).

Queridos amigos, a família está viva se estiver unida na oração. A família é forte se redescobrir a Palavra de Deus e o valor providencial de todas as suas promessas. A família é generosa e constrói história se permanece aberta à vida, se não discrimina e serve os mais frágeis e necessitados, se não deixa de oferecer ao mundo o pão da caridade e o vinho da fraternidade.

Encorajo-vos a percorrer este caminho juntos e, assim, cooperar na preparação, antes de tudo com a oração, do X Encontro Mundial das Famílias, que se realizará em Roma de 22 a 26 de junho de 2022, mas ao mesmo tempo também nas comunidades diocesanas em todo o mundo.

É por isso que os convido a rezar agora com a oração oficial desse encontro:

Pai santo,
estamos aqui diante de ti
para Te louvar e agradecer
pelo grande dom da família.

Rezamos pelas famílias consagradas no sacramento do matrimônio,
para que redescubram a graça recebida todos os dias
e, como pequenas igrejas domésticas,
saibam dar testemunho da tua presença
e do amor com que Cristo ama a Igreja.

Rezamos pelas famílias
atravessadas por dificuldades e sofrimentos,
por doenças ou por angústias que só Tu conheces:
apoia-as e torna-as conscientes
do caminho de santificação a que as chamas,
para que possam experimentar a tua infinita misericórdia
e encontrar novas maneiras de crescer no amor.

Rezamos pelas crianças e pelos jovens,
para que Te possam encontrar
e responder com alegria à vocação que pensaste para eles;
aos pais e avós,
para que saibam
que são sinal da paternidade e da maternidade de Deus
no cuidado dos filhos que, na carne e no espírito,
lhes confias;
pela experiência de fraternidade
que a família pode oferecer ao mundo.

Senhor, faz com que cada família
viva a própria vocação à santidade na Igreja
como um chamamento a ser protagonista da evangelização,
ao serviço da vida e da paz,
em comunhão com os sacerdotes
e com todos os estados de vida.

Abençoa o Encontro Mundial das Famílias.
Ámen.

Confio o vosso compromisso com Deus para o sustentar e torná-lo fecundo. E peço a todos vós que oreis por mim. Boa peregrinação!

Roma, São João de Latrão, 9 de setembro de 2021


Ninguém Nasce Cristão

PAPA FRANCISCO

ANGELUS, Domingo, 5 de setembro de 2021

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da Liturgia de hoje apresenta Jesus que cura um surdo e mudo. Na história, é impressionante a maneira como o Senhor realiza este sinal prodigioso. Ele faz assim: leva o surdo-mudo de lado, põe os dedos nos ouvidos e toca sua língua com saliva, depois olha para o céu, suspira e diz: " Effatà ", quer dizer, "Abre-te!" ( cf.Mk7.33-34). Noutras curas, para enfermidades igualmente graves, como paralisia ou lepra, Jesus não realiza muitos gestos. Por que faz Ele tudo isso agora, apesar de só lhe pedirem que imponha as mãos no enfermo (cf. v. 32)? Por que faz Ele esses gestos? Talvez porque a condição dessa pessoa tenha um valor simbólico particular. Ser surdo e mudo é uma doença, mas também é um símbolo. E este símbolo tem algo a dizer a todos nós. Sobre o que é isso? É sobre surdez . Esse homem não conseguia falar porque não conseguia ouvir. Na verdade, para curar a causa de seu desconforto, Jesus primeiro coloca os dedos nos ouvidos, depois na boca, mas primeiro nos ouvidos.

Todos nós temos ouvidos, mas muitas vezes não conseguimos ouvir. Porquê? Irmãos e irmãs, existe de facto uma surdez interior, que hoje podemos pedir a Jesus que toque e cure. E essa surdez interior é pior do que a física, porque é a surdez do coração. Levados pela pressa, por mil coisas a dizer e a fazer, não encontramos tempo para parar e ouvir quem nos fala. Corremos o risco de nos tornarmos impermeáveis a tudo e não dar espaço a quem precisa ouvir: penso nas crianças, nos jovens, nos idosos, em muitos que não precisam tanto de palavras e sermões, mas de ouvir. Vamos perguntar-nos: como está minha escuta? Eu deixo-me tocar pela vida das pessoas, sei como dedicar um tempo para ouvir as pessoas ao meu redor? Isso é para todos nós, mas de maneira especial para os padres, para os padres. O padre deve ouvir o povo, não se apressar, ouvir..., e ver como pode ajudar, mas depois de ouvir. E todos nós: primeiro ouça, depois responda. Vamos pensar na vida familiar: quantas vezes você fala sem antes ouvir, repetindo os próprios refrães que são sempre os mesmos! Incapazes de ouvir, acabamos a dizer sempre as mesmas coisas, ou a não deixar o outro acabar de falar, expressar-se, interrompendo-o. Muitas vezes, o renascimento de um diálogo não passa das palavras, mas do silêncio, de não ficar paralisado, de recomeçar com paciência para ouvir o outro, para ouvir seus esforços, para ouvir o que ele carrega dentro de si. A cura do coração começa com a escuta. Ouvir. E isso cura o coração. “Mas padre, tem gente chata que sempre fala as mesmas coisas...”. Escute-os. E então, quando eles terminarem de falar, diga sua palavra, mas ouça tudo. A cura do coração começa com a escuta. Ouvir. E isso cura o coração.

E o mesmo é verdade com o Senhor. Faremos bem em inundá-lo de pedidos, mas é melhor ouvi-lo primeiro. Jesus pede isso. No Evangelho, quando perguntado qual é o primeiro mandamento, ele responde: "Escuta, Israel." Depois acrescenta o primeiro mandamento: "Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração [...] e o teu próximo como a ti mesmo" ( Mc 12,28-31). Mas antes de tudo: "Escuta, Israel". Escute. Nós lembramo-nos de ouvir o Senhor? Somos cristãos, mas talvez, entre os milhares de palavras que ouvimos todos os dias, não encontremos alguns segundos para fazer ressoar em nós algumas palavras do Evangelho. Jesus é a Palavra: se não paramos para ouvi-lo, ele passa. Se não pararmos para ouvir Jesus, Ele passa ao lado. Santo Agostinho dizia: “Tenho medo do Senhor quando ele passa”. E o medo era deixar passar sem O ouvir. Mas se dedicarmos tempo ao evangelho, encontraremos um segredo para nossa saúde espiritual. Aqui está o remédio: cada dia, um pouco de silêncio e de escuta, menos algumas palavras inúteis e mais algumas palavras de Deus. Sempre com o Evangelho no bolso, o que ajuda muito. Ouvimos dirigida a nós hoje, como no dia do Baptismo, aquela palavra de Jesus: “Effatà, Abre-te"! Abre os ouvidos. Jesus, desejo abrir-me à tua Palavra; Jesus, abre-me à tua escuta; Jesus, cura o meu coração do fechamento, cura o meu coração da pressa, cura o meu coração da impaciência.

A Virgem Maria, aberta à escuta da Palavra, que se fez carne nela, ajude-nos todos os dias a escutar o seu Filho no Evangelho e os nossos irmãos com coração dócil, coração paciente e coração atento.


Ninguém Nasce Cristão

José Manuel Vidal:

"É hora de as paróquias funcionarem como caixas-de-ressonância do que faz e diz o Papa”.

O Jornalista espanhol José Vidal fala do papa Francisco como ‘alguém a quem admira profundamente de quem gosta’: “É um presente de Deus para o mundo e para a Igreja”. Comparando o papa com um grande avançado, afirma que a revista que dirige ‘está a seus pés’ para dar relevância a essas ‘jogadas tão bonitas que faz’, tanto em palavras como, sobretudo, com gestos: “Oito anos seguindo-o de perto, escrevendo sobre ele, sonhando com ele”.

“Um Papa incansável e transparente que está a levar a cabo uma primavera na Igreja”. Diz mais. “O que o papa Francisco está a fazer, desde o meu ponto de vista, é descongelar o Concílio Vaticano II. Está a tirá-lo do congelador, porque o meteram lá…”

“Com Francisco, estamos a assistir a um novo Pentecostes. Havia terra adubada, mas ele pegou no arado. Sem programa estabelecido, mas com as ideias claras. Em todo o caso, se tem um programa, é um programa feito em conjunto com o povo santo de Deus, pouco a pouco. E está a fazê-lo com o método dos sínodos… O Papa tem uma ideia clara do que quer: uma Igreja que seja casa do Pai, que deixe de ser alfândega”.

Sublinha que a mudança de orientação está a ser brutal, ainda que quase nem nos dêmos conta: “Pela primeira vez na história, estamos a habituar-nos à normalidade de um papa normal. Um papa que deixa de ser rei para se converter numa pessoa normal. Que passeia, que viaja num carro simples, que vive numa casa e não num palácio. Que ri, que se aproxima das pessoas, que enche com a sua presença. E que, quando fala, todos o entendemos. Isto, há uns anos, era impensável. O que ele quer é, primeiro, o Evangelho, depois a doutrina.

O Papa fala de quatro ou cinco princípios muito importantes que diz que são os que definem o seu modo de ser e de pensar. Um desses princípios é que o tempo é superior ao espaço. A revolução tem de ser de baixo para cima. Por isso, não acontecerá da noite para o dia, é um processo que tem de amadurecer no tempo. Isto é uma revolução e tem que ver com esta dinâmica: já não há lugar para ‘remendos’. Se queremos uma renovação, temos de ter a valentia de estar dispostos a tudo.

Isto está a fazer-se (plasmar-se) em três âmbitos principais: Reforma ‘para dentro’ (a mais difícil e onde há mais resistência contra). Pede que façamos coisas concretas; aos bispos, pede menos grandes palavras e mais caminhar no meio das pessoas… Mas mudar custa. O clericalismo é o grande mal da Igreja…

Reforma ‘para fora’, através da cultura do encontro e da ‘transformação interior’, da conversão pessoal a uma espiritualidade diferente: missionária, empática, samaritana, compassiva. Que não condena. Que caminha com as pessoas. Também é preciso ‘levar para diante’ a teologia da mulher.

E deixa ainda este tremendo desafio: “É hora de as nossas paróquias funcionarem como caixas-de-ressonância do Evangelho, mas também daquilo que diz o Papa. Há muitas nas quais em que ele nunca é nomeado. Esconde-se o que ele faz e diz. E o melhor é que temos um exemplo do qual podemos orgulhar-nos e apresentar ao mundo!

“Eu tenho o papa Francisco em alta estima: é a autoridade moral mais importante deste planeta. Todos o reconhecem, menos as nossas paróquias. Nelas, não somos convidados a fazer o que ele faz. E é tão fácil.”. E conclui:

“A tentação do comodismo (acomodação) será incapaz de impedir que continue a soprar o vento do Espírito para que possamos continuar a conjugar a vida no gerúndio: esperando, perdoando, chorando, rindo, partilhando e amando, sabedores de que ninguém pode parar a primavera na primavera”.

(A partir de uma notícia lida no site Religión Digital)


Ninguém Nasce Cristão

Não adores as cinzas, antes protege as brasas

O grande teólogo Karl Rahner lembrava que debaixo das cinzas de uma fogueira permanecem as brasas. O cardeal Carlo Maria Martini dizia que hoje precisamos de assumir como tarefa identificar as brasas: onde está a brasa que é o bom samaritano; onde está a brasa que é o centurião que, ao ver morrer Jesus, confessa que Ele é o Justo; onde está a brasa que é João Batista, que vem como o precursor do Messias; onde está a brasa que é Paulo, que é Pedro, que são todos os santos e santas da História. Onde está a brasa?

O papa Francisco retoma esta metáfora da brasa e da cinza, ao citar o músico Mahler, dizendo que não devemos ser adoradores de cinzas, mas protetores do fogo. Para nós, isto é um desafio muito grande, e vemo-lo claramente no testemunho do papa Francisco.

O cardeal Martini afirmava, com a sua ousadia profética, que a dimensão mais importante é a da interioridade. A Igreja não é uma moral, não é uma lei, antes de tudo é um encontro com o próprio Deus na pessoa de Jesus.

Só acedemos à dimensão da interioridade pela escuta, receção e metabolização da Palavra de Deus. Esta leitura, ler a vida à luz da Palavra, ler a Palavra à luz da vida, é o que torna a Igreja sempre jovem em cada geração.

O papa Francisco tem colocado no centro a Palavra de Deus. É muito bonito, e comove-sempre, que quando lhe fazem uma pergunta, as primeiras imagens que lhe vêm são da Palavra de Deus, [o que atesta] como ela está entranhada no seu coração de pastor. Para a Igreja que todos somos é um desafio muito grande: colocar no centro a escuta, a receção da Palavra de Deus.

E depois, os sacramentos: são força, energia do Espírito Santo de Deus, para podermos ser verdadeiramente uma Igreja peregrina.

Após dizer tudo isto, o cardeal Martini afirma: temos de nos apressar, temos de realizar um compromisso histórico no aqui e no agora, porque estamos duzentos anos atrasados.

Penso que o papa Francisco tem ajudado muito a Igreja a atualizar o seu passo com o tempo, com o tempo dos seres humanos, mas também com o tempo de Deus, com o tempo do Espírito. É interessante ouvir o que dizia o cardeal Martini para entender a novidade e a beleza que Francisco está hoje a plasmar na Igreja do nosso tempo.

Card. José Tolentino Mendonça | Fonte: Jesuítas Brasil | Edição: Rui Jorge Martins in SNPC | Publicado em 02.08.2021


Ninguém Nasce Cristão

Não temos pensado um catolicismo que acompanhe os questionamentos ao longo da vida

Vivemos um tempo de reconfiguração do religioso. Em grande medida, a crise que vivemos não é tanto de fé, do crer, quanto de pertença.

Isto obriga-nos a perguntar se as formas de pertença continuam a ser todas oportunas, eficazes. Penso, por exemplo, na organização territorial que vigorou durante séculos; a base da Igreja eram as paróquias, e estas comunidades estavam inscritas em determinado território. Hoje, a noção de habitação, de territorialidade, tornou-se fluida, porque a modernidade, como explicou Bauman, é líquida. Já deixámos de estar num só lugar. Tudo é fluxo.

Por isso, não podemos imaginar as comunidades com as tinas, com a arquitetura que serviu durante séculos. Isto obriga-nos a uma pergunta: o que é que hoje corporiza a identidade cristã? Como é que o sujeito se reconhece cristão? E como é que é reconhecido pela comunidade eclesial e pela sociedade onde está inscrito?

Hoje fala-se muito dos cristãos culturais, que são, talvez aqueles que não têm uma prática sacramental mas que continuam a manter uma ligação cultural, ou ética, de valores com o cristianismo. É muito importante não os descartar imediatamente, dizendo que não são cristãos, que o que vivem não é cristianismo.

Temos de perceber a complexidade da contemporaneidade e, ao mesmo tempo, valorizar, purificar, adensar, ir ao encontro. A evangelização não pode desconhecer este grande número de pessoas que se dizem crentes mas têm uma frágil pertença ao cristianismo institucional.

E um desafio muito grande, de escuta, de encontro, de criação e adoção de novas linguagens. É necessária uma criatividade pastoral grande para perceber que tipo de evangelização podemos fazer e quais são os seus destinatários.

Durante muitos séculos, como é que se chegava a ser cristão? Por transmissão geracional, familiar, por pertença a determinado território, e por iniciação num tempo determinado da vida, que muitas vezes era a infância.

Todos fomos batizados quando éramos bebés, recebemos a catequese nos primeiros anos, com a escolaridade obrigatória. Depois… os cristãos são muitas vezes deixados à sua sorte, e não há mais formação, não há catequese de adultos, não há o pensar de um catolicismo que acompanha o questionamento das várias etapas da vida: a juventude, a primeira idade adulta, a segunda, a terceira. Isto são tudo desafios para pensar.

É muito importante ser sensível à complexidade e ter a sabedoria que Jesus fala na parábola: Tu plantaste trigo, mas também cresceu joio; queres que arranquemos tudo? E Ele diz: não, deixa crescer, e depois veremos.

Esta confiança em deixar maturar uma experiência, trabalhando e acompanhando esse amadurecimento – que hoje acontece de maneira muito heterogénea, diversificada, já não é como era – lembra a confiança que Deus deposita no ser humano. Como dizia o teólogo Urs von Balthazar, Deus sabe esperar por todos.

Card. José Tolentino Mendonça | Fonte: Jesuítas Brasil | Edição: Rui Jorge Martins in SNPC | Publicado em 02.08.2021


Ninguém Nasce Cristão

«Acolhei-vos uns aos outros»:

Como é que o apelo de S. Paulo se concretiza hoje nas paróquias?

A Igreja arde, no Espírito; está em saída; é chamada a ir além da doutrina; e a Igreja universal vive de comunidades particulares. Entre estas, as paróquias são as que mais sofrem as mutações sociais: uma desestabilização que pode ser uma oportunidade. Aos contextos em mudança associa-se o novo modelo eclesial: da “societas” à “communio”. Novos paradigmas diante dos quais as comunidades estão impreparadas, muitas vezes substituindo-se aos organismos territoriais de solidariedade e assistência.

Mas as paróquias são principalmente comunidades de fiéis (cf. Decreto “Apostolicam actuositatem” sobre o apostolado dos leigos, Concílio Vaticano II), e entre os seus muitos méritos e defeitos há uma certeza: vive-se a fraternidade quando as relações se tornam verdadeiramente humanas, e vive-se em comunidade quando nos acolhemos, porque sujeitos envolvidos para sempre na história e nos sentimentos de Cristo.

Na comunidade ressoa o convite de Paulo: «Acolhei-vos uns aos outros» (Romanos 15, 7). Numa época em que emerge um certo libertinismo existencial e espiritual, as «relações abertas» favorecem a criação de espaços fechados, de religiosidade privada. A sociedade aberta arrisca-se a produzir espiritualidade fechada: a liberdade pública impele para o âmbito do provado as vivências religiosas.

Neste contexto, as paróquias são chamadas a acolher as experiências e orientá-las, a serem guardadoras do fogo. Nas paróquias, primeiro espelho da Igreja, as relações profundas devem ser construídas a partir do acolhimento recíproco (cf. Efésios 4, 1-6).

Não poucas vezes, a tendência para o moralismo, devocionismo e religiosidade privada facilita o isolamento religioso, através do qual se evita o confronto, para escapar à competição com os outros, seja do ponto de vista ético seja doutrinal. O isolamento religioso tem raízes profundíssimas: muitas vezes é fruto da pertença religiosa que dita condições precisas. É preciso voltar a conduzir constantemente as paróquias à sua essência: ser comunidade.

Sabemos que o autor dos Atos dos Apóstolos propõe constantemente um sumário de atitudes mais como ideal do que como tendo sido real. Vale a pena determo-nos sobre o valor da “comunidade” enquanto tal. Antes do «partir o pão» há a comunhão (cf. Atos 2, 42). A tradição identificou assim os dois momentos, ao ponto de confundir os próprios termos: fazer «comunhão» é «participação na Eucaristia». Mas fazer comunhão é antes de tudo reconhecer-se como guardião um do outro, porque cada um é precioso.

As paróquias são o lugar privilegiado onde todos devem sentir-se acolhidos, para além das suas condições de vida, as suas opções, segundo uma intenção de religiosidade cristã, ainda que “anónima”. Se na Igreja universal é preciso a libertação da tentação de se impor «com a força do mundo, mas antes com a fragilidade que dá espaço a Deus; livres de uma observância religiosa que nos torna rígidos e inflexíveis; livros dos laços ambíguos com o poder e do medo de se ser incompreendido e atacado» (Papa Francisco, “L’Osservatore Romano”, 1.7.2020), então as paróquias devem libertar-se de toda a rigidez e isolamento.

Isto é possível se reconhecerem que não estão em conflitualidade com o mundo, mas fazem sempre parte dele: e o “mundo”, para as comunidades paroquiais, são todos. Qualificámo-los de «distantes», «praticantes», ou «praticantes assíduos». Mas o verdadeiro perigo para estas “categorias” é o do isolamento. Para todos eles, encorajar a partilhar a vida e a fé significa, antes de tudo, promover o acolhimento, que poderemos traduzir numa atitude clara: «Para mim tu és um dom de Deus». Assim se desmoronam as paredes do isolamento para favorecer a certeza, totalmente teológica, que «ninguém está só», porque somos todos, de uma maneira ou de outra, «convocados em Cristo».

Acolher é certeza de que todos estamos nos sentimentos de Cristo (cf. Romanos 15, 5), é dar lugar ao outro sem sentimentalismos infantis (traduzíveis em «que belo que estamos juntos e nada mais nos importa») ou mecanismos ingénuos («o importante é a moral partilhada»), nem cedendo ao irenismo extremo (evitar todo o contraste).

Para esconjurar o excesso de “comunitarismo” é preciso estar atento tanto à autorreferencialidade quanto à observância, dois limites do mesmo preconceito: «Estamos bem juntos se observarmos as regras». Uma perspetiva nostálgica que limita quer as comunidades paroquiais quer toda a Igreja.

As comunidades sê-lo-ão como tais se souberem dar espaço às identidades e às experiências de fé em que o Espírito age. Assim, a fé é chamada à gentileza partilhada, ao acolhimento da diversidade, à esperança utópica.

A vida de seguimento nas comunidades não é o resultado “daquilo que se faz” e “daquilo que não se faz”, mas a possibilidade de enfrentar os riscos e a beleza da fé; e isto não vale somente para quem é acolhido, mas também para quem acolhe, que não deve esperar, dissimuladamente, que o outro aprenda o seu modo de viver ou a sua forma de fé.

Quem acolhe numa comunidade cristã dá a oportunidade de viver um espaço de fé em que modelos e métodos de espiritualidade não são impostos. E isto vale quer para os párocos quer para os membros e grupos da paróquia: estes últimos, muitas vezes, têm dificuldade em juntar unidade e solidariedade, identidade e abertura, particularidade e universalidade.

Só num acolhimento vivo e verdadeiro a inclusão das experiências tornar-se-á uma imersão de fé em que todos podem ser eles próprios, sendo acolhidos, acolhendo e dando-se, no comum seguimento de Cristo.

Umberto Rosario del Giudice | In L'Osservatore Romano | Trad.: Rui Jorge Martins| in SNPC | Publicado em 26.07.2021


Ninguém Nasce Cristão

(Continuação da mensagem do papa Francisco para o I Dia Mundial dos Avós e dos Idosos)

(…)

Como afirmei já mais de uma vez, da crise que o mundo atravessa, não sairemos iguais: sairemos melhores ou piores. E «oxalá não seja mais um grave episódio da história, cuja lição não fomos capazes de aprender [somos de cabeça dura!]. Oxalá não nos esqueçamos dos idosos que morreram por falta de respiradores (...). Oxalá não seja inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros, para que a humanidade renasça» (Papa Francisco, Enc. Fratelli tutti, 35). Ninguém se salva sozinho. Devedores uns dos outros. Todos irmãos.

Nesta perspetiva, quero dizer que há necessidade de ti para se construir, na fraternidade e na amizade social, o mundo de amanhã: aquele em que viveremos – nós com os nossos filhos e netos –, quando se aplacar a tempestade. Todos devemos ser «parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas» (Ibid., 77). Entre os vários pilares que deverão sustentar esta nova construção, há três que tu – melhor que outros – podes ajudar a colocar. Três pilares: os sonhos, a memória e a oração. A proximidade do Senhor dará – mesmo aos mais frágeis de nós – a força para empreender um novo caminho pelas estradas do sonho, da memória e da oração.

Uma vez o profeta Joel pronunciou esta promessa: «Os vossos anciãos terão sonhos e os jovens terão visões» (3, 1). O futuro do mundo está nesta aliança entre os jovens e os idosos. Quem, senão os jovens, pode agarrar os sonhos dos idosos e levá-los por diante? Mas, para isso, é necessário continuar a sonhar: nos nossos sonhos de justiça, de paz, de solidariedade reside a possibilidade de os nossos jovens terem novas visões e, juntos, construirmos o futuro. É preciso que testemunhes, também tu, a possibilidade de se sair renovado duma experiência dolorosa. E tenho a certeza de que não será a única, pois, na tua vida, terás tido tantas e sempre conseguiste triunfar delas. E, dessa experiência que tens, aprende como sair da provação atual.

Nisto se vê como os sonhos estão entrelaçados com a memória. Penso como pode ser de grande valor a memória dolorosa da guerra, e quanto podem as novas gerações aprender dela a respeito do valor da paz. E, a transmitir isto, és tu que viveste a tribulação das guerras. Recordar é uma missão verdadeira e própria de cada idoso: conservar na memória e levar a memória aos outros. Segundo Edith Bruck que sobreviveu à tragédia do Holocausto, «mesmo que seja para iluminar uma só consciência, vale a pena a fadiga de manter viva a recordação do que foi… e continua. Para mim, a memória é viver». Penso também nos meus avós e naqueles de vós que tiveram de emigrar e sabem quanto custa deixar a própria casa, como fazem muitos ainda hoje à procura dum futuro. Talvez tenhamos algum deles ao nosso lado a cuidar de nós. Esta memória pode ajudar a construir um mundo mais humano, mais acolhedor. Mas, sem a memória, não se pode construir; sem alicerces, tu nunca construirás uma casa. Nunca. E os alicerces da vida estão na memória.

Por fim, a oração. Como disse o meu predecessor, Papa Bento (um idoso santo, que continua a rezar e trabalhar pela Igreja), «a oração dos idosos pode proteger o mundo, ajudando-o talvez de modo mais incisivo do que a fadiga de tantos». Disse-o quase no fim do seu pontificado, em 2012. É belo! A tua oração é um recurso preciosíssimo: é um pulmão de que não se podem privar a Igreja e o mundo (cf. Papa Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 262). Sobretudo neste tempo tão difícil para a humanidade em que estamos – todos na mesma barca – a atravessar o mar tempestuoso da pandemia, a tua intercessão pelo mundo e pela Igreja não é vã, mas indica a todos a serena confiança de um porto seguro.

Querida avó, querido avô! Ao concluir esta minha mensagem, gostaria de indicar, também a ti, o exemplo do Beato (e proximamente Santo) Carlos de Foucauld. Viveu como eremita na Argélia e lá, naquele contexto periférico, testemunhou «os seus desejos de sentir todo o ser humano como um irmão» (Enc. Fratelli tutti, 287). A sua história mostra como é possível, mesmo na solidão do próprio deserto, interceder pelos pobres do mundo inteiro e tornar-se verdadeiramente um irmão e uma irmã universal.

Peço ao Senhor que cada um de nós, graças também ao seu exemplo, alargue o próprio coração e o torne sensível aos sofrimentos dos últimos e capaz de interceder por eles. Oxalá cada um de nós aprenda a repetir a todos, e em particular aos mais jovens, estas palavras de consolação que ouvimos hoje dirigidas a nós: «Eu estou contigo todos os dias». Avante e coragem! Que o Senhor vos abençoe.

Roma, São João de Latrão, na Festa da Visitação da Virgem Santa Maria, 31 de maio de 2021.


Ninguém Nasce Cristão

O sacramento do Crisma

Bom dia e bom Domingo para todos.

Hoje à tarde, na igreja de Gondesende, vamos ter a celebração do sacramento do Crisma, um dos três sacramentos da Iniciação Cristã, isto é, aqueles sacramentos que fazem um cristão, que tornam cristão aquele ou aquela que escolhe Jesus Cristo como Caminho, Verdade e Vida: Baptismo, Crisma e Eucaristia. Ninguém é inteiramente cristão sem receber estes três sacramentos,

Entre nós, o Crisma, sobretudo nos últimos anos, quando se começou a redescobrir o seu lugar e a sua importância como aquele sacramento que nos ´d, o sacramento no qual recebemos o Espírito Santo, está associado à Juventude, àquela etapa da vida em que se deixa de ser criança ou adolescente e se começa a ser adulto, isto é, a ser capaz e a querer fazer opções para a vida.

É aqui que devemos situar a celebração do Crisma: fazer, agora de uma maneira muito mais pessoal e consciente, a opção por Cristo, a opção por ser cristão. Assim como quem escolhe o amor da sua vida. Nada menos do que isso, e com todo o entusiasmo e sonho de que formos capazes.

O Evangelho conta-nos inúmeras destas escolhas e destes encontros com Jesus. um deles é o de Natanael, aquele a quem Jesus diz: “Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira”.

E porque o óleo com que os crismandos são ungidos, é um óleo perfumado, cito estas palavras de um autor a propósito do tal Natanael (Adrien Candiard, Quand tu étais sous le figuier…, pg 113): ‘E eis que uma tarde, no início do Verão, com aquela luz bela e doce, Natanael regressa a casa. E, ao passar ao aldo da figueira, absorto nos seus pensamentos, o perfume dos figos chega até ele, familiar e intenso.

Aquele perfume era como uma carícia da figueira, como uma carícia do bom Deus. Com aquele perfume veio uma multidão de sentimentos inesperados, desordenados e contraditórios: com essa carícia, ele sentiu-se amado, totalmente amado, amado como nunca tinha sido. E vieram-lhe as lágrimas aos olhos.

Sentia-se feliz, mas, ao mesmo tempo, descobria que havia uma felicidade maior, havia uma felicidade que ele não imaginava e que ele pressentia no perfume da figueira. E percebeu que a sua vida, a partir daquele momento, seria correr atrás desse perfume’.

Hoje, na igreja de Gondesende, serão crismados 27 jovens da paróquia de Esmoriz e 7 da de Maceda. Oxalá eles possam sentir essa carícia do bom Deus, esse perfume do Evangelho e, como Natanael, compreenderem que a vida vale a pena e será feliz se escolherem correr atrás do Ressuscitado, fonte do amor e da alegria.

Bom Domingo.

(Nota de abertura do ‘Paróquia FM’, do Domingo 18 de Julho de 2021)


Ninguém Nasce Cristão

(Em dia de final do Euro 2020)

Roberto Mancini, fé, Fátima, futebol: «Estou convicto de que quem reza é ajudado por Deus»

«Fui sempre religioso: cresci numa paróquia, inclusive futebolisticamente, acredito em Jesus e em Nossa Senhora. Nasci a 27 de novembro, o dia da Virgem da Medalha Milagrosa. [A fé] ajuda-te nos momentos de dificuldade, também a amadurecer», declarou há um ano Roberto Mancini, ao jornal “Gazzetta dello Sport”.

Sabia-se que é crente o treinador da seleção nacional italiana de futebol, que no domingo disputa a final do campeonato da Europa de 2020 com a Inglaterra, como também o facto que Medjugorje exerce um certo apelo sobre ele. Mas a muitos escapou o laço particular que o ex-jogador cultiva desde há tempo com a Virgem Maria e com os seis videntes aos quais terá aparecido na pequena e áspera cidadezinha da Bósnia-Herzegovina pela primeira vez a 24 de junho de 1981, há precisamente 40 anos.

O que voltou a chamar a atenção para este lado pouco conhecido de Mancini foi a entrevista introspetiva por ele concedida a Pierluigi Diaco, na televisão italiana RAI. Em determinado momento, o entrevistador pergunta: «Acreditas nas aparições de Nossa Senhora em Mediugorje?». E ele, com olhos brilhantes de emoção, mas sem incerteza alguma na voz, responde: «Acredito. Sim, acredito. Fui diversas vezes, falei com Vicka [Ivankovic], com os outros videntes».

Mancini foi pela primeira vez a Medjugorje em 2012, no dia 25 de março, quando a Igreja assinala a anunciação do anjo a Maria. Com o então treinador do Manchester City viajaram a mulher e a filha. Nesse tempo, a equipa inglesa estava a oito pontos da histórica rival da cidade, treinada por Alex Ferguson, quando faltavam seis jornadas para o final do campeonato. Após a viagem começou uma imprevisível recuperação, que culminou com a ultrapassagem ao Manchester United e a vitória na “Premier League”, a 13 de maio, festa de Nossa Senhora de Fátima.

Por diversas ocasiões Mancini declarou: «A fé ajudou-me muito na vida, não no trabalho, porque acredito que o Senhor e a Nossa Senhora têm coisas bem mais importantes a resolver. No entanto, estou convicto de que quem reza com fé recebe uma ajuda». José Duque, dirigente português do City, nascido próximo de Fátima, notou a coincidência da data do jogo decisivo e deu a entender a Mancini que «Nossa Senhora nos terá ajudado. Estou convicto de que quem reza é ajudado por Deus».

Na entrevista, Mancini recordou a sua professora da escola primária. «Chamava-se Anna Maria Bevilacqua. Eu era um bocadinho vivaz quando era pequeno, e portanto na escola, às vezes, criava alguns problemas, durante as aulas… Estava pouco atento e não estudava muito; a professora falou com a minha mãe o meu pai: “Amanhã, antes de vir para a aula, em vez de leite, deem-lhe camomila…”. E durante algum tempo deram-me camomila de manhã. A professora queria-me verdadeiramente bem, era muito dedicada».

À pergunta «o que é que te comove?», Mancini respondeu: «Comovem-me as crianças, ou pensar que uma criança possa perder os pais quando é pequena. Isto é uma coisa que me comove muito porque penso que não está certo. Penso que não está certo que uma criança não possa crescer com os seus pais».

Num livro sobre a influência de Medjugorje em desportistas de relevo, o treinador explicou: «Deus esteve sempre na minha vida. Porque nasci e cresci na minha paróquia. Ia à missa todos os domingos e era acólito, até aos 14 anos, quando fui jogar para o Bolonha. E depois afastei-me, e hoje percebo porquê. Este lugar tem alguma coisa de particular, fala à tua alma. Se todos nos comportássemos como as pessoas que vivem e trabalham em Medjugorje tudo se passaria de maneira diferente».

«Muitos dizem que não têm tempo para rezar, como eu o dizia, mas é preciso fazer como nos diz Nossa Senhora: começar aos poucos e ser constante, porque depois damo-nos conta de que já não se consegue passar sem ela. Da curiosidade que me levou pela primeira vez a Medjugorje passei a uma frequentação mais consciente. Conheci e falei com pessoas que me ensinaram alguma coisa. O confronto com a dor também te faz crescer. Já há algum tempo que não vou, mas voltarei em breve».

A paróquia de infância a que o treinador faz sempre referência é a de S. Sebastião, em Jesi, próximo de Ancona, 250 km a nordeste de Roma. Em 2014, quando faleceu o P. Roberto Vigo, sacerdote pela qual foi responsável durante mais de meio século, Mancini esteve no funeral, recordando como, precisamente no pequeno campo adjacente à igreja, também ele, que habitava em frente, deu os primeiros passos e chutos na bola, como todos os jovens do bairro. Com o mesmo espírito agradecido participou recentemente numa missa em sufrágio por Vujadin Boskov, mítico treinador jugoslavo da Sampdoria, presidida pelo P. Mario Galli, o ex-capelão da equipa que, pela primeira vez, lhe falou da Rainha da Paz e das aparições em Medjugorje.

Tancredi Peschi| In Famiglia Cristiana | Trad./edição: Rui Jorge Martins | In SNPC | Publicado em 09.07.2021


Ninguém Nasce Cristão

Dizemos que queremos uma Igreja mais fiel, profética e missionária, mas depois não fazemos nada

O papa lamentou hoje, dia em que a Igreja assinala a solenidade litúrgica dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo, a existência, entre os católicos, de abundância de palavras e boas intenções, mas escassez de ações que as realizem.

«Quantas vezes, por exemplo, dizemos que queremos uma Igreja mais fiel ao Evangelho, mais próxima das pessoas, mais profética e missionária, mas depois, no concreto, não fazemos nada», declarou.

Antes do Angelus, no Vaticano, Francisco afirmou que «é triste ver que muitos falam, comentam e debatem, mas poucos testemunham», e depois da oração destacou os setenta anos da ordenação sacerdotal do papa emérito, Bento XVI, que hoje se celebram.

«As testemunhas não se perdem em palavras, mas dão fruto. As testemunhas não se lamentam dos outros e do mundo, mas começam por si próprios. Recordam-nos que Deus não é para ser demonstrado, mas mostrado, com o próprio testemunho; não anunciado com proclamações, mas testemunhado com o exemplo. Chama-se a isto «pôr a vida em jogo”», vincou.

Pedro e Paulo «não foram admiradores, mas imitadores de Jesus. Não foram espetadores, mas protagonistas do Evangelho. Não acreditaram com palavras, mas com factos. Pedro não falou de missão, viveu a missão, foi pescador de homens; Paulo não escreveu livros cultos, mas cartas vividas, enquanto viajava e testemunhava».

«Ambos gastaram a vida pelo Senhor e pelos irmãos. E provocam-nos. Porque corremos o risco de permanecer na primeira pergunta [de Jesus: «que dizem as pessoas que Eu sou?»]: dar pareceres e opiniões, ter grandes ideias e dizer belas palavras, mas nunca nos pormos em jogo», frisou.

Depois de saber o que as pessoas diziam de si, pela boca dos apóstolos, Jesus dirigiu-lhes a mesma interrogação: e vós, quem dizeis que Eu sou? Uma pergunta que atravessa os tempos e ressoa na vida de cada pessoa e, possivelmente, não a deixa confortável.

«Quem sou Eu para ti, que escutaste a fé mas ainda tens medo de te fazer ao largo na minha Palavra? Quem sou Eu para ti, que és cristão há tanto tempo, mas, consumido pela habituação, perdeste o primeiro amor? Quem sou Eu para ti, que vives um momento difícil e precisas de ser sacudido para voltar a partir? Jesus pergunta: quem sou Eu para ti? Dêmos-lhe hoje uma resposta, mas uma resposta que venha do coração. Todos nós, digamos-lhe uma palavra que venha do coração», apontou.

O testemunho de Pedro e Paulo permanece um repto a Igreja: «Incita -nos a fazer cair as nossas máscaras, a renunciar às meias medidas, às desculpas que nos tornam mornos e medíocres».

Após a oração do Angelus, Francisco recordou os setenta anos da ordenação sacerdotal do papa emérito, que hoje se assinalam: «A ti, Bento, querido pai e irmão, vai o nosso afeto, a nossa gratidão e a nossa proximidade».

«Ele vive no mosteiro, um lugar desejado para hospedar as comunidades contemplativas aqui no Vaticano, para que rezem pela Igreja. Atualmente, é ele o contemplativo do Vaticano, que gasta a sua vida a rezar pela Igreja e pela diocese de Roma, da qual é bispo emérito. Obrigado, Bento, querido pai e irmão. Obrigado pelo teu testemunho credível. Obrigado pelo teu olhar continuamente voltado para o horizonte de Deus; obrigado», disse.

Francisco lembrou que na quinta-feira, primeiro dia de julho, decorre, no Vaticano, um dia de oração e reflexão sobre o Líbano, e na mesma data festeja-se o 160.º aniversário do jornal “L’Osservatore Romano”.

«Saúdo-vos a todos de coração, peregrinos italianos e de vários países; mas hoje dirijo-me de maneira especial aos romanos, na festa dos nossos santos padroeiros. Abençoo-vos, queridos romanos. Desejo todo o bem à cidade de Roma: que, graças ao compromisso de todos vós, de todos os cidadãos, seja vivível e acolhedora, que ninguém seja excluído, que as crianças e os idosos sejam cuidados, que haja trabalho e que seja digno, que os pobres e os últimos estejam no centro dos projetos políticos e sociais. Rezo por isto. E também vós, queridíssimos fiéis de Roma, rezai pelo vosso bispo», concluiu.

In site do SNPC


Ninguém Nasce Cristão

«A grande desgraça deste mundo não é haver pessoas sem-Deus, mas que sejamos cristãos tão medíocres» 1

Se neste período histórico há uma categoria de pessoas que tem por que estar satisfeita é a dos medíocres. Parece respirar-se hoje uma atmosfera geral de mediocridade difusa.

O que é a mediocridade? Inaptidão, ausência de aspirações, não conseguir ter para si próprio, para a sua comunidade, para o seu país uma visão, uma perspetiva a longo prazo. Na origem da mediocridade está a incapacidade de aceitar a contínua discussão de si próprio, a que vida obriga continuamente, e que o medíocre tenta ignorar.

O anonimato como estilo de vida

Antigamente elogiava-se a “aurea mediocritas”, considerando-se que era uma aplicação coerente do moto “in medio stat virtus”. Era a virtude do meio, o equilíbrio, o sentido dos próprios limites, a recusa de toda a arrogância e de todo o excesso.

Entendamo-nos bem: foi um grande poeta, Horácio, que exaltou nas suas “Odes” a famosa “aurea mediocritas”, que, todavia, era muito mais, ou seja, a busca de um ideal justo meio entre os extremos e os excessos. Não, aquela que nos deve fazer desconfiar, antes, é a mediocridade que significa inaptidão, chateza, preguiça, anonimato, cinzentismo. Nos nossos dias esta atitude foi assumida como estilo de vida.

Mas a mediocridade assumiu ao longo dos tempos um significado muito diferente: indica pobreza de espírito e de mente, de horizontes e de estilo. Já nos juízos escolásticos e profissionais indica uma carência, que depois se agravou quando a mediocridade se tornou u espelho dos meios de comunicação social.

A sensação espalhada é que sobressair é um perigo, e talvez também uma culpa, porque a excelência nunca é conforme ao espírito medíocre do seu tempo e ao poder dominante; é sempre inatual, profética, nostálgica, olha para além, para o passado, para o futuro, para o céu. Quem traz novidade e energia é sempre, por destino e definição, desestabilizador.

Horroriza o ambiente tão minimalista em que caímos enfrentar toda a situação sem competência suficiente e sobretudo sem disponibilidade para o aprofundamento.

O pensamento desapareceu

Olhando à volta, quase só se vê mediocridade. Uma mediocridade desoladora e difusa. É uma mediocridade tumular, fruto da ausência de qualquer pensamento. A mediocridade é perigosa, porque desativa os dispositivos de alarme e desabilita o cérebro. Menospreza a inteligência, a capacidade de escolher e desejar. E é muito cómoda. É uma espécie de anestesia, de psicofármaco.

A mediocridade reina. Soberana. Contrabandeia-se como verdadeira tranquilidade da alma, quando na realidade é inconsciência; circula como critério justo ao passo que é apenas comodidade; apresenta-se como recusa dos excessos quando na verdade é vazio interior. O cristianismo não é uma religião para medíocres, como a verdadeira arte e a humanidade autêntica não podem alimentar-se e viver de uma chateza sem frémito, de uma saciedade de coisas, de um bom senso banal.

A mediocridade infetou as nossas mentes, como afirma o filósofo canadiano Alain Deneault, no seu recente ensaio “A mediocracia”. Deixámos de aspirar às coisas grandes, às coisas do “alto”. Arriscamo-nos a morrer sem nunca ter vivido. Uma «revolução anestesiante» instalou-se silenciosamente sob os nossos olhos, mas praticamente não nos demos conta.

O medíocre, em resumo, explica o filósofo canadiano, tem de «jogar o jogo». Jogar o jogo. Que significa isto? Quer dizer aceitar os comportamentos informais, pequenos compromissos que servem para alcançar objetivos de curto prazo, significa submeter-se a regras implícitas, muitas vezes fechando os olhos.

O sonho subversivo versus o efémero

É desta maneira que se solidificam as relações informais, que se fornece a prova de que se é “confiável”, colocar-se sempre naquela linha média que não gera riscos desestabilizadores.

A atração gravitacional da mediocridade age em todos os campos da vida. Para usar as palavras de John Stuart Mill: «A tendência geral do mundo é a de fazer da mediocridade a potência dominante da humanidade».

Na origem da mediocridade está a concentração sobre a “governance”, em que tudo é reduzido à gestão. Também a vida da Igreja pode correr o risco de concentrar-se na gestão (administrativa, pastoral, caritativa, etc.) e perder a “visão” e a “missão”.

«Com preocupação vejo que nos últimos meses se nota uma tendência para excluir as causas e os riscos sistémicos, ou, digamo-lo também, as questões teológicas fundamentais, e a reduzir a reelaboração a um simples melhoramento da administração. (…) Esquece-se que “não é o cargo que está em primeiro plano, mas a missão do Evangelho”» (Card. Reinhard Marx).

«A primeira coisa que o papa Francisco nos entregou foi um sonho: “Evangelii gaudium”. “Eu sonho uma Igreja…”. Descreve-nos o que sonha, diz-nos a sua visão, e é aquela que arrasta as pessoas, que as coloca em movimento dentro de um processo generativo. Qual é o sonho que queremos realizar? Qual é a transformação real que queremos gerar no mundo como Igreja? A pertença não é gerada por alguma coisa que se faz, mas do partilhar uma visão, um sonho» (Diocese de Albano).

«Hoje torna-se cada vez mais evidente que «é necessária uma verdadeira hermenêutica evangélica para compreender melhor a vida, o mundo, os homens; não de uma síntese, mas de uma atmosfera espiritual de investigação e certeza fundamentada nas verdades da razão e da fé. (…) O teólogo que se compraz com o seu pensamento completo e concluído é um medíocre» (papa Francisco, “Veritatis gaudium”).

Seria preciso perguntar-se, como o protagonista Nikolaj Stavrogin do romance “Os demónios”, de Dostoiévski: «Pois bem, qual é o meu verdadeiro rosto? A áurea mediocridade: nem tolo nem inteligente». Na era de mediocracia já não se discute. Prefere-se receber notícias que confortem.

(Este artigo, tão interpelante, continua na secção ‘Maré Alta’)


Ninguém Nasce Cristão

Na vida a tempestade chega sem aviso

Após ter anunciado aos discípulos e às multidões algumas parábolas a partir de uma barca encostada à praia, Jesus decide passar à outra margem do mar da Galileia (Marcos 4, 35-41): trata-se de uma “saída” da terra santa de Israel, para ir em direção a uma terra habitada por pagãos. Porquê esta decisão tão audaz? Porque Jesus, apesar de se sentir enviado primeiro às ovelhas perdidas da casa de Israel. quer anunciar a misericórdia de Deus também aos gentios, quer combater Satanás e tirar-lhe terreno também naquela terra estrangeira e não santa. Esta é a razão que move Jesus. Jonas, chamado por Deus a ir a Nínive, cidade símbolo dos pagãos, foge, faz um caminho em direção oposta; Jesus, pelo contrário, enviado por Deus, vai ao encontro dos pagãos.

Os discípulos, portanto, iniciam a travessia do lago, «levando consigo Jesus» (expressão única, porque habitualmente é Jesus que leva consigo os seus discípulos: Ele está exausto devido à longa jornada de pregação, e na barca procura uma enxerga na qual se possa distender para repousar. Mas à vontade de Jesus opõe-se o mar, que é o lugar onde as forças do mal se desencadeiam em tempestade. Não se esqueça que para os judeus o mar era o grande inimigo, vencido pelo Senhor quando fez sair o seu povo do Egito; era a morada de Leviatã, o monstro marinho; era o grande abismo que, quando desencadeava a sua força, amedrontava os navegantes. E eis que o poder do demónio se manifesta numa tempestade de vento, que lança as ondas contra a barca e tenta afundá-la. É noite, é a hora das trevas, e o medo sacode aqueles discípulos, que deixaram de conseguir governar a barca. O naufrágio parece inevitável, e todavia Jesus, à popa, dorme.

Os discípulos, então, tomados pela angústia, ao ver Jesus adormecido, impacientam-se. Decidem por isso despertá-lo, e com modos decerto não reverentes, gritam: «Mestre, não te importa que estejamos perdidos?». Esta maneira de se exprimirem é já eloquente: chamam-no “mestre” e com palavras bruscas contestam a sua inércia, o seu sono. Palavras que na versão de Mateus se tornam uma oração - «Senhor, salva-nos, estamos perdidos!» - e na de Lucas um chamamento - «Mestre, mestre, estamos perdidos!». Marcos recorda melhor as relações simples e diretas, até pouco gentis, dos discípulos para com Jesus…

Perante esta falta de fé, Jesus repreende o vento e exorciza o mar. «dizendo-lhe: “Cala-te, acalma-te”. E subitamente o vento cessou e houve grande bonança». Este milagre realizado por Jesus – não escapa a ninguém – tem sobretudo um grande alcance simbólico, porque cada um de nós, na sua vida, conhece horas de tempestade. Também a Igreja, a comunidade dos discípulos, por vezes encontra-se em situações de contradição tais, que se sente imersa em águas agitadas, em grandes vagas, num vórtice que ameaça a sua existência. Nestas situações, em particular quando duram muito tempo, tem-se a impressão que a invisibilidade de Deus é, na realidade, um seu dormir, um não ver, um não sentir o grito e os gemidos de quem se lamenta. Sim, a pouca fé faz os crentes gritar: «Deus, onde estás? Porque dormes? Porque não intervéns?» (cf. Salmos 35, 44, 59, etc.).

Devemos confessá-lo: ainda que acreditemos ter uma fé amadurecida, de sermos cristãos adultos, na provação interrogamos Deus sobre a sua presença, chegamos inclusive a contestá-lo e por vezes a duvidar da sua capacidade de ser um Salvador. O sofrimento, a angústia, o medo, a ameaça à nossa existência pessoal ou comunitária tornam-nos semelhantes aos discípulos na barca da tempestade. Por isso Jesus tem de os repreender com palavras duras. Não só lhes pergunta «porque estais tão amedrontados?», como acrescenta: «Ainda não tendes fé?». Discípulos sem fé, sem adesão a Jesus: seguem-no, escutam-no, mas não colocam nele plena confiança.

E eis que diante destas palavras tão críticas de Jesus, mas também diante do prodígio que viram com os seus olhos, aflora nos discípulos uma pergunta: «Quem é verdadeiramente este rabi, este mestre, que até o vento e o mar a Ele se submetem?». Contudo, também deste acontecimento não saberão extrair uma lição, porque, quando chegar para Jesus e para eles a grande tempestade, a hora da sua paixão e morte, desencorajar-se-ão por causa da sua falta de fé. De facto, esta provação da tempestade no mar é anúncio da grande provação que os aguarda em Jerusalém, onde todos o abandonarão e fugirão. Depois, perante Jesus morto e sepultado, verificarão um grande malogro do mestre e do seu grupo. E só o túmulo vazio e o contemplar Jesus vivo, ressurgido da morte, gerarão neles uma fé sólida, que os conduzirá a confessar Jesus enquanto vencedor sobre o mal e sobre a morte. Então, enquanto testemunhas do Ressuscitado, tornar-se-ão também capazes de enfrentar, por sua vez, a tempestade que se abaterá sobre eles: a perseguição por causa do nome de Jesus e da fé nele.

Quando Marcos escrevia o seu Evangelho e o entregava à Igreja de Roma, a pequena comunidade cristã na capital do Império estava na tempestade e reinava nela um grande medo, ao ponto de impedir àqueles cristãos a missão junto dos pagãos. Assim Marcos convida-os a não temer a “saída” missionária, convida-os a conhecer as provações que os esperam como necessárias; provações e perseguições nas quais Jesus, o Vivo, não dorme, mas está no meio deles. A tempestade sobre o mar da Galileia é uma metáfora da luta contra as potências do mal, luta que Jesus Cristo venceu. Jesus aparece então como Jonas, mas um Jonas ao contrário: não relutante, mas missionário rumo aos pagãos, em obediência a Deus. Em todo o caso, Jonas e Jesus são dois missionários de misericórdia, e ambos pregam a preço muito caro: descendo ao vórtice das águas e enfrentando a tempestade, porque só atravessando-a se vence o mal. É por isso que Jesus dirá que à sua geração será dado apenas o sinal de Jonas, ou seja, a parábola da misericórdia anunciada ao preço da descida às águas da morte, ao preço de ir até ao fundo.

Quanto é cristã a frase: “Naufragium feci, bene navigavi”. ‘Naufraguei, mas naveguei bem’, porque aportei ao reino de Deus.

Enzo Bianchi | In SNPC | Trad.: Rui Jorge Martins |Publicado em 18.06.2021


Ninguém Nasce Cristão

Homilia do Papa Francisco na Missa do Corpo de Deus
(em Itália foi neste Domingo)
6 de Junho de 2021

(Continuação)

2. Depois, o Paráclito é o Advogado. No contexto histórico de Jesus, o advogado não exercia as suas funções como hoje: em vez de falar pelo acusado, costumava ficar junto dele sugerindo-lhe ao ouvido os argumentos para se defender. Assim faz o Paráclito, «o Espírito da verdade» (Jo 15, 26), que não nos substitui, mas defende-nos das falsidades do mal, inspirando-nos pensamentos e sentimentos. Fá-lo com delicadeza, sem nos forçar: propõe, não Se impõe. O espírito da falsidade, o maligno, faz o contrário: procura constranger-nos, quer fazer-nos acreditar que somos sempre obrigados a ceder às más sugestões e aos impulsos dos vícios. Esforcemo-nos então por acolher três sugestões típicas do Paráclito, do nosso Advogado. São três antídotos basilares contra três tentações atualmente muito difusas.

O primeiro conselho do Espírito Santo é: «Vive no presente»; no presente, não no passado nem no futuro. O Paráclito afirma o primado do hoje, contra a tentação de fazer-se paralisar pelas amarguras e nostalgias do passado, ou de focar-se nas incertezas do amanhã e deixar-se obcecar pelos temores do futuro. O Espírito lembra-nos a graça do presente. Não há tempo melhor para nós: agora e aqui onde estamos é o único e irrepetível momento para fazer bem, fazer da vida uma dádiva. Vivamos no presente!

Depois o Paráclito aconselha: «Procura o todo». O todo, não a parte. O Espírito não molda indivíduos fechados, mas funde-nos como Igreja na multiforme variedade dos carismas, numa unidade que nunca é uniformidade. O Paráclito afirma o primado do todo. É no todo, na comunidade que o Espírito gosta de agir e inovar. Olhemos para os Apóstolos. Eram muito diferentes entre eles: por exemplo, havia Mateus, um publicano que colaborara com os Romanos, e Simão, chamado o Zelote, que a eles se opunha. Tinham ideias políticas opostas, visões do mundo diferentes. Mas, quando recebem o Espírito, aprendem a dar o primado não aos seus pontos de vista humanos, mas ao todo de Deus. Hoje, se dermos ouvidos ao Espírito, deixaremos de nos focar em conservadores e progressistas, tradicionalistas e inovadores, de direita e de esquerda; se fossem estes os critérios, significava que na Igreja se esquecia o Espírito. O Paráclito impele à unidade, à concórdia, à harmonia das diversidades. Faz-nos sentir parte do mesmo Corpo, irmãos e irmãs entre nós. Procuremos o todo! E o inimigo quer que a diversidade se transforme em oposição e por isso faz com que se torne ideologia. Devemos dizer «não» às ideologias, «sim» ao todo.

Por fim, o terceiro grande conselho: «Coloca Deus antes do teu eu». Está aqui o passo decisivo da vida espiritual, que não é uma coleção de méritos e obras nossas, mas humilde acolhimento de Deus. O Paráclito afirma o primado da graça. Só deixaremos espaço ao Senhor, se nos esvaziarmos de nós mesmos; só nos encontramos a nós mesmos, se nos entregamos a Ele; só como pobres em espírito é que nos tornamos ricos de Espírito Santo. Isto vale também para a Igreja. Com as nossas forças, não salvamos ninguém, nem sequer a nós mesmos. Se estiverem em primeiro lugar os nossos projetos, as nossas estruturas e os nossos planos de reforma, então decairemos no funcionalismo, no pragmatismo, no horizontalismo e não produziremos fruto. Os «ismos» são ideologias que dividem, que separam. A Igreja não é uma organização humana – é humana, mas não é apenas uma organização humana –, a Igreja é o templo do Espírito Santo. Jesus trouxe o fogo do Espírito à terra, e a Igreja reforma-se com a unção, a gratuidade da unção da graça, com a força da oração, com a alegria da missão, com a beleza desarmante da pobreza. Coloquemos Deus em primeiro lugar!

Espírito Santo, Espírito Paráclito, consolai os nossos corações. Fazei-nos missionários da vossa consolação, paráclitos de misericórdia para o mundo. Ó nosso Advogado, suave Sugeridor da alma, tornai-nos testemunhas do hoje de Deus, profetas de unidade para a Igreja e a humanidade, apóstolos apoiados na vossa graça, que tudo cria e tudo renova. Ámen.


Ninguém Nasce Cristão

Homilia do Papa Francisco na Missa do Corpo de Deus
(em Itália foi neste Domingo)
6 de Junho de 2021

Jesus manda seus discípulos irem preparar o lugar para celebrar a refeição pascal. Foram eles que perguntaram: "Mestre, onde quer que a gente vá para nos preparar para que você possa comer a Páscoa?" ( Mc 14:12). Enquanto contemplamos e adoramos a presença do Senhor no Pão Eucarístico, também nós somos chamados a perguntar-nos: em que “lugar” queremos preparar a Páscoa do Senhor? Quais são os "lugares" da nossa vida onde Deus nos pede para sermos hospedados? Gostaria de responder a essas perguntas detendo-me em três imagens do Evangelho que ouvimos ( Mc 14,12-16,22-26).

A primeira é a do homem carregando uma bilha de água (cf. v. 13). É um detalhe que pareceria supérfluo. Mas aquele homem completamente anónimo torna-se o guia dos discípulos que procuram o lugar que mais tarde se chamará Cenáculo. E a bilha d'água é o sinal do reconhecimento: um sinal que nos faz pensar na humanidade sedenta, sempre em busca de uma fonte de água que a extinga e a regenere. Todos nós caminhamos pela vida com uma bilha na mão: todos nós, cada um de nós, tem sede de amor, de alegria, de uma vida de sucesso num mundo mais humano. E para essa sede, a água das coisas do mundo é inútil, porque é uma sede mais profunda, que só Deus pode saciar.

Seguimos ainda este "sinal" simbólico. Jesus diz aos seus seguidores que, onde um homem com uma jarra de água os levar, eles podem celebrar a Ceia da Páscoa. Para celebrar a Eucaristia, portanto, devemos antes de tudo reconhecer a nossa própria sede de Deus: sentir necessidade d’Ele, desejar a sua presença e o seu amor, estar cientes de que não podemos fazê-lo sozinhos, mas precisamos de um alimento e de uma bebida eternos. Vida que nos sustenta no caminho. O drama de hoje - podemos dizer - é que a sede muitas vezes foi extinta. As perguntas sobre Deus desapareceram, o desejo por Ele se desvaneceu, os buscadores de Deus estão se tornando cada vez mais raros. Deus não atrai mais porque não sentimos mais a nossa sede profunda. Mas, só onde há um homem ou uma mulher com um jarro de água - pensamos na Samaritana, por exemplo (cf. Jn.4,5-30) - o Senhor pode revelar-se como Aquele que dá nova vida, que nutre os nossos sonhos e aspirações com uma esperança confiável, uma presença de amor que dá sentido e direção à nossa peregrinação terrena. Como já observamos, é aquele homem com a jarra que conduz os discípulos à sala onde Jesus instituirá a Eucaristia. É a sede de Deus que nos leva ao altar. Se falta sede, as nossas celebrações secam . Mesmo como Igreja, então, o pequeno grupo dos habituais que se reúnem para celebrar a Eucaristia não pode ser suficiente; devemos ir à cidade, encontrar as pessoas, aprender a reconhecer e despertar a sede de Deus e o desejo do Evangelho.

A segunda imagem é a da grande sala no andar superior (ver v. 15). É lá que Jesus e o seu povo terão a refeição pascal e esta sala está localizada na casa de uma pessoa que os hospeda. Disse Dom Primo Mazzolari: «Aqui está um homem sem nome, um senhorio, que Lhe empresta a sua sala mais bonita. […] Ele deu o que tinha de melhor porque tudo ao redor do grande sacramento é grande, espaço e coração, palavras e gestos ”(La Pasqua , La Locusta 1964, 46-48).

Uma grande sala para um pequeno pedaço de pão. Deus faz-Se tão pequeno como um pão e por isso mesmo é necessário um grande coração para poder reconhecê-lo, adorá-lo, acolhê-lo. A presença de Deus é tão humilde, escondida, às vezes invisível, que precisa de um coração preparado, desperto e acolhedor para ser reconhecida. Em vez disso, se o nosso coração, mais do que uma grande sala, se assemelha a um armário onde guardamos coisas velhas com pesar; se parece um sótão onde há muito colocamos o nosso entusiasmo e os nossos sonhos; se parecer um quarto apertado, um quarto escuro porque vivemos apenas de nós mesmos, dos nossos problemas e da nossa amargura, então será impossível reconhecer esta presença silenciosa e humilde de Deus. O coração deve ser dilatado. É necessário sair da pequena sala do nosso ego e entrar no grande espaço do espanto e da adoração. E sentimos muita falta disso! Falta-nos fazer tantos movimentos para nos encontrarmos, nos reunirmos, pensarmos na pastoral juntos... Mas se isso faltar, se não houver espanto e adoração, não há caminho que nos leve ao Senhor. Não vai haver nem sínodo, nada. Esta é a atitude perante a Eucaristia, é disso que precisamos: adoração. A Igreja também deve ser um grande salão. Não um círculo pequeno e fechado, mas uma comunidade de braços abertos, acolhedora de todos. Perguntemo-nos o seguinte: quando alguém que está ferido, que se enganou, que tem um caminho de vida diferente, se aproxima, a Igreja, esta Igreja é uma sala ampla para recebê-lo e conduzi-lo à alegria do encontro com Cristo? A Eucaristia quer alimentar os cansados e famintos do caminho, não nos esqueçamos disso! A Igreja dos perfeitos e dos puros é uma sala em que não há lugar para ninguém; a Igreja de portas abertas, que celebra em torno de Cristo, é ao invés uma grande sala onde todos - todos, justos e pecadores - podem entrar.

Finalmente, a terceira imagem, a imagem de Jesus partindo o Pão. É o gesto eucarístico por excelência, o gesto de identidade da nossa fé, o lugar do nosso encontro com o Senhor que Se oferece para nos fazer renascer para uma vida nova. Este gesto também é chocante: até então eram cordeiros que eram sacrificados e oferecidos em sacrifício a Deus, agora é Jesus que Se faz cordeiro e Se imola para nos dar a vida. Na Eucaristia contemplamos e adoramos o Deus de amor. É o Senhor que não parte ninguém, mas parte-Se a si mesmo. É o Senhor que não exige sacrifícios, mas Se sacrifica. É o Senhor que nada pede, mas dá tudo. Para celebrar e viver a Eucaristia, também nós somos chamados a viver este amor. Porque não podemos partir o Pão de Domingo se o nosso coração está fechado aos irmãos. Você não pode comer este Pão se não der pão aos famintos. Você não pode compartilhar este Pão se você não compartilhar os sofrimentos dos necessitados. No final de tudo, mesmo das nossas solenes liturgias eucarísticas, só restará o amor. E a partir de agora, as nossas Eucaristias transformam o mundo na medida em que nos deixamos transformar e nos tornamos pão partido para os outros.

Irmãos e irmãs, onde "preparar a ceia do Senhor" hoje também? A procissão com o Santíssimo Sacramento - característica da festa do Corpus Domini, mas de momento ainda não o podemos fazer - lembra-nos que somos chamados a sair carregando Jesus, a sair com entusiasmo para levar Cristo àqueles que encontramos na vida quotidiana. Tornamo-nos Igreja de bilha na mão, que desperta a sede e traz água. Abramos o nosso coração ao amor, para ser a sala espaçosa e acolhedora onde todos podem entrar ao encontro do Senhor. Vamos partir a nossa vida na compaixão e na solidariedade, para que o mundo veja através de nós a grandeza do amor de Deus, e então o Senhor virá, Ele nos surpreenderá novamente, Se fará alimento para a vida do mundo. E isso nos satisfará para sempre, até o dia em que, no banquete do céu, contemplaremos seu rosto e nos alegraremos sem fim.


Ninguém Nasce Cristão

Vale a pena deixar ecoar ainda nos corações a ‘terramoto’ do Pentecstes, conclusão do Tempo Pascal e ponto de partida para a Missão…

Da Homilia do Papa Francisco na Missa de Pentecostes

«Virá o Paráclito, que Eu vos hei de enviar da parte do Pai» (cf. Jo 15, 26). Com estas palavras, Jesus promete aos discípulos o Espírito Santo, o dom supremo, o dom dos dons; e fala do Espírito, usando uma palavra particular, misteriosa: Paráclito. Debrucemo-nos hoje sobre esta palavra, que não é fácil de traduzir pois encerra vários significados. Substancialmente, Paráclito significa duas coisas: Consolador e Advogado.

1. O Paráclito é o Consolador. Todos nós, especialmente em momentos difíceis como este que estamos a atravessar devido à pandemia, procuramos consolações. Muitas vezes, porém, recorremos só a consolações terrenas, que depressa se extinguem, são consolações momentâneas. Hoje Jesus oferece-nos a consolação do Céu, o Espírito, o «Consolador perfeito» (Sequência). Qual é a diferença? As consolações do mundo são como os anestésicos: oferecem um alívio momentâneo, mas não curam o mal profundo que temos dentro. Insensibilizam, distraem, mas não curam pela raiz. Agem à superfície, ao nível dos sentidos, dificilmente ao nível do coração. Com efeito, só dá paz ao coração quem nos faz sentir amados tal como somos. E o Espírito Santo, o amor de Deus, faz isso: como Espírito que é, age no nosso espírito, desce ao mais íntimo de nós mesmos. visita «o íntimo do coração», pois é «das almas hóspede amável» (ibid.). É a ternura de Deus em pessoa, que não nos deixa sozinhos; e o facto de estar com quem vive sozinho, já é consolar.

Irmã, irmão, se sentes o negrume da solidão, se trazes dentro um peso que sufoca a esperança, se tens no coração uma ferida que queima, se não encontras a via de saída, abre-te ao Espírito. Como dizia São Boaventura, «onde houver maior tribulação, Ele leva maior consolação. Não faz como o mundo, que na prosperidade consola e adula, mas na adversidade troça e condena» (Sermão na Oitava da Ascensão). Assim faz o mundo, assim faz sobretudo o espírito maligno, o diabo: primeiro, lisonjeia-nos e faz-nos sentir invencíveis – as lisonjas do diabo, que fazem crescer a vaidade –, depois atira-nos ao chão e faz-nos sentir errados: joga connosco. Faz todo o possível por nos derrubar, enquanto o Espírito do Ressuscitado nos quer levantar. Olhemos os Apóstolos: estavam sozinhos naquela manhã, estavam sozinhos e perdidos, com as portas fechadas pelo medo; viviam no temor, tendo diante dos olhos todas as suas fragilidades e fracassos, os seus pecados: tinham renegado Jesus Cristo. Os anos transcorridos com Jesus não conseguiram mudá-los, continuavam a ser os mesmos. Depois, recebem o Espírito e tudo muda: os problemas e defeitos permanecem os mesmos, mas eles já não os temem porque não temem sequer quem pretende fazer-lhes mal. Sentem-se intimamente consolados, e querem fazer transbordar a consolação de Deus. Antes eram medrosos, agora só têm medo de não testemunhar o amor recebido. Jesus profetizara-o: o Espírito «dará testemunho a meu favor. E vós também haveis de dar testemunho» (Jo 15, 26-27).

Avancemos um passo. Também nós somos chamados a dar testemunho no Espírito Santo, a tornar-nos paráclitos, isto é consoladores. Sim, o Espírito pede-nos para darmos corpo à sua consolação. E como podemos fazê-lo? Não fazendo grandes discursos, mas aproximando-nos das pessoas; não com palavras empoladas, mas com a oração e a proximidade. Lembremo-nos de que a proximidade, a compaixão e a ternura são o estilo de Deus, sempre. O Paráclito diz à Igreja que hoje é o tempo da consolação. É o tempo do anúncio feliz do Evangelho, mais do que do combate ao paganismo. É o tempo para levar a alegria do Ressuscitado, não para nos lamentarmos do drama da secularização. É o tempo para derramar amor sobre o mundo, sem abraçar o mundanismo. É o tempo para testemunhar a misericórdia, mais do que para inculcar regras e normas. É o tempo do Paráclito! É o tempo da liberdade do coração, no Paráclito.
(…)


Ninguém Nasce Cristão

Deus dos silêncios e das longas gestações

Hoje, mais que nunca, é importante mudar o conceito de Deus, que ao longo dos séculos fizemos falar, dando-lhe formas que só exprimiam os nossos desejos: «Ezequiel – o Senhor dirigiu-me a palavra –, denuncia abertamente aqueles que se creem profetas em Israel e profetizam segundo os seus desejos…» (Ezequiel 13, 1). Trata-se de repensar a conceção de Deus, sempre representado como alguém que está no alto e que nos está a ver. (…)
Deus não está em silêncio, fala através de diversas vozes, factos, acontecimentos, e nós não estamos habituados a darmo-nos conta daquilo que está a suceder à nossa volta, dentro de nós. Ao longo da história Ele falou e fala através dos profetas, daqueles que sabem compreender o seu tempo. Os sinais dos tempos são importantes.
Deixámo-nos de habituar ao silêncio. O ser humano contemporâneo cai numa inquietação. Está habituado ao ruido de fundo permanente, que o torna doente e o sossega, e sem ele parece perdido. Um rumor que se torna como droga e torna a pessoa dependente em todos os sentidos.
Deus, então, torna-se difícil de compreender; antes, queremos defini-lo e pensá-lo como uma entidade que vê, que escuta os nossos lamentos, as nossas perguntas, as nossas necessidades. Escutar Deus significa pormo-nos perguntas sobre nós próprios, sobre o planeta, sobre a sociedade, para que o todo tenha um sentido, para que o todo encontre um equilíbrio.
Deus permanece mudo para quem não o sabe escutar. Devíamos tornar a fazer a experiência de Elias, que foge para o monte, exausto das suas experiências e do povo, onde compreendeu quem era Deus, não aquele que faz ruído, vento impetuoso, tempestade, terramoto, mas apenas brisa ligeira que só quem se põe à escuta é capaz de escutar.
Fascinou-me sempre aquele Deus que não quer ensurdecer-nos no fragor do terramoto ou cegar-nos no relâmpago; escolhe revelar-se no sussurro do vento: «Após o fulgor houve o murmúrio de um vento ligeiro» (1 Reis 19, 12). Sim, é no silêncio que o profeta reconhece o Deus que lhe fala. Para mais, o silêncio é a palavra que Deus nos dirige, secreta palavra de amor; assim intui Simone Weil:
«Quem é capaz não só de gritar/ mas também de escutar/, entende a resposta./ Esta resposta é o silêncio./ É o silêncio eterno./ Quem é capaz não só de escutar,/ mas também de amar,/ entende este silêncio/ como a palavra de Deus./ As criaturas falam com sons./ A palavra de Deus é silêncio./ A secreta palavra de amor de Deus/ não pode ser outra coisa a não ser silêncio».
É tudo menos fácil confiar Deus definitivamente ao silêncio. Todavia, este é o ponto culminante da nossa fé em Deus, «irredutível a uma mitologia entre as outras» (Ch. Theobald). Porém, é uma situação arriscada. E o risco, ou melhor, a tentação, é de preencher o vazio que deriva do silêncio com uma presença substitutiva, e inevitavelmente ilusória. É o risco que corre a Igreja, as Igrejas, os padres.
«Por vezes o vazio não é ausência, mas antes longa gestação. Para os parâmetros do eu, a gestação é sempre excessivamente longa. Mas para os parâmetros da alma, os tempos da espera e da elaboração interior que precede a evidência exterior são sempre aqueles que devem ser» (C. Pinkola Estés).
Como padre, acredito num Deus frágil e pequeno que se manifesta na cruz como um desesperado que morre sozinho; mas acredito também num Deus que te estende a mão quando caminhas no escuro e que nunca te larga, porque te é pai e te repete: «Não temas: Eu estou aqui contigo» (Isaías 41, 10).
Estou persuadido que este é o dever do padre: dar aos irmãos um alimento sólido, e sobretudo construir comunidades que repartam apenas do Evangelho, comunidades onde também o ministério é pensado e vivido de maneira totalmente diferente: onde o padre não seja o gestor do sagrado, mas o irmão entre irmãos, um mendicante de luz como todos: um batizado que parte a Palavra e o pão, mas inserido concretamente na vida dos homens e das mulheres do seu tempo, com tudo o que isso comporta. Será uma utopia, um sonho? A mim agrada-me sonhar e agrada-me empenhar-me para ser um padre homem e humano, e não um administrador do sagrado.
Entretanto, façamos também desta situação pandémica, precisamente porque crítica, uma “longa gestação” de uma nova realidade de vida pessoal e de história comunitária, de modo a podermos repensar e crescer naquela humanidade desposada e abençoada pelo Deus em que continuamos a acreditar.

Domenico Marrone |In Settimana News | Trad.: Rui Jorge Martins, in SNPC | Publicado em 19.05.2021


Ninguém Nasce Cristão

O Ministério do Catequista: Um Texto Histórico

Para muitos, pode parecer uma coisa banal e até passar despercebida. Mas a verdade é que se trata de um ‘gesto’ muito importante e significativo, esta decisão do papa Francisco INSTITUIR o Ministério do catequista. Enquanto alguns pedem uma evolução das regras no acesso ao ministério ordenado (mulheres diaconisas e padres, e ordenação sacerdotal de homens casados), o papa Francisco escolhe dar mais visibilidade ao laicado, aos leigos. Por isso, insiste no carácter secular (não clerical) deste novo ministério.
Esperemos que rapidamente a Igreja em Portugal possa dar os passos necessários para corresponder a esta determinação do Papa.
Algumas passagens do documento, que é breve.

“5. Sem diminuir em nada a missão própria do Bispo – de ser o primeiro Catequista na sua diocese, juntamente com o presbitério que partilha com ele a mesma solicitude pastoral – nem a responsabilidade peculiar dos pais relativamente à formação cristã dos seus filhos (cf. CIC cân. 774 §2; CCEO cân. 618), é necessário reconhecer a presença de leigos e leigas que, em virtude do seu Batismo, se sentem chamados a colaborar no serviço da catequese (cf. CIC cân. 225; CCEO câns. 401 e 406). Esta presença torna-se ainda mais urgente nos nossos dias, devido à renovada consciência da evangelização no mundo contemporâneo (cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 163-168) e à imposição duma cultura globalizada (cf. Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 100.138), que requer um encontro autêntico com as jovens gerações, sem esquecer a exigência de metodologias e instrumentos criativos que tornem o anúncio do Evangelho coerente com a transformação missionária que a Igreja abraçou. Fidelidade ao passado e responsabilidade pelo presente são as condições indispensáveis para que a Igreja possa desempenhar a sua missão no mundo.
Despertar o entusiasmo pessoal de cada batizado e reavivar a consciência de ser chamado a desempenhar a sua missão na comunidade requer a escuta da voz do Espírito que nunca deixa faltar a sua presença fecunda (cf. CIC cân. 774 §1; CCEO cân. 617). O Espírito chama, também hoje, homens e mulheres para irem ao encontro de tantas pessoas que esperam conhecer a beleza, a bondade e a verdade da fé cristã. É tarefa dos Pastores sustentar este percurso e enriquecer a vida da comunidade cristã com o reconhecimento de ministérios laicais capazes de contribuir para a transformação da sociedade através da «penetração dos valores cristãos no mundo social, político e económico» (Evangelii gaudium, 102).
6. (…) a função peculiar desempenhada pelo Catequista especifica-se dentro doutros serviços presentes na comunidade cristã. Com efeito, o Catequista é chamado, antes de mais nada, a exprimir a sua competência no serviço pastoral da transmissão da fé que se desenvolve nas suas diferentes etapas: desde o primeiro anúncio que introduz no querigma, passando pela instrução que torna conscientes da vida nova em Cristo e prepara de modo particular para os sacramentos da iniciação cristã, até à formação permanente que consente que cada batizado esteja sempre pronto «a dar a razão da sua esperança a todo aquele que lha peça» (cf. 1 Ped 3, 15). O Catequista é simultaneamente testemunha da fé, mestre e mistagogo, acompanhante e pedagogo que instrui em nome da Igreja. Uma identidade que só mediante a oração, o estudo e a participação direta na vida da comunidade é que se pode desenvolver com coerência e responsabilidade (cf. Cons. Pont. para a Promoção da Nova Evangelização, Diretório da Catequese, 113).

8. Este ministério possui uma forte valência vocacional, que requer o devido discernimento por parte do Bispo e se evidencia com o Rito de instituição. De facto, é um serviço estável prestado à Igreja local de acordo com as exigências pastorais identificadas pelo Ordinário do lugar, mas desempenhado de maneira laical como exige a própria natureza do ministério. Convém que, ao ministério instituído de Catequista, sejam chamados homens e mulheres de fé profunda e maturidade humana, que tenham uma participação ativa na vida da comunidade cristã, sejam capazes de acolhimento, generosidade e vida de comunhão fraterna, recebam a devida formação bíblica, teológica, pastoral e pedagógica, para ser solícitos comunicadores da verdade da fé, e tenham já maturado uma prévia experiência de catequese (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Decr. Christus Dominus, 14; CIC cân. 231 §1; CCEO cân. 409 §1). Requer-se que sejam colaboradores fiéis dos presbíteros e diáconos, disponíveis para exercer o ministério onde for necessário e animados por verdadeiro entusiasmo apostólico.
Assim, depois de ter ponderado todos os aspetos, em virtude da autoridade apostólica,

instituo
o ministério laical de Catequista.

A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos providenciará, dentro em breve, a publicação do Rito de Instituição do ministério laical de Catequista.”

Dado em Roma, junto de São João de Latrão, na Memória litúrgica de São João de Ávila, Presbítero e Doutor da Igreja, dia 10 de maio do ano de 2021, nono do meu pontificado.


Ninguém Nasce Cristão

Quem é Deus para ti? Respostas de jovens de hoje (2)

Lá fora, entre praças e paredes, há muitos jovens que não conseguem nem querem identificar Deus. Quero continuar a dar-lhes voz. Explorar a negação, promover as dúvidas, dilatar a reflexão, alimentar a esperança. Uma graduação baseada não na intensidade das palavras, mas na leve e impercetível matiz dos pensamentos. A evolução da pessoa e o elusivo da história. Um percurso rumo ao intangível.
«Há dois anos estava em Lyon», diz Emílio, «chegado ao ponto mais alto da catedral de S. João senti a necessidade de ir ter com o sacerdote para lhe colocar uma pergunta: “Se Deus existe, porque é que eu não acredito? Porque é que Deus criou indivíduos que o colocam em discussão e não o percecionam em lado algum?”. A minha relação com a eventual presença de Deus é muito contrastante. Se existe, para mim não é simpático, e eu não lhe sou simpático».
E prossegue: «A propósito, gostaria de citar dois episódios. O primeiro foi quando vi, em criança, as imagens da guerra. Recordo que fiz uma comparação entre a Terra e um jardim, entre Deus e um jardineiro: se Deus criou a Terra, porque deixam que aconteçam coisas tão terríveis? Porque é que um jardineiro planta flores para depois deixar morrer algumas tão brutalmente?».
«O segundo episódio está ligado à morte da mãe de uma das minhas primeiras namoradas. Tínhamos 11 anos. No funeral, o sacerdote explicou como Deus toma para si aqueles que mais ama, e que essa ausência devia ser entendida como um gesto de amor. Para mim tudo foi e é inconcebível. Pensar que Deus, por um afeto pessoal, pode arrancar a quatro filhos a sua mãe, fez-me experimentar mal-estar e aversão.»
Destes dois acontecimentos, uma conclusão: «Num mundo tão cheio de injustiças é-me difícil acreditar que Deus exista. E, se existe, não é correto, e muito menos bom. Como respondeu o sacerdote de Lyon à minha falta de fé? Que o colocar-lhe uma pergunta do género era já uma procura da fé».
Uma jovem, que prefere permanecer anónima, buscou uma resposta escavando nos seus 19 anos de vida. «Deus existe, sei-o. Vejo-o na história de certas pessoas, nos mistérios da natureza, nas respostas que te deram outros jovens. Deus existe, mas, em mim, nunca esteve. Não estava quando o meu pai se foi embora de casa. Não está presentemente, nas inseguranças de um adolescente e nas lágrimas escondidas debaixo de uma almofada. Não está também na minha imobilidade quanto ao futuro-»
«Tudo isto me faz sentir abandonada. Traída. Castigada. Porquê os outros sim e eu não? Porque é que o caminho para Deus é tão difícil, se é tão grande como dizem? Porque é que nunca encontrei alguém capaz de me fazer aproximar dele? Talvez eu tenha demasiadas expetativas. Um pouco como com o meu namorado, é isso.»
Depois temos as palavras do Marco. «Antes de mais declaro que não sou crente, mas gosto de identificar Deus num momento que pode acontecer a qualquer um. Deus, para mim, é uma sensação. Um instante de tranquilidade particularmente forte, que brota de uma alegria vivida com os outros. Um fragmento de vida em que se compreende estar em perfeita sintonia com o que está à volta.»
Por exemplo, «durante um passeio, uma viagem de automóvel, um silêncio prolongado. O único momento suficientemente profundo em que penso que pode existir alguma coisa. Esta é a maneira que Deus tem para se manifestar em quem acredita. Para mim, por agora, basta compreender como os crentes podem sentir-se em contacto com Ele em momentos do género. E, por isso, respeitá-los».
Por fim, Valentina. E, com ela, um clarão no nevoeiro. «Quando reflito sobre quem é Deus para mim, penso na música “Anthem” de Leonard Cohen: há uma fenda em cada coisa, e é assim que a luz entra. Considero Deus como aquela luz que, impercetivelmente, penetra entre as feridas do ser humano. Insere-se entre as dores, as dúvidas, as perguntas sem solução. E, penetrando, aclara. Deus é uma mensagem de esperança.»
«É por isso que, ainda que não seja crente, abstenho-me de me definir ateia. Não nego de todo a existência de Deus, nem me rendo a um esgotado desinteresse só porque sou incapaz de encontrar a resposta. Porque sei que, quando o nosso conhecimento se mostra limitado, a fé pode intervir. E pode salvar-te a vida.»

Guglielmo Gallone
In L'Osservatore Romano
Traduzido para SNPC por Rui Jorge Martins
Publicado em 29.04.2021


Ninguém Nasce Cristão

Quem é Deus para ti? Respostas de jovens de hoje (1)

«Quem é Deus para ti?» Uma pergunta precisa, íntima, encadeante. A meio caminho entre o intelecto e o coração, as certezas e as dúvidas, a razão e a fé. Dada a minha jovem idade, não posso não me sentir envolvido. Um pensamento vai para os jovens que frequento. Como responderiam?
A pergunta central deste artigo nasce precisamente da necessidade de compreender o pensamento que os jovens têm sobre Deus. Talvez uma busca deste género possa ajudar a conhecer a própria resposta. É uma forma de reciprocidade. Viajar na intimidade do outro para alargar as perspetivas sobre Deus. Escavar para respirar.
Para começar bastou-me bater à porta do quarto da minha irmã, Virgínia. «Não sei quem é Deus. Nunca me perguntei. Que existe, estou certa. Mas não sei onde vê-lo. Gostaria de o encontrar nos olhos de uma pessoa. Deus, a meu ver, não está em coisas extraordinárias. Está próximo das coisas pequenas. Inclusive nas quotidianas, que acontecem acidentalmente ou são consideradas insignificantes. É isso, Deus para mim é a casualidade que permite melhorar a vida».
Prossigo a minha indagação falando com Francisco, um amigo. «A pessoa que me fez ver Deus de maneira diferente de como sempre o vi foi Kanye West, o meu cantor preferido. Ele afirma que “Deus é aquele que caminha diante de mim, deixando marcas em cujo interior eu possa caminhar”. Deus é uma maneira para não se sentir só. A ideia de ter constantemente ao lado alguém, inclusive nos momentos mais complicados, dá-me alegria. Pessoalmente, concebi a ideia de outro alguém quando compreendi que tudo aquilo que andava à procura estava dentro de mim. Deus não está fora de nós. Não pode ser intercetado com os cinco sentidos. Se o busco no exterior, Deus não existe. Mais, Deus é um outro eu dentro de mim. Eu sou Deus. Tu és Deus. Existe um Deus para cada um de nós. Meditação, sofrimento, crescimento consciente, conhecimento do próximo: são tudo instrumentos para chegar a Deus. De acordo com esta lógica, o egoísmo não pode existir. Porque eu sou tu e tu és eu. Ninguém existe independentemente do outro. É verdade que o outro pode contribuir também negativamente. Mas nunca contribuirá apenas negativamente. Um obstáculo é também e sobretudo uma via. Um caminho para a reflexão, a ação e a mudança. Pensar em tudo isto possibilita-me transformar a paz em felicidade de cada vez que quero.»
Portanto, onde procurar Deus? Fora ou dentro de si? O Leonardo, meu primo, não tem dúvidas. «Deus, para mim, é um amigo. E, enquanto tal, é uma certeza. Uma identidade com quem falar, sem vergonha ou temor. Como cada bom amigo, estou certo de que me escuta. Também me dá conselhos que se manifestam, implicitamente, nos meus comportamentos. Ajuda-me a melhorar. Ainda que não o possa ver, sei que existe. Perceciono-o, por vezes, dentro de mim. É um espião que me assinala quando e onde erro. E como remediar. É por isso que é também concreto está em nós de cada vez que seguimos um seu conselho. Deus pode revelar-se igualmente através daqueles que consideramos inimigos. Se não entramos em contacto com o mal, as desilusões e o sofrimento, nunca conseguiremos identificar o bem.
Sem um inimigo não posso reconhecer um amigo. Do mesmo modo, para encontrar Deus não se pode estar parado. A propósito, vem à minha mente a pintura “Criação de Adão”, de Miguel Ângelo: Deus estende a mão, e o homem, reconhecendo-o, procura apertá-la. Se não há reciprocidade, não pode haver o encontro com Deus. Eu, ultimamente, procuro mover-me para Deus através do voluntariado da Cáritas e o curso do Crisma. Comecei a compreender como é importante conseguir perdoar. Aprendi a ver a realidade com uma lente que torna a realidade não maior, mas diferente. Deus faz-te estar bem.»

Guglielmo Gallone
In L'Osservatore Romano
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 27.04.2021


Ninguém Nasce Cristão

No Quarto Domingo de Páscoa, Domingo do Bom Pastor, a Igreja celebrou também o 58º Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Aqui fica, como um eco, parte de um texto, escrito no início da Semana das Vocações, que nos interpela.

Vocação: alargar o horizonte do desejo

(…) É por isso que o apelo do Geral da Companhia de Jesus, P. Arturo Sosa, numa recente carta enviada a todos os jesuítas sobre a promoção vocacional, faz todo o sentido: “Num mundo cada vez mais secularizado, onde a sirene que anuncia riquezas, honra e orgulho distrai tão facilmente os jovens e obscurece a voz suave e delicada de Deus, a sensibilidade oferecida pela cultura da promoção e do discernimento vocacional torna-se vital.”
Antes de tudo, uma cultura da promoção vocacional ajuda a desfazer enganos quanto ao que realiza as aspirações de cada pessoa. Conduzir cada pessoa à escolha de Jesus é levá-la a encontrar o significado mais profundo da sua humanidade. É oferecer-lhe a possibilidade de encontrar na gratuidade e no serviço, no amor livre que recusa a manipulação o caminho estreito em que é gerada a abundância.
Uma cultura da promoção vocacional desafia a secularização do coração e acende nele as perguntas mais sérias da vida: qual o significado da verdadeira amizade, como aprendo a viver com a desilusão, como posso lidar com a morte, como posso amar sem querer que o outro preencha os meus vazios, como me posso sentir reconhecido e amado sem ter que mentir a mim mesmo sobre as minhas capacidades e possibilidades? Como lidar com as minhas feridas? Como cuidar dos outros e procurar a justiça? Como encontrar as maiores alegrias? É justamente aqui que a bandeira de Jesus aparece como uma proposta de conversão da nossa sensibilidade, alargando o seu horizonte e fortalecendo os afetos.
Mas este é um caminho lento que pede mais laços fortes do que conexões infinitas e instantâneas. É um caminho que exige disponibilidade. Na carta sobre a promoção vocacional, Arturo Sosa dirige-se de um modo especial aos seus irmãos jesuítas. “No coração deste esforço recebemos a graça que nos é transmitida pela arte de acompanhar na escuta do chamamento do Senhor e no discernimento do seu caminho. É o Senhor que chama, mas aqueles que o ouvem precisam de ser acompanhados no processo de discernimento do acolhimento desse convite.”
O acompanhamento de quem procura acertar com a vontade de Deus é uma dimensão essencial na descoberta da vocação cristã, é uma arte de que nem todos somos artífices. Mas há uma responsabilidade que é de todos: ajudar a gerar comunidades em que cada pessoa possa descobrir o seu valor a partir da experiência de ser amada por Deus, comunidades em que cada um reconheça que a resposta ao amor incondicional se concretiza aprofundando o sentido de pertença a uma humanidade comum, a uma comunidade na qual todos somos chamados a servir. Neste contexto, suscitar a pergunta pelo sentido da vida é bem mais do que uma tarefa de padres e freiras.
Iniciamos este domingo a semana de oração pelas vocações. Rezar pelas vocações não é expressar a Deus o desejo quase melancólico de que a Igreja não morra. É sintonizar com a abertura dos que procuram escutar o convite de Deus. É abrir-se à mudança que o Espírito provoca em nós, compreendendo a conversão a que estamos chamados. É ser mais sensível aos apelos que Deus pode estar a operar no coração dos que estão à nossa volta. Diz o Geral dos jesuítas que a oração nos muda “alargando e aprofundando o nosso desejo e pondo-nos mais em sintonia com aqueles que o Senhor possa estar a chamar à nossa volta.”
No filme “O Pirata das Caraíbas” havia uma bússola que não indicava o Norte, mas antes aquilo que quem a usava mais desejava. Escolher Jesus é dar ao nosso desejo o maior dos horizontes, encontrando sonhos surpreendentes que nos revelam quem somos e o que estamos chamados a ser. Rezar pelas vocações é comprometer-se com este modo de escolher e de sonhar.
(Padre José Maria Brito, sj. In O Portal dos Jesuítas em Portugal, 18 de Abril de 2021)


Ninguém Nasce Cristão

A Cruz no centro do Cristianismo?

Uma das insistências dos evangelistas, quando narram as ‘aparições’ do Ressuscitado, é dizer que Ele mostra as chagas da crucifixão. Tem de ficar muito claro que o Ressuscitado é o Crucificado. Do mesmo modo que serei eu mesmo quando ressuscitar. Não será outro ou uma parte de mim. Serei eu mesmo.
Algumas palavras de um grande teólogo: José Ignacio González Faus.

“Aqueles que acharem que a afirmação do título é uma amostra do masoquismo cristão, só estão a mostrar o quanto atrevida pode ser a ignorância. Digamos apenas, para precisar, que essa afirmação é algo imprecisa: o que quer dizer é que o Crucificado é o centro do Cristianismo.
E isto exige uma primeira aclaração: não pode haver crucificados sem que alguém os crucifique: uma pessoa pode açoitar-se ou maltratar-se a si mesma, mas não pode crucificar-se a si mesma. Do mesmo modo que, como Cristo, pode carregar-se com a cruz mas não é possível cravar-se nela.
Feita esta precisão, vejamos o que significa dizermos que o centro do Cristianismo é o Crucificado.
Em primeiro lugar, revela-nos uma dura lei histórica: sempre que alguém se põe do lado ‘dos debaixo’ – os pobres, as vítimas e os maltratados –, corre o risco de ser aniquilado violentamente. Nem sequer é preciso apelar para Cristo. Basta pensar em nomes não católicos como Gandhi, Nélson Mandela…
Em segundo lugar, aqueles que crucificam não são os maus, mas os oficialmente bons. E fazem-no em nome das maiores palavras e dos maiores valores: como Deus, democracia, liberdade… Assim foi com Jesus.
Em terceiro lugar, isso leva-nos a uma disjuntiva fundamental. Ou a nossa história não é mais do que a hipocrisia de um progresso que achamos bom, mas que afinal está assente sobre cadáveres de vítimas inocentes… Ou? Ou então a morte daqueles crucificados é o nascimento para uma vida mais alta e até serve de perdão para os verdugos. Esta é a mensagem do Cristianismo. Inacreditável! Mas é a única forma de dar sentido a esta história cruel, diante da qual fechamos tranquilamente os olhos. O Ressuscitado é precisamente o Crucificado. Não outro, por muito que possa ter triunfado na história.”
Por isso, o autor, depois de dar um exemplo concreto de um casal que foi martirizado por se colocar ao serviço dos outros, volta a afirmar:

“O Crucificado (e n’Ele todos os crucificados) é o centro do Cristianismo.
Com uma matização importante: a cruz não é o mesmo que vitimismo. Os crucificados não se queixam, não fazem da sua situação uma arma em proveito próprio. Apenas clamam, como Jesus: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?»; e também: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito».

(in Religion Digital, 04.04.2021)


Ninguém Nasce Cristão

A propósito de uma mulher (Maria da Conceição Moita) que foi uma referência cristã para muitos. Neste tempo de Páscoa, quando somos chamados a testemunhar a nossa fé com a maior autenticidade, vale a pena conhecer esta ‘biografia’.

«“Não tenho medo de morrer porque vou ver Deus”, dizia ela. Eu não tenho dúvidas»

«Católica na linha progressista do Concílio Vaticano II, lutadora contra a Ditadura, foi uma das organizadoras da célebre vigília da Capela do Rato, a 30 de dezembro de 1972. Professora durante anos na Escola Superior de Educação de Lisboa, manteve-se uma Mulher de convicções, defensora da Democracia nos seus vários sentidos.»
Foi com este parágrafo que Marcelo Rebelo de Sousa evocou Maria da Conceição Moita, falecida esta segunda-feira, 29 de março, em nota publicada na página da Presidência da República, no dia a seguir ao falecimento.

«Aquilo que eu vos deixo»: O legado de Maria da Conceição Moita

Gostava de vos deixar sobretudo a certeza de quanto vos amei,
com toda a ternura, por vezes com falta de jeito.
Se vos magoei nalgum momento, mesmo sem intenção, peço desculpas.
Queria muito que guardassem de mim esta ideia – só vale a pena viver com um encantamento, com um sentido. Persegui-lo é o mais importante.
E saber que na vida, todo o bem é possível.
E que a frescura do riso é coisa a não perder.
E os amigos, o dom surpreendente de cada dia.
Que a grande tarefa é ir fazendo mais humano o tecido das relações, no tempo que nos é dado. E gastar a vida, a transformar o mundo que espera pela justiça e pela fraternidade.
Não deixar, a todo o custo, endurecer o coração. Porque o amor é de tudo o mais importante. Dá sentido à vida e é mais forte que a morte.
Queria que soubessem que fui uma mulher feliz. E que fiz a experiência do sofrimento indizível. Parece contraditório, mas não é.
Trabalhei em projetos com um empenhamento que me iluminou a vida. Fiz caminho a caminhar.
Tive a grande dádiva de ter comigo uma Mão que sempre me salvou. E é bem verdade que conheci a alegria mais funda.
É na certeza limpa e leve que parto, sabendo que na vida não existem ruturas e acreditando que o que me espera é a plenitude do que procuro, sem ser possível imaginar.
Obrigada por tudo quanto me deram. Gratuitamente.
Até sempre.
Xexão

(Maria da Conceição Moita
Publicado em 02.04.2021 in SNPC)


Ninguém Nasce Cristão

Um abraço de Páscoa tem o calor do amor
O poder do fogo, o fogo novo da passagem
A morte não matou a esperança.

Um abraço de Páscoa tem o coração humano
A alegria da libertação, o segredo da transformação
A morte é uma etapa da vida.

Um abraço de Páscoa tem a travessia do mar e do deserto
Tem o rochedo aberto em água e luz
O sepulcro explode num riacho feliz.

Um abraço de Páscoa tem o silêncio do mistério
Tem a partilha do pão, a proximidade de pessoas,
A derrota do desânimo, o renascimento da coragem.

Um abraço de Páscoa tem a ternura do nascimento
A simplicidade da luz, a expansão da liberdade
A luz da noite de Jesus faz nossa vida de luz.

Um abraço de Páscoa tem chão, lama e escuridão,
Tem sufoco e superação, o silêncio da solidão
Tem mendigos, peregrinos, famintos de comunhão.

Um abraço de Páscoa tem a transcendência do existir
Tem o ser da beleza, da bondade e da verdade de Deus
Tem a árvore da vida, integração da terra e do céu.

Um abraço de Páscoa tem a paz do Cristo ressuscitado.

(P. José Luís Coelho, CSh
Publicado em 04.04.2021 in SNPC)


Ninguém Nasce Cristão

Uma Semana para estar junto das feridas de Jesus

“A entrada de Jesus em Jerusalém (Marcos 14,1-15,47) não é apenas um acontecimento histórico, mas uma parábola em ação. Mais: uma armadilha de amor para que a cidade o acolha, para que eu o acolha.

Deus corteja a sua cidade (a fé é a minha resposta ao cortejamento de Deus): vem como um rei mendicante, tão pobre que nem sequer possui o mais pobre dos animais de carga). Um Poderoso humilde, que não se impõe, antes propõe-se; como um amante desarmado.

Bendito Aquele que vem. É extraordinário poder dizer: Deus vem. Nesta região, por estas estradas, na minha casa que sabe a pão e abraços, Deus continua a vir, viandante dos milénios e dos corações. Aproxima-se, está à porta.

A Semana Santa desdobra, um a um, os dias do nosso destino; vêm ao nosso encontro, lentamente, cada qual generoso de sinais, de símbolos, de luz. Nesta semana, o ritmo do ano litúrgico torna-se mais vagaroso, podemos seguir Jesus dia após dia, quase hora após hora.

A coisa mais santa que podemos fazer é estar com Ele: «Homens e mulheres vão a Deus no seu sofrimento, choram por ajuda, pedem pão e conforto. Assim fazem todos, todos. Os cristãos, por sua vez, estão próximos a Deus no seu sofrimento» (Bonhoeffer).

Os cristãos estão próximos de um Deus que na cruz já não é “o todo-poderoso” dos nossos desejos infantis, o salva-vidas dos nossos naufrágios, mas é o Todo-abraçante, o Todo-amante que naufraga na tempestade perfeita do amor por nós.

São dias para estar próximo de Deus no seu sofrimento: a paixão de Cristo continua a consumar-se, em direto, nas infinitas cruzes do mundo, onde nós podemos estar junto aos crucificados da História, deixar-nos ferir pelas suas feridas, experimentar a dor pela dor da terra, de Deus, do ser humano, padecer e levar conforto.

A cruz desorienta, mas se persisto a ficar junto a ela, como as mulheres, o olhá-la como o centurião, perito em morte, decerto não compreenderei tudo, mas uma coisa sim: que ali, naquela morte, está o primeiro vagido de um mundo novo.

O que viu o centurião para pronunciar, ele que era pagão, o primeiro acabado ato de fé cristão, «era o Filho de Deus»? Viu um Deus que ama ao ponto de morrer.

A fé cristã apoia-se na coisa mais bela do mundo: um ato de amor perfeito. Viu a subversão do mundo; Deus que dá a vida inclusive a quem lhe dá a morte; Aquele para quem o poder é servir em vez de se servir; vencer a violência não com mais violência, mas tomando-a sobre si.

A cruz é a imagem mais pura, mais alta, mais bela que Deus deu de si mesmo. São os dias que o revelam: «Para saber quem é Deus, só tenho de me ajoelhar aos pés da Cruz» (Karl Rahner).”

Ermes Ronchi (in SNPC. Trad.: Rui Jorge Martins. Publicado em 25.03.2021)


Ninguém Nasce Cristão

Para continuar a ‘esculpir’ o nosso coração, de forma a que ele se assemelhe cada vez ao de Cristo e ao do Pai do Céu, a Igreja oferece-nos mais um texto do Evangelho segundo São João, que contém essa imagem tão eficaz quanto ‘assustadora’ do grão de trigo.

Algumas palavras de Ermes Ronchi no seu comentário ao texto:

“Alguns estrangeiros pedem aos Apóstolos: ‘Queríamos ver Jesus.» Grande pedido e resposta desconcertante, porque, ao contrário de outras vezes em que Jesus diz «Vinde e vede», agora responde falando por imagens.

Diz: se quereis ver-me, olhai o grão de trigo. E acrescenta: se quereis compreender-me, olhai a cruz porque, «quando Eu for elevado da terra, atrairei todos a Mim.»

Duas imagens, o grão de trigo e a cruz: é essa autoapresentação de Jesus.

«Se o grão de trigo, lançado à terra, não morre, fica só; mas se morrer, dará muito fruto.» Uma frase difícil, até perigosa; percebe-se mal. Com efeito, pode dar origem a uma religiosidade errónea, fundada no sofrimento, no sacrifício, na renúncia.

Qual o verbo principal da frase, onde recai o acento? Nós respondemos instintivamente: em morrer, porque é esse o verbo que mais nos impressiona. Porém, não é assim, o acento não recai sobre a morte, mas sobre a vida! Porque a glória de Deus não é morrer, mas muito fruto.

Para entendermos melhor, deveríamos pegar num grãozinho de trigo. Parece uma coisa morta, gasta e, no entanto, é um núcleo de vida, é um pequeno vulcão de vida. Tem dentro de si o germe, que é o seu núcleo vital. E quando é semeado, não começa a morte, mas um trabalho infatigável.

(…) Também eu sou um grão de trigo semeado na terra acolhedora da minha família, na terra exigente da escola, na terra exaltante das amizades e dos afectos.

Cada um de nós tem dentro de si um germe, muita energia e luz, bondade e beleza que querem sair da escuridão para o sol. E eu devo alimentá-las.

Se eu sou generoso, dando-me, generoso em termos de empenho, de tempo, de inteligência, se me dedico completamente, como um atleta, um cientista, como um enamorado, então o resultado será grande.

Se eu sou generoso, não perco a vida, multiplico-a, porque nós somos ricos, não daquilo que retivemos para nós, mas daquilo que demos outros. (…)

(in Ano B - A Esperança que nasce da Palavra, Paulinas)


Ninguém Nasce Cristão

Neste caminho quaresmal para a Páscoa, de transformação e renovação, temos hoje – 4º Domingo da Quaresma – a terceira parte do diálogo de Nicodemos (na verdade ele falou muito pouco) com Jesus (Nicodemos recebe uma lição completamente inesperada). São textos fundamentais, que deveríamos saber quase de cor – pelo menos algumas das suas frases – que podem e devem ser olhados de ângulos diferentes e sempre complementares. Aqui fica um desses olhares, muito interior, muito contemplativo.

DEUS OLHA COM TERNURA, ENCORAJA E AMPARA A VERDADE HUMILDE DO TEU PRIMEIRO PASSO

“Caiu o pano sobra a cena impetuosa, estrondosa, de Jesus que expulsa os mercadores do templo. Em Jerusalém, chefes e pessoas comuns falam todos da novidade daquele jovem rabi. Ora, daquela cena clamorosa e subversiva passa-se a um Evangelho íntimo e recolhido (João 3, 14-21).

Nicodemos tem grande estima por Jesus e quer saber mais, mas não ousa comprometer-se, e vai ao seu encontro de noite. Primeira surpresa: o mesmo Jesus que dirá «o vosso falar seja sim sim, não não» respeita o medo de Nicodemos, não se perde nos limites da sua pouca coerência, mas, mostrando compreensão pela sua fraqueza, transforma-o no corajoso que se oporá ao seu grupo e irá ao pôr-do-sol da grande sexta-feira para cuidar do corpo do Crucificado.

Quando todos os corajosos fogem, o receoso vai ao encontro da cruz, levando trinta quilos de aloé e mirra, uma quantidade em excesso, um excesso de afeto e gratidão-

Jesus transforma. É um caminho totalmente novo, para nós que os mestres do espírito sempre apertaram na alternativa: coragem ou cobardia, coerência ou incoerência, resistência ou debilidade, perfeição ou erro. Jesus mostra uma terceira via: o respeito que abraça a imperfeição, a confiança que acolhe a fragilidade e a transforma. A terceira via de Jesus é acreditar no caminho do ser humano mais do que na linha de chegada, apontar para a verdade humilde do primeiro passo mais do que para o alcançar da meta longínqua. Mestre dos princípios.

Naquele diálogo noturno, Jesus comunica, em poucas palavras, o essencial da fé: Deus amou tanto o mundo… é uma coisa segura, uma coisa já acontecida, uma certeza central: Deus é o amante que te salva. Palavras decisivas, a saborear a cada dia e às quais nos agarramos sempre.

Deves nascer do Alto: Eu vivo das minhas fontes, e tenho fontes de Céu a encontrar. Então poderei finalmente nascer para uma vida mais alta e maior, e ver a existência de uma perspetiva nova, de uma fenda aberta no Céu, para discernir o que é efémero e o que, pelo contrário, é eterno.

Aquele que nasce do Espírito é Espírito. E a noite ilumina-se. Quem nasceu do Espírito não só tem o Espírito, mas é Espírito. Não só é templo do Espírito, mas é da mesma substância do Espírito. Cada ser gera filhos segundo a sua espécie, as plantas, os animais, o homem e a mulher. Pois bem, também Deus gera filhos segundo a espécie de Deus.

E não há maiúsculo ou minúsculo nos testes originários: maiúsculo para o Espírito de Deus, a sua força geradora, minúsculo para o espírito do ser humano gerado. Não se consegue distinguir se “espírito” se refere ao ser humano ou a Deus. Esta confusão é extraordinária. Uma belíssima revelação: tu, renascido do Espírito, és Espírito.”

Ermes Ronchi, In SNPC. Trad.: Rui Jorge Martins, 11.03.2021


Ninguém Nasce Cristão

DEIXEMOS JESUS PURIFICAR O NOSSO CORAÇÃO E A NOSSA PRÁTICA

Da homilia do papa Francisco, no Iraque, no terceiro Domingo da Quaresma: a expulsão dos vendilhões do Templo.

“… No Evangelho que acabamos de escutar (Jo 2, 13-25), vemos como Jesus expulsou do Templo de Jerusalém os cambistas e todos os que compravam e vendiam. Porque é que Jesus realizou este ato tão forte, tão provocador? Fê-lo porque o Pai O enviou para purificar o templo: não só aquele de pedra, mas sobretudo o do nosso coração. Como Jesus não tolerou que a casa de seu Pai se tornasse um mercado (cf. Jo 2, 16), assim deseja que o nosso coração não seja um lugar de turbulência, desordem e confusão. O coração deve ser limpo, posto em ordem, purificado. De quê? Das falsidades que o sujam, das simulações da hipocrisia. Todos nós as temos. São doenças que fazem mal ao coração, que mancham a vida, tornam-na hipócrita. Precisamos de ser purificados das nossas seguranças falaciosas, que trocam a fé em Deus pelas coisas que passam, pelas conveniências do momento. Precisamos que sejam varridas do nosso coração e da Igreja as nefastas sugestões do poder e do dinheiro. Para limpar o coração, precisamos de sujar as mãos: sentirmo-nos responsáveis e não ficarmos parados enquanto sofrem o irmão e a irmã. Mas como purificar o coração? Sozinhos, não somos capazes; temos necessidade de Jesus. Ele tem o poder de vencer os nossos males, curar as nossas doenças, restaurar o templo do nosso coração.

Para confirmação disto mesmo e como sinal da sua autoridade, disse: «Destruí este templo, e em três dias Eu o levantarei» (2, 19). Jesus Cristo, e só Ele, pode purificar-nos das obras do mal, Ele que morreu e ressuscitou, Ele que é o Senhor! Queridos irmãos e irmãs, Deus não nos deixa morrer no nosso pecado. Mesmo quando Lhe voltamos as costas, nunca nos abandona a nós próprios. Procura-nos, vai atrás de nós para nos chamar ao arrependimento e purificar. «Por minha vida – diz o Senhor pela boca de Ezequiel –, não tenho prazer na morte do ímpio, mas sim na sua conversão a fim de que tenha a vida» (33, 11). O Senhor quer que sejamos salvos e nos tornemos templo vivo do seu amor, na fraternidade, no serviço e na misericórdia.

Jesus não só nos purifica dos nossos pecados, mas torna-nos também participantes do seu próprio poder e sabedoria. Liberta-nos de um modo de entender a fé, a família, a comunidade que divide, contrapõe e exclui, para podermos construir uma Igreja e uma sociedade abertas a todos e solícitas pelos nossos irmãos e irmãs mais necessitados. E ao mesmo tempo revigora-nos para sabermos resistir à tentação de procurar vingança, que nos mergulha numa espiral de retaliações sem fim. Com a força do Espírito Santo, envia-nos, não para fazer proselitismo, mas como seus discípulos missionários, homens e mulheres chamados a testemunhar que o Evangelho tem o poder de mudar a vida. O Ressuscitado torna-nos instrumentos da paz de Deus e da sua misericórdia, artífices pacientes e corajosos duma nova ordem social. Assim, pela força de Cristo e do seu Espírito, acontece o que o apóstolo Paulo profetiza aos Coríntios: «O que é tido como loucura de Deus, é mais sábio que os homens e, o que é tido como fraqueza de Deus, é mais forte que os homens» (1 Cor 1, 25). Comunidades cristãs formadas por pessoas humildes e simples tornam-se sinal do Reino que vem, Reino de amor, justiça e paz.

«Destruí este templo, e em três dias Eu o levantarei» (Jo 2, 19). Falava do templo do seu corpo e, por conseguinte, também da sua Igreja. O Senhor promete que pode, com o poder da sua Ressurreição, fazer-nos ressurgir a nós e às nossas comunidades das ruínas causadas pela injustiça, a divisão e o ódio. É a promessa que celebramos nesta Eucaristia. Com os olhos da fé, reconhecemos a presença do Senhor crucificado e ressuscitado no meio de nós, aprendemos a acolher a sua sabedoria libertadora, a repousar nas suas chagas e a encontrar cura e força para servir o seu Reino que vem ao nosso mundo. Pelas suas feridas, fomos curados (cf. 1 Ped 2, 24); nas suas chagas, amados irmãos e irmãs, encontramos o bálsamo do seu amor misericordioso; porque Ele, Bom Samaritano da humanidade, deseja ungir cada ferida, curar cada recordação dolorosa e inspirar um futuro de paz e fraternidade nesta terra.

A Igreja no Iraque, com a graça de Deus, fez e continua a fazer muito para proclamar esta sabedoria maravilhosa da cruz, espalhando a misericórdia e o perdão de Cristo especialmente junto dos mais necessitados. Mesmo no meio de grande pobreza e tantas dificuldades, muitos de vós oferecestes generosamente ajuda concreta e solidariedade aos pobres e atribulados. Este é um dos motivos que me impeliu a vir em peregrinação até junto de vós, ou seja, para vos agradecer e confirmar na fé e no testemunho. Hoje, posso ver e tocar com a mão que a Igreja no Iraque está viva, que Cristo vive e age neste seu povo santo e fiel.

Amados irmãos e irmãs, confio cada um de vós, as vossas famílias e as vossas comunidades à proteção materna da Virgem Maria, que foi associada à paixão e à morte do seu Filho e participou na alegria da sua ressurreição. Interceda por nós e nos conduza até Ele, poder e sabedoria de Deus.”


Ninguém Nasce Cristão

CONSERVA A LUZ PARA QUANDO VIER A NOITE

Cada texto da Palavra de Deus que nos é proposto tem sempre uma possibilidade infinita de leituras e de olhares. A propósito do Evangelho da Transfiguração – e para complementar a homilia que será ouvida (no nosso caso mais cingida à proposta da Dinâmica diocesana) – aqui fica o olhar de um dos autores que sempre consegue interpelar-nos numa linguagem muito bela:

“O monte da luz, colocado a metade da narrativa de Marcos (9, 2-10), é a aresta da indagação sobre quem é Jesus. Como num díptico, a primeira parte conta obras e dias do Messias, a segunda, a partir daqui, desenha o rosto outro do «Filho de Deus».

A narrativa é tecida propositadamente com os fios dourados da língua do Êxodo, monte, nuvem, voz, Moisés, esplendor, escuta, quadro de revelações. O que é novo é o grito entusiasta de Pedro: que belo é estar aqui! Experiência de beleza, da qual brota alegria sem interesses.

Marcos conta um momento de felicidade de Jesus que contagia os seus. A nós, que o farisaísmo eterno tornou desconfiados da alegria, é proposto um Jesus que não tem medo da felicidade. E os seus discípulos com Ele.

Jesus está feliz porque a luz é um indício, o indício que Ele, o rabi de Nazaré, está a caminhar bem, rumo ao rosto de Deus; e depois porque se escuta amado pelo Pai, escuta as palavras que cada filho gostaria de ouvir dizer a si; e está feliz porque está a falar dos seus sonhos com os maiores sonhadores da Bíblia, Moisés e Elias, o libertador e o profeta; porque tem junto a si três jovens que não compreendem grande coisa, mas que ainda assim lhe querem bem, e o seguem há anos, para todo o lado.

Também os três apóstolos veem, emocionam-se, estão atordoados, escutam o impacto da felicidade e da beleza sobre o monte, algo que lhes tira o fôlego: que belo contigo, rabi! Veem rostos embebidos de luz, olhos de sol, aqueles que notamos numa pessoa feliz: os teus olhos brilham!

Gostariam, os três, de congelar aquela experiência, a mais bela jamais vivida: façamos três tendas! Detenhamo-nos aqui sobre o monte, é um momento perfeito, o máximo! Há um Deus a fruir, a ser feliz com Ele.

Mas é uma ilusão breve, a vida não se pode deter, a vida é infinita e o infinito está na vida, normal, ferial, frágil e sempre a caminho. Não se pode conservar a felicidade dentro de uma campânula ou fechá-la dentro de uma cabana.

Quando a felicidade te é dada, milagre intermitente, desfruta-a sem medo, é uma carícia de Deus, um retalho de ressurreição, um mosaico de vida realizada. Aprecia e agradece. E quando a luz desvanece e desaparece, deixa-a ir, sem nostalgias, desce do monte mas não o esqueças, conserva e guarda a memória da luz que viveste.

Assim será para os discípulos quando tudo se fizer escuro, quando o seu Mestre for preso, encadeado, escarnecido, espoliado, torturado, crucificado. Como eles, também nós nos nossos invernos, será necessário buscar nos arquivos da alma os traços da luz, a memória do sol para neles apoiar o coração e a fé. Do esquecimento desce a noite.”

Ermes Ronchi
In Avvenire
Trad.: Rui Jorge Martins (Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura)
Publicado em 25.02.2021


Ninguém Nasce Cristão

PARAR PARA REPARAR

O cardeal Kurt Koch que preside ao Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos disse estas palavras numa conferência: «A pandemia do coronavírus transformou a quadragésima litúrgica [Quaresma] numa quarentena decretada pelo Estado. Agora é nossa tarefa transformar a quarentena numa verdadeira “quadragésima”, isto é, num tempo de jejum e caridade, num tempo de graça e de oração».

Hoje, Quarta-Feira de Cinzas, começa o nosso caminho para a Páscoa. É a Páscoa que nos põe a caminho, é por causa da Páscoa que somos convidados/exortados a fazer algumas opções diferentes nos nossos dias, para nos deixarmos refazer e recriar pela Páscoa de Cristo.

Este ano, como escreve José Frazão Correia, «A “quaresma religiosa” chega, pois, quando já estamos saturados de uma longa e rigorosa “quarentena civil”. Por isso, aquela não deveria chegar caída do céu, como se esta não estivesse a acontecer. O nosso quotidiano está transformado em estado de exceção que é verdadeiramente penitencial. Não será na quarta-feira de cinzas que daremos início a práticas penitenciais… Há quase um ano que estamos a fazer penitência, de forma tão rigorosa como possivelmente nunca fizemos em nenhuma quaresma passada. Por isso, mais penitências poderiam soar a voluntarismo alienado e a pastiche espiritual (…) Há um ano que a pandemia tem imposto as cinzas da penitência, tanto a crentes como a não crentes, sem distinção.»

Ou seja, este ano, precisamos de fazer um esforço ainda maior para chegarmos ao ‘centro’ da Quaresma, celebrarmos a ressurreição de Cristo e nos deixarmos ressuscitar por Ele e com Ele.

Continuando com palavras do teólogo José Frazão Correia, deixo aqui três propostas bem interpelantes e diferentes. Trata-se de parar para reparar. Três exercícios de reparação:

«Reparar nos/os sentidos

Olhar com mais atenção para entrever… Escutar com mais vagar, a começar por aqueles com quem falamos diariamente – a mulher, o marido, os filhos, o colega de trabalho – para pressentir o sentido no dito e do não dito de tantas palavras e de outros tantos silêncios… Há quem tenha ficado grávido só pela escuta. A escuta é boa terra. (…)

Reparar no/o bem possível

Precisamos também de sonhos largos, de grandes desejos. É bom que nos movamos e impliquemos na procura do bem maior. Sabe o povo, porém, que o ótimo é inimigo do bom. E os cristãos também sabem que Deus se identifica mais com o pequeno do que com o grande, mais com o mínimo do que com o máximo. (…)

Reparar no/o processo que somos

Somos processo lento de reelaboração do que somos. A vida e a fé são processo. Não são lugares parados que se ocupam e se repetem, acabados. São itinerários abertos que se percorrem. Por isso, têm sempre algo de imprevisível. Implicam o corpo, a mente, o espírito. E, mais uma vez, pedem tempo. (…)

Dito isto, a quaresma deste ano pode ser tempo particularmente propício para tirar proveito da penitência imposta pela pandemia e pelo longo estado de confinamento em que nos encontramos… Reparando no/o que temos em mãos – feridas, dor, angústias, solidões, luto, mortificações, renúncias – quem sabe se, tocados pelo amor de Deus que refaz em nós a confiança na vida, não chegaremos à graça da contrição interior e à confissão honesta dos desacertos da liberdade que poderemos reconhecer na difícil gestão de tanta matéria. A ser assim, a Páscoa do Senhor passará por outro caminho existencial, outro envolvimento do corpo, outra inteligência das coisas, outro calor do coração.»


Ninguém Nasce Cristão

Ninguém nasce cristão e tornar-se cristão dura a vida toda. Ninguém nasce cristão, tornamo-nos cristãos ao longo do(s) caminho(s) nas opções que fazemos.

Na encíclica ‘Todos Irmãos’, o papa Francisco parte da parábola do ‘Bom Samaritano’, para dizer claramente:

“existem simplesmente dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao largo; aquelas que se debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de ajuda e aquelas que olham distraídas e aceleram o passo. De facto, caem as nossas múltiplas máscaras, os nossos rótulos e os nossos disfarces: é a hora da verdade. Debruçar-nos-emos para tocar e cuidar das feridas dos outros? Abaixar-nos-emos para levar às costas o outro? Este é o desafio atual, de que não devemos ter medo. Nos momentos de crise, a opção torna-se premente: poderíamos dizer que, neste momento, quem não é salteador e quem não passa ao largo, ou está ferido ou carrega aos ombros algum ferido.” (FT, 70)

“O judeu Jesus inverte completamente esta abordagem: não nos convida a interrogarmo-nos sobre quem é o nosso vizinho, mas a tornarmo-nos nós mesmos vizinhos, próximos.” (FT, 80)

“Para isso, é importante que a catequese e a pregação incluam de forma mais directa e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos.” (FT, 86)

 

Devido a várias solicitações, estão reabertas as inscrições/renovações de inscrição na catequese.

Para todos aqueles que não conseguiram fazer a inscrição/renovação de inscrição na catequese durante o mês de julho, podem fazê-lo agora através do seguinte link: https://forms.gle/avtnaBRaU9eu2Mz29


Ninguém Nasce Cristão

É muito conhecida e citada a frase de Tertuliano, logo no século IV, que diz que ‘ninguém nasce cristão, tornamo-nos cristãos’. Dizia também, há poucos dias numa entrevista o padre Anselmo Borges: ‘a fé não é uma herança pessoal, é um combate’.
Sim, mesmo tendo sido baptizados em bebés, ser cristão continua a ser uma opção radical de vida para seguir atrás de Jesus Cristo, acreditando que Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Do mesmo modo que, uma vez nascidos, nos vamos tornando adultos – homens e mulheres – uma vez nascidos pelo Baptismo, somos também chamados a tornarmo-nos adultos na Fé. Quer dizer, a tornar consciente e a ter presentes todas as ‘consequências’ dessa escolha, dessa opção de vida.
Trata-se de um longo caminho, de um forte combate, de um caminho que dura a vida toda. À medida que vamos crescendo, as questões e as exigências vão mudando; e à medida que vamos aprofundando a Fé, entrando no Mistério, também vamos percebendo melhor o que nos é oferecido e nos é pedido. O Dom de uma Conquista, como diz o título feliz de um livro sobre o livro do êxodo: a liberdade, aquele caminho pelo deserto, para a liberdade, é um imenso Dom, mas não dispensa a Conquista, a luta de cada dia para continuar, como nos mostra o primeiro Israel. A Fé é um dom, uma Graça infinita, mas tem de ser ‘trabalhada’, mas temos de nos deixar ‘trabalhar’ por ela. Temos de nos deixar ‘moer’ no lagar ou na mó da fidelidade e da entrega – como Cristo.
O Fé é muito mais exercício do que cosmética. Melhor, a Fé é só exercício, não é nada cosmética, par usar uma expressão que ouvi. E deste exercício – para nos mantermos em forma – fazem parte muitas coisas, desde logo a prática dominical, que será sempre a melhor ‘escola’ da Fé. Aí somos ensinados pelo próprio Cristo. E não há melhor Mestre, ainda que sempre exigente. Mas respeitando também sempre a nossa liberdade.
Como sabemos, apesar de ser uma das insistências da Igreja, a começar pelo papa Francisco, a necessidade de formar e aprofundar continuamente a Fé não é sentida pela grande maioria dos baptizados. E no entanto, como dizia Galileu, para sermos capazes de anunciar, hoje, a Fé – a começar em casa, pelos filhos, ou no trabalho, pelos colegas – com uma mente aberta e dialogante, sem medo nem ingenuidades ignorantes, temos de a tornar mais
inteligente. Quero dizer, temos de entender melhor o que acreditamos, em quem acreditamos, o que é essencial…
Não se pode amar aquilo que não se conhece. Não se pode acreditar (confiar) n’Aquele que não conhecemos.