Maré Alta

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A PORTUGAL
POR OCASIÃO DA
XXXVII JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
[2 - 6 DE AGOSTO DE 2023]

ENCONTRO COM OS VOLUNTÁRIOS DA JMJ

DISCURSO DO SANTO PADRE

Passeio marítimo de Algés
Domingo, 6 de agosto de 2023

Queridos amigos, boa tarde! E obrigado!

Obrigado ao Patriarca de Lisboa pelas suas palavras, a D. Américo Aguiar e a todos vós por terdes trabalhado tanto e bem: tornastes possível estes dias inesquecíveis! Trabalhastes meses a fio, de forma escondida, sem alarde nem protagonismo, para que pudéssemos encontrar-nos todos aqui a cantar juntos: « Jesus vive e não nos deixa sós: não mais deixaremos de amar». E não só! Fostes um exemplo, porque vos unistes para trabalhar em grupo. Mais do que trabalho, o vosso foi um serviço, obrigado!

Um serviço semelhante ao prestado pela Virgem Maria, que «Se levantou e partiu apressadamente» (Lc 1, 39) para servir a prima Isabel, sentindo urgência de partilhar a alegria no serviço; partilhar a alegria e o serviço, a alegria no serviço. Pensemos em Zaqueu, que, para ver Jesus, sobe a uma árvore e de lá desceu apressadamente. Qualquer coisa lhe tocara dentro, queria encontrar Jesus e acolhê-Lo na casa dele (cf. Lc 19, 6); pensemos nas mulheres e nos discípulos que, na Páscoa, correm do túmulo até ao Cenáculo a fim de anunciar que Cristo ressuscitou (cf. Jo 20, 1-18). Quem ama não fica de braços cruzados, quem ama serve, quem ama corre para servir, corre empenhado no serviço aos outros. E vós correstes, e muito, nestes meses! Eu pude ver-vos apenas nos momentos finais, nestes dias, e observei como dáveis resposta a inúmeras necessidades, às vezes com o cansaço impresso no rosto e outras um pouco esmagados com as urgências do momento, mas sempre notei uma coisa: que tínheis os olhos luminosos, luminosos pela alegria do serviço. Obrigado!

Vós tornastes possível este encontro mundial da juventude, fizestes grandes coisas sem vos negar a gestos pequeninos, como a garrafa de água oferecida a um desconhecido. E isto cria amizade. Correstes tanto, mas não com aquela corrida frenética e sem meta que às vezes carateriza o nosso mundo. Vós correstes doutra maneira: fizestes uma corrida que leva a encontrar os outros para os servir em nome de Jesus. Vós viestes a Lisboa para servir e não para ser servidos. Obrigado, muito obrigado!

E agora quero eu servir-vos de amplificador, para que ressoe mais além tudo aquilo que nos disseram os testemunhos, os testemunhos de Clara, Francisco e Filipe. Os três falaram-nos dum encontro especial com Jesus. Lembraram-nos que o encontro mais belo, o motor de todos os outros, aquele que faz mesmo caminhar, que faz a vida avançar, é o encontro com Jesus. O encontro mais importante da nossa vida. Renovar dia a dia o encontro pessoal com Jesus é o coração da vida cristã. E deve ser renovado todos os dias para manter vivo o desejo do mesmo não só na cabeça, mas também no coração. Experimentámos que um pequeno «sim» a Jesus pode mudar a vida; mas também o «sim» dito aos outros nos faz bem, quando tem em vista o serviço. No momento do cansaço, retomastes coragem e continuastes para diante dizendo «sim» prontos a servir os outros. Obrigado por isso!

E tu, Francisco, disseste que aqui encontraste qualquer coisa que precisavas e nem sequer a procuravas. Caminhando, trabalhando e rezando com os outros, compreendeste que não te podias deixar agrilhoar pela desordem, pelo «leito desarrumado» do passado, nem viver com o coração atormentado por sensações de pessoa inacabada; e foi-te oferecida, com a ajuda de Jesus e dos irmãos, ocasião para reorganizar «o quarto» da vida. Pôr ordem na vida é bom: esta Jornada é útil, ajuda muito a pôr ordem na vida. Mas porquê? Graças à Jornada? Não, graças a Jesus, que está aqui no meio de nós e Se nos revela. Para colocar a nossa vida em ordem, não bastam coisas, não ajudam distrações, não serve dinheiro. O que é preciso é dilatar o coração. E se alargardes o coração, colocareis ordem na vossa vida. Não tenhais medo! Dilatai o vosso coração.

E por fim tu, Filipe, entre tantas coisas bonitas que partilhaste, disseste uma que quero sublinhar. Disseste que viveste aqui um duplo encontro: um encontro com Jesus e um encontro com os outros. Isto é muito importante: o encontro com Jesus é um momento pessoal, único, que só até certo ponto se pode descrever e contar, mas sempre tem lugar graças a um caminho feito com os outros, feito por meio da intercessão de outros. Encontrar Jesus e encontrá-Lo no serviço aos outros.

Amigos, para terminar quero deixar-vos uma imagem. Como sabem muitos de vós, existe a norte de Lisboa uma localidade – Nazaré – onde se podem admirar ondas que chegam aos trinta metros de altura tornando-se uma atração mundial, especialmente para os surfistas que as cavalgam. Nestes dias, também vós enfrentastes uma verdadeira onda, não de água, mas de jovens, jovens como vós, que afluíram a esta cidade. Mas, com a ajuda de Deus, com tanta generosidade e apoiando-vos mutuamente, conseguistes cavalgar esta grande onda. Cavalgastes esta grande onda: sois mesmo corajosos! Obrigado! Quero dizer-vos: continuai assim, continuai a cavalgar as ondas do amor, as ondas da caridade, sede surfistas do amor! E esta é a tarefa que vos confio neste momento: que o serviço prestado por vós nesta Jornada Mundial da Juventude seja a primeira de tantas ondas de bem; cada vez sereis levados mais alto, mais perto de Deus, e isto permitir-vos-á ver duma perspetiva melhor o vosso caminho.

De novo obrigado a todos. Bom caminho! E, por favor, continuai a rezar por mim! Obrigado!


Maré Alta

OPINIÃO

Férias! Para que vos quero?

Rita Brito | 25 Julho 202 3| in Ponto SJ

As férias são um período fundamental na vida de qualquer criança, pois proporcionam inúmeras oportunidades de crescimento, aprendizagem e desenvolvimento emocional. Durante esse tempo, os mais jovens têm a possibilidade de explorar o mundo para além da escola e dos livros, expandindo a sua criatividade e horizontes (Milkie & Warner, 2011).

Em primeiro lugar, as férias oferecem um descanso necessário do stress e das demandas académicas. Assim como os adultos precisam de pausas para recarregar as energias, as crianças também beneficiam do afastamento das suas rotinas diárias. Isso permite que elas desfrutem de momentos de lazer e brincadeiras, contribuindo para uma saúde mental equilibrada (American Academy of Pediatrics, 2013).

Além disso, as férias são uma excelente oportunidade para que as crianças aprendam novas competências e desenvolvam os seus interesses. Elas podem envolver-se em atividades diversificadas, como acampamentos, aulas de arte, desportos ou participar em programas de voluntariado (este ano temos as Jornadas Mundiais da Juventude!). Essas experiências enriquecedoras auxiliam o crescimento pessoal e a construção de valores importantes, como trabalho em equipa, responsabilidade e empatia, competências que serão da maior relevância na vida adulta (American Academy of Pediatrics, 2013).

Outro ponto crucial é que as férias proporcionam momentos preciosos em família. Muitas vezes, devido ao ritmo acelerado da vida moderna, os pais têm pouco tempo para passar com os seus filhos durante o ano letivo. As férias são uma oportunidade única para fortalecer os laços familiares, criar memórias duradouras e nutrir um relacionamento saudável entre pais e filhos.

Além disso, ao viajar para novos locais durante as férias, as crianças são expostas a diferentes culturas, tradições e idiomas. Essa exposição ao mundo exterior ajuda a ampliar as suas perspetivas e a fomentar uma mente aberta e tolerante (Griffin et al., 2010). Compreender e apreciar a diversidade cultural é fundamental para a formação de cidadãos globais responsáveis.

Não obstante, é importante salientar que as férias não precisam de ser sempre recheadas de atividades planeadas. Momentos de descanso e tédio também são valiosos para o desenvolvimento infantil. Sim, tédio! Quando as crianças têm tempo livre e não estão constantemente ocupadas, a sua criatividade é estimulada, permitindo que explorem a sua imaginação e criem soluções para problemas quotidianos.

Resumindo, as férias desempenham um papel essencial na vida das crianças, proporcionando benefícios físicos, emocionais e intelectuais. Elas contribuem para o crescimento pessoal, a aprendizagem de novas competências, o fortalecimento dos laços familiares e a compreensão do mundo ao seu redor. Como pais, educadores e sociedade, devemos valorizar e garantir que as crianças tenham acesso a esse período tão importante das suas vidas.

Referências:

American Academy of Pediatrics (2013). The Importance of Family Vacations. Pediatrics, 132(6), 1186-1188.

Griffin, J., McStay, R., & Deery, M. (2010). Holidaying with Children: A Postmodern Perspective. Annals of Leisure Research, 13(3), 457-477.

Milkie, M. A., & Warner, C. H. (2011). Classroom Learning and the Experience of Leisure: A Study of Children’s After-School Time. Leisure Sciences, 33(3), 271-289.


Maré Alta

OPINIÃO

FÉRIAS COM DEUS

Férias de Deus ou com Deus?

Rita Baldaque | 19 Julho 2023 | in Ponto SJ

O tão aguardado verão já chegou!

Santa Teresa de Ávila dizia que “Por entre as panelas, também anda o Senhor”; eu diria que também na praia, com os pés na areia, na confusão das bagageiras cheias, nos beijos salgados, nos gelados comidos nas esplanadas, no descanso numa toalha ao sol, na leitura de um livro, num passeio de barco…também anda o Senhor.

A maioria de nós gosta desta estação do ano. O calor dos dias soalheiros e compridos faz as maravilhas dos veraneantes, mas o mais desejado são as merecidas férias por que se ansiou o ano inteiro.

As férias são consideradas um direito inalienável de qualquer trabalhador, algo que é de cada um e que não pode ser cedido a outro. É o reconhecimento de que um tempo de paragem nas rotinas laborais ou estudantis é essencial, terapêutico e benéfico para o próprio e, consequentemente, para a sociedade.

As férias são uma necessidade e uma graça, são sinónimo de lazer, de divertimento, de descanso e entretenimento prazeroso. Surgem muitas vezes associadas a sentimentos de saudades, do que vivemos na infância ou noutro passado feliz, são momentos que gostamos de guardar na memória, são tantas vezes as lembranças que fazem com que os anos passados sejam diferentes uns dos outros. Permitem-nos a construção da nossa história, de lembranças, de acontecimentos que ficarão guardados numa sucessão feliz de recordações.

Mais do que qualquer outra coisa, as férias são um tempo que nos é propiciado para que possamos sair da rotina a que somos sujeitos no decorrer nas nossas vidas.

É a oportunidade que temos de fazer o que não costumamos fazer, de estar onde normalmente não estamos, de estar com quem é importante na vida de cada um e a que o quotidiano nos limita na possibilidade de sermos presença.

Neste sentido, estar de férias é conseguir encontrar o equilíbrio que não tivemos desde as do ano anterior. Cada um sabe o que lhe faltou, o que gostava de ter feito mais, do que precisa na sua vida e descurou. Todos temos necessidades e gostos diferentes. Para uns estar de férias é o contraponto à correria dos dias que impossibilita a leitura de um livro, um passeio à beira mar, uma noite de observação do céu estrelado ou de um pôr-do-sol…para outros pode ser viajar para outro país e usufruir da sua cultura.

As férias são a oportunidade de nos demorarmos na beleza do que nos faz sentir bem. Para um professor, férias podem ser uns dias no silêncio e no recolhimento da família nuclear; para um director de uma empresa pode ser a certeza de que pode “desligar-se” do escritório; para um agricultor podem ser uns dias passados no ritmo frenético de uma capital. É a procura efectiva do que se gosta, do que faz falta e estrutura.

É a possibilidade de escapar à rotina, de sair dos espaços onde nos movemos habitualmente, de conhecer novos lugares. Podemos escolher sempre o mesmo destino ou procurar sistematicamente lugares novos; podemos sentir-nos bem na euforia de uma noite em Ibiza ou na tranquilidade de um Monte no Alentejo; porque de verdade as nossas escolhas de destinos são o reflexo das nossas necessidades e possibilidades. “Cada um pertence ao lugar onde se sente livre”.

As férias são uma oportunidade de dedicar tempo a quem gostamos. Pode ser a nós mesmos, à família, aos amigos, aos outros…Posso precisar de momentos de solidão, posso querer viver a riqueza que é o tempo passado em família (que é normalmente a mais lesada com a ausência e correria do quotidiano); posso querer estar com os amigos de uma vida ou com alguém que não vejo há anos, posso querer usar o meu tempo ao serviço dos outros (temos, este verão, a oportunidade única e irrepetível de nos pormos ao serviço das Jornadas Mundiais da Juventude),… Quer seja numa doação de tempo a mim ou aos outros, esta deve ser feita consoante as necessidades e possibilidades de cada um e sem culpabilidades.

Para quem Deus e a relação que tem com Ele é importante, as férias são a oportunidade perfeita de encontro. Que Deus nos procura, que vem incessantemente ao nosso encontro, é algo que é do conhecimento geral de um crente. As férias podem ser a nossa resposta fiel, a procura efectiva de Jesus, com tempo e qualidade, ao convite que nos é feito diariamente. Com a bússola do amor de Deus podemos orientar o nosso descanso, a nossa ação e até o ócio para aquilo que nos equilibra, que nos integra e estrutura.

Não precisamos de grandes feitos, basta-nos reconhecer a presença de Deus neste tempo de interrupção das rotinas, saber parar e contemplar a alegria, a paz e procurar o silêncio interior que nos permite passar da espontaneidade para a consciência.

Na praia, no campo, na piscina, rodeados de gente ou sozinhos, em casa ou de viagem aos antípodas, procuremos este silêncio que permite que o tempo abrande para que possamos desfrutar do que nos rodeia. Façamos com Deus o que habitualmente não fazemos, procuremo-Lo em lugares onde normalmente não esperaríamos encontrá-Lo, estejamos com Quem é verdadeiramente importante.

Deus está à nossa espera nestas férias! O que quer que façamos, onde quer que estejamos, é aí que Ele nos quer encontrar.

Com os pés na areia e com os olhos no céu, não tiremos férias de Deus, mas com Deus!!!


Maré Alta

O hoje da Galileia é Lisboa! Lá o vereis!

D. Antonino Dias, Diocese de Portalegre-Castelo Branco | 16 Julho | in Ecclesia

A JMJ é a paz em movimento por entre continentes, povos e culturas, num intercâmbio sem igual de experiências e dons. Ao seu jeito, com o ‘idioma da proximidade’ e da alegria, os jovens fazem ecoar – hoje! -, aquela feliz notícia da radiosa manhã de Páscoa: “Nós vimos o Senhor!” (Jo 20, 25). Ele ressuscitou, está vivo, ide anunciar uns aos outros que Ele vai à vossa frente para a Galileia, lá o vereis! (cf. Mc 16, 7). Nestes dias que se aproximam, o ‘HOJE’ da Galileia é Lisboa, lá o vereis!

“Eu não acreditarei”, dirão os que, como Tomé, exigem ver e tocar. Jesus, com amizade e compreensão, disse a Tomé: “Tu acreditaste porque viste. Felizes os que hão de acreditar sem terem visto” (Jo 20, 29). Estamos entre aqueles que acreditam sem terem visto, somos felizes por isso! O Senhor está vivo e faz-se encontrado por todos quantos, sem medo e com fé, lhe escancaram as portas do coração! Com eles estabelece uma amizade tão forte que a todos dá a sua paz e responsabiliza, em todos confia e a todos envia, em seu nome, pelos caminhos do mundo e da história, a ensinar o que Ele disse e fez, porque é que o fez e disse. Como o mundo seria diferente se todos o quisessem saber e viver!

Animada pelo Espírito que a todos congrega e acompanha, a JMJ é uma assembleia constituída por gente muito para além de “partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egito e das regiões da Líbia vizinha de Cirene, colonos de Roma, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes” (cf. At 2, 5-11). É uma assembleia muitíssimo maior do que essa. São milhares e milhares de jovens provenientes de cento e oitenta países a manifestar que amam a vida e gostam de viver na direção certa! E não são meros destinatários da Palavra, são os protagonistas por excelência, são eles que também anunciam e sentem o apelo que a Igreja, em nome de Jesus, lhes faz, a irem por todo o mundo a anunciar a Boa Nova que liberta e salva.

Ao ouvir e anunciar Jesus, ninguém está fora de si nem “embriagado com vinho doce”, como, ‘admirados e perplexos’, alguns afirmaram naquela manhã do Pentecostes quando ouviam falar os apóstolos nas suas próprias línguas (At 2,13). Quem se deixa inundar pelo Espírito, sempre canta e louva as maravilhas de Deus de forma incrível! E ninguém melhor do que os jovens o sabem fazer! Em Lisboa, todos entenderão o anúncio do Ressuscitado na sua própria língua! O Espírito Santo é dom do Ressuscitado destinado a todos os homens, a todas as nações e em todos os tempos. A sua missão tem valor de universalidade no tempo e no espaço. Os que se deixam transformar pela Boa Nova e pelo Espírito Santo aprendem e falam uma linguagem que todos compreendem: é a linguagem do amor e da ternura, a linguagem que faz com que todos tenham um só coração e uma só alma e se amem uns aos outros como Cristo nos amou e ama. É uma linguagem semelhante àquela lalação entre a mãe e o seu bebé, uma linguagem que não precisa de intérpretes, ambos se entendem de forma tão extraordinária e tão bela que vivem e convivem confiantes e felizes.

Sendo uma peregrinação de fé, são os jovens, os menos jovens, as pessoas de boa vontade e todos os voluntários que rezam, estimulam, apoiam e trabalham em prol do êxito da JMJ, que, numa experiência sem igual da catolicidade da Igreja, sem barreiras de origem, raça e cultura, se sentem missão na pista do que dá significado e sentido à vida e às coisas da vida: Jesus Cristo!

Com vitalidade, dinamismo e entusiasmo, toda esta gente de boa vontade testemunha ao mundo o que é que a faz correr em direção à JMJ, mesmo que por entre muitos sacrifícios e algum sofrimento, renunciando ao supérfluo e optando apenas pelo essencial e prático, impondo-se austeridade e exigência pessoal. O que a todos faz correr não é uma motivação semelhante à da Rainha de Sabá que veio dos confins do mundo só para ouvir a sabedoria de Salomão (Mt 12,42). Não correm para ver uma cana agitada pelo vento ou um homem vestido com roupas finas (Lc 7, 24-25). O que os traz a Lisboa é uma razão tão forte e tão envolvente que não se pode comparar seja ao que for. É a presença do Senhor, o Rei do Universo, o princípio e o fim. Ele está no meio de todos, como aquele que serve e ensina a servir. É a centralidade da JMJ na pessoa de Jesus e na sua Palavra, uma Palavra sempre atual e atuante, feita caminho, verdade e vida.

Logo após o seu nascimento, o homem começa a trepar o caminho do tempo e do espaço da sua existência. A peregrinação simboliza isso mesmo. Desde Adão até hoje, a peregrinação é uma constante, às vezes por caminhos errados, é certo. No entanto, mesmo que, por vezes, seja por caminhos errados, eles podem transformar-se num sério momento para reconsiderar e regressar à casa do Pai, em busca daquele abraço apertadinho que acolha, perdoe e console.

Essa é a certeza que anima a nossa esperança! Deus nunca nos abandona nem nos mostra cara de vinagre. De braços abertos para nos abraçar, sempre aguarda o regresso em liberdade do filho pródigo. Não faz perguntas, não censura, fica feliz pelo reencontro, cura as feridas, faz festa, integra e ama sem preconceitos, aponta caminhos que libertam e salvam. Os jovens e as pessoas de boa vontade que têm a graça de participar ou acompanham à distância a JMJ, testemunham a sua comunhão na grande peregrinação que Cristo, a Igreja e a humanidade continuam a realizar através da história em direção à ‘Tenda do Encontro’, à cidade futura e permanente. Nesta caminhada, devemos apostar sempre na fidelidade, na formação, no amor fraterno, na vida comunitária e no serviço.


Maré Alta

Entrevista

Armindo Vaz, padre e biblista: “A catequese, quando não é bem feita, pode gerar ateísmo”

Maria do Sameiro Pedro | 2 Jul 2023 | in 7 Margens

“A exegese bíblica pode ser feita à medida da capacidade de cada um”, diz o padre Armindo Vaz, biblista, autor de O Sentido Último da Vida Projectado nas Origens (ed. Carmelo), obra em que retoma a sua tese de doutoramento, numa edição refundida e atualizada. Padre carmelita, ordenado em 1969, é professor da Universidade Católica Portuguesa desde 1978, depois de ter feito a formação filosófica em Vitoria, Espanha (1963-65) e ter completado, em Roma, em 1965 e 1973, as licenciaturas em Teologia Dogmática e em Ciências Bíblicas.

Afirmando que “os autores bíblicos não estavam a pensar em contribuir para uma minibiblioteca”, Armindo Vaz partilha, nesta entrevista, o seu vasto saber bíblico, insistindo na importância da formação e do estudo. A conversa surgiu, aliás, por ocasião do encerramento do Curso Bíblico que congregou várias dezenas de pessoas em torno das questões da hermenêutica e da exegese bíblicas desde outubro de 2022 [ver outro texto no 7MARGENS]. Nesta conversa são objeto de reflexão a hermenêutica e a exegese bíblicas, a formação dos leigos e o exercício de Ministérios Laicais… bem como a Mística.

7MARGENS – Para começo de conversa, estou curiosa: que motivação tem um especialista em Teologia Bíblica – portanto, um formador altamente especializado – para realizar um curso bíblico destinado a alunos leigos?

PADRE ARMINDO VAZ – Sinto grande motivação para aceitar e ministrar este curso a leigos que já têm alguma formação cristã e bíblica, mas que quiseram aprofundar a educação da sua fé. Aceitei bem, e eu próprio me senti entusiasmado, porque, desde sempre, sentia gosto em aprofundar os temas da interpretação da Sagrada Escritura, procurando situar os textos no seu contexto próprio e próximo, cultural, literário, histórico, religioso, para que assim cada texto bíblico pudesse respirar bem no seu campo e no contexto em que nasceu – por parte do autor que o escreveu há dois mil anos ou há 2700/2800 anos, para o caso dos textos do Antigo Testamento.

7M – Como texto literário que é, mesmo na sua origem…

Exatamente, porque texto literário é o texto bíblico. Não é propriamente um texto de história, não é um texto de geografia, não é um texto de cosmologia ou de botânica, embora fale de todas estas questões. Mas não é um texto de ciências. Tem uma perspetiva própria, tem o seu ponto de vista próprio, que é o ponto de vista religioso, da fé. Aqueles textos – sentia, sempre senti e sinto – nasceram de uma vida com sentido, a dos seus autores, para darem sentido à vida. E, portanto, essa é uma operação hermenêutica, indispensável, a da interpretação com rigor.
Isso sempre o senti, por um lado, mas, por outro lado, e ao mesmo tempo, eu sempre sentia que os textos bíblicos não tinham sido escritos por académicos, nem por técnicos de literatura ou bons conhecedores das ciências. Os textos bíblicos foram escritos por pessoas que sentiam necessidade de comunicar a sua fé a outras pessoas.

7M – E que muitas vezes já eram herdeiros de tradição oral.

Sem dúvida! Herdeiros! Até podemos dizer que, do ponto de vista antropológico, todo o ser humano é um herdeiro. Mas, do ponto de vista religioso e no caso do povo bíblico, é verdade o que diz. Temos ali uma herança riquíssima. Sentia-se a necessidade de a transmitir de pais a filhos, através das gerações, como se exprimem os textos bíblicos, até à quarta ou à quinta geração. Isso é uma das grandes ideias da tradição bíblica: a transmissão da fé.

Esta acontecia, em primeiro lugar, na vida, na família, mas também no culto, na escola, etc.. Os próprios autores bíblicos também sentiram necessidade de transmitir, realizando assim uma tarefa que depois se reconheceu como não só providencial, mas também fundamental. Foi a tarefa de nos legarem o mais precioso que o povo bíblico nos deixou, a nós e à história da humanidade: a sua Bíblia. Provavelmente, pelo menos na sua maioria, os autores bíblicos, quando escreviam, não estavam a pensar em contribuir para a minibiblioteca que é a própria Bíblia, que são 73 livrinhos. Eles não teriam essa preocupação. A verdade, porém, é que, querendo ou não querendo, deixaram-nos um legado tradicional, religioso, cultural e mesmo histórico sem paralelo nas religiões antigas.

7M – No fundo, foi uma obra feita de um conjunto de fragmentos, não havendo, à medida que foi feita, essa visão de conjunto…

Isso mesmo. Porque outros escritores pertencentes aos povos circunvizinhos no Antigo Próximo Oriente – desde o Egito, passando pela Síria, a Ásia Menor e a Mesopotâmia Antiga, onde estavam a Síria, a Babilónia e vários povos e culturas que se foram sucedendo ali naquelas geografias – outros povos também nos deixaram muitos textos. Mas neles não sentimos tão clara a conexão (não só do ponto de vista literário, mas também do ponto de vista histórico, cultural e religioso) entre os vários temas, como notamos na Bíblia.

Os outros povos, o Egito, os Assírios, os Acádicos, os Babilónios, deixaram-nos muitos textos preciosos, e muitos deles constituem interessantes paralelos, tão úteis para compreender melhor os textos bíblicos. Mas nota-se ali a falta de uma articulação, quase ao pormenor, entre acontecimentos e acontecimentos, entre tradições e tradições, entre, por exemplo, faraó e faraó. Coisa que temos na Bíblia.

A Bíblia não é um livro de história, nem um livro de cultura. Mas está cheia de cultura, está cheia de história. E os autores bíblicos, realmente – nós até podemos dizer isso – fizeram uma história: a do povo bíblico. Ou, do ponto de vista religioso, legaram-nos uma história sagrada: a história do povo bíblico. Não é história propriamente dita, como é a historiografia, onde se apuram os factos e onde se depuram os acontecimentos com sentido crítico. Isso não temos na Bíblia, mas temos lá uma história, que é interpretação da história.

7M – E também tem um valor documental desse ponto de vista, como toda a literatura tem.

Com certeza que tem, porque pelo facto de ser uma história interpretada teologicamente, pelo facto de ser história sagrada, não deixa de ser uma história. Não é historiografia. Porque ali os factos e os acontecimentos objetivos estão narrados do ponto de vista da história salvífica, de uma história religiosa. Portanto, pelo interesse inerente a tudo isto, é que eu senti também a necessidade e a importância de passarmos essa tradição, essa cultura, essa religiosidade para as pessoas da Igreja, responsáveis vários cargos na Igreja ou para os simples leigos, que procuram aprofundamento da fé.

Os textos bíblicos – que não são ciência – podem iluminar a fé de todas as pessoas. Eles foram escritos para qualquer pessoa que queira dar sentido à sua vida. Por isso é que eu sinto a necessidade de transmitir os conteúdos da fé bíblica para as pessoas que nela queiram nela penetrar um bocadinho mais. E conforta-me saber que mais de 150 pessoas se inscreveram neste curso.

7M – Quer dizer que considera que a hermenêutica e a exegese bíblicas são para todos?

Considero que o texto bíblico é um texto situado. Os textos bíblicos são textos datados. Surgiram em determinados tempos históricos que abrangem vinte séculos, isto é, desde Abraão, lá pelo século XVIII a.C., até ao início do século II d.C. Portanto, os textos bíblicos, embora tivessem sido escritos só no espaço de uns dez, onze séculos, isto é, desde o século X, tempo de David e Salomão, até ao início do século II d.C., mesmo assim falam de uma história que começa já com Abraão.

Considero que eles devem ser compreendidos para desentranharmos o conteúdo próprio de cada texto. E isso requer, como estava a dizer, alguma hermenêutica. Na prática, alguma exegese bíblica. Que agora pode ser feita à medida da capacidade de cada um.

Claro, eu faço essa exegese dos textos bíblicos à minha medida. Mas as pessoas podem interpretar, compreender o texto à sua medida, contanto que seja da forma adequada, mesmo que não seja muito aprofundada, como pode fazer um técnico de exegese bíblica. O importante é que a pessoa consiga perceber qual é o sentido original que o autor queria comunicar ao escrever aquele texto. E isso, a pessoa consegue fazê-lo.

7M – Pode concretizar?

Por exemplo, na parábola do Pai Misericordioso ou parábola do Filho Pródigo. Qualquer leitor consegue descobrir nela ricos conteúdos. Consegue perceber que há ali uma grande carga de amor, de misericórdia, de ternura, de afeto igual de um pai para com seus filhos. E enquanto disser assim, por exemplo, um leigo, está a dizer o sentido correto que o texto dessa parábola queria comunicar quando foi escrito. Sem dúvida.

O que eu me proponho com este curso gostaria de ir mais longe: entrar dentro dessa parábola e fazer perguntas a partir de dentro do texto. Porquê um pai? Porquê dois filhos? Porquê dois filhos e não três? Isso até seria interessante, não é? Três é um número bíblico interessante, sugestivo. Porque não três filhos, mas só dois? Ora, eu quero chegar a esse ponto: levar as pessoas a interrogarem-se e, então, a perceberem a razão pela qual são dois filhos. Mais ainda: porque é que o texto da parábola diz que um é mais velho e o outro é mais novo? Procure descobrir. Vê, isso é exegese. E a exegese vai ajudar a enriquecer o tesouro que o leitor consegue descobrir e retirar dessa parábola.

7M – É muito mais do que ficar sensibilizado com a própria beleza do texto.

Exatamente. A beleza literária do texto já fala, sim. Já diz muito. Mas podemos ir mais longe, mais fundo ou mais alto. É aí que quero chegar: levar as pessoas a fazer exegese.

7M – Mas perceber o que o texto dizia na altura em que foi escrito, para um leigo, é uma grande dificuldade.

Essa é a maior dificuldade. Esse deve ser um grande objetivo de um curso de Introdução Geral à Bíblia: levar os eventuais leitores a perceberem qual era o sentido original do texto. O que é que o texto queria dizer quando foi escrito? A outra operação, o segundo momento hermenêutico, é o que o texto quer dizer agora para mim.

7M – E estes aspetos são relevantes se pensarmos nas exigências que estão envolvidas nos ministérios laicais de leitor e de catequista, não é verdade?

Com certeza. Porque, já no ministério laical de leitor, a compreensão, o mais cabal possível, do texto, ajuda o leitor a ler bem: não propriamente a pronunciar bem, mas a ler com sentido. Perceber o sentido do texto que se está a proclamar, por exemplo, numa liturgia, faz com que o próprio leitor proclame com outro tom e quase comunique um bocadinho do sentido do texto aos participantes na assembleia litúrgica.

Essa compreensão do texto por meio de alguma exegese é particularmente útil para os catequistas: eles são os primeiros a contactarem com as pessoas fora do âmbito da família. Claro que os primeiros catequistas das crianças são os próprios familiares, idealmente. Era assim, por exemplo, no povo de Israel. E, ainda hoje, assim pode ser na família. Mas fora do âmbito da família, os primeiros que, por assim dizer, tocam na fé, na sensibilidade religiosa das crianças, são os catequistas.

7M – Que tem uma função importante…

O catequista tem uma função que quase me atreveria a chamar função primordial, porque vai às origens da vida da criança. Tudo o que diga à criança vai influenciá-la de forma profunda. E é por isso que nós até conhecemos pessoas, por exemplo padres ou professoras que dizem, por vezes com orgulho, “A melhor mestra de religião que eu tive foi a minha catequista” ou “O melhor professor de religião e moral que eu tive foi a minha catequista, foi o meu catequista”.

O catequista toca na fé da criança logo desde o princípio, quando ela está completamente disponível. Por isso, temos de ter muito cuidado com aquilo que o catequista ou a catequista ensina. Precisaria de boa formação catequética. E não é esse geralmente o caso, infelizmente. Exceto poucas pessoas, poucos catequistas têm honrosamente essa formação.

7M – Que aprendizagem faz a criança? Ela recebe a fé, mas tem consciência disso? Adere por iniciativa sua ou toma o que lhe foi posto à frente?

A criança escolherá de acordo com a impressão que lhe causar o conteúdo que lhe é comunicado pelo catequista. Se os conteúdos que os catequistas transmitirem a impressionarem positivamente e se conteúdos fizerem sentido na vida da criança e a enriquecerem, então ela abre-se e acolhe.

Se os conteúdos não fizerem grande sentido, então aí não sei como é que reagirá a criança. Se até não será, por exemplo, com alguma rejeição. Se na catequese lhe comunicam conteúdos que não só não vão fazer sentido na vida dela, mas também não fazem sentido enquanto conteúdos, então eu não sei como é que reagirá.

Por exemplo: um eterno tema complicado na catequese, e também na teologia e também na eclesiologia, na vida da Igreja, etc., o famoso caso da chamada história de Adão e Eva, com tudo aquilo que ela implica. Eu não sei qual será a reação das crianças de 8, 10, 11 anos, quando os catequistas lhes dizem que “Adão e Eva” cometeram um pecado horrível – que o catequista não sabe explicar em que consiste –, e que, então, Deus os castigou, a eles e a todos os seus descendentes, ou seja, a toda a humanidade. Eu não sei como é que a criança vai receber estes conteúdos. Sobretudo se depois ela consegue descobrir que os textos bíblicos não falam de nenhum pecado no âmbito dessa narração.

7M – Exatamente.

Pôs o dedo numa ferida profundíssima, que tem mais de quinze séculos. É uma ferida ainda não curada, que sangra de vez em quando, e que continua a causar estragos nas pessoas que ouvem falar de cristianismo. Esses conteúdos fazem estragos, não só nas crianças que recebem a primeira catequese, mas até em adultos.

Efetivamente, uma comunicação dessas faz estragos tremendos, inimagináveis. Porque o adulto que recebe catequese já raciocina, já pensa com sentido crítico e faz perguntas e, se as perguntas não são condizentes ou proporcionadas à inquietação do catequizando, ele pode rebentar e, simplesmente, apear-se do comboio. Esta catequese, quando não é bem feita, bem fundamentada em textos bíblicos minimamente bem interpretados, pode gerar ateísmo, relativismo, indiferença em tantas pessoas que encolhem os ombros e dizem “Ah, é assim? Um Deus assim não o quero”.

7M – Isso faz pensar na urgência da formação. A diferença entre a formação desejável e a formação disponível é enorme; o que está disponível é muito pouco.

Disse bem. E muitas crianças não vão. Mesmo adultos, não vão.

7M – Mesmo para adultos, apesar do novo diretório para a catequese da Igreja Católica, tudo está orientado para a preparação dos sacramentos e cessam logo depois.

É assim.

7M – Até espanta que a fé se tenha mantido na mais completa ignorância, durante tanto tempo…

Isso é verdade. É muito interessante dizer isso. Como foi possível manter a fé, apesar de termos dito coisas que não encaixavam bem na chamada “analogia da fé”? Porque há ali estridências entre uma e outras afirmações de fé.

Por exemplo, não encaixa bem dizer que Deus é amor, suma misericórdia, infinita bondade, mas que ao mesmo tempo castigou toda a humanidade por causa do pecado de um casal. Vê? São coisas não coerentes. Encontramos algumas afirmações de fé que saem desta harmonia. E apesar de tudo, ainda temos tantos cristãos que se mantêm firmes na fé.

7M – A ação do Espírito Santo faz-se sentir?

É verdade. As pessoas veem para além da coerência, veem mais fundo do que as incoerências que alguns pontos da nossa teologia geram entre uma verdade e outra verdade cristã. As pessoas estão para além dessas pequenas incoerências geradas pela teologia, por teólogos que somos seres humanos e limitados. Mas, a verdade é que, então, temos de pôr toda a atenção em fundamentar as nossas afirmações teológicas na revelação bíblica. Para isso, é fundamental compreender bem a revelação bíblica.

7M – Sim, porque ser teólogo e fazer experiência de Deus… nem sempre uma coisa vai com a outra.

Pois, eu hoje diria assim.

“Nada te turbe / Nada te espante / Todo se passa / Dios no se muda / La paciencia / Todo lo alcanza / Quien a Dios tiene / Nada le falta / Solo Dios basta” (Teresa d’Ávila)

7M – Os místicos sabem mais disso?

Sim, é verdade. Em primeiro lugar, estão para além da teologia. Comungam muitas verdades da teologia, como essencialmente comungam da tradição da fé cristã que é aprofundada pela teologia. Sem dúvida. Santa Teresa de Ávila, grande mística e considerada como mestra dos cultores do espírito e dos místicos, tinha um grande apreço pelos teólogos. Ela deixava-se tratar e iluminar pelos melhores teólogos da sua época em Espanha. Estimava muito os que ela chamava ‘letrados’, que ela também dizia que deveriam ser simples e humildes.

Portanto, por um lado, sim, o místico comunga da teologia. Mas, por outro, está para além da teologia e podemos até dizer que ultrapassa a teologia. Porque enquanto a teologia bebe nas fontes da revelação, que são fontes escritas e fontes orais, o místico bebe diretamente na revelação. Claro que este “diretamente” tem de ter algumas aspas, porque nunca é diretamente que o místico acede ao divino: sempre há mediação, que é a mediação da fé. Mas o místico faz uma experiência do transcendente quase em direto, ou seja, entra em comunhão com o Divino e experimenta-o em primeiro grau.

7M – Santa Teresa era muito conhecedora da Sagrada Escritura.

Era, na medida em que lhe era possível. Ela tinha enorme desejo de ler a Sagrada Escritura – mas nunca teve uma Bíblia completa na mão. Podemos dizer com toda a segurança que ela não leu toda a Bíblia. Leu e devorava tudo o que podia.

Claro que um bocadinho de exegese teria ajudado, mas no tempo dela, no século XVI, não se conseguia ter uma metodologia com ferramentas hermenêuticas que pudessem contribuir para descobrir corretamente o sentido de determinados textos bíblicos. Poderia pegar, por exemplo, e sobretudo, em textos do Antigo Testamento. Já não digo nada, por exemplo, de textos como a epopeia do Êxodo, a epopeia da Ocupação da Terra Prometida, assim chamada, ou então as lendas das tradições patriarcais (Abraão, Isaac e Jacob). Não havia maneira de descobrir a forma literária de cada um desses textos e, portanto, dificilmente se percebia o sentido que cada um desses textos queria comunicar no tempo em que foram escritos.

7M – Era o possível no tempo…

Por exemplo, ela falava frequentemente de demónio. E com razão. Porquê? Porque aquilo a que ela chamava demónio pode fazer estragos na vida de fé de uma pessoa: são tentações diversas, que nos distraem, que nos levam para o mais fácil ou para o pior. E recomendava cuidado em não ceder perante as tentações do demónio. Ora bem, quando ela falava do demónio, estava a falar daquilo que hoje, segundo uma exegese aturada, nós temos de chamar diabo. Porque demónio é uma figura literária que corresponde a um conteúdo – portanto, a uma realidade –, que não se deve confundir com a outra realidade, expressa por outra figura literária, que é a que nós chamamos, e a que a Bíblia chama, diabo.

A Bíblia distingue claramente entre essas duas figuras, a do diabo, por um lado, e a do demónio, por outro. Demónio refere-se a males reais físicos, psíquicos ou psicofísicos: um epiléptico, um surdo-mudo, que no tempo de Jesus eram correntes. As pessoas viam e perguntavam: “Como é que se explica isto?”

7M – Não havia ciência que explicasse.

E designavam essa realidade (mal físico, psíquico ou psicofísico) com esse termo figurativo: demónio. Ao mal moral, isto é, ao mal perpetrado pelo ser humano contra outro ser humano, a Bíblia chama “diabo”. Corresponde também a uma realidade – e de que maneira! É a existência negativa de uma pessoa que torna mais negativa a vida de outra pessoa. A guerra é o diabo. Grupos que nasceram para matar são o diabo. Enquanto, por exemplo, uma pandemia é um demónio.

Santa Teresa não distinguia, não podia distinguir. No tempo dela, nem os teólogos distinguiam. E por isso Santa Teresa chamava à realidade inquestionável que é o mal moral com o nome usado pelos teólogos no seu tempo, claro. A exegese iria pôr precisão nesse tema. Hoje podemos fazê-la.

7M – Também na perspetiva de que o conhecimento e a inteligência não geram fé, mas a fé não os dispensa.

Diz bem. Também pode haver fé fora da competência na compreensão das Sagradas Escrituras. Pode, e nós temos aí o povo simples, a piedade popular, etc., que tem fé e que não sabe fazer exegese. Mas a exegese vai dar mais profundidade à fé, vai pensar a fé, onde nós estamos quase no limite de adulterar certas verdades da fé. A exegese vai lá pôr verdade, corrigindo a interpretação tradicional de certas expressões ou de certos relatos bíblicos. Por exemplo, os primeiros onze capítulos do Génesis, sobretudo esses, que ainda hoje não são suficientemente bem entendidos pela sociedade e pela tradição cristã em geral.

7M – O Papa Francisco tem feito muito isso nas suas catequeses.

Tem feito.

7M – E com muita gente a achar mal…

Também…

7M – Com a crise associada ao clericalismo na Igreja Católica, o conhecimento da Bíblia torna-se mais indispensável para que alguém seja capaz de exercer com responsabilidade o seu papel na Igreja?

Sem dúvida. Seria muito conveniente, para não dizer mesmo necessário, porque um leigo que ocupe um cargo com algum destaque social ou de representatividade na comunidade cristã, se não tem um mínimo de formação bíblica, pode deixar mal a Igreja, pode fazer pensar ainda mais nas limitações e na pobreza do exercício dos ministérios por parte da Igreja e dentro da Igreja. Por isso, seria de toda a conveniência que, se escolhemos ou nomeamos para determinados cargos dentro da Igreja certas pessoas, lhes déssemos formação, a melhor possível. A melhor possível.

Voltemos à catequese: não basta pedir que as pessoas que quiserem ser catequistas se apresentem no cartório para ver a que hora podem dar catequese. Haveria que ser mais rigoroso na seleção dos catequistas. Haveria que pedir-lhes formação em conteúdos religiosos, sobretudo bíblicos. Porque já sabemos que não há catequese sem Bíblia. Pelo menos não devia haver. A Bíblia hoje já está suficientemente presente na catequese. Está, sem dúvida.

Outra coisa é a competência por parte dos catequistas, que estão cheios de boa vontade e fazem o melhor por darem os melhores conteúdos às crianças na catequese. Dão o melhor de si mesmos, em tempo, em disponibilidade, até mesmo em bens. Tudo isso é fantástico, mas é preciso que essas pessoas tenham formação e, porque na catequese a Bíblia é fundamental, então eles têm de ter formação bíblica.

7M – O Papa Francisco, nas audiências-gerais, tem feito catequeses sobre a alegria da evangelização (iniciadas a 11 de janeiro). É uma forma de nos recordar o Decreto Apostolicam Actuositatem, do II Concílio do Vaticano, que tão bem explicita esse dever de todos os batizados?

Sim, claro. É verdade. O Papa Francisco, no nº 175 da exortação apostólica Evangelii Gaudium, fala precisamente sobre a necessidade da catequese e da formação bíblica na catequese. Tal também já tinha sido apontado na exortação apostólica Verbum Domini de Bento XVI (número 74 e seguintes).

O estudo da Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta para todos os crentes. É fundamental que a Palavra revelada fecunde radicalmente a catequese e todos os esforços para transmitir a fé. A evangelização requer a familiaridade com a Palavra de Deus, e isto exige que as dioceses, paróquias e todos os grupos católicos proponham um estudo sério e perseverante da Bíblia e promovam igualmente a sua leitura orante pessoal e comunitária.

Papa Francisco, EG, A Alegria do Evangelho, 175]

7M – No fundo, estamos aqui a procurar resposta à questão: como se forma um ser humano para a experiência de Deus? O Papa Francisco, na catequese de 13 de maio de 2020, sobre a oração, diz que “oração pertence a todos: aos homens de todas as religiões, e provavelmente também àqueles que não professam religião alguma”. Acrescenta que “o que reza em nós é o mistério mais íntimo de nós mesmos”. Portanto, esta experiência de Deus toca a todos os seres humanos. E essa também será uma perspetiva cristã, de olhar para a questão de que Deus veio para todos e Jesus veio para todos. Concorda?

Sem dúvida, isso é claro. Embora a experiência cristã seja específica dentro do concerto das religiões, ela comunga com as outras na medida em que todas elas dizem que todo o ser humano é, no seu fundo, religioso e que esse fundo religioso faz parte da essência, da identidade e, portanto, da definição de ser humano. Ou seja, poderíamos dizer que não definiríamos cabalmente o ser humano, se não disséssemos que ele é não só para o outro e com o outro, mas também para o totalmente Outro.

Não é por acaso que essa perspetiva aparece logo na primeira página da Bíblia, em que o ser humano é perspetivado como criado por Deus, ou seja, como provindo de Deus, como tendo sido feito por Deus, logo, para se relacionar com Deus. O ser humano aparece na Bíblia como um ser de relação. Nesse sentido, as antropologias mais recentes, a antropologia filosófica mais recente, dão a mão à Bíblia. Porque antigamente, quando estudávamos filosofia, definíamos o homem como um ser racional. Um animal racional.

7M – Mesmo com muitas provas de irracionalidade.

Exatamente. Um animal racional. Hoje não há nenhum filósofo, antropólogo, que aceite essa definição de ser humano. O ser humano é muito mais do que um animal racional. É um ser de relação: um ser com o outro e para o outro, em empatia com a própria Bíblia.

7M – Nas catequeses que o Papa Francisco fez sobre os mandamentos, ele começa logo por dizer que o decálogo são 10 palavras dirigidas por Deus ao homem para dialogar com ele.

Os mandamentos aparecem dados por Deus, como uma Lei de Deus para o ser humano, mas no âmbito da aliança de Deus com o ser humano, a chamada Aliança do Sinai. É aí, nesse contexto de amizade de Deus com o homem (no livro do Êxodo, capítulos 19 até 24) que se descreve a doação da Lei ao povo de Israel.

A aliança é de Deus. Ele é que a propõe ao povo: “queres fazer uma aliança? queres relacionar-te comigo? queres dialogar comigo? queres estar em comunhão comigo?”. E manda a Moisés que diga isso ao povo. E o povo respondeu, “sim, tudo aquilo que o Senhor disse, nós o faremos.” Resposta de Deus a Moisés: “Muito bem. Se quer, então tem aqui a minha vontade: dez palavras. Tem de amar os outros”. Já lá está no Antigo Testamento: Honra o pai e a mãe; Não matarás; Não roubarás; Não mentirás; Não farás mal a ninguém. Com isto ligava-se o Papa Francisco: é essa a vontade de Deus – que as pessoas se estimem umas às outras. O Novo Testamento dará ponto culminante a essa verdade, dizendo “amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”. E sugerindo que o ser humano estará mais completo quando procurar e encontrar Deus, diz que o encontra no mais íntimo de si próprio: é o Espírito Santo, que é «a lei do Espírito», a lei que é o Espírito, recebido no batismo e que inspira a pessoa por dentro, ditando-lhe o que deve fazer para ser melhor e para se realizar.


Maré Alta

OPINIÃO INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Precisamos de emoção e amor ou o elogio da incompetência

P. Miguel Neto | 21 Junho 2023 | in Ponto SJ

Com o acesso vulgarizado à Inteligência Artificial (IA), através do Chat GPT, ou de outras quaisquer plataformas semelhantes, conseguimos “fazer” tudo o que os outros precisam e gostam que nós façamos. Há alegria por sabermos qual o segredo e simplificação da receita mais elaborada de comida (eu já experimentei e houve quem gostasse), recebemos elogios por pensamentos, reflexões, textos e até belas orações e homilias (já testei e houve quem não se apercebesse e até elogiasse). Há a capacidade de falarmos e escrevermos para todos nas suas línguas e de acordo com o contexto do país, ou povo a que pertence a língua. Podemos criar negócios milionários e, agora, até vamos ter a IA a “salvar” pessoas ao serviço do atendimento de urgência do 112. A AI vem em força e para nos coadjuvar em tudo e, se preciso for, para trabalhar por nós!
Certamente, é mais fria e calculista na análise das situações e vai conseguir manter a serenidade, mesmo diante da maior catástrofe humana. Para além do mais, é isenta, prática, não faz acessão de pessoas de acordo com o seu estrato social, cor de pele, peso, local onde habita e habilitações literárias. Para a IA todos somos iguais. É obra de Deus? Sim, claro. Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança! E o Homem criou a IA à sua imagem e semelhança e tê-la-á dotado da sempre eterna e desejada, mas incompleta perfeição humana…
E como sinal dessa imperfeição, podemos facilmente observar algo que ela não percebe neste texto que acabo de escrever: a ironia. E mais do que a ironia, a IA, ao contrário das pessoas que me costumam ler, ou que se relacionam comigo, não será capaz de compreender que, desde a primeira linha eu não só estava a ironizar, como estava a ser sarcástico, que sempre foi um dos defeitos, dizem. A IA é inteligente, mas não é emocional, nem relacional e é por isso que nunca vai substituir o ser humano.
Não é “obra do demónio”, mas também não nos leva a Deus, porque Este não nos criou para sermos inteligentes, mas para amarmos e sermos amados. Criou-nos para o Amor. E o Amor é sempre imperfeito, sujeito aos vários estados de espírito e às circunstâncias de cada ser humano. A IA pode dar a melhor receita de bolinhos de amêndoa, mas nunca vai conseguir fazê-los como a minha mãe fez e ainda faz, quando pode, porque o toque especial que eles têm resulta, precisamente, do afeto que ela coloca no processo, pois sabe que toda a família considera especial aquela sua habilidade culinária. Pode saber escrever orações e homilias muito bem escritas e com belas sínteses, mas não consegue chegar ao coração de quem está a ouvir, porque não vê o olhar de cada homem e mulher, que, escutando o sacerdote, procura a resposta de Deus para a sua vida; não alimenta a oração com os textos, porque eles não contêm a experiência de Deus, a densidade da relação com Ele, própria de quem tem a capacidade, ainda que sempre limitada, de transpor para a escrita as alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias de quem O procura e Lhe agradece por tudo aquilo que sabe e não sabe na sua vida. A IA pode saber atender telefonemas no 112, mas não consegue entender o que significa, na verdade, o peso de uma mãe a gritar por ajuda para o seu filho doente, ou ferido e que isso terá uma dimensão diferente de alguém que pede ajuda para tirar o gato do telhado, ou perdeu a carteira.
O nosso problema é deslumbramo-nos com a inteligência – a nossa e aquilo que ela nos permite construirmos -, quando o que nos conduz a Deus e nos faz segui-Lo na relação com os outros é, precisamente, a emoção, o sentimento, o Amor. Dissertar sobre Deus pode ter-se tornado mais fácil. Segui-Lo e amá-Lo pode ser muito difícil, se não nos lembramos que a lógica de Deus é tantas vezes sinal de burrice para o Homens.
Vivamos, amemo-nos com a emoção de que quem sabe que Deus gosta de nós com as nossas incapacidades e imperfeições.


Maré Alta

Tolentino Mendonça alerta para ditadura dos algoritmos

7M/Agência Ecclesia | 27 Mai 2023

O cardeal português José Tolentino Mendonça disse sexta-feira, na sede da Universidade Católica Portuguesa (UCP), em Lisboa, que só uma “antropologia integral” pode defender a humanidade da ditadura do algoritmos.

“Estamos no olho de uma tempestade e teremos de encontrar uma via de equilíbrio, que ainda não vemos claramente”, referiu o prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação (Santa Sé), na conferência de encerramento das comemorações do 55.º aniversário da UCP, citado pela Agência Ecclesia.

Perante centenas de pessoas, o colaborador do Papa apresentou uma conferência intitulada “Que Recursos Espirituais para Enfrentar o Futuro?”, com uma intervenção em que destacou a urgência de “ativar e redescobrir” os recursos espirituais e humanos, que podem “fazer ressurgir” a humanidade, como instrumentos primários de socorro” para “operacionalizar a esperança e plasmar o futuro”.

“O recurso principal é sempre a pessoa humana”, apontou o prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação. Nesse sentido, assinalou que, “em nenhum momento a vida humana é descartável”, pedindo “renovado apreço e reencontrada veneração” por cada pessoa.

“Uma universidade não é uma empresa, não é uma indústria de ideias”, advertiu ainda. Para o cardeal e poeta, outros recursos espirituais para o futuro são o “espanto”, de quem se reconhece frágil, a “relação”, a capacidade de “aceitar o risco” e a “esperança”. José Tolentino Mendonça sustentou que “a ciência não tem de pôr de lado a dimensão do mistério”.

O cardeal madeirense apontou a uma “revolução tecnológica, civilizacional e antropológica” em curso, que “visa alterar a configuração da experiência do mundo”. “Qualquer porção do real pode agora ser traduzida numericamente”, observou, para falar de “uma vida desmaterializada” e “incrivelmente veloz”, sem restrições de tempo nem limites de espaço.

A intervenção aludiu a uma sucessão de crises, que alimentam a “crise antropológica”, com “elementos e desafios inéditos na história humana”. “Estamos no turbilhão de uma mudança epocal”, insistiu D. José Tolentino Mendonça.

Para o cardeal e poeta, a história da humanidade pode ser retratada como uma “conversa”, tanto no nível académico como no trabalho quotidiano, porque em todas as circunstâncias, “a palavra partilhada permanece um reduto”.

“Não seríamos o que somos sem a conversa”, sustentou o responsável da Santa Sé, para quem este encontro de palavras permite uma “abertura de horizontes”.

O conferencista saudou os participantes no encontro, nos quais identificou as “redes de amizade e esperança” fundamentais para a Universidade, em “tempos de grande incerteza”, marcados pela “globalização da esperança e do medo”, que ameaçam a “casa comum”.

José Tolentino Mendonça apelou à criação de redes, nas várias áreas do saber, mantendo a sua “matriz universalista”, que lhe permite integrar “novas fronteiras do conhecimento”. “Precisamos da ousadia de realizar alianças entre saberes”, defendeu.

A intervenção encerrou-se com uma evocação dos 55 anos de história da UCP, que se “tem destacado como instituição qualificada, credível e inovadora”.


Maré Alta

Jornalista e escritora em entrevista
Alice Vieira: “Devia haver uma disciplina de Religião obrigatória”

Clara Raimundo | 24 Mai 2023 | in 7 Margens

Alice Vieira acaba de celebrar 80 anos. Ou melhor: continua a celebrar, porque já teve pelo menos dez festas de aniversário e não vai ficar por aqui. Apesar de ter estado várias vezes muito perto da morte, ou talvez por isso mesmo, a escritora (que já publicou mais livros do que os anos que tem mas que continua a considerar-se, antes de tudo, jornalista) revela uma alegria de viver e um sentido de humor incomuns. Em entrevista ao 7MARGENS, foi por entre gargalhadas que recordou a sua descoberta da religião (já no liceu e sem que os pais, ateus, suspeitassem), a primeira Bíblia que recebeu (do homem com quem viria a casar), o primeiro presépio que fez (quando já tinham filhos) e a sua conversão ao catolicismo (cuja responsabilidade atribui a um grande amigo de quem sente muitas saudades: o cardeal Tolentino Mendonça). Esta quinta-feira, 25 de maio, e nos próximos dias 27 e 28, estará a dar autógrafos na Feira do Livro de Lisboa. Alguns, quem sabe, no livro que o próprio Tolentino a ajudou a escrever, Histórias da Bíblia Para Ler e Pensar, que gostava que todas as crianças pudessem conhecer. Depois, regressa à Ericeira, onde a entrevistámos, e onde mais gosta de estar… e de trabalhar. Sim, porque ainda em 2023 deverão sair mais três livros seus. A julgar pelo ritmo, ainda chega aos 100 – livros… e anos.

7MARGENS – Faz coleção de Bíblias, mas já estava na escola secundária quando teve o primeiro contacto com uma… Porquê tão tarde?
ALICE VIEIRA – Porque sou de uma família profundamente ateia! Lá por eu me chamar Alice de Jesus – que foi uma coisa que eu nunca percebi –, eles eram tão ateus, mas tão ateus, que quando eu era convidada para ser menina das alianças nos casamentos, nunca podia, porque eles nem me deixavam entrar dentro da igreja! Portanto, nunca fui à catequese, mas quando eu andava no liceu havia muitos pais que não deixavam os filhos terem a disciplina de Religião e Moral… E os meus nem sequer sabiam que a disciplina existia – e eu também não lhes disse [risos] –, só que ia.
E tive uma professora de Moral extraordinária… uma mulher muito, muito inteligente. E como é que ela dava a disciplina? Através da Bíblia! Como ela nos dava a Bíblia para ler, foi aí que pensei: “Isto é um livro muita giro!” [risos] Depois, quando saí do liceu, continuámos a escrever-nos até ela morrer… Era realmente uma pessoa extraordinária. E digo a toda a gente, mesmo às pessoas que não são religiosas: “Leiam a Bíblia, que é um grande livro: está lá tudo de bom e tudo de mau!” Portanto, foi só aí que tive o primeiro contacto com a Bíblia e foi essa professora que me abriu os olhos para a religião.

7M – Mas a primeira Bíblia da sua coleção só lhe seria oferecida uns anos mais tarde, por aquele que viria a ser o seu primeiro marido…
Exatamente! Eu conheci aquele que viria a ser o meu primeiro marido tinha 15 anos, quando trabalhava no Diário de Lisboa. O Mário [Castrim] era 23 anos mais velho do que eu e as pessoas nunca perceberam como é que uma pessoa podia ser comunista, que ele era, e católico. E ele dizia sempre que não tinha problema nenhum, e foi ele que me deu a minha primeira Bíblia, que é linda e diz assim: “A Bíblia destinada a ser lida como literatura”.
Ele dizia-me sempre: “Se precisares de alguma coisa, abre a Bíblia ao calhas e encontras lá tudo.” E essa Bíblia nunca sai de casa, as outras às vezes ainda empresto… Essa e outra que comprei há uns poucos de anos, que é “A Bíblia sem as partes chatas”. Essa também não vai para ninguém. É muito boa, porque ao lado ou em rodapé explica muitas coisas. É uma Bíblia americana, claro… Só podia! [risos] Eu já nem sei quantas Bíblias tenho…

7M – E também foi Mário Castrim o responsável pela sua conversão ao catolicismo?
Não! Foi o Tolentino [Mendonça], mais tarde. O Mário era católico, mas nunca me impôs nada… Nisso ele era muito correto, e nós éramos muito independentes… Até quando finalmente pudemos casar – ele já tinha sido casado antes, ainda não havia o divórcio, por isso foi muito complicado. Foi muito engraçado, porque eu saí do meu jornal, ele saiu do dele, fomos ali casar ao registo, ele voltou para o jornal dele e eu voltei para o meu… Depois lá fizemos uns diazinhos de lua de mel, a passear… mas poucos! As pessoas estavam todas contra o nosso casamento, por ele ser mais velho do que eu… Diziam que eu ia ser enfermeira dele, que eu ia ficar viúva muito cedo… Mas ele é que foi meu enfermeiro e morreu com oitenta e tal anos, por isso não fiquei viúva muito cedo! E aqueles que ao princípio criticavam acabaram por mudar de discurso. Foi o caso de uma tia minha, que no fim já dizia que o Mário tinha sido a melhor coisa que tinha entrado na nossa família.
Foi um caso mesmo de paixão… Não me lembro de nos termos zangado, assim uma zanga a sério… Nunca. Mas também foi por termos tido sempre uma relação com muita liberdade e respeito um pelo outro. Uma vez, estava eu no Diário de Notícias e o chefe de redação disse que precisava que no dia seguinte alguém fosse a Madrid. Eu disse: “Vou eu!” E uma colega minha, que era extremamente feminista, olhou para mim e disse: “Mas tu ainda não perguntaste ao teu marido se podias ir!” E eu respondi: “Para quê? Chego a casa e digo: Olha, amanhã vou a Madrid.” Ela ficou espantadíssima. Cada um tinha a sua vida e também foi isso que ajudou… Na vivência da fé, também era assim.

7M – Mas ele era praticante?
Era… de vez em quando! [risos] Às vezes, lá ia à missa, e eu ficava em casa. E não batizámos os nossos filhos, nem os pusemos na catequese, porque pensámos: “Depois quando crescerem, eles decidem”. O meu filho saiu ao meu marido e é profundamente comunista, não se batizou… a minha filha nem sei. Mas aquilo que eu quero, mais do que eles serem batizados ou católicos, é que eles sejam muito boas pessoas e realmente são. Depois, quando o Tolentino me levou para esse caminho, também aí não interferiu nada com eles.

7M – Conte-me então a história da sua conversão!
Eu conheci o Tolentino há muitos anos quando ele tinha publicado o primeiro livro de poesia e estávamos na Feira do Livro de Frankfurt. Gostámos muito um do outro, rimo-nos muito, demos passeios… foi mesmo divertido! Cheguei cá e diz-me assim a minha editora: “Já sei que estiveste com o padre Tolentino…”. E eu: “O Tolentino é padre???” [risos] Ele não parecia nada padre… Agora parece, claro! Mas naquela altura não parecia nada! Continuámos a dar-nos muito e eu passei a ir à Capela do Rato – onde já tinha estado muito novita, muito antes do Tolentino, antes do 25 de Abril, quando houve ali uma vigília – que era assim uma coisa extraordinária…
Ele fazia uma coisa: pedia às pessoas que iam, àqueles que iam sempre, para levar consigo uma pessoa que não fosse católica, que até podia ser ateia, para lá estar, para ouvir e para depois falar… Na altura da Comunhão, havia muitos casais divorciados, e ele pedia-lhes que se aproximassem e fazia-lhes uma cruz na testa, [em sinal de bênção]. E até parecia Jesus Cristo com as crianças. Havia lá dois degrauzitos e os miúdos estavam lá todos sentados, ao pé dele! E não se portavam mal! Falava muito de arte, de pintura… Quando o meu marido morreu, ele fez uma homilia e uma missa tão bonita… Eu gostava muito dele… Depois foi não sei para onde, depois para a biblioteca [do Vaticano], e depois olhe… perdi-o! [Risos]

7M – Mas ficou a fé!
Ah, ficou a fé e ficou a amizade dele… Isso ficou tudo. Tem-me ajudado muito. Quando eu escrevi o livro Histórias da Bíblia Para Ler e Pensar, foi ele também que me dirigiu, que me corrigiu alguma coisa, que me disse “olha, se calhar era melhor também falares nisto”…

7M – Porque é que decidiu escrever um livro com histórias da Bíblia?
Isso começou assim: fui uma vez a uma escola de miúdos pequenos e a dada altura disse assim: “Olha, isso é aquilo que aparece na história ‘Corre, corre, cabacinha’… Vocês sabem a história, não sabem?” Mas ninguém sabia, nem os meninos, nem as mães dos meninos… E eu cheguei à editora e disse: “Vou fazer uma série de livros, de histórias tradicionais para os miúdos”. Fiz umas seis ou sete. E depois decidi também fazer um de histórias da Bíblia, que correu muito bem. Porque eu acho que, mesmo que uma pessoa não seja católica, como já disse há pouco, deve ler a Bíblia.
Em Inglaterra, a minha neta, quando era miúda, tinha uma disciplina de Religião, em que os meninos aprendiam as religiões que havia, iam ver templos hindus, iam ver mesquitas, igrejas protestantes, católicas, e depois falavam daquilo tudo. E liam a Bíblia, mas liam a Bíblia para ser comentada. Uma vez, fui buscá-la à escola e ela vinha pelo caminho a dizer “De São Mateus gosto, de São Lucas é que eu não gosto… Oh avó, aquilo é só ‘Faz isto, não faças aquilo!’.” [Risos] Eu acho que era importante e bom que essa disciplina também fosse obrigatória cá. Os miúdos agora não sabem nada sobre religião. Daí ter escrito o livro.

7M – E nos seus outros livros, de que forma é que a sua fé se manifesta?
Creio que não se manifesta… Nos meus livros, manifesta-se aquilo que eu sou, que é jornalista. Talvez neste último, Diário de Uma Avó e de um Neto Confinados em Casa, fale um pouco sobre isso. Aliás, o Nélson Mateus, que escreveu o livro comigo, foi um dos que eu levei à Capela do Rato. É ateu… e gostou muito! Não ficou religioso, mas gostou muito! [Risos]

7M – Diz muitas vezes que a sua vida dava um romance… Está nos seus planos uma autobiografia?
A minha editora já me pediu muitas vezes e eu digo que não. Mas tenho um amigo, a quem já entreguei diários e outras coisas que eu escrevi, e é ele que depois vai escrever, quando eu já estiver morta. Eu não gosto de ler autobiografias, por isso não iria escrever a minha! [Risos]

7M – Já publicou perto de 90 livros… Há mais algum na calha?
Sim, vai haver mais um volume do diário da avó e do neto e escrevi um livro com a Manuela Niza, durante a pandemia, que vai sair ainda este ano. Estou também a escrever um novo romance para adultos… E talvez gostasse de fazer mais um livro de poesia. Tenho quatro, mas a chatice é que só escrevo poesia quando estou apaixonada, e agora não estou… Vou ver se me apaixono por qualquer coisa, também não é preciso que seja um homem! [Risos]

7M – Mantém uma colaboração de longa data com a revista Audácia, dos Missionários Combonianos… O que representa para si?
Os Combonianos foram e são muito importantes para mim! Quem começou a trabalhar com eles foi o meu marido, que escrevia coisas para a revista, ia lá, e nunca esqueci que, quando ele esteve três meses no hospital, nesses três meses havia sempre um deles que estava lá a acompanhá-lo. O Partido Comunista nunca lhe mandou ninguém, nem pouco mais ou menos… Nem sequer telefonava a saber se ele estava melhor… nada!
Depois, o Mário morreu e eu naquela altura perguntei se não queriam que eu ficasse, não no lugar dele, claro, mas a fazer [o trabalho que ele fazia]. Fiquei e gosto muito deles, dou-me muito bem com eles… De vez em quando vou lá almoçar, são mesmo uma família.

7M – Deram-lhe outra perspetiva do que é a Igreja?
Sim, completamente, sobretudo por aquilo que eles querem… Eles não querem estar em São Sebastião da Pedreira, eles querem estar onde é preciso… De resto, eu tenho o meu mano Claudino (tratamo-nos por “irmãos”), que está no Congo e de vez em quando manda-me fotografias… Aquele sítio é uma coisa… Eu fico a pensar “Ai, desgraçado…”, mas ele nem pensar em sair dali, porque ali é que ele está bem. Tenho uma ligação forte com eles e vou mantendo o contacto pelo computador com os que estão lá fora. Fiz muitos amigos na Igreja… Se calhar tenho mais amigos dentro da Igreja do que fora!

7M – Voltando à Bíblia, tem algum livro preferido?
Gosto muito de ler os Evangelhos, e o meu preferido é o de São Mateus, porque é o mais ativo.

7M – E a experiência que o Mário Castrim lhe aconselhou, de a abrir ao calhas quando precisa de algo, resulta?
Olhe que é mesmo verdade… Sobretudo quando estamos um bocado em baixo. É realmente de ter à cabeceira… Eu tenho três ali! E dou muitas.

7M – Além de colecionar Bíblias, também coleciona presépios… Como nasceu essa coleção?
Como disse, a minha família era ateia, e o Natal para a família era a árvore de Natal e acabava-se, ficava ali. Depois, eu cresci e os meus presépios começaram quando eu tive filhos. Foi então que passei a ter, e ainda tenho, um presépio enorme, que uns dias antes do Natal colocávamos numa mesa redonda grande. Era um presépio onde eles podiam mexer e era o que tinha mais graça, porque o que os meus filhos pequeninos punham no presépio era de chorar a rir. Punham os maus e os bons. Do lado dos maus, estavam o Darth Vader, e um romano… evidentemente. Também havia um tipo a tirar fotografias…
Depois fui comprando mais presépios. Onde quer que eu fosse, comprava um presépio. Já são cento e tal e ainda compro. Quando chega o Natal, é presépios por toda a parte! Em todas as mesas, na entrada… E às vezes quando eu vou às escolas, os miúdos sabem, e se é na altura do Natal também me dão. Tenho um que é um vaso, com duas colheres de pau, uma maior e outra mais pequena, que representam o São José e a Nossa Senhora, e depois uma colher ainda mais pequenina, que é o menino Jesus… Gosto muito desse. Depois tenho presépios que me mandam de sítios estranhíssimos… e são muito bonitos. Tenho um presépio russo, tipo matrioskas. Tenho um da Ericeira, com a Nossa Senhora, o São José e o menino Jesus a fazerem surf. Também tenho outro em que está a Virgem Maria a dormir, coitadinha, e o São José sentado a embalar o menino, mas com um ar muito chateado! [risos] Adoro o presépio, porque simboliza a família, a união, a abertura da família.

7M – A Alice costuma dizer que é muito “nataleira”…
Ai, o mais possível… Eu começo o Natal, sei lá… Para aí em setembro! Para tirar as coisas todas, para pôr os presépios… Eu sou tão nataleira como sou de aniversários. Aprendi com a Alice no País das Maravilhas (que é outra coisa de que eu faço coleção), quando ela diz uma coisa muito certa: que celebra os aniversários e os desaniversários! Eu também celebro os desaniversários. O meu aniversário este ano já foi celebrado para aí umas dez vezes, e ainda hão de vir mais… Porque não podem estar todos ao mesmo tempo, de maneira que vêm uma vez uns, outra vez vêm outros, e pronto, assim é que eu gosto.

7M – Quando se celebram 80 anos, não é para menos…
Ah, mas se eu tivesse 40 ou 50 era a mesma coisa! [Risos]

7M – E como lida com a perspetiva da morte?
Eu já estive tantas vezes perto dela que já quase me habituei! A primeira vez foi quando nasceu a minha filha. Apanhei uma septicémia, a miúda já estava em casa com o pai e eu ainda estava no hospital… As pessoas já torciam todas a cabeça, já só me lembro de ver assim uma pessoa ao fundo… Mas safei-me. Depois, tive um cancro da mama e o médico, depois de eu lhe ter perguntado “Diga-me lá doutor, eu preciso de saber, quanto tempo é que tenho de vida?…”, deu-me dois anos. E eu disse “Dois anos de vida? Vão ser os melhores anos da minha vida!”
Fui viajar, foi na altura da queda do muro de Berlim, e eu estava lá, nessa altura… O que eu viajei!… Passaram os dois anos, três, quatro, e o dinheirito já faltava, não é? [Risos] Então pensei: “Eh pá, se calhar tenho de voltar para o Diário de Notícias”… E realmente voltei, e isto já foi há 33 anos! E ainda hoje o médico, que é médico da minha filha, diz “Eu juro que não percebo… É que não era só a mama, era o corpo todo da tua mãe que estava cheio de metástases… Todo, todo! A gente não conseguiu tirar…” Mas também nunca pensei muito na morte… É inevitável, todos nós morremos, não é? E depois quando lá chegar acima, eu aviso! [Risos]

7M – Sei que, também no velório do Mário Castrim, apesar de ser um momento de dor, manteve o bom humor…
É verdade! Quando recebi a notícia da morte dele, fiquei sem saber o que fazer… O meu irmão é que tratou de tudo: fato, sapatos… Mas esqueceu-se de ver os bolsos do casaco. No meio do velório, toca um telemóvel. Estava no bolso do casaco dele! E quem estava a telefonar era um velho amigo nosso, que se chamava José de Deus, e que o Mário tinha na lista de contactos apenas como “Deus”. Eu olhei, sorri e murmurei: “Já lá chegou!”. Aceitar a morte não é fácil, mas eu digo sempre que aquilo em que nós temos de pensar é no bom que foi ter as pessoas na nossa vida.

7M – Quem fala muito na importância do bom humor é o Papa Francisco…
É meu primo! [Risos] Eu explico como é que ele é meu primo: o meu apelido é Vassalo. Eu sou Vieira de Vassalo. E o Papa Francisco (eu leio tudo sobre ele e o que ele escreve) diz muitas vezes que a avó dele, que era italiana, se chamava Rosa Vassalo, e era uma grande mulher… Ora, os Vassalos são só uma família que tem dois grandes ramos: um em Malta e outro em Itália. Portanto, o Papa é meu primo! Se a avó dele era italiana e se chamava Vassalo, então com certeza que é meu primo…

7M – Já lhe escreveu a contar isso?
Já!

7M – E ele respondeu?
Respondeu! Respondeu assim com uma cartinha assinada, a dizer que agradecia muito e que talvez fosse verdade!

7M – Pode ser que em agosto se encontrem…
Ah, bem queria… Porque eu com ele, corpo a corpo, nunca estive.

7M – Esteve com o Papa Bento XVI… Como foi esse encontro?
Foi uma honra para mim, porque fui convidada para integrar um grupo de dez personalidades da cultura que o foram cumprimentar num encontro que houve no Centro Cultural de Belém, quando ele veio a Portugal em 2010. Disse logo que sim! Não quer dizer que ele fosse assim o Papa da minha vida, mas era o Papa…

7M – Identifica-se mais com o Papa Francisco.
Sim, e tenho muito receio de quando ele morrer. Ele está muito velho, tem tido problemas de saúde… Esperemos que ele ainda aguente, porque tenho muito receio de quem é que vem a seguir a ele… veremos.

7M – O que mais aprecia nele?
A abertura dele, o dar-se com pessoas importantes de outras religiões, o ir aos sítios onde ele vê que é necessário ir, mesmo que seja muito longe. Dá a vida dele para os outros e é isso que me importa mais. E o facto de falar nas mulheres, nos homossexuais, o outro que vier a seguir não sei se vai falar disso…

7M – E a Igreja está a atravessar uma fase particularmente complicada…
Sim, a Igreja está a atravessar uma fase muito complicada, com isto dos abusos. Se os padres se pudessem casar, como os protestantes, já não havia abusos, ou havia muito menos. Eu acho até que um padre casado percebe muito melhor as dificuldades que as pessoas têm. A Igreja precisa de reforma e o Papa Francisco já está a fazer e fez bastantes, por isso é que eu tenho muitas dúvidas em relação ao que vem a seguir…

7M – Gostava que fosse o cardeal Tolentino?
Então não gostava… Quero dizer: não! Aí então é que ele não tinha mesmo tempo para mim! [Risos] Agora a sério, claro que gostava. Mas ele faz-me muita falta.


Maré Alta

Discernimento Moral Cristão: Inclusividade, Identidade e Unidade na Igreja

Parte 3
11. Documentos oficiais da Igreja
12. Estou em comunhão com a Igreja, recebo a comunhão da Igreja
13. Tensões e unidade dentro da Igreja
14. Discernindo o caminho em Igreja

P. Luís Ferreira do Amaral, sj | 14 Maio 2023 | in Ponto SJ

11. Documentos oficiais da Igreja

Tal como o texto do Credo (embora não com a mesma autoridade), os documentos oficiais da Igreja hoje tentam então plasmar aquilo que a comunidade cristã, liderada pelos seus pastores, interpreta como proposta de Jesus para os nossos tempos.

Se, como atrás referido, é verdade haver hoje dificuldade em aceitar que o leque de possibilidades de escolhas pessoais possa não ser ilimitado, então não é difícil de entender porque é que a popularidade de documentos oficiais da Igreja possa não estar a experimentar os seus melhores dias. De facto, em alguns ambientes eclesiais, a mera referência ao indicado em documentos como o Código de Direito Canónico ou o Catecismo da Igreja Católica parece, por vezes, despertar sentimentos de indiferença, quando não mesmo de aversão. Isto como se não fizesse sentido algum que a Igreja redigisse documentos desta natureza (como se o ideal fosse que tais tipos de documentos simplesmente não existissem).

É verdade que, como não podia deixar de ser, documentos como estes tratam das questões em termos genéricos ou abstratos – enquanto a vida real é sempre concreta e situada (e sempre mais complexa, e com mais variáveis que qualquer conjunto de documentos possa prever).

E também é, sem dúvida, verdade que, para um cristão, documentos desta natureza (ou pelo menos um seu excessivo protagonismo) poderão despertar ou conduzir a tendências moralistas ou legalistas – precisamente aquelas que tanto resistiram e tantas dificuldades criaram a Jesus e à sua missão (acabando, no final, por contribuir até para a sua morte). Não é, certamente, nenhuma ‘Lei’ (por mais perfeita que, a nível teórico, possa parecer) que os cristãos adoram e procuram seguir: é, isso sim, a pessoa e a vida de Jesus.

Mas a questão que podemos aqui levantar é: será que, pelo receio de cair em legalismos ou moralismos, os cristãos devem desistir de elaborar documentos comuns, que procuram apontar para o estilo de vida ao qual são chamados por Jesus a viver (tal como a comunidade cristã de cada tempo o entende)? Ou, mais ainda do que isso, poderá uma qualquer comunidade humana subsistir, sem definir explicitamente os contornos mínimos da sua doutrina e dos estilos de vida que aponta como ideais (bem como dos que vê como não aceitáveis)?

Para Jesus, como vimos, é indiscutível que nem todos os comportamentos têm o mesmo valor: que nem todos os estilos de vida são igualmente construtores de paz, de justiça e de felicidade. E de facto, através de documentos, também a comunidade cristã tenta indicar aquilo que, para cada tempo, considera louvável e digno de ser cultivado, a par daquilo que não lhe parece aceitável (com formulações que terão certamente de ir sendo constantemente revistas e atualizadas). Qual a autoridade que esses documentos da Igreja terão hoje?

No caso específico da espiritualidade inaciana, o livro dos Exercícios Espirituais, logo no seu texto inicial do “Princípio e Fundamento”, ao referir-se a como devemos fazer nossas escolhas, Inácio especifica claramente: “em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre alvedrio, e não lhe está proibido”. E mais adiante, nos mesmos Exercícios, fala da existência de questões em que “não há mais que escolher” (cfr. EE[171][172]). Talvez estas possam não ser hoje as passagens mais realçadas dos Exercícios. E, no entanto, fazem, também elas, parte da herança espiritual inaciana.

12. Estou em comunhão com a Igreja, recebo a comunhão da Igreja

As pessoas que procuram seguir Jesus ‘em comunhão’ com a Igreja Católica (ou seja, de acordo com o que a comunidade cristã interpreta como sendo seguimento de Jesus para os nossos tempos) celebram então juntas a Eucaristia. E recebem nessa ocasião, o sacramento a que chamam precisamente de sacramento da ‘comunhão’ (comunhão eucarística).

É claro que, pela sua maneira de pensar, uma pessoa poderá em consciência não se rever naquilo que a Igreja oficialmente ensina. E, mais do que isso, uma pessoa poderá decidir viver de um modo que contrasta diretamente com a proposta que a Igreja faz, como interpretação do seguimento de Jesus para hoje. Porém, se uma tal pessoa, em consciência, não se sente ‘em comunhão’ com aquilo que a Igreja propõe fará então algum sentido que, ainda assim, se apresente depois precisamente diante de um representante oficial dessa mesma Igreja para, das suas mãos, receber o sacramento da ‘comunhão’? Não representaria tal gesto uma forte incoerência? (e isto numa celebração tida como sagrada para os cristãos). De facto, em tal caso, aquilo que o sacramento eucarístico pretende representar (comunhão com Jesus e com a comunidade cristã) estará em desacordo com aquilo que essa pessoa interiormente sente e vive.

Certamente que a comunhão eucarística não é, nem nunca foi, uma espécie de “prémio para os puros”. Se assim fosse, quem poderia então ousar recebê-la? Qual de nós poderia dizer não ter incoerências ou falhas em tudo o que Jesus nos propõe? No entanto, dizer isto não é equivalente a dizer que então tudo é igual. De facto, para recebermos a comunhão eucarística, não nos é requerido que sejamos perfeitos no seguimento de Jesus (quem pode dizer que o é?). Mas é requerido, isso sim, um verdadeiro desejo interior de querer seguir Jesus, de querer de facto pôr em prática os seus ensinamentos (tal como a Igreja o entende). Não são as nossas obras que nos salvam, mas sim a fé em Jesus: a fé de que é Nele que encontramos a salvação. Sem essa fé, e sem esse desejo interior autêntico de querer pôr em prática os ensinamentos de Jesus (na medida das nossas possibilidades, e da nossa vocação particular), receber a comunhão eucarística representaria então uma contradição entre sinal exterior e realidade interior.

É também por isso que a Igreja diz que, pelo menos em caso de pecado grave, uma pessoa não deverá receber a comunhão, sem antes se ter confessado. E, de facto, já S. Paulo tinha escrito que um cristão não deveria aproximar-se da comunhão eucarística sem antes “examinar-se a si próprio”. Num contexto onde o acesso à eucaristia parecia ter-se tornado algo indiscriminado, S.Paulo não hesitou em afirmar que quem recebe a comunhão sem para tal estar devidamente preparado “come e bebe a sua própria condenação” (1ª Cor 11,27-32). Ou seja, em tais casos, em vez de fazer bem, a comunhão eucarística acaba afinal por fazer mal a quem a recebe. “A comunhão do vosso Corpo e Sangue, Senhor Jesus Cristo, não seja para meu julgamento e condenação, mas, pela vossa misericórdia, me sirva de proteção e remédio para a alma e para o corpo” reza também o sacerdote, em silêncio, pouco antes comungar (cfr. Missal Romano).

Sobre a complexa questão do acesso à comunhão eucarística, talvez não seja despropositado recordar aqui que, aquando da instituição da eucaristia, Jesus não quis que esta fosse celebrada para as “multidões” que O seguiam, tendo cada um diversos graus de preparação prévia (e atraídos, provavelmente, pelo mais variado tipo de motivações). Para esse momento, na verdade, Jesus quis explicitamente que estivessem presentes somente alguns daqueles a quem, ao longo de três anos, Ele foi cuidadosamente preparando. Não porque esses discípulos fossem de algum modo ‘superiores’ aos outros (a Boa Nova é de facto para todos!). Mas provavelmente porque apenas eles, pela preparação que puderam receber, estariam, naquele momento, minimamente em condições para entender o que tal sacramento representa, reconhecendo o seu real valor. E, na verdade, assim fazia também a Igreja dos primeiros tempos: durante os primeiros séculos, o acesso à liturgia eucarística não era indiscriminadamente aberto a todos.

13. Tensões e unidade dentro da Igreja

Nos tempos atuais, um crescente número de tensões parece estar a surgir dentro da Igreja. Na verdade, nada disto é substancialmente novo: as tensões fazem, assumidamente, parte da comunidade cristã, desde os seus inícios. E, pelo menos até certo ponto, é até saudável que as tensões existam. Em momentos mais críticos, porém, as polarizações podem crescer de tal modo, ao ponto de quase se converterem num confronto entre ‘grupos rivais’, em que cada um dos lados se sente absolutamente certo da sua posição (e convicto de estar a prestar um bom serviço a Deus – cfr. Jo 16,2), enquanto posições adversas são caricaturadas e apresentadas como desprovidas de qualquer sentido. Também aqui não é garantido que um certo espírito de individualismo (ainda que grupal) não possa estar também presente.

E, no entanto, sabemos bem que nenhum de nós (nenhum dos ‘grupos’) é dono da Igreja. Se é verdade que “nós somos Igreja”, os “outros” provavelmente não o serão menos. E talvez também não sejam menos fiéis, ou teologicamente menos capazes.

Como atrás referido, somente se continuarmos a manter o foco sobre Jesus e sobre o seu projeto para nós é que a Igreja conseguirá manter a sua unidade. Nesse sentido, não parece possível que possamos verdadeiramente seguir Jesus, sem que, ao mesmo tempo, procuremos mantermo-nos também unidos em torno dos sucessores daqueles doze que, intencionalmente, Jesus quis escolher como líderes da sua comunidade. Assim sendo, uma questão importante será sempre a de ver até que ponto as posições que cada um de nós defende estarão ou não em sintonia com os bispos locais – e sobretudo com o bispo de Roma e com os documentos por ele publicados (ou por quem a sua autoridade foi delegada, para o ajudar).

A este respeito, talvez por ter consciência que uma espiritualidade centrada no indivíduo tem também os seus riscos, Sto. Inácio de Loiola deixou-nos afirmações muito fortes nas regras que ele apelidou de “de sentir com a Igreja” (uma parte dos Exercícios Espirituais talvez não tão citada hoje). Escreve então Inácio que “para em tudo acertar”, devemos procurar acreditar que aquilo que eu vejo ou entendo de uma maneira, deverá afinal ser provavelmente de outra, “se a Igreja hierárquica assim o determina” (cfr. EE [365]). A atitude proposta por Inácio estará, pois, em direto contraste com tomadas de posição que viessem a assumir formulações do tipo “O ensinamento oficial da Igreja diz que… Eu, porém, digo-vos…”.

14. Discernindo o caminho em Igreja

Como discernir então o nosso caminho como Igreja? Como perceber qual é ‘a vontade de Deus’ a nosso respeito, para o nosso tempo? Inquestionavelmente, um dos traços essenciais da vida de Jesus, revelação de Deus para nós, é o amor para com todos: um amor universal que se expressa desde logo na forma como Ele acolhe cada pessoa, seja ela quem seja. Como atrás referido, parece claro que, a Jesus, não Lhe interessa de onde cada um vem, o seu currículo, ou até o cadastro que possa ter: o seu acolhimento é, de facto, universal (algo que hoje talvez possa ser exprimido através do termo ‘inclusividade’). Este será por isso, sem dúvida alguma, um dos traços essenciais da identidade cristã.

Por outro lado, como vimos, se é verdade que Jesus não está muito interessado em aprofundar de onde uma pessoa vem, o mesmo não se poderá dizer sobre o para onde essa pessoa vai. De facto, para Jesus não é tudo igual, e nem todos os caminhos têm o mesmo valor (já que nem todos os caminhos levam à realização humana, ou à vida). E por isso a Jesus interessa-Lhe, isso sim, os caminhos que cada um de nós vier a trilhar agora e para o futuro. E é por isso que, a cada um, convida a um caminho concreto (caminho que Ele mesmo percorre primeiro): “segue-Me”.

Quer isto dizer que, para discernir o seu caminho, um cristão não terá mais do que repetir aquilo que no passado foi escrito (desde logo no texto do Evangelho)? Na verdade, repetir simplesmente, ipsis verbis, aquilo que foi escrito antes poderá não resultar automaticamente numa verdadeira fidelidade ao significado original pretendido. De facto, uma vez que, com o passar do tempo, os contextos culturais (e os próprio significados das palavras) vão sofrendo transformações, aquilo que foi escrito em tempos mais antigos, num contexto diferente do nosso, precisa de ir sendo constantemente traduzido para linguagens dos tempos atuais. E isso, precisamente, se queremos ser fiéis à intenção e ao significado originais.

Por outro lado, a reflexão sobre questões antigas não se faz de uma vez só: a compreensão de questões antigas pode ir sendo (cumulativamente) aprofundada. De facto, com o avançar do tempo e da História, a reflexão teológica cristã pode ir conseguindo aprofundar sempre mais o imenso significado da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus, bem como as suas múltiplas implicações para nós.

Esta necessidade de aprofundamento torna-se ainda mais evidente, se tivermos em conta o desenvolvimento das ciências (naturais e humanas) dos últimos séculos. De facto, graças à sua constante evolução, novos dados vão sempre surgindo para o conhecimento humano. Podemos, por isso, ir sempre tomando conhecimento de aspetos da realidade que eram anteriormente desconhecidos (ou, pelo menos, que não eram tão bem conhecidas). E isso pode fazer surgir novas questões, que antes simplesmente não se levantavam. Ou pode também modificar significativamente o nosso anterior modo de entender questões mais antigas (a hoje possível celebração de funerais religiosos de pessoas que acabaram por pôr fim à própria vida parece ser um bom exemplo disto mesmo).

Portanto, ser fiel a Jesus e preservar a identidade da sua proposta não é o mesmo do que repetir simplesmente aquilo que já foi dito no passado (o que faria suspender o processo dinâmico da reflexão teológica). Pelo contrário, implica antes um constante aprofundamento, bem como uma contínua atualização (que tem também em conta os novos dados que entretanto vão surgindo). “Como faria Jesus, se vivesse no nosso tempo?” será certamente uma das questões-chave orientadoras deste processo.

A expressão “Ecclesia semper reformanda” pode, aliás, aplicar-se não apenas à necessidade de uma contínua conversão da Igreja, mas também ao constante aprofundamento do nosso entendimento sobre a fé. Isto não para negar a verdade daquilo que no passado foi dito (a nossa comunhão de fé estende-se também àqueles que nos antecederam – e graças aos quais pudemos, aliás, ter acesso ao evangelho), mas para tentar que o nosso entendimento possa ir mais ainda fundo e ser mais autêntico, tendo em conta os novos dados e as reflexões que, ao longo da história, vão sendo cumulativamente feitas.

Para alguns, este aprofundamento poderá, por vezes, estar talvez a ir depressa demais. Estes invocam a necessidade de se ser prudente e de se evitar passos em falso (e, menos ainda, de se cair na tentação de aderir a modas ou tendências passageiras). Para outros, pelo contrário, a adaptação aos tempos atuais aparece como demasiado lenta, ou desfasada até do contexto em que hoje vivemos. As insatisfações e as tensões geradas serão então um dos preços a pagar por (graças a Deus) os seguidores de Jesus constituírem hoje uma comunidade mundial ampla e bem diversa.

Através da aceitação e do reconhecimento mútuo, do diálogo e da paciência, acabará certamente por nos ir sendo dada a graça de encontrar sínteses novas, adaptadas a cada tempo, sem que, com isso, a unidade da comunidade cristã seja posta em causa. Esse parece, de resto, ser um dos objetivos do atual processo sinodal, no qual procuramos escutar aquilo que o Espírito inspira a todo o povo de Deus. Naturalmente, uma particular atenção tem de ser dada aos que estudam e refletem sistematicamente sobre estes assuntos. E, mais ainda, àqueles que têm uma visão de conjunto e que têm a responsabilidade de preservar a união das comunidades cristãs: os seus pastores.

Porque, de facto, para Jesus, a unidade dos seus seguidores (a unidade da Igreja) parece ser algo bastante importante: “que todos sejam um” pediu Ele, instantemente, pouco antes da sua Páscoa (Jo 17,21). Por isso, ao mesmo tempo que procuramos que a nossa Igreja possa ser cada vez mais inclusiva (à imagem de Jesus), procuramos que ela possa preservar também todos os outros traços da sua identidade (que do mesmo Jesus recebeu). E também que, ao longo deste processo, não perca o dom da unidade. Já que, na verdade, sem identidade e sem unidade, não pode haver Igreja. E, sem Igreja, não pode haver verdadeiro seguimento de Jesus.


Maré Alta

Discernimento Moral Cristão: Inclusividade, Identidade e Unidade na Igreja

Parte 2
7. Jesus indica comportamentos específicos a adotar ou a evitar?
8. Ter acesso ao texto do Evangelho basta?
9. O ‘Nós’ é mais do que um conjunto de ‘Eu’s separados
10. Deverá a Igreja definir limites? Em busca do que é ‘católico’

P. Luís Ferreira do Amaral, sj | 9 Maio 2023 | in Ponto SJ

7. Jesus indica comportamentos específicos a adotar ou a evitar?
Que nos diz, então, Jesus sobre caminhos a seguir? Sabemos que Ele resume tudo no amor: no amor a Deus “com todo o coração” e ao próximo “como a si mesmo” (cfr. Mt 22,37-40). Mas, para além disso, desta indicação resumida, ou geral, Jesus também indica comportamentos ou práticas de vida mais concretas (a adotar ou a evitar) de forma a que esse amor possa ser posto em prática?

A este propósito, podemos desde logo recordar a ocasião em que um jovem se aproxima de Jesus para Lhe perguntar o que deveria fazer “para alcançar a vida eterna”. Como resposta, antes de lhe propor que O siga, Jesus aponta em primeiro lugar para o ‘decálogo’, referindo-lhe alguns dos mandamentos (cfr. Mc 10,19). Os mandamentos (que vinham a acompanhar o povo judeu desde há séculos) não parecem, pois, ser irrelevantes ou ultrapassados para Jesus.

De facto, algo da pregação de Jesus pode ter levado alguns a pensar que, com a sua vinda, tudo aquilo que estava para trás não teria mais sentido. Talvez por se aperceber disso, imediatamente a seguir a proclamar as suas Bem-Aventuranças, Jesus diz explicitamente: “Não penseis que eu vim revogar a Lei”, acrescentando depois “não passará um só jota, ou um só ápice da Lei” (cfr. Mt 5,17-48).

Portanto, explicitamente, Jesus não desvaloriza nem exclui os valores ou as indicações éticas anteriores. Pelo contrário, Ele afirma claramente ter vindo para as aprofundar, indo mais além do prescrito até então: na mesma passagem, Jesus diz que a sua proposta não só não nega, mas vai ainda mais além daquilo “que foi dito aos antigos”.

Mais do que isso, dirigindo-se depois àqueles que têm responsabilidades de ensinar, Jesus acrescenta ainda que “se alguém transgredir um destes preceitos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será o menor no Reino do Céu”. Estranho seria, portanto, que alguém dentro da Igreja se sentisse com autoridade para propor precisamente o contrário do indicado por Jesus, reduzindo o alcance dos ideais que Ele propõe.

Na verdade, todos os ensinamentos e sabedoria acumulada ao longo de séculos antes de Jesus (incluindo o decálogo) parecem ter-se revelado como plataformas propedêuticas e estruturantes eficazes, que tornaram possível que Jesus pudesse ter vindo: que a sua proposta – que vai muito mais além! – pudesse ter-nos finalmente chegado (a este propósito, a figura de João Batista, o ‘precursor’, poderia também ser aqui recordada).

Como uma das indicações do decálogo, talvez possamos mencionar em particular aqui o que diz respeito ao quinto mandamento: o respeito pela vida humana. Na verdade, mais do que simplesmente “não matar”, Jesus convida-nos a que cuidemos ativamente da vida humana, em todas as suas dimensões, sobretudo a dos mais frágeis e dos mais necessitados. Para além de questões como o aborto ou a eutanásia, os ensinamentos de Jesus podem, por exemplo, ser vistos como estendendo-se também à necessidade de apoio a todos aqueles que não dispõem de um mínimo para viver. E também à necessidade de transformação das estruturas das nossas sociedades, quando estas são geradoras de sofrimento e de injustiça (tal como o Papa Francisco tem chamado a atenção, “esta economia mata” – Evangelii Gaudium, 53).

Por serem tão contra-culturais, outros temas talvez possam ser menos palatáveis ainda para os ouvidos de hoje: por exemplo, aqueles que se referem ao modo de viver a sexualidade. Para muitas pessoas hoje, de facto, as indicações do sexto e do nono mandamento aparecerão provavelmente como algo de incompreensível, ou até mesmo de castrador (e, por isso, não é raro que sejam até ridicularizadas). Na verdade, numa cultura hiper-sexualizada, com estímulos diários vindos de múltiplas direções, uma relação de tipo romântico-sexual é muitas vezes apontada como verdadeiro centro da vida humana: dimensão sem a qual a felicidade não é concebível. Daí que a prática da sexualidade possa ser entendida hoje como um direito (direito de tal modo importante que chega a falar mais alto que o direito à vida).

É verdade que, até recentemente, o peso colocado na sexualidade poderá ter sido exagerado (e sobretudo a partir de uma perspetiva moralista e repressiva). Mas isso não implica que um equilíbrio saudável tenha agora de ser procurado através de uma canonização ingénua de todos os nossos impulsos e desejos. A proposta de Jesus vem, de resto, ajudar a relativizar (ou a des-absolutizar) o papel da sexualidade nas nossas vidas: algo que, para uns, pode aparecer não como caminho de felicidade, mas antes como uma via masoquista para a frustração.

Desde o início da sua pregação, porém, Jesus parece saber bem que nem todos irão aderir à sua proposta. Aliás, o exemplo atrás mencionado (Mc 10,17-22) é um dos casos explícitos em que o jovem que Jesus convida a segui-Lo acaba, no final, por Lhe voltar as coisas (provavelmente, por ter ficado dececionado com aquilo que ouviu). Talvez esse jovem estivesse à espera de ouvir algo de menos exigente; talvez estivesse à procura de algo mais na linha da ‘auto-afirmação’, ou da expressão de alguns dos seus anseios ou desejos pessoais.

Jesus não desconhece que a tendência de boa parte das pessoas pode ser a de se dirigir mais para aqueles que irão dizer aquilo que elas mesmas querem ouvir. Mas sabendo que o facilitismo é, afinal de contas, um falso amor, Jesus nunca parece muito preocupado em ser (ou deixar de ser) popular. Nem tem a tentação de oferecer ‘saldos’ na sua proposta para, com isso, atrair maior número de seguidores. Porque, na verdade, o seu objetivo é outro: o seu objetivo é o verdadeiro bem das pessoas, o verdadeiro bem da Humanidade.

Ao mesmo tempo, por outro lado, é também indiscutível que Jesus tem sempre em conta a situação concreta de cada pessoa: não pede o mesmo a todas as pessoas (nem o pede de igual forma). Antes tem em conta quem tem diante, aceitando o ritmo e os passos que, a cada momento, cada um consegue ir dando. Porque, de facto, não somos todos iguais: não temos todos iguais dons; e não partimos todos do mesmo lugar. Mais do que isso, mesmo quando falhamos e demoramos a acertar, Jesus não desiste de nós (recordemos o exemplo de Pedro). Jesus bem sabe da massa de que somos feitos e usa sempre de enorme paciência e pedagogia para connosco.

8. Ter acesso ao texto do Evangelho basta?

Alguém poderia pensar que, para conhecer a proposta de Jesus para as nossas vidas hoje, bastaria ter então acesso ao texto dos Evangelhos. Na vida real, porém, as coisas serão, evidentemente, um pouco mais complexas. E isto devido, sobretudo, à sempre-presente questão da interpretação: “Como lês tu?” (cfr. Lc 10,26).

Como interpretamos nós as Escrituras? A pergunta não é, certamente, despropositada, uma vez que diferentes pessoas podem ter diferentes interpretações. Na verdade, se deixarmos as coisas apenas ao critério da interpretação de cada indivíduo (ou de cada comunidade cristã local), no limite, o texto das Escrituras talvez possa acabar por dar para tudo, e para o contrário de tudo. A este propósito, podemos até recordar as tentações do próprio Jesus. De facto, os evangelhos relatam que, numa delas, com o objetivo de desviar Jesus do seu caminho, a dada altura o tentador recorre precisamente a uma citação (autêntica) das Escrituras (cfr. Mt 4,6 / Lc 4,9-11).

Assim sendo, se deixamos que a interpretação da Sagrada Escritura fique simplesmente “ao critério de cada um”, torna-se inevitável que a comunidade dos seguidores de Jesus se acabe por ir sucessivamente fragmentando: basta que surja uma divergência séria. Este é, de resto, um dos dramas do princípio “sola Scriptura” (somente as Escrituras).

Ao mesmo tempo, sabemos também que, com o avançar dos tempos, novas questões vão surgindo: questões que, no tempo de Jesus, não se colocavam e que hoje se apresentam bem diante de nós e não podemos evitar. E aliás, mesmo baseando-nos em tudo o que Jesus disse ou fez, sabemos que dificilmente seria possível encontrar resposta perfeita e acabada para todas as variantes de questões possíveis (de resto, dar resposta a questões morais não terá provavelmente sido, sequer, o objetivo principal da sua vida e da sua missão).

Como discernir então o que é justo para questões morais concretas da vida de hoje? Como poderá um cristão fazê-lo? Evidentemente, para algumas das questões, as respostas são claras e óbvias. Para outras, porém (incluindo talvez algumas das questões mais “fraturantes” dos nossos tempos), talvez já não seja tanto assim.

9. O ‘Nós’ é mais do que um conjunto de ‘Eu’s separados

Tendo em conta as anteriormente referidas limitações, que um discernimento meramente individualista pode ter, que outras possibilidades podem existir? Sem os outros, sem a perspetiva que outras pessoas nos podem trazer, talvez não haja muitas alternativas.

Na verdade, mesmo reconhecendo a dignidade de cada ser humano individual, a visão cristã católica entende que o caminho de um verdadeiro discernimento ético não se pode restringir apenas à primeira pessoa do singular. De facto, mais do que valorizar indivíduos humanos, tidos como ‘avulsos’ ou separados uns dos outros, o cristianismo reconhece e valoriza também, e simultaneamente, as relações que os seres humanos estabelecem entre si. Ou seja, mais do que valorizar simplesmente o ‘Eu’ (ou um conjunto de ‘Eu’s), o cristianismo valoriza também a realidade do ‘Nós’. É daí, de resto, que surge o próprio conceito de ‘Igreja’, termo que deriva de uma palavra grega que pode ser traduzida como ‘Assembleia’.

Não será provavelmente por acaso que, ao indicar onde poderia ser encontrado, Jesus não se refira a indivíduos isolados, mas fale antes de “dois ou três” que se reúnem em seu nome (cfr. Mt 18,20). Parece então claro que o cristianismo não é compatível com espiritualidades de tipo individualista (e, menos ainda, de tipo solipsista). E, tal como acontece com qualquer grupo humano, também os cristãos terão então necessidade de algum tipo de autoridade que possa dirimir as diferenças que surgem (seja sobre a interpretação das Escrituras sobre questões morais ou outras quaisquer). Se assim não for, como vimos, não demorará muito tempo até que uma comunidade deixe de o ser, resvalando para um processo de fragmentação.

10. Deverá a Igreja definir limites? Em busca do que é ‘católico’

Diferenças de entendimento entre cristãos é algo que sempre houve desde o início (e provavelmente terão até ter sido mais profundas nos primeiros séculos). Tendo presente que as diferenças entre comunidades era um dado real, o termo grego ‘católico’ surge então para indicar precisamente aquilo que era comum a todas as comunidades cristãs (e não característico apenas de uma ou outra comunidade local). Em português, o termo ‘católico’ pode ser traduzido por ‘de todos’, ou ‘comum a todos’, ou ainda ‘universal’.

A formação do Credo que recitamos hoje em todas as Igrejas pode ser aqui apontada como exemplo de um esforço bem-sucedido para alcançar uma síntese unificadora (no meio de considerável diversidade). É de notar, de facto, que o texto do Credo é redigido num contexto histórico em que uma grande variedade de afirmações sobre a fé eram feitas: algumas delas pacíficas; outras já mais discutíveis; e outras ainda vistas como não aceitáveis para a quase totalidade dos representantes das diversas comunidades cristãs. O texto do Credo foi então redigido para definir aquilo que era comum a todos (ou, pelo menos, a quase todos): ou seja, aquilo que era ‘católico’. Uma vez que, por uma questão de coerência com aquilo que Jesus tinha revelado, nem todas as afirmações eram vistas como aceitáveis, o texto do Credo surge para definir limites: para definir os contornos dentro dos quais se revêm todos aqueles que querem fazer parte da comunidade cristã ‘católica’. Eventuais posições que se encontrassem fora dos limites definidos pelo Credo comum não eram reconhecidas como suas pela comunidade cristã.

E a nível de moral e de costumes: deverá a Igreja definir limites também nesses campos? Diante de uma pergunta como esta, é de notar, desde logo, que numa cultura como a nossa, na qual a liberdade individual é tão valorizada, não parece ser facilmente aceite (por vezes, até por parte de cristãos) que o discernimento moral pessoal possa estar acompanhado ou balizado por indicações que não provenham do próprio eu. Parece hoje haver, aliás, grande dificuldade em aceitar que o leque de possibilidades de escolha de cada um possa não ser ilimitado. Não poucas vezes, a única regra aceite parece até ser a de que “cada um sabe de si” (e os outros nada terão que ver com isso).

E, no entanto, pelo menos para alguns exemplos mais extremos, poderia parecer bastante estranho se a nível moral tudo tivesse de ser aceite na Igreja, e nenhum tipo de comportamento ou prática pudesse ser questionado. Por exemplo, poderia ser tido como aceitável pela Igreja que alguém pudesse enriquecer à custa da exploração de trabalhadores, não lhes pagando salário (ou não lhes pagando um salário justo)? Ou poderia ser aceite que um cristão participasse no tráfico de droga (que acaba por destruir as vidas de tantas pessoas)? Ou ainda, que cristãos pudessem participar em grupos mafiosos ou racistas, recorrendo à violência para atingir os seus fins? E, no entanto, aconteceu já haver pessoas que, afirmando-se como cristãs, acabaram por adotar comportamentos deste tipo. Deverão tais comportamentos ser tolerados, sem mais, pelo resto da comunidade cristã? Deverá a comunidade cristã deixar que questões como essas fiquem simplesmente “ao critério de cada um”?

Na verdade, não pertencendo nós ao mundo dos ‘puros espíritos’, qualquer grupo tem necessidade de um mínimo de indicações de práticas (sejam estas mais estreitas ou mais amplas, mais específicas ou mais genéricas). De facto, quando um grupo humano não define com um mínimo de clareza as regras do contrato social que entende como fundamentais, tal indefinição acaba, a prazo, por revelar-se insustentável para essa comunidade. E isto porque, mesmo sendo o essencial, os princípios inspiradores podem por sua própria natureza prestar-se sempre a inúmeras ambiguidades de interpretação. Assim, se as dimensões práticas da vida forem todas deixadas simplesmente no vago, ao critério de cada um, não é difícil de prever o que poderá acontecer: cedo ou tarde, isso pode acabar por resultar em derivas que levem a que a comunidade comece a perder a sua identidade, o seu “sal” (cfr. Lc 14,34). E, ao perder a sua identidade, a unidade dificilmente pode manter-se por muito tempo.

Sobre este mesmo assunto, curiosamente, aquando da fundação da Companhia de Jesus, Sto. Inácio de Loiola levantou também a questão de saber se se justificaria haver algum tipo de normas mais concretas para os jesuítas. De facto, para Inácio era bem claro que, mais do que qualquer tipo de regras exteriores, deveria ser “a interior lei da caridade e amor” a guiá-los. E no entanto, mesmo tendo isso bem presente, Inácio enumera uma série de razões que o levam a concluir ser, ainda assim, necessário haver de facto um texto com indicações mais práticas, “que ajudem para melhor proceder” (Const.[134]). E é deste modo que Inácio começa a redigir as Constituições da Companhia de Jesus.

(continua… >> 3ª Parte do artigo vai ser publicado no dia 14 de Maio)


Maré Alta

Discernimento Moral Cristão: Inclusividade, Identidade e Unidade na Igreja

ESPECIAL PARTE 1

P. Luís Ferreira do Amaral, sj | 5 Maio 2023 | in Ponto SJ

Introdução
Os tempos que estamos a viver são, como sabemos, tempos de profundas mudanças no nosso mundo. Sendo formada por homens e mulheres de cada tempo, é natural que também a Igreja possa ir sofrendo transformações no seu modo de viver. A mudança é, de resto, algo que não só encontramos sem dificuldade na longa história da Igreja, como parece até fazer parte da própria identidade da dinâmica cristã (que, além de nos desafiar a uma contínua conversão, convida-nos também a um constante aprofundamento da nossa vivência cristã, em todas as suas consequências).

Verdadeiros aprofundamentos, porém, apenas serão possíveis quando fiel e visivelmente fundados Naquele que nos propomos seguir: Jesus Cristo. É, de resto, apenas em torno Dele e da sua palavra que o grande número de pessoas que formam a Igreja (em tão grande diversidade de perspetivas e de contextos culturais) pode encontrar razões e sentido para se congregar.

Este artigo visa recordar alguns dos pontos que poderão ser importantes para um discernimento em Igreja de caminhos a explorar no futuro, realçando a tensão que terá de existir entre conceitos como inclusividade, identidade ou unidade na Igreja.

O texto é formado por um total de 14 parágrafos e está dividido em três partes, as quais irão ser sucessivamente publicadas no Ponto SJ (dia 5, 9 e 12 de maio).

Parte 1 (dia 5 de maio)
1. Jesus, Mestre de inclusividade
2. Mas Jesus convida-nos a percorrer um caminho concreto
3. Distinguir ‘De onde venho’ de ‘Para onde quero ir’
4. Como discernir? O valor da consciência humana individual
5. O risco dos discernimentos individualistas
6. Para além de um otimismo antropológico ingénuo

Parte 2 (dia 9 de maio)
7. Jesus indica comportamentos específicos a adotar ou a evitar?
8. Ter acesso ao texto do Evangelho basta?
9. O ‘Nós’ é mais do que um conjunto de ‘Eu’s separados
10. Deverá a Igreja definir limites? Em busca do que é ‘católico’

Parte 3 (dia 12 de maio)
11. Documentos oficiais da Igreja
12. Estou em comunhão com a Igreja, recebo a comunhão da Igreja
13. Tensões e unidade dentro da Igreja
14. Discernindo o caminho em Igreja

1. Jesus, Mestre de inclusividade

Uma das questões a que na nossa cultura de hoje parece ser bastante mais sensível é o problema da discriminação. Trata-se de um problema que está longe de ser novo: pelo contrário, parece ser quase tão antigo como a própria Humanidade. Felizmente, as nossas sociedades hoje parecem estar mais conscientes da questão das discriminações. E, pelo menos em alguns casos, a procurar ultrapassá-las.

Inegável parece ser, entretanto, a grande mudança que surge a partir de Jesus, graças ao seu modo de viver e de olhar as pessoas. Na verdade, a questão da dignidade de cada ser humano individual tinha sido levantada já no primeiro livro do Antigo Testamento: a pessoa humana era então referida como “imagem e semelhança de Deus” (Gen 1,26). A partir de Jesus, torna-se ainda mais claro que a “aceção de pessoas” não tem cabimento, já que Jesus nos faz filhos do mesmo Pai, irmãos uns dos outros (cfr. Lc 20,21, Mt 23,8-9).

As atitudes que vemos Jesus ter repetidamente para com os marginalizados do seu tempo confirmam isso mesmo: Jesus acolhe todos os que vêm ao seu encontro e que O queiram seguir. Mais do que isso, é Jesus que vai ao seu encontro. Não importa quem sejam, de onde venham, ou como tenham vivido antes: para Jesus todos são bem-vindos. Podemos então dizer que Jesus é Mestre também naquilo a que hoje apelidamos de ‘inclusividade’.

2. Mas Jesus convida-nos a percorrer um caminho concreto

Ao mesmo tempo, para Jesus não é certamente tudo igual. Jesus sonha e entrega-Se por um projeto concreto, a que Ele chama “a construção do Reino de Deus”, seu Pai. E sabe que, para que esse sonho se torne uma realidade, haverá coisas que ajudam… e coisas que não ajudam. Ou seja, para Jesus nem todos os caminhos são caminhos de construção de felicidade, ou realização humana: pelo contrário, há caminhos que são mesmo de destruição. Por isso mesmo, a quem vai encontrando no seu caminho, Jesus propõe um caminho bem concreto: “segue-Me”.

Para alguns (por exemplo, pessoas que sigam por caminhos mais ecléticos, ou mais a um estilo new age) talvez o próprio Jesus e a sua proposta possam aparecer como algo ‘demasiado concreto’: talvez tais pessoas possam ter preferência por algo de mais indefinido, onde a própria imagem de Deus é mais deixada no vago, entendida de acordo com aquilo que cada um sente e experiencia em cada momento.

Se quero ser cristão, porém, se quero de facto seguir Jesus, não só não posso ficar simplesmente como estou (imóvel, parado), como também não serei propriamente eu a determinar o caminho a seguir. Porque, de facto, não é o discípulo que diz a Jesus para que Ele o siga, mas sim Jesus que convida e indica o caminho (caminho que, aliás, Ele Mesmo percorre primeiro).

3. Distinguir ‘De onde venho’ de ‘Para onde quero ir’

Para Jesus, como sabemos, não é tudo igual: nem tudo tem o mesmo valor. Estaríamos, por isso, a entender certamente mal as coisas, se afirmássemos que ‘ser inclusivo’, ou ‘não discriminar’, implica aceitar como equivalentes todos os tipos de comportamentos ou todos os estilos de vida (o que, aliás, se revelaria contraditório: discriminar as pessoas, por exemplo, não pode ser um comportamento aceitável para quem rejeite a discriminação).

Na verdade, o problema da discriminação não terá tanto a ver com comportamentos, mas sobretudo com pessoas. Ou seja, de acordo com Jesus, somos chamados a não discriminar pessoas. Mas, no que diz respeito a comportamentos, não poderemos já dizer o mesmo.

Porque, de facto, uma questão é o ‘de onde vimos’. E outra questão, já bem diferente, é o ‘para onde queremos ir’. Jesus, na verdade, não parece ter muito interesse em aprofundar o percurso passado de uma pessoa, ou em saber de onde ela vem, que tipos de comportamento teve, que estilo de vida viveu. Mas já não podemos certamente dizer que não Lhe interesse o ‘para onde’ essa pessoa está a apontar para ir no futuro, que caminhos pretende percorrer. E isto, precisamente, porque há comportamentos ou estilos de vida que Ele valoriza (e outros que não tanto).

4. Como discernir? O valor da consciência humana individual

Pelo menos em parte, talvez como reação aos acontecimentos trágicos do século XX, parece ser hoje grande o valor atribuído ao indivíduo, a cada ser humano individual. Talvez por ter bem consciência dos desastres a que os totalitarismos sociais (de direita e de esquerda) nos conduziram no século passado, o respeito por cada indivíduo humano parece ser hoje, felizmente, um do traço essencial da nossa cultura atual (pelo menos a nível de princípios).

O reconhecimento da dignidade de cada pessoa humana está, como vimos, em sintonia com os valores de uma cultura judaico-cristã. Como atrás referido, esta vê em cada ser humano uma imagem e semelhança do divino. Por isso o Concílio Vaticano II defende que a “dignidade da consciência moral” de cada um deve ser por todos reconhecida, o que exige que cada pessoa possa proceder livremente, e “segundo a própria consciência” (cfr. Gaudium et Spes 16-17).

5. O risco dos discernimentos individualistas

Ao mesmo tempo, o mesmo texto do Concílio reconhece também que a consciência pessoal de cada um pode também errar. Uma das principais preocupações de uma consciência que queira acertar será, pois, a de procurar a sua própria formação: de reconhecer que, para distinguir o bem do mal, precisará de aprender – e, desde logo, de aprender com outros: com outras consciências humanas (não apenas com a sua).

Um paradigma meramente individual acabará, portanto, por reduzir significativamente as possibilidades de um autêntico discernimento ético. De facto, uma pessoa só, fechada em si mesma, dificilmente conseguirá ultrapassar os limites da sua própria subjetividade (aliás, por alguma razão diz o povo que “ninguém é bom juiz em causa própria”).

De facto, a simples valorização do indivíduo apenas (entendendo-o como que separado de outros) parece claramente insuficiente para uma visão cristã da pessoa humana, já que a dimensão de relação com outros é entendida como intrínseco ao próprio ser humano (criado à imagem de um Deus-Trindade). Aliás, o próprio sentido da vida de cada ser humano não se entenderá, sem essa dimensão social: os seus horizontes de vida não podem restringir-se à mera auto-referencialidade, nem os seus objetivos restringirem-se à simples auto-expressão e auto-realização (ou aos próprios anseios e desejos). Caso contrário, como Jesus nos alerta, em vez de nos conduzirem à vida, tais caminhos acabarão por conduzir-nos inevitavelmente ao sem-sentido e à frustração (Mc 8,35).

Por outro lado, um paradigma de tipo individualista dificilmente poderá conduzir à relação com o Deus “vivo e verdadeiro”: pelo contrário, mais facilmente poderá levar à criação de um ídolo, de um ‘deus’ feito afinal à medida do próprio eu (e até ao encerramento numa espiritualidade solipsista). Não pode Deus ser encontrado dentro de nós mesmos, no nosso coração? Certamente que sim. Porém, para os cristãos, Deus pode ser encontrado também, e de igual modo, no coração dos outros.

A este respeito, talvez possa ser revelador um comentário que, a propósito do sacramento da reconciliação (confissão), se ouve por vezes dizer: “Eu confesso-me ‘diretamente’ a Deus”. De um ponto de vista cristão, afirmações deste tipo poderão ser bastante questionáveis – sobretudo se baseadas no pressuposto que Deus pode ser encontrado apenas no próprio coração, na própria subjetividade… e, portanto, não tanto na subjetividade de outros – nem sequer dos que foram escolhidos para representar a comunidade cristã (cfr. Lc 6,13: de entre os muitos discípulos que O seguiam, Jesus quis intencionalmente destacar doze).

6. Para além de um otimismo antropológico ingénuo

Na linha da valorização de cada indivíduo humano, são também hoje frequentes os convites a que cada um possa ser ‘autêntico’, ou até ‘espontâneo’, de acordo com aquilo que cada qual alegadamente ‘é’. “Segue o que sentes” parece ser um dos slogans dos nossos dias. Mas que posso dizer eu daquilo que ‘sou’ verdadeiramente, se dentro de mim testemunho haver mais do que uma coisa só (e mais ainda em momentos diferentes)? Que poderei revelar como o meu ‘eu autêntico’, se dentro de mim se encontrar não uma só, mas várias tendências e dinâmicas (algumas até contraditórias entre si)?

Na verdade, do ponto de vista cristão, uma simples ‘espontaneidade’ (de acordo com o que, em cada momento, se sente) dificilmente pode ser considerada como suficiente. Ou poderei dizer que são sempre puros e bons todos os apelos ou impulsos que brotam dentro de mim? Ou poderei dizer que, a tudo o que surge na minha mente ou no meu coração, eu quero dar seguimento e concretizar, sem mais? Talvez fosse esse o caso, se o nosso mundo não tivesse sido marcado também pela realidade do pecado. Mas sabemos bem que a realidade não é essa. E sabemos também que o pecado pode limitar o nosso próprio modo de ler e de entender a realidade. De facto, o atrás citado documento do Vaticano II reconhece não apenas que a consciência pessoal pode errar, mas também que o hábito do pecado pode ir progressivamente “cegando” essa mesma consciência (GS 16). Daí a necessidade de transformação (ou ‘conversão’), proclamada por tantos profetas até João Batista. E, finalmente, também pelo próprio Jesus.

A nível da espiritualidade inaciana, logo ao definir o que entende por “Exercícios Espirituais”, Inácio de Loiola refere a necessidade de “ordenar os afetos” (EE[1],[21]). A própria estrutura dos Exercícios reflete essa necessidade, ao incluir logo nos seus inícios (na ‘primeira semana’) aquilo que, na tradição clássica, se chamava a ‘via purgativa’. Só depois de se ter percorrido esta primeira ‘semana’, propõe Inácio que se avance para as ‘semanas’ seguintes (correspondentes à ‘via iluminativa’ e à ‘via unitiva’).

E, no entanto, talvez por no passado se ter insistido demais (ou até de um modo moralista, e não-cristão) na realidade do pecado, nos dias de hoje, este tema dos “afetos desordenados” parece ser um pouco mais difícil de se levantar, e de ser tratado de uma maneira construtiva e saudável. De facto, como vimos, de acordo com a cultura atual, mais facilmente é estimulado simplesmente um (mal-entendido) desejo de ‘autenticidade’, convidando a que cada pessoa seja simplesmente ‘aquilo que é’ (em cada momento), sem mais.

Inácio prevê que a primeira semana dos Exercícios Espirituais possa ser dada sem as seguintes; mas a inversa já não é verdadeira (cfr. EE [18]). De facto, uma vez que os Exercícios estão essencialmente estruturados para que o participante possa tomar decisões, fazer escolhas em liberdade, propor as semanas seguintes, sem que o participante tenha verdadeiramente passado pela primeira semana (sem procurar antes “ordenar os afetos”), acarretará então, naturalmente, o (clássico) risco de querer “que Deus venha direito às suas afeições desordenadas” (cfr. EE [169]). Talvez por isso, já séculos antes Paulo chamava a atenção para o perigo de usar a liberdade como meio para satisfazer os próprios apetites (Gal 5,13). E Pedro advertia para o risco de a liberdade ser utilizada como pretexto para se fazer o mal (1ª Ped 2,16).

Se queremos verdadeiramente discernir o que fazer, ou deixar de fazer, dificilmente poderemos, pois, ficar entregues apenas a nós próprios: para que possamos optar por caminhos que conduzam a mais vida, precisamos que as nossas escolhas tentem estar fundadas também em referências que transcendam o limitado espaço da nossa subjetividade. Para os cristãos, como sabemos, a vida e as palavras de Jesus são a grande referência que nos aponta para “caminhos de vida” e “de eternidade” (Sl 16 e Sl 139).

(continua… a 2ª Parte do artigo vai ser publicado no dia 9 de maio)


Maré Alta

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
À HUNGRIA
(28 - 30 de abril de 2023)

ENCONTRO COM OS POBRES E OS REFUGIADOS NA IGREJA DE SANTA ELIZABETH DA HUNGRIA

DISCURSO DO SANTO PADRE

Igreja de Santa Elizabeth da Hungria (Budapeste)
Sábado, 29 de abril de 2023

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

Estou feliz por me encontrar aqui no vosso meio. Obrigado, D. Antal, pelas suas palavras de boas-vindas e por ter recordado o generoso serviço que a Igreja húngara realiza pelos pobres e com os pobres. Os pobres e os necessitados – nunca o esqueçamos – estão no coração do Evangelho: de facto, Jesus veio «anunciar a Boa-Nova aos pobres» (Lc 4, 18). Assim eles indicam-nos um desafio apaixonante, para que a fé que professamos não fique prisioneira dum culto distante da vida, nem se torne presa duma espécie de «egoísmo espiritual», isto é, duma espiritualidade que eu mesmo construo à medida da minha tranquilidade interior e da minha satisfação. A verdadeira fé, pelo contrário, é aquela que desinquieta, que arrisca, que faz sair ao encontro dos pobres e nos torna capazes de falar, com a vida, a linguagem da caridade. Como afirma São Paulo, podemos falar muitas línguas, possuir ciência e riquezas, mas, se não tivermos caridade, nada temos e nada somos (cf. 1 Cor 13, 1-13).

A linguagem da caridade. Foi a língua falada por Santa Isabel, por quem este povo tem grande devoção e estima. Ao chegar a esta manhã, vi na praça a sua estátua, com o pedestal que a representa enquanto recebe o cordão da ordem franciscana e, contemporaneamente, oferece água a um pobre para lhe matar a sede. É uma imagem estupenda da fé: quem «se une a Deus», como fez São Francisco de Assis a quem se inspirou Isabel, abre-se à caridade para com o pobre, porque, «se alguém disser “Eu amo a Deus” mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20). Santa Isabel, filha dum rei, crescera no conforto da vida de corte, num ambiente luxuoso e privilegiado; e contudo, tocada e transformada pelo encontro com Cristo, bem depressa sentiu que devia rejeitar as riquezas e vaidades do mundo, advertindo o desejo de se despojar delas e cuidar dos necessitados. Assim, não só gastou os seus bens, mas também a sua vida a favor dos últimos, dos leprosos, dos doentes até ao ponto de tratar deles pessoalmente e carregá-los às costas. Esta é a linguagem da caridade.

Disto mesmo nos falou Brigitta, a quem agradeço pelo seu testemunho. Tantas privações, tanto sofrimento, tanto trabalho duro para procurar seguir em frente e não deixar faltar o pão aos filhos e, no momento mais dramático, o Senhor veio ao seu encontro para a ajudar. Mas – ouvimo-lo da sua própria boca – como interveio o Senhor? Ele, que escuta o clamor de quem é pobre, «salva os oprimidos, dá pão aos que têm fome, (…) levanta os abatidos» (Sal 146, 7.8), quase nunca resolve os nossos problemas lá do alto, mas aproxima-Se com o abraço da sua ternura inspirando a compaixão de irmãos que se apercebem e não ficam indiferentes. Foi o que nos disse Brigitta: pôde experimentar a proximidade do Senhor graças à Igreja greco-católica, a tantas pessoas que se prodigalizaram para a ajudar, encorajar, encontrar um emprego e sustentá-la nas necessidades materiais e no caminho da fé. Eis o testemunho que nos é pedido: a compaixão para com todos, especialmente por quantos estão marcados pela pobreza, a doença e o sofrimento. Compaixão significa «padecer com». Precisamos duma Igreja que fale fluentemente a linguagem da caridade, idioma universal que todos escutam e compreendem, mesmo os mais afastados, mesmo aqueles que não acreditam.

E a propósito exprimo a minha gratidão à Igreja húngara pelo empenho posto na caridade, um empenho capilar: criastes uma rede que liga muitos agentes pastorais, muitos voluntários, as cáritas paroquiais e diocesanas, mas também grupos de oração, comunidades de crentes, organizações pertencentes a outras Confissões, mas unidas na comunhão ecuménica que brota precisamente da caridade. E obrigado pela forma como acolhestes – não só com generosidade, mas até com entusiasmo – tantos refugiados da Ucrânia. Escutei emocionado o testemunho de Oleg e sua família; a vossa «viagem rumo ao futuro» – um futuro diferente, longe dos horrores da guerra – na verdade começou com uma «viagem na memória», porque Oleg recordou o caloroso acolhimento recebido na Hungria há alguns anos, quando veio trabalhar como cozinheiro. A recordação daquela experiência encorajou-o a partir com a sua família vindo para Budapeste, onde encontrou generosa hospitalidade. A lembrança do amor recebido reacende a esperança, encoraja a empreender novos caminhos de vida. Com efeito, mesmo na tribulação e no sofrimento, encontra-se coragem para continuar quando se recebeu o bálsamo do amor: e esta é a força que ajuda a acreditar que nem tudo está perdido e que é possível um futuro diferente. O amor que Jesus nos dá e nos manda viver ajuda assim a erradicar, da sociedade, das cidades e lugares onde vivemos, os males da indiferença (a indiferença é como uma peste!) e do egoísmo, e reacende a esperança duma humanidade nova, mais justa e fraterna, onde todos possam sentir-se em casa.

Infelizmente, também aqui muitas pessoas estão literalmente privadas dum teto: muitas irmãs e irmãos marcados pela fragilidade – sozinhos, com várias limitações físicas e mentais, destruídos pelo veneno das drogas, saídos da prisão ou abandonados porque idosos – são afetados por formas graves de pobreza material, cultural e espiritual, e não têm um teto e uma casa para morar. Zoltàn e sua esposa Anna ofereceram-nos o seu testemunho acerca desta grande chaga: obrigado pelas vossas palavras. E obrigado por terem acolhido aquela moção do Espírito Santo que vos levou, com coragem e generosidade, a construir um centro para acolher pessoas sem-teto. Impressionou-me ouvir que, juntamente com as necessidades materiais, prestais atenção à história e à dignidade ferida das pessoas, ocupando-vos da sua solidão, da sua dificuldade em sentir-se amadas e acolhidas no mundo. Anna disse-nos que «é Jesus, a Palavra viva, que cura os seus corações e as suas relações, porque a pessoa reconstrói-se a partir de dentro»; isto é, renasce quando experimenta que, aos olhos de Deus, é amada e abençoada. Isto vale para toda a Igreja: não basta dar o pão que alimenta o estômago, é preciso nutrir o coração das pessoas! A caridade não é mera assistência material e social, mas preocupa-se com a pessoa inteira e deseja reerguê-la com o amor de Jesus: um amor que ajuda a readquirir beleza e dignidade.

Praticar a caridade significa ter a coragem de fixar nos olhos. Não podes ajudar o outro, voltando a cara para o lado oposto. Para praticar a caridade, é preciso ter a coragem de tocar: não podes deitar a esmola de longe, sem tocar. Tocar e fixar nos olhos. E assim, tocando e olhando, começas um caminho, um caminho com aquela pessoa necessitada, que te fará compreender quão necessitado, quão necessitada és tu próprio do olhar e da mão do Senhor.

Irmãos e irmãs, encorajo-vos a falar sempre a linguagem da caridade. A estátua, nesta praça, representa o milagre mais famoso de Santa Isabel: conta-se que o Senhor uma vez transformou em rosas o pão que ela levava aos necessitados. O mesmo se dá convosco, quando vos empenhais em levar o pão aos famintos, o Senhor faz florescer a alegria e perfuma a vossa existência com o amor que dais. Irmãos e irmãs, faço votos de que possais levar sempre o perfume da caridade à Igreja e ao vosso país. E peço-vos, por favor, que continueis a rezar por mim.


Maré Alta

Opinião Santo Inácio de Loiola

Contemplação para alcançar amor: A Páscoa de Inácio de Loiola

P. Luís Maria da Providência, sj | 19 Abril 2023 | in Ponto SJ

Em 1522, fruto da conversão e de uma peregrinação contínua, Inácio de Loiola passa a ser um “homem novo” (Ef 4, 22-24) e a ver todas as coisas como novas. Transforma-se no “homem interior” (2 Cor 4, 16-18). A sua existência passa a ser especialmente pautada pelo ofício de consolar e pelo testemunho da misericórdia. Rasga-se a Inácio de Loiola um novo horizonte pascal, que se reflete no texto conclusivo do livro dos Exercícios Espirituais (EE), intitulado “Contemplação para alcançar amor” (EE 230- 237). Este texto permanece de grande atualidade para o nosso tempo.

Inácio de Loiola (1491-1556) nasce num tempo de transição entre a idade média tardia e o princípio da modernidade. A navegação marítima passa a ligar os diferentes continentes, dando início à globalização. Os grandes centros urbanos desenvolvem-se a um ritmo crescente. A experiência e o método passam a estar na base do conhecimento, o que se reflete no escrito mais conhecido de Inácio, os Exercícios Espirituais.

O tom e o modo deste novo horizonte que se rasga a Inácio de Loiola é claramente pascal e pentecostal. A Páscoa não é uma lenda que nos aconchega a alma, não é uma narrativa dissociada da realidade, não é um catecismo aprendido de memória, não são ritos associados a um tempo irremediavelmente perdido. A Páscoa é um novo modo de ver e sentir, de estar e agir, no qual descobrimos uma nova identidade, genuína e profunda. É um desafio a deixar cair a máscara e os artifícios do Ego. É um apelo à experiência interior da radicalidade – a vivência do sentir-se livre, “indiferente” (EE 23). A Páscoa é, assim, uma nova perspetiva antropológica e existencial, individual e comunitária. A Páscoa é vida em Deus e, vida em abundância. E, consequentemente, a Páscoa é profundamente dinâmica.

Mas que novo horizonte é este, esboçado na “Contemplação para alcançar amor”? Os EE distinguem-se de qualquer outro tipo de exercícios, pois visam a colaboração com a graça e não a conquista de um troféu. No verão de 1522, a cerca de dois quilómetros da pequena cidade de Manresa (Catalunha), Inácio encontrava-se no cimo de uma ribanceira e lá no fundo corria o rio Cardoner. Esta geografia permitia a Inácio disfrutar de um vasto horizonte. Subitamente, experimentou uma profunda transformação do “entendimento”. A sua Autobiografia dedica dezassete linhas a esta graça, sendo o termo “entendimento” recorrente por seis vezes. Fruto desta iluminação, Inácio diz que passou a ser um homem novo e a ver todas as coisas como novas. Mais ainda, passou a ter uma perspetiva integrada dos mais variados domínios do conhecimento. Esta iluminação do entendimento nada tem a ver com o gnosticismo, pois tem na base o afeto à pessoa do Crucificado-Ressuscitado.

Na “Contemplação para alcançar amor” Inácio procura explicitar esse novo horizonte, profundamente pascal, desenvolvendo-o em quatro pontos. Na perspetiva de Josep Rambla SJ estes pontos podem ser apresentados do seguinte modo: Primeiro ponto, “a vida cristã é graça”. Consequentemente, procuremos sentir-nos permanentemente agraciados pelos bens da criação, pelos bens da redenção, pelos dons pessoais e por este Deus que deseja dar-Se-me. E dar-Se a cada um de nós.

Segundo ponto, “a vida cristã é um encontro”. Vimos atrás este dado incrível da revelação: Deus dá-Se-me! E dá-Se a cada um de nós! Deus habita em todas as criaturas, mas de um modo especial no ser humano, fazendo dele templo do Espírito Santo. Jesus fala à Samaritana num novo culto que não tem lugar nem em Garizim (monte sagrado para os samaritanos) nem em Sião, no templo de Jerusalém (Jo 4). Trata-se de um novo culto, em espírito e verdade, fruto do encontro com este Deus que habita o nosso próprio ser, se nos dispusermos a acolhê-Lo.

Terceiro ponto, “viver em esperança”. Poderemos ficar com a sensação que cada novo dia é um milagre, já que a humanidade tem hoje a possibilidade de se auto destruir. Deus não apenas habita, mas trabalha também em cada criatura. Deus habita e trabalha. A presença de Deus é dinâmica. “O meu Pai trabalha continuamente e Eu também” (Jo 5, 17). Daí a esperança que se acende relativamente ao futuro, já que Deus age na Criação e na História, e não se limita a atirar com cada ser para a existência, a criar por criar. O homem é criado para viver em Deus (EE 23).

Quarto ponto, “sensíveis à diafania de Deus”. Deus manifesta-se na Criação e na História. A manifestação diáfana de Deus pode ocorrer em cada ser humano, através de ti, de mim, de cada um de nós, dispondo-nos a acolher os dons do alto (Tg 1, 17) e, consequentemente, vivendo do encontro com este Deus que nos habita. Então, cada um que se deixa habitar, pode ser presença e testemunho de Deus no meio do mundo, ao jeito de Jesus que, tal como no episódio do lava-pés, testemunha uma liderança sui generis. Se nos formos esvaziando e acolhendo os dons do alto, então podemos ser sucessivamente poder de Deus (exercendo uma liderança ao jeito de Jesus), justiça de Deus, bondade de Deus, piedade de Deus e, finalmente, misericórdia de Deus no meio do mundo.

A liderança cristã é explicitada na justiça, na bondade, na piedade e na misericórdia. Em última instância a liderança é sinónimo de misericórdia. A mística pressupõe a primazia da presença e ação de Deus na vida, sendo testemunhas da Sua misericórdia. Antes de entrar na “Contemplação para alcançar amor”, é dito que o específico do Ressuscitado nas aparições é o ofício de consolar (EE 224). Consequentemente, também tem que ser esse o distintivo de cada discípulo do Ressuscitado e testemunha da ressurreição. Na “Contemplação para alcançar amor”, Inácio acrescenta ao ofício de consolar o testemunho da misericórdia. Os EE são uma escola da misericórdia. Antes de mais abrem-nos à misericórdia de Deus. O Senhor, na Sua infinita misericórdia, deixa-nos desconcertados! Em diversas ocasiões da história de cada um de nós, Ele segurou-nos, impedindo-nos de cair ou mesmo foi buscar-nos lá ao fundo. No final dos EE convida cada um a ser no mundo diafania dessa misericórdia.

A perspetiva pascal de Inácio surge numa época de mudanças profundas – o início da globalização, a reforma, a contra reforma – em que havia que discernir a direção a seguir para se pôr ao serviço do Senhor.

Tal como a Inácio de Loiola no século XVI, também no nosso tempo os seres humanos e a Igreja se vêm confrontados com profundas mudanças – as alterações climáticas, a pandemia, a guerra, os diversos abusos na Igreja e o grande desafio de construirmos um caminho Sinodal – que requerem um exigente processo de discernimento.

O Papa Francisco tem procurado mostrar, profeticamente, o rumo a ser tomado pela Igreja e pela Humanidade, no nosso tempo. As encíclicas do seu pontificado, nomeadamente Laudato Si’ (Sobre o cuidado da casa comum) e Fratelli Tutti (Sobre a fraternidade e a amizade social), são um testemunho do desejo da construção de um novo horizonte pascal que o Senhor propõe hoje à Igreja e ao Mundo. Mediante a comunhão com o Pai pelo Filho e no Espírito Santo, cada um de nós é chamado a levar aos outros este novo horizonte, a Páscoa, mediante o ofício de consolar e uma liderança pautada pela misericórdia.


Maré Alta

CIBERCULTURA – Experimenta o tempo sem relógio

Miguel Oliveira Panão | 12 Abril, 2023 | in Ecclesia

A sinodalidade é um fruto do Espírito Santo. Não provém tanto das nossas cabeças, ainda que as usemos para o efeito. É o Espírito Santo que faz novas todas as coisas e renova a face da Terra. Mais ainda se justifica que possa renovar, também, a nossa liturgia, uma vez que através dessa podemo-nos aproximar de Deus. Reconheço que o modo como a liturgia se estrutura na grande Festa da Páscoa, talvez precise de uma renovação. A reacção de muitas crianças, jovens e até dos adultos às celebrações de Vigília que perduram até às tantas da manhã demonstram essa necessidade. A necessidade de aprender a compreender melhor como lidamos com o tempo.

O “drama” das longas celebrações deve-se muito à experiência de tempo no século XXI. Só aguentamos numa sala sentados durante 3h e sem falar, se diante de nós houver uma tela que garanta o nosso entretenimento e atenção ao projectar uma história que estimule a produção de adrenalina durante esse período. Sete leituras intercaladas de sete salmos pretendem mais do que recordar. Penso que o seu propósito seja o de “reviver” a nossa história até à Ressurreição de Jesus, mas o que pude auscultar foi o crescente sabor de uma passividade que deixa de transformar quem faz o esforço de escutar, emergindo o pensamento — «quando é que isto acaba mesmo?» — Naturalmente, esta pergunta remete para a experiência de tempo que fazemos durante qualquer celebração litúrgica. É preciso alterar as celebrações?

Quando fui a uma conferência na Alemanha, cheguei no fim-de-semana e no Domingo gostaria de ir à missa. Procurei no mapa e haviam diversas Igrejas. Quando vi a de S.Miguel, por ter o mesmo nome, a escolha estava feita. Depois de saber o horário, no Domingo, fui um pouco antes da hora para rezar. Quando a celebração começou achei inúmeras coisas estranhas. Procurei um dos livros que se encontravam nos bancos e percebi que aquela não era uma Igreja com o ritual católico. Oops. Saí e fui ter à próxima Igreja no mapa. Ao aproximar-me ouvia cânticos alegres e pensei — «É esta!» — até que vi o letreiro a dizer algo semelhante a “…Luterana…”. Oops, também não é esta. Tentei uma terceira hipótese e nessa vi uma freira entrar. As dúvidas dissiparam, mas a experiência foi inesperada. Não entendi uma só palavra de alemão, mas pelo facto do Ritual ser o mesmo em todo o mundo percebi sempre em que momento estava da Eucaristia e senti-me próximo de Deus. Havia feito uma experiência litúrgica no tempo.

Os rituais são importantes por serem expressão de uma experiência religiosa comum. Mas a digitalização do consumo de informação trouxe ao olhar mais do que as palavras que antes líamos num livro, revista ou jornal. A sociedade cibercultural vive muito de imagens e filmes onde o exercício de escuta envolve sempre o olhar. E mesmo o olhar que contempla cede aos tempos bem definidos para cada coisa. Os vídeos precisam de ter entre 2 e 5 minutos se quisermos que as pessoas mantenham a sua atenção.

Havendo no pulso um relógio, ou no no bolso um telemóvel, a vida fragmenta-se em intervalos de tempo que dedicamos a viver cada coisa. Por outro lado, como os relógios materializam a experiência de tempo na forma de dígitos, existe um aspecto físico no contacto com os ritmos cronológicos que poderão estar a determinar o tipo de experiência que temos no tempo. E se fossemos à missa sem relógio ou telemóvel? Isto é, e se não houvesse qualquer contacto com algo que marcasse o tempo? Será que a liturgia teria um sabor diferente?

É difícil aceitar esta proposta porque se tornou imperativo estarmos cientes das horas, minutos e segundos, assim como alguém pode querer contactar-nos com urgência. Inúmeras são as razões que encontramos para levar connosco algo que marque o tempo durante as celebrações, mas custa assim tanto abdicar de algo que contenha as horas? Talvez, mas vale a pena pensar no modo de fazer esta experiência sem relógio.

Sem a proximidade de algo que nos marque as horas, meias-horas ou quartos-de-hora, voltamos ao nosso estado de criança,
onde não havia qualquer preocupação com o tempo ou como nos primórdios da humanidade quando o tempo era uma noção que não existia. Colocar de lado o relógio só se tornou uma das coisas mais desafiantes no século XXI porque deixámos que a Grande Aceleração onde nos imergimos desde 1950 dominasse cada instante da nossa vida. Se tomarmos consciência disso, basta dedicar alguns momentos do nosso dia, mais à experiência de tempo do que à sua gestão. Não se podem realizar mudanças culturais profundas de um dia para o outro, mas nada nos impede de sermos criativos nos primeiros passos a dar na vivência de momentos sem relógio.


Maré Alta

O sentido da Páscoa perante a fragilidade, segundo o cardeal Martini

7Margens | 9 Abr 2023

Num artigo publicado pelo jornal católico Avvenire, em 15 de abril de 2011, o cardeal Carlo Maria Martini meditava sobre o mistério da Páscoa, trazendo para o coração dessa meditação a existência humana que, “para além da retórica fácil, se joga sobretudo no terreno do obscuro e do difícil”.

Ele referia-se, por exemplo, aos doentes, pensando sobretudo “naqueles que sofrem sob o peso de diagnósticos pouco auspiciosos, naqueles que não sabem a quem comunicar a sua angústia, e também em todos aqueles para quem se aplica o antigo, icónico e quase intraduzível ditado senectus ipsa morbus, ‘a velhice é, pela sua própria natureza, uma doença’”.

Nos doentes, o cardeal via “o estigma da fraqueza e fragilidade humana”, já que “eles são provavelmente a maioria dos homens e mulheres deste mundo”.

Ao contrário do Natal, que que se liga ao nascimento da vida e a uma atmosfera de alegria, incluindo para não-cristãos e não-crentes, a Páscoa “permanece um mistério mais escondido e difícil”.

“É por isso – escrevia, então, o conhecido cardeal e arcebispo de Milão – que gostaria que a Páscoa fosse sentida sobretudo como um convite à esperança também para os que sofrem, para os idosos, para todos aqueles que estão dobrados sob o peso da vida, para todos os excluídos dos circuitos da cultura dominante, que é (enganosamente) a do ‘estar bem’ como um princípio absoluto”.

Evocando a saudação e o grito “Cristo ressuscitou, Cristo ressuscitou verdadeiramente”, trocado nestes dias pelos cristãos do Oriente, o purpurado desejava que essa saudação e esse grito “viajassem pelas enfermarias dos hospitais, entrassem nos quartos dos doentes, nas celas das prisões”, que levantassem “um sorriso de esperança mesmo naqueles que estão nas salas de espera para os complicados testes exigidos pela medicina de hoje, onde frequentemente se encontram rostos tensos, pessoas que tentam esconder o nervosismo que as agita”.

No momento em que escrevia a reflexão, Martini era já idoso, assumindo-se como “um pouco enfraquecido em força, já na lista de chamada para uma passagem inevitável” (viria a morrer pouco mais de um ano depois, em 31 de agosto de 2012). Mas nem por isso deixava de se perguntar: “o que me diz hoje a Páscoa? (…) E o que poderá também dizer àqueles que não partilham da minha fé e esperança?”.

A sua resposta começava por recorrer à carta de São Paulo aos Romanos (8,18): “Os sofrimentos do momento presente em nada são comparáveis à glória futura que se há-de revelar em nós”. Acrescenta que eles são, antes de mais, os sofrimentos de Cristo na sua Paixão, “para os quais seria difícil encontrar uma causa ou uma razão se não se olhasse para além do muro da morte”.

“Mas há também – alertava o cardeal – todos os sofrimentos pessoais ou coletivos que sobrecarregam a humanidade, causados quer pela cegueira da natureza, quer pela maldade ou negligência dos homens. Temos de repetir corajosamente para nós próprios, superando a nossa resistência interior, que não há proporção entre aquilo que temos de sofrer e aquilo que temos de esperar”.

“Não estamos desanimados”, dizia, porque “não fixamos o nosso olhar nas coisas visíveis, mas sim nas invisíveis. As coisas visíveis são momentâneas, as coisas invisíveis são eternas”.

Voltando a S. Paulo, que dizia no mesmo capítulo da carta aos Romanos, que a esperança se refere àquilo que ainda não se vê e não àquilo que está diante dos nossos olhos, o antigo arcebispo de Milão comentava: “Esperar desta forma pode ser difícil, mas não vejo outra saída para os males deste mundo, a menos que se queira esconder o rosto na areia e não se queira ver ou pensar nada.”

“Mais difícil, porém, é para mim expressar aquilo que a Páscoa pode dizer àquelas pessoas que não participam da minha fé e estão dobrados sob o peso da vida”, observava ele. “Nisto, sou ajudado por pessoas que conheci e nas quais senti uma fonte misteriosa, que as ajuda a olhar o sofrimento e a morte de frente, mesmo sem poderem dar razões para o que se seguirá. Vejo assim que há dentro de todos nós algo daquilo a que S. Paulo chama ‘esperar contra toda a esperança’ (Romanos, 4.18), ou seja, uma vontade e coragem de continuar apesar de tudo, mesmo que não se tenha compreendido o significado do que aconteceu”, demonstrando “uma resiliência que tem algo de milagroso”.

Entre os exemplos que o arcebispo Carlo Maria Martini dava, em 2011, destacam-se o tsunami de 26 de Dezembro de 2004 e as inundações de Nova Orleães causadas pelo furacão Katrina no mês de Agosto seguinte, com tudo o que foi feito com energia indomável, para enfrentar a adversidade. Aludiu também às energias de reconstrução que surgem do nada após a tempestade das guerras. E recordou as palavras que Etty Hillesum escreveu a 3 de Julho de 1942, antes de ser levada para Auschwitz para morrer, quando tinha 28 anos: “Olhei para o rosto da nossa iminente destruição, o nosso previsível fim miserável, que já se manifestava em muitos momentos comuns da nossa vida quotidiana. Foi esta possibilidade que incorporei na perceção da minha vida, sem experimentar uma diminuição da minha vitalidade em consequência disso. A possibilidade da morte é uma presença absoluta na minha vida, e por causa disso a minha vida adquiriu uma nova dimensão”.

Para viver esta “nova dimensão”, Martini dizia-nos que não podemos contar com a ciência, exceto para lhe pedir alguns meios técnicos. “A questão é sobre o significado do que está a acontecer, e ainda mais sobre o amor que é oferecido mesmo em tais conjunturas. Há alguém que me ama tanto que me sinto cheio de vida mesmo em fraqueza, que me diz: “Eu sou a vida, vida para sempre.”

“Desta forma a ressurreição entra na experiência diária de todos os sofrimentos, especialmente os doentes e os idosos, dando-lhes a possibilidade de ainda produzirem frutos abundantes apesar da fraqueza que os assola. A vida na Páscoa revela-se mais forte do que a morte e é assim que todos nós esperamos agarrá-la”, concluía o cardeal Carlo Maria Martini.


Maré Alta

Via-sacra do cristão cansado

Há um lugar para todos ao longo do caminho que sobe ao Calvário. Hoje gostaria de reservar, em sete estações da via-sacra, um lugar ao cristão que sente o coração algo pesado, que vive a fatiga do caminho, que percebe a sua fé a vacilar, que sente o cansaço de estar na Igreja de hoje, nas comunidades de hoje, no mundo de hoje.

1.ª Estação
Jesus reza no Horto das Oliveiras

- Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.

«Saiu então e foi, como de costume, para o Monte das Oliveiras. E os discípulos seguiram também com Ele. Quando chegou ao local, disse-lhes: “Orai, para que não entreis em tentação.” Depois afastou-se deles, à distância de um tiro de pedra, aproximadamente; e, pondo-se de joelhos, começou a orar, dizendo: «Pai, se quiseres, afasta de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua.» Então, vindo do Céu, apareceu-lhe um anjo que o confortava. Cheio de angústia, pôs-se a orar mais instantemente, e o suor tornou-se-lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra. Depois de orar, levantou-se e foi ter com os discípulos, encontrando-os a dormir, devido à tristeza. Disse-lhes: “Porque dormis? Levantai-vos e orai, para que não entreis em tentação.”» (Lucas 22, 39-46)

Tenho de o admitir: muitas vezes a minha oração é árdua, distraída, superficial. Sinto a preguiça, noto a tentação de pensar que a oração, no fundo, não serve. Interrogo-me sobre o que é realmente a oração e na maior parte das vezes não tenho resposta. Quando rezo, balbucio alguma coisa; o silêncio custa-me. Permanecer na Palavra exige-me mais do que aquilo que estou disposto a conceder. Vivo a liturgia com dificuldade; o culto por vezes é-me tão estranho que não percebo o que estou a fazer, o motivo porque, no fundo, continuo a frequentá-lo. Aprecio a emoção criada por certas devoções, mas a maior parte delas diz-me pouco ou mal.
A injustiça e a dor do mundo desarranjam a minha oração, tornando-a árida.
Sinto como meu o sono dos discípulos adormecidos no jardim.

Senhor, Tu sabes o que me habita,
o bem que procuro dar-te,
o mal que procuro repudiar.
Senhor, aumenta a minha fé,
sustém a minha fragilidade,
continua a dirigir-me o convite
a falar contigo.

2.ª Estação
Jesus é condenado à morte

- Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.

«Era o dia da Preparação da Páscoa, por volta do meio-dia. Disse, então, aos judeus: “Aqui está o vosso Rei!” E eles bradaram: “Fora! Fora! Crucifica-o!” Disse-lhes Pilatos: “Então, hei de crucificar o vosso Rei?” Replicaram os sumos sacerdotes: “Não temos outro rei, senão César.” Então, entregou-o para ser crucificado. E eles tomaram conta de Jesus.» (João 19, 14-16)

Cultivei esperanças, dei o meu tempo e o meu empenho, deixei-me guiar pelas minhas ideias, que me pareciam boas; amadureci convicções, tive a coragem de dar espaço a algumas intuições sobre o modo de viver a fé aqui e agora. Gastei energias, fiz escolhas e renúncias. Mas depois, grande parte desse trabalho, desse dom de mim, boa parte das minhas opiniões, passadas inclusive pelo exame do diálogo, do estudo, da oração, foram acantonadas. Boa parte daquilo em que acreditava no passado foi crucificado; boa parte daquilo que acredito hoje foi crucificado. Aconteceu-me ouvir as palavras mais duras, ver as atitudes mais hostis da parte daqueles que teriam funções de orientação, de apoio, de acompanhamento, muitas vezes autoabsolvendo-se. Somos todos muito corajosos a encontrar justificações para as nossas condenações.

Pilatos, a multidão, os sumos-sacerdotes: cada um tem uma maneira de se reafirmar a si próprio. A partir dos chefes, como não raramente acontece, quem tem responsabilidade e poder sufoca o que não está alinhado, o que sobressalta pela novidade, o que exige a discussão. E quantas vezes, por causa de uma tomada de posição, para manter ou adquirir um poder, Cristo foi vendido pelos sumos-sacerdotes ao poderoso de turno ou aos gritos da multidão.
O maior cansaço é ter a força de manter a paz mesmo quando muito daquilo se construiu foi posto de parte, para não dizer destruído. Alguém chamava a isso «alegria perfeita».

A mim, porém, custa-me entrar na «alergia perfeita». A cruz não é uma experiência nem fácil nem ligeira. Deve entrar na vida, deve entrar na carne. E é dura.

É uma experiência que acontece a muitos.
É uma experiência que aconteceu também a Jesus de Nazaré.

Senhor, dá-me a constância de responder àquilo que sou,
àquilo que Tu desejas que eu seja;
dá-me a lealdade de pensamento
e a humildade de saber renunciar a ele;
dá-me a verdade de mim mesmo,
mesmo quando exige pequenas e grandes crucificações.

3.ª Estação
Jesus cai sob a cruz

- Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.

«O terror invade-me.A minha prosperidade foi varrida como o vento
e, qual nuvem, passou a minha felicidade.
Agora, a minha alma perde a força,
os dias da aflição apoderam-se de mim.
De noite, a dor trespassa-me os ossos,
e os males que me roem não têm descanso.
Com violência agarra a minha roupa,
aperta-me como a gola da minha túnica.» (Job 30, 15-18)

Tinha estima por algumas grandes figuras; lia os seus livros, encontrava inspiração nas páginas que escreviam, nos discursos que proferiam. Depois, um dia, uma verdade mantida culpavelmente oculta foi revelada, e assim aquelas grandes figuras caíram. Caíram pela sua malvadez, pela sua arrogância, pelas suas absurdas justificações teológicas, pela sua vida dupla, pelo seu pecado que ceifou vítimas como trigo. Caem, depois de ter posto às costas de alguns, mais frágeis e débeis, cruzes pesadíssimas. Caem, e com ele arrastam muitas vezes grupos e instituições que construíram a cobertura, que defenderam a mentira, que rejeitaram a vítima para proteger o culpado.

Caem muitos no momento do desvelamento: quem fez, quem sofreu. Caem diversos: mas, no fim, só um rosto permanece esmagado por terra. E ao passo que a dor de quem sofreu não se pode medir, ao passo que o mal cometido é um abismo, recordo também a dor de quem, como eu, olhava com sincera admiração para aqueles que por fim se mostraram como carnífices, antes de serem abatidos por uma verdade pesada como uma cruz. Também eu, também nós vítimas do mal.

Senhor,
recorda-me que só Tu és Deus,
só Tu és Senhor,
só Tu és o homem que cumpre a humanidade,
só Tu és confiável até à consumação de si.

4.ª Estação
Simão de Cirene ajuda Jesus a levar a cruz

- Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.

«Quando o iam conduzindo, lançaram mão de um certo Simão de Cirene, que voltava do campo, e carregaram-no com a cruz, para a levar atrás de Jesus.» (Lucas 23, 26)

Quantos homens e mulheres estão dobrados por pesos e cansaços, dores e sofrimentos. E depois, por vezes, também nós, cristãos, colocamos mais um peso, em vez de sermos como aquele Simão de Cirene e ajudar quem suporta uma carga penosa.

Olho de longo, talvez exclame algumas frases bonitas. Mas ajudar a levar a cruz é um compromisso de que fujo.
Ponho pesos quando sou prisioneiro do meu juízo seguro, das minhas leituras, dos meus raciocínios, dos meus comportamentos habituais. Ponho pesos quando me fecho, inflexível, nos meus artigos de fé e de vida, nos meus critérios pessoais de avaliação. Ponho pesos quando o meu olhar condena. Ponho pesos quando ponho em questão os outros, para não me pôr eu em questão.

Sinto-me também parte de uma Igreja que por vezes põe pesos para não se sujar nos dramas da vida, para não compreender as dores de existências feridas. Uma Igreja que põe pesos ao longe para não se aproximar, mesmo quando o Evangelho exigiria acolhimento, misericórdia, bondade.
Há um Simão de Cirene que por vezes eu imitei. Há um Simão de Cirene que muito mais vezes eu afastei de mim.

Senhor,
dá-me a capacidade de compreender quando ponho pesos
às costas frágeis dos outros,
dá-me o dom de carregar mais do que pesar,
dá-me o dom de partilhar mais do que julgar,
dá-me o dom de aproximar-me quando, pelo contrário, quero distanciar-me
do irmão e da irmã sem fôlego.

5.ª Estação
Jesus encontra as mulheres de Jerusalém

- Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.

«Seguiam Jesus uma grande multidão de povo e umas mulheres que batiam no peito e se lamentavam por Ele. Jesus voltou-se para elas e disse-lhes: “Filhas de Jerusalém, não choreis por mim, chorai antes por vós mesmas e pelos vossos filhos; pois virão dias em que se dirá: ‘Felizes as estéreis, os ventres que não geraram e os peitos que não amamentaram.’ Hão de, então, dizer aos montes: ‘Caí sobre nós!’ E às colinas: ‘Cobri-nos!’ Porque, se tratam assim a árvore verde, o que não acontecerá à seca?”» (Lucas 23, 27-31)

Não é preciso muita honestidade intelectual para reconhecer o quanto as mulheres sofreram ao longo dos séculos, também por uma religião administrada por homens, com critérios de homens. E no entanto hoje as nossas comunidades são suportadas pelo trabalho, tantas vezes silencioso, de muitas mulheres, a quem quase sempre são confiadas tarefas de segunda ordem. O importante, continua hoje a parecer, no século XXI, é que as mulheres não decidam ou decidam sobre coisas não importantes. Há ainda demasiada distância entre as palavras e as ações. São incoerências que cansam, são opções parciais que ainda se radicam numa exclusão, são retóricas que muitas vezes exaltam modelos tão distantes que são irreais. Não consigo ver pulsar a vida verdadeira das mulheres nos espaços eclesiais.
Há um pranto das mulheres que inunda os séculos e que se torna um pranto por aquilo que foi, um pranto por aquilo que ainda é.

Senhor,
dá-me a força de renunciar a alguma coisa
para dar espaço aos outros,
ilumina a estrada para um caminho partilhado,
onde todos sejam filhas e filhos,
onde cada um possa levar aquilo que é realmente.

6.ª Estação
Jesus é despojado das vestes

- Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.

«Os soldados, depois de terem crucificado Jesus, pegaram na roupa dele e fizeram quatro partes, uma para cada soldado, excepto a túnica. A túnica, toda tecida de uma só peça de alto a baixo, não tinha costuras. Então, os soldados disseram uns aos outros: “Não a rasguemos; tiremo-la à sorte, para ver a quem tocará.” Assim se cumpriu a Escritura, que diz: “Repartiram entre eles as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes.” E foi isto o que fizeram os soldados.» (João 19, 23-24)

A veste arrancada do Crucificado é a Igreja que hoje habito: dividida e ferida. E não falo das diferentes confissões cristãs, mas da Igreja católica. Grupos e grupetos, calúnias e venenos. Um papa hostilizado, criticado e ofendido como poucas vezes na história. Nós, cristãos, tornámo-nos um espetáculo penoso: guerras de gangues, notícias falsas e tendenciosas, calúnias. Quem deveria trabalhar para a unidade juntamente com Pedro faz circular documentos anónimos, fomenta o ódio, transmite venenos a órgãos mediáticos propensos e interessados em lançar cada vez mais descrédito, talvez justificando-se de mil maneiras. Admite-se o boato por causas aparentemente mais altas. Falsamente envolvidos em boas intenções e zeladores em defesa de verdades parciais, demasiados cristãos arrancam fragmentos de veste do Cristo. As redes sociais tornaram-se uma arena para desafogar frustrações eclesiais e transformar em acrimónia medos profundos. O ataque pessoal substituiu o diálogo respeitoso. E enquanto consumimos energias e tempo em batalhas fora da história e fora do Evangelho, poucos têm ainda a coragem de erguer o olhar para o Cristo crucificado na sua nudez.

Senhor,
dá-me o respeito e a docilidade,
a capacidade de construir e não de destruir;
dá-me a misericórdia e a escuta;
dá-me o dom de ver a diversidade como uma riqueza,
de conhecer o bem do outro mesmo quando me é hostil,
elimina a agressividade e o ódio entre irmãos de fé;
dá-me um olhar bom sobre o mundo,
que Tu já salvaste e que não esqueceste.

7.ª Estação
Jesus morre na cruz

- Nós te adoramos e bendizemos, ó Jesus.
- Que pela tua Santa Cruz remiste o mundo.

«Ao chegar o meio-dia, fez-se trevas por toda a terra, até às três da tarde. E às três da tarde, Jesus exclamou em alta voz: “Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?”, que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?Ao ouvi-lo, alguns que estavam ali disseram: “Está a chamar por Elias!” Um deles correu a embeber uma esponja em vinagre, pô-la numa cana e deu-lhe de beber, dizendo: “Esperemos, a ver se Elias vem tirá-lo dali.” Mas Jesus, com um grito forte, expirou.» (Marcos 15, 33-37)

A pena do mundo, a dor dos inocentes, a doença, a violência, a guerra, a morte, porquê tudo isto? Porquê, Senhor, se morreste em oferta, se atravessaste aquela passagem de escuridão, se sofreste o ultraje, se padeceste como inocente, se estás morto… porque, Senhor, não nos poupaste este caminho? Porquê a dor e a morte de pessoas queridas? Porquê a minha morte?

O sofrimento põe em discussão a minha fé e impele-me a gritar: «Porque nos abandonaste?» Devo permitir à cruz que sacuda a minha fé. Porque se acredito, quero acreditar em profundidade. Não me satisfaço com frases feitas, com discursos frios que são apenas outros pregos na carne, com explicações superficiais. Se acredito, quero acreditar com todo o meu ser. Interrogar-me e interrogar-te. Procurar um sentido. Tentar sempre. É o que também Tu fizeste: levantaste um grito. Nisto recordo que cada grito ao Céu pelo mal do mundo é não só lícito, mas também divino.

Senhor,
acolhe o brado dos inocentes,
infunde na criação o teu bem,
sustenta os crucificados,
não permitas que a dúvida seja tão penetrante
ao ponto de anular a fé.

Epílogo
No caminho de Emaús

«Nesse mesmo dia, dois dos discípulos iam a caminho de uma aldeia chamada Emaús, que ficava a cerca de duas léguas de Jerusalém; e conversavam entre si sobre tudo o que acontecera. Enquanto conversavam e discutiam, aproximou-se deles o próprio Jesus e pôs-se com eles a caminho.» (Lucas 24, 13-15)

Habito este tempo, esta Igreja, esta vida. Aqui posso ser alcançado pelo Cristo. É aqui, e não noutro lugar: enquanto caminho por estas estradas, e não por aquelas que imagino, por aquelas que teria sido eu a querer. Nesta terra, neste entardecer: aqui Jesus pode juntar-se, pode caminhar comigo. Aqui pode escutar-me, pode falar-me, aqui pode desatar os nós do meu coração, os nós da minha fé frágil, da minha fé sempre a renovar. Aqui, a pouca distância de Jerusalém, para onde sinto que devo ir. Ainda que de Jerusalém, do centro, da instituição, me afastei duas léguas. Mas ali está, igualmente, um viandante que espera.
Aqui posso dar espaço à minha humanidade, abrir a minha existência à sua Palavra; aqui posso experimentar a força da sua ressurreição. Porque a minha fé não é uma fé que termina na cruz, mas uma fé que da cruz conduz à ressurreição, à vida, à luz.

Senhor,
acosta-te a mim,
oferece-me a tua saudação,
caminha comigo,
lá onde eu estiver,
lá onde ponho em jogo aquilo que sou,
lá onde o caminho me está a conduzir.
Acosta-te, fala-me,
partilha comigo a luz de vida
da tua ressurreição.
Ámen.

Sergio di Benedetto | In Vino Nuovo | Trad.: Rui Jorge Martins | in SNPC | Publicado em 28.03.2023


Maré Alta

Desporto e vida:

Diálogo entre o cardeal Tolentino e o campeão olímpico Filippo Tortu

Quando o desporto se faz mais nobre: esta expressão do papa Francisco é o fio condutor dos diálogos com atletas de alto nível promovidos no Vaticano, relançando a visão inclusiva e solidária para um desporto que seja expressão autêntica de cultura e oportunidade de crescimento social.

O cardeal José Tolentino de Mendonça, prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, e o italiano Filippo Tortu, de 24 anos, campeão olímpico da estafeta 4X100 nos Jogos de Tóquio de 2020, foram os protagonistas do primeiro encontro, realizado a 15 de março.

A iniciativa é organizada pela Athletica Vaticana, instituição polidesportiva da Santa Sé, o Dicastério para a Comunicação e o Dicastério para a Cultura e Educação, ao qual o papa consignou as questões e atividades relacionadas o desporto.

Reproduzimos o diálogo, que constituiu um pacto entre gerações e uma proposta cultural, entre os valores existenciais da lentidão e da velocidade, com a linguagem do desporto e da poesia.

Card. Tolentino de Mendonça

Estou muito grato pela possibilidade deste encontro com o Filippo para dialogarmos juntos sobre questões que tocam a vida. Porque falar do desporto é falar da nossa humanidade e da forma da nossa humanidade hoje. O desporto não deve ser visto sobretudo como uma forma de entretenimento ou como uma expressão de uma tecnicidade, como se um atleta fosse uma máquina. Antes de tudo um atleta é uma pessoa humana. O Filippo corre sem mais com a técnica que aprendeu, com toda a sua disciplina e com os seus músculos. Mas corre também com o seu coração, com a sua cabeça, com o seu sonho de ser pessoa, com a capacidade de ser com os outros. A alegria de uma vitória, e não só na prova de estafeta, é sempre partilhada. Mas seguramente na vida de um atleta existem também derrotas partilhadas. Por isso a corrida é também uma parábola da nossa humanidade.

Filippo Tortu

Obrigado por me ter dado a possibilidade de estar aqui, no Vaticano, a falar convosco. Enquanto observada o vídeo com a minha história desportiva, tentei imaginar o que poderia dizer. E encontrei dois ou três pontos… devo dizer que foram todos elencados por este belíssimo discurso introdutório que o senhor fez e que realmente me tocou.
Hoje poderia falar de quanto um atleta se tem de sacrificar, de quanto treino, de quanta técnica, de quanta preparação está por trás de cada momento de cada competição.

Precisamente ao observar as imagens que foram agora mostradas, pensei em todas as horas passadas com os meus treinadores. E no entanto, quando revejo o vídeo da vitória na estafeta nas Olimpíadas de Tóquio, o que mais me emociona é o fragmento de uma imagem: quando cheguei à meta e abracei o Fausto, o meu companheiro de estafeta. Sim, precisamente aquele é o momento que mais me emociona. E estou a emocionar-me também neste momento, ao recordá-lo. Porque naquele abraço há o significado do que para mim é o desporto. Quando cortei a meta olímpica, procurei com o olhar, na tribuna, todas as pessoas às quais quero bem e com as quais partilhei o percurso para Tóquio: foi a primeira e única vez que chorei e me emocionei pelo atletismo.

Sacrifício é uma palavra que, no desporto, não me agrada. Antes de tudo, o desporto, a meu ver, ensina-te a relacionares-te contigo próprio. Sobretudo no meu caso porque o atletismo é um desporto individual e tens de te confrontar contigo próprio. Fazendo desta forma, colocas-te diante dos teus maiores sonhos e, por consequências, dos teus maiores medos. Nas Olimpíadas de Tóquio vencemos. Mas há também o sofrimento quando perdes, e precisamente na experiência da derrota consegues compreender quem és e quem podes ser. Isto foi o que as Olimpíadas me ensinaram.

Detestei sempre o moto «o importante não é vencer, mas participar»: considero-o de perdedores, eu vou competir para vencer. Porém, durante as Olimpíadas, tendo vivido antes uma grande desilusão na minha corrida individual, compreendi que o importante foi ter-me dado todo para estar ali, naquele momento, a correr: ter partilhado um percurso com pessoas que se tornaram uma família. Certamente o meu pai, que é também o meu treinador, os meus companheiros, os fisioterapeutas… Em Tóqui o compreendi que o importante não era cortar a meta em primeiro, mas estar consciente de ter feito todo o possível para ter chegado precisamente ali, naquele momento. Esta consciência permitiu-me mudar como pessoa e, consequentemente, como atleta, e também correr mais rápido do que nunca. Isto aconteceu em cinco dias. Devo dizer que aqueles cinco dias mudaram-me profundamente como pessoa. Uma questão sobre a qual gostaria de debater consigo é esta: pratico um desporto individual, passo muito tempo sozinho. Olhando-me por tendo aprendi a compreender e a apreciar quanto é importante estar em paz consigo próprio para estar em paz com os outros.

Card. Tolentino de Mendonça

As tuas palavras fazem-me pensar no que foi escrito no templo de Apolo em Delfos: «Conhece-te a ti mesmo». Creio que se deve falar de enamoramento, e seguramente o Filippo é uma pessoa enamorada. Foi muito interessante escutar esta construção de interioridade de atleta. Também o monge – como o estudioso na universidade, o contemplativo e, precisamente, o atleta – passa muito tempo só, testando-se a si próprio, escutando-se a si próprio. Assim, no fim, constrói-se como pessoa. O empenho, tão bem descrito nas tuas palavras, de encontrar paz consigo próprio é o desejo que todos temos. Que esta experiência se possa encontrar no desporto é muito interessante: aquilo que o Filippo diz de um atleta, nós podemo-lo dizer de um contemplativo, de alguém que procura uma experiência espiritual colocando em jogo toda a pessoa.

Uma curiosidade, Filippo: os pés. Fiz a experiência nas minhas peregrinações a Santiago de Compostela e a Fátima: chega um momento em que são os nossos pés a rezar, já não é a cabeça. Também experimentaste isto na corrida veloz?

Filippo Tortu

Há momentos em que os pés estão separados da terra. Vão sozinhos. Dei-me conta precisamente há uma hora, antes de chegar aqui ao Vaticano. Estava a treinar-me e pedi para não fazer a última prova porque estava demasiado cansado, não sentia que poderia tornar-se útil. Naturalmente, o meu treinador vê sempre mais longe que eu e insistiu. Teve razão, porque após o segundo apoio foram os pés a “levar-me”: tive simplesmente de os “fazer andar” e “estar atrás deles”. Parece um contrassenso: quando ao correr se busca a velocidade, na realidade vai-se devagar. Quando tu “forças”, na realidade enrijece-se. O que tens de fazer para correr mais veloz? Simplesmente confiar em tudo aquilo que fizeste no treino e que aprendeste ao longo dos anos. Sim, recordar duas ou três “coisas técnicas”, certo… mas depois vem tudo com naturalidade. Tens de estar sereno, seguro, mas não por arrogância, ainda que o velocista deva ser, só em pista, um pouquinho arrogante. Deve estar sereno e seguro por todo o treinamento realizado e porque, no fim de contas, estás a fazer aquilo que mais gostas e que te torna melhor.

Card. Tolentino de Mendonça

Filippo, ao falares da figura do treinador, usaste uma expressão que me fez pensar. Descreveste-o muito bem: o treinador vê sempre mais longe. Gostaria de te escutar sobre esta relação com o treinador que nós, noutros campos – pensemos na tradição dos pintores – chamamos mestre. Como vives a tua relação com o treinador e cono interpretas esta figura tão fundamental para um atleta?

Filippo Tortu

O meu treinador é meu pai. Para descrever a nossa relação recorro a quanto aprendi no catecismo: a questão está precisamente na liberdade de errar. Deus coloca-te sempre diante da possibilidade de escolher, e o meu pai fez o mesmo comigo. Ter o treinador em casa pode ser complicado: se uma noite regressas tarde, ele tem de te repreender. O meu pai, pelo contrário, deu-me sempre a possibilidade de escolher livremente, como que a dizer «este é o caminho se queres ser atleta, mas escolhe tu». Disse a mim próprio: sou livre de fazer aquilo que quero, mas não quero errar. Mas o mérito é dele: além de ser um bom pai é um excelente treinador. Temos uma relação baseada no diálogo: decide o treinador que, porém, quer sempre saber a minha opinião sobre o que estamos a fazer. Também penso que ele já sabe as minhas respostas…

Juntamente com o meu pai há uma outra pessoa que se ocupa, em particular, da fisioterapia. Desde pequeno sofri a ausência da figura do avô, e por isso vejo este meu técnico como o meu avô adquirido. É importante ir a cada dia treinar-me sabendo, dentro de mim, que tenho os dois melhores treinadores do mundo. Melhor, para mim é importante saber que vou encontrar duas pessoas capazes de fazer-me estar bem. Creio que é o aspeto mais importante na relação entre treinador e atleta.

Card. Tolentino de Mendonça.

Encontraste-te pessoalmente com o papa Francisco. De alguma maneira pode ser descrito como um homem que vê mais longe, assim como tu definiste o treinador.

Filippo Tortu

Sim, o papa é um homem que sabe olhar mais longe. Quer tu sejas crente ou não, o santo padre representa “algo” de muito grande, que é o aspeto espiritual da pessoa. Por esta razão senti-me “tocado” como homem. Recordo muitíssimo bem o encontro com o papa. Habitualmente, no fia antes de uma competição procuro não me cansar: quase não saio do meu quarto e procuro dar poucos passos. Mas quando me disseram que havia a possibilidade de me encontrar com o papa Francisco, quis ir à praça de S. Pedro: na véspera de uma competição importante no estádio olímpico estive duas horas ao sol, de pé. Mas devo tornar presente que no dia seguinte a competição correu muito bem…

Card. Tolentino de Mendonça

Ao escutar-te, creio que existe uma centelha que faz desencadear o amor pela corrida. Como também pela poesia. E é quando uma pessoa se esquece de si mesma, o tempo e o cansaço: eis o amor.

Filippo Tortu

Sim, sempre desejei ser um atleta, e aos 17 anos comecei a fazê-lo por trabalho. Por isso não gosto de falar de sacrifício. Há pessoas que obtêm grandes resultados mas vivem uma vida desordenada fora do campo: não as considero desportistas, ainda que sejam as melhores do mundo. “Votei-me” ao atletismo, faz-me estar bem, e estou convicto de que os atalhos nunca levarão à melhor versão de ti mesmo – mentalmente e fisicamente –, que é o verdadeiro objetivo do desporto.

Com este espírito optei também por estudar na universidade. Precisamente hoje estive com o tutor para preparar um exame. Sinceramente vivi um período complicado com a universidade, mas compreendi que a minha vida não estava bem, e decidi obrigar-me a encontrar, dentro de cada dia, os espaços ajustados para estudar.

Card. Tolentino de Mendonça

Uma bela palavra italiana, para um estrangeiro como eu, é “apripista”: não só estar na pista, mas abrir pistas novas, criar novas visões e novas possibilidades. Um atleta descobre aquilo que Kierkegaard dizia: o ser humano é sobretudo possibilidade. Estou muito feliz, também como prefeito do Dicastério para a Cultura e a Educação, pelo testemunho do Filippo. É verdade, os estudos não são fáceis de fazer coincidir com a vida de atleta de alto nível. Neste esforço de abrir pistas um exemplo é o papa Francisco, que à palavra educação associa a palavra esperança, tanto que por vezes parecem sinónimos. Se nas nossas vidas investirmos na educação, estamos a alargar o nosso campo de esperança. Recentemente, ao falar a estudantes e professores das universidades pontifícias romanas, o santo padre usou uma metáfora forte: «Fazei coro». E nos coros, por vezes, há os solistas, porque é importante também a capacidade de ser protagonista. Mas há sobretudo a consciência de que somos um “coro” e que nenhum se salva sozinho. Uma poetisa recorda-nos também que somos «uma obra dos outros». A solidão tem em si um valor e é a possibilidade de o ser humano entrar dentro de si mesmo. Mas a nossa vocação é ser este “coro” que nos oferece a alegria de viver em companhia, de partilhar esta aventura, esta corrida magnífica que é a vida.

Filippo Tortu

O atletismo é um desporto individual, de facto tu corres sozinho. Mas na realidade, no momento em que desces à pista e estás atrás dos blocos, representas também a síntese de um trabalho que envolve muitíssimas pessoas capazes de te colocar nas melhores condições possíveis para chegares ao melhor na competição. Se perdes a corrida fazes frustrar um grande trabalho de equipa. É uma responsabilidade que sinto e ajuda-me a dar o melhor de mim. De resto, quando tens de te sacrificar inclusive por alguém consegues fazer… mais uma “coisinha”. Por isso vencemos a estafeta nas Olimpíadas. A soma dos nossos quatro tempos era pior do que a de outra equipa. Mas estávamos convictos de poder vencer e, sobretudo, queríamos vencer como grupo. Como equipa. Isto fez a diferença.

In L'Osservatore Romano | in SNPC | Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 23.03.2023


Maré Alta

CELEBRAÇÃO PENITENCIAL

"24 HORAS PARA O SENHOR"

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Paróquia de Santa Maria das Graças, no Triunfal
Sexta-feira, 17 de março de 2023

«Tudo quanto para mim era ganho, isso mesmo considerei perda por causa de Cristo» (Flp 3, 7): afirma São Paulo na primeira Leitura que ouvimos. E se nos perguntarmos quais são as coisas que ele deixou de considerar fundamentais na sua vida, feliz até por as perder para encontrar Cristo, apercebemo-nos de que não se trata de realidades materiais, mas de «riquezas religiosas». É assim mesmo: era um homem devoto, um homem zeloso, um fariseu fiel e observante (cf. 3, 5-6). E no entanto estes hábitos religiosos, que podiam constituir um mérito, uma ostentação, uma riqueza sacra, na realidade eram um impedimento para ele. E então Paulo declara: «Tudo perdi e considero esterco, a fim de ganhar a Cristo» (3, 8). Tudo aquilo que lhe dera um certo prestígio, uma certa fama «deixa cair… para mim, Cristo é mais importante».

Quem se sente demasiado rico de si e da sua probidade religiosa presume-se justo e melhor do que os outros – quantas vezes acontece isto na paróquia: «eu sou da Ação Católica, eu vou ajudar o padre, eu faço o peditório..., eu, eu, eu»; quantas vezes sucede crer que se é melhor do que os outros; cada qual, no seu coração, pense se já alguma vez lhe aconteceu isto – quem assim procede, contenta-se em salvar as aparências; considera-se satisfeito, mas assim não pode dar lugar a Deus, porque não sente necessidade d’Ele. E tantas vezes os «católicos impecáveis», aqueles que se sentem justos, porque vão à paróquia, porque vão à missa no domingo e gabam-se de ser justos: «Não, eu não preciso de nada; o Senhor salvou-me». Que sucedeu? Que ocupou o lugar de Deus com o próprio «eu» e então, ainda que recite orações e realize atos de piedade, verdadeiramente não dialoga com o Senhor. São monólogos que faz, não há diálogo, nem oração. Por isso, a Escritura recorda que apenas «a oração do humilde chegará às nuvens» (Sir 35, 17), porque só quem é pobre em espírito, quem se sente necessitado de salvação e mendicante da graça se apresenta diante de Deus sem exibir méritos, nem pretensões ou presunções: não tem nada e, por isso, encontra tudo, porque encontra o Senhor.

Jesus dá-nos este ensinamento na parábola que ouvimos (cf. Lc 18, 9-14). É o caso de dois homens, um fariseu e um publicano; ambos vão ao templo para rezar, mas só um chega ao coração de Deus. Mais do que os gestos que fazem, fala a sua postura física: o Evangelho diz que o fariseu rezava «de pé» (18, 11), com fronte altiva, enquanto o publicano, «mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu» (18, 13), por vergonha. Reflitamos por momentos sobre estas duas posturas.

O fariseu está de pé. Está seguro de si, aprumado e triunfante como alguém que deve ser admirado pela sua probidade, como um modelo. Nesta atitude, reza a Deus, mas na realidade celebra-se a si mesmo: eu frequento o templo, eu observo os preceitos, eu dou esmolas... Formalmente, a sua oração é impecável, exteriormente vê-se um homem piedoso e devoto, mas, em vez de se abrir a Deus levando-Lhe a verdade do coração, esconde hipocritamente as suas fraquezas. E quantas vezes fazemos a maquilhagem à nossa vida. Este fariseu não espera a salvação do Senhor como um dom, mas pretende-a quase como um prémio pelos seus méritos. «Fiz os deveres, agora dá-me o prémio». Este homem avança sem hesitação até ao altar de Deus – com fronte altiva – para ocupar o seu lugar, na primeira fila, mas acaba por ir longe demais e colocar-se à frente de Deus!

Ao contrário o outro, o publicano mantém-se à distância. Não procura abrir caminho; fica ao fundo. Mas é precisamente esta distância, expressão do seu ser de pecador face à santidade de Deus, que lhe permite experimentar o abraço bendito e misericordioso do Pai. Deus pode alcançá-lo, precisamente porque aquele homem Lhe deixou espaço, permanecendo à distância. Não fala de si próprio, fala a pedir perdão, fala com o olhar em Deus. Oh como isto é verdade também nas nossas relações familiares, sociais e eclesiais! Há verdadeiro diálogo, quando sabemos preservar um espaço entre nós e os outros, um espaço salutar que permite a cada um respirar sem ser absorvido ou aniquilado. Então aquele diálogo, aquele encontro pode encurtar a distância e criar proximidade. É assim que sucede também na vida daquele publicano. Detendo-se ao fundo do templo, reconhece-se verdadeiramente como é, pecador, diante de Deus: distante, e assim permite que Deus Se aproxime dele.

Irmãos, irmãs, lembremo-nos disto: o Senhor vem a nós, quando nos distanciamos do nosso eu presunçoso. Pensemos: «Eu sou presunçoso? Creio-me melhor do que os outros? Olho para alguém com um pouco de desprezo? «Eu Te agradeço, Senhor, porque me salvaste e não sou como esta gente que não percebe nada; eu vou à igreja, vou à Missa; eu sou casado, casado pela Igreja, estes são divorciados pecadores…»: o teu coração é assim? Vais para o inferno. Para se aproximar de Deus, é preciso dizer ao Senhor: «Eu sou o primeiro dos pecadores, e se não caí numa imundície maior é porque a tua misericórdia me tomou pela mão. Graças a Ti, Senhor, estou vivo; graças a Ti, Senhor, não me destruí com o pecado». Deus pode encurtar as distâncias connosco quando, com honestidade e sem fingimento, Lhe trazemos a nossa fragilidade. Estende a mão para nos levantar, quando nos apercebemos de «tocar o fundo» e entregamo-nos a Ele na sinceridade do coração. Deus é assim: espera-nos lá ao fundo, porque, em Jesus, Ele quis «descer até ao fundo», porque não tem medo de descer dentro dos abismos em que caímos, tocar as feridas da nossa carne, acolher a nossa pobreza, acolher os fracassos da vida, os erros que cometemos por fraqueza ou negligência... e todos nós os cometemos. Deus espera-nos lá, no fundo, espera-nos especialmente quando vamos, com grande humildade, pedir perdão no sacramento da Confissão, como faremos hoje. Ele espera-nos lá.

Irmãos e irmãs, façamos hoje – cada um de nós – um exame de consciência, porque tanto o fariseu como o publicano habitam dentro de nós. Não nos escondamos atrás da hipocrisia das aparências, mas entreguemos confiadamente à misericórdia do Senhor as nossas opacidades, os nossos erros. Pensemos nos nossos erros, nas nossas misérias, mesmo aquelas que por vergonha não somos capazes de partilhar, e está bem, mas a Deus devem-se mostrar. Quando nos confessamos, colocamo-nos ao fundo como o publicano, para reconhecermos, também nós, a distância que nos separa entre aquilo que Deus sonhou para a nossa vida e o que realmente somos no dia a dia: pobres miseráveis. E, naquele momento, o Senhor aproxima-Se, encurta as distâncias e põe-nos de pé; naquele momento, enquanto nos reconhecemos despidos, Ele reveste-nos com o traje da festa. Isto é, e deve ser, o sacramento da Reconciliação: um encontro de festa, que cura o coração e nos deixa a paz dentro; não um tribunal humano que mete medo, mas um abraço divino pelo qual somos consolados.

Uma das coisas mais belas do modo como Deus nos acolhe é a ternura do abraço que nos dá. Ao lermos quando o filho pródigo volta para casa (cf. Lc 15, 20-22), vemos que ele começa o discurso, mas o pai não o deixa falar, abraça-o e ele não consegue falar. O abraço misericordioso. E aqui dirijo-me aos meus irmãos confessores: por favor, irmãos, perdoai tudo, perdoai sempre, sem esquadrinhar demasiado nas consciências; deixai que as pessoas digam as suas coisas e vós recebei isso como Jesus, com a carícia do vosso olhar, com o silêncio da vossa compreensão. Por favor, o sacramento da Confissão não é para torturar, mas para dar paz. Perdoai tudo, como Deus perdoará tudo a vós. Tudo, tudo, tudo.

Neste tempo quaresmal, com o coração contrito, sussurremos também nós como o publicano: «Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador» (18, 13). Façamo-lo juntos: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Ó Deus, quando me esqueço de Ti ou Te transcuro, quando anteponho as minhas palavras e as do mundo à tua Palavra, quando presumo ser justo e desprezo os outros, quando murmuro dos outros, ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Quando não cuido de quem está ao meu lado, quando me mostro indiferente a quem é pobre e atribulado, frágil ou marginalizado, ó Deus, tende piedade de mim, que sou pecador. Pelos pecados contra a vida, pelo mau testemunho que mancha o belo rosto da Mãe Igreja, pelos pecados contra a criação, ó Deus, tende piedade de mim, que sou pecador. Pelas minhas falsidades, as minhas desonestidades, a minha falta de transparência e integridade, ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Pelos meus pecados ocultos, aqueles que ninguém conhece, pelo mal que – mesmo sem me dar conta – fiz aos outros, pelo bem que poderia ter feito e não fiz, ó Deus, tende piedade de mim, que sou pecador.

Em silêncio por alguns momentos continuemos a repetir de coração arrependido e confiante: ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. Em silêncio. Cada um repita no seu coração: Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador. E, neste ato de arrependimento e confiança, abrir-nos-emos à alegria do dom maior: a misericórdia de Deus.


Maré Alta

Editorial 7M

O tempo está a esgotar-se

António Marujo, Clara Raimundo, Jorge Wemans e Manuel Pinto | 3 Mar 2023 | in 7 Margens

Da esquerda para a direita: o presidente da CEP, José Ornelas, o vice-presidente, Virgílio Antunes, e o secretário, padre Manuel Barbosa, antes da conferência de imprensa desta sexta-feira. Foto © António Marujo/7Margens

Os bispos católicos tinham pela frente uma tarefa que não era fácil: estar à altura, nas medidas que viessem anunciar, da coragem de ter criado uma Comissão Independente para estudar os abusos sexuais de crianças nos espaços da Igreja e do impacto público que o relatório e as recomendações dessa Comissão deixaram em suspenso.

Como é evidente, as expectativas eram elevadas e provavelmente nem todas coincidentes. Mas era necessário que não ficassem dúvidas de que a Igreja Católica, através dos seus mais altos responsáveis, coloca as vítimas no centro dos seus cuidados; que assume responsabilidades incondicionais sobre a violência e a destruição por ela própria infligida, em evidente contradição com a mensagem que prega e deveria testemunhar; e que adota medidas claras e consistentes para restaurar a confiança perdida.

Pode dizer-se que a meia dúzia de medidas anunciadas são positivas, em si mesmas. Desde logo, a disposição para assegurar o apoio espiritual, psicológico e/ou psiquiátrico às vítimas de violência e abuso sexual que o desejarem. E devemos também registar que o comunicado traduz o mínimo denominador comum, entre os que querem avançar (com o presidente da CEP, José Ornelas, à cabeça), e os que consideram que o trabalho da CI já bastou para lhes dar dores de cabeça.

A criação de uma comissão independente para continuar a receber denúncias e a escutar novos casos de vitimização e abuso foi um compromisso assumido pelo presidente da CEP. Importa que a designação que lhe foi dada (“grupo específico”) e a articulação com a Equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores não coloquem em causa as suas funções de garante da escuta independente das vítimas e de acompanhamento da concretização dos compromissos assumidos pelos bispos.

Na conferência de imprensa alguém perguntou ao bispo José Ornelas se o que foi agora anunciado poderia ser visto como uma “mão cheia de nada”, ao que ele respondeu que, pelo contrário, se tratava de uma “mão cheia de compromissos”. Esperamos que esses venham a dar resultados. Mas nada, nem o comunicado nem tais compromissos, contempla a vontade de enfrentar com seriedade e determinação a razão principal dos abusos: o clericalismo e o que ele significa de poder sem controlo, de impunidade sem limites.

A verdade é que, quer entre jornalistas, quer entre vários comentadores, a sensação que ficou, depois de terminado este encontro, foi o de um certo vazio. De alguns conteúdos importantes, de tom e atitude. Faltou compaixão e assertividade e, perante a tragédia do que está em causa, esperavam-se ambas as coisas. E se na véspera o bispo Américo Aguiar dizia que a “tolerância zero e transparência total” teriam de ser efetivas a partir das resoluções desta assembleia, ficamos, mais uma vez, com a sensação de que essas são apenas expressões de momento, sem adesão à realidade.

Afinal não há nada de sistémico?

A questão da lista de mais de uma centena de alegados abusadores acabou, de certa forma, esvaziada. Como é óbvio, seria inaceitável acusar quem quer que fosse sem factos e provas. E é mais do que compreensível o esforço que fez o presidente da Conferência Episcopal a explicar que não basta ter um nome sobre a mesa, para desencadear uma ação. Mas o bispo pode acionar a figura da suspensão de funções nos casos em que haja risco de vitimização, enquanto se reúne informação que permita avaliar se há ou não motivos para um processo. A mensagem que importa assegurar é que as potenciais vítimas não corram riscos; e que se atuará de imediato, mal haja comunicação de uma denúncia.

Por outro lado, ao decompor a lista geral distribuindo-a pelas dioceses e remetendo para o bispo de cada diocese a apreciação dos respetivos casos, estamos a perder a perspetiva de conjunto, ignorando que tipo de situações existem, onde é que se concentram e o que podem significar. Por outras palavras: não estamos aqui perante um problema meramente administrativo ou canónico, mas de lógica de funcionamento da Igreja, em termos hierárquicos, que surge como mero agregado de dioceses, sem uma estratégia comum.

Um facto notório no texto final foi a ausência da questão da cultura sistémica de encobrimento e de silêncio. Já se viu que é conceito que não faz parte do vocabulário dos bispos portugueses. Nem uma vez ele surge no comunicado e, quando um jornalista o colocou, não encontrou resposta.

Ora, se como diz, e bem, o comunicado que saiu da assembleia episcopal, quem comete abusos “tem de assumir as consequências dos seus atos e as responsabilidades civis, criminais e morais daí decorrentes”, não deveria acontecer o mesmo com quem encobre, esconde e varre para debaixo do tapete?

Os bispos, que manifestam justamente alto apreço pelo trabalho desenvolvido pela Comissão Independente, não se pronunciam, uma vez que seja, pelo que se diz nesse relatório sobre o comportamento de pelo menos alguns de entre eles. E fogem quanto podem do que lá se diz sobre a natureza sistémica da cultura dos abusos.

Por outras palavras: os bispos são contundentes na afirmação da “tolerância zero” relativamente aos abusadores de crianças e outras pessoas vulneráveis (ainda que não expliquem o que tal quer dizer em concreto). Mas são completamente omissos quanto aos comportamentos de ocultação e encobrimento desses abusos. Acaso a tolerância zero não tem de se aplicar também a estes?

Não basta, por conseguinte, que os bispos façam, em Igreja, um ato de pedido de perdão ou deixem registado um memorial às vítimas da própria Igreja (e não apenas dos perpetradores de abusos). Como faz notar o Papa Francisco, na intenção de oração para este mês, não basta pedir perdão.

Dizia o presidente da CEP, já na parte final da conferência de imprensa, “não ter dúvida de que é preciso mudar uma cultura [subjacente aos abusos] na Igreja e na sociedade”. Mas que é senão manifestação dessa cultura o poder clerical(ista) que não se põe em questão, mesmo quando é visível para toda a gente que é também uma certa forma de entender e exercer esse poder que produz a cultura dos abusos – de crianças, de pessoas vulneráveis, especialmente mulheres?

Em certa medida, os bispos deram dois passos em frente ao criarem uma Comissão competente e independente para estudar os abusos. Mas se não deram, agora, um passo atrás, pelo menos não terão conseguido colocar a Igreja, perante si mesma e perante a sociedade, num caminho que a credibilize naquilo que ela já faz em vários setores: ser uma Igreja de proximidade, de serviço aos mais descartados, um sinal de esperança na vida de muita gente.

Ainda está a tempo. Mas não por muito mais tempo.


Maré Alta

Após um ano de conflito

A pergunta do Papa: “Foi feito tudo o que era possível para travar a guerra?”

Clara Raimundo | 22 Fev 2023 | in 7 Margens

A dois dias de se cumprir um ano sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia, a audiência pública semanal do Papa ficou marcada pelas suas declarações a propósito do conflito, e em particular por uma pergunta que desafiou todos a colocarem a si próprios: “Foi feito tudo o que era possível para travar a guerra?”.

Francisco não deu a resposta, mas afirmou que “o número de mortos, feridos, refugiados e deslocados, destruição, danos económicos e sociais falam por si”, e deixou um pedido: “permaneçamos próximos do atormentado povo ucraniano, que continua a sofrer”.

Referindo-se ao que se passa na Ucrânia como uma “guerra absurda e cruel”, o Papa apelou em particular “aos que têm autoridade sobre as nações para que assumam um compromisso concreto para acabar com o conflito, conseguir um cessar-fogo e iniciar negociações de paz”. E concluiu: “O que é construído sobre escombros nunca será uma verdadeira vitória!”.

Um presente especial

E foi desses escombros, mais propriamente de estilhaços das janelas de casas destruídas pelos bombardeamentos na região de Kiev durante os primeiros dias de guerra, que nasceu a cruz que Francisco recebeu no dia anterior.

O presente foi entregue pelo padre Vyacheslav Grynevych, secretário-geral da Cáritas Spes-Ucrânia, que se encontrou com o Papa no Vaticano, na tarde de terça-feira, 21 de fevereiro.

Neste encontro “comovente”, que decorreu na Casa de Santa Marta, Francisco assegurou estar “a fazer tudo o que é possível nesta terrível situação”, afirmou o responsável pela Cáritas na Ucrânia.

“Deixei-lhe uma cruz feita com vidros de janelas destruídas pelos bombardeamentos. Disse-lhe que essas janelas destruídas não mostram apenas as casas destruídas que tentamos reconstruir, mas mostram também os nossos corações, o que temos dentro”, contou o padre Grynevych ao Vatican News.

O sacerdote assinalou que também ele e os restantes agentes eclesiais são vítimas da guerra. “Temos de lutar não apenas pelas nossas vidas, mas também pela nossa espiritualidade”, referiu, acrescentando: “O Papa está connosco, em oração, está a fazer muitas coisas, mas quando não se vislumbra a possibilidade de resolver a situação de guerra, deparamo-nos com o cansaço, e ele exortou-nos como Cáritas a continuar o nosso trabalho. Ele repetiu que está conosco de todo o coração”.

Grynevych reconheceu ainda que a solidariedade internacional tem sido “muito importante”. “Estamos na linha da frente e corremos sempre o risco de ser atacados, mas sentimo-nos unidos a todos os outros agentes da Cáritas. (…) Não estamos sozinhos”.


Maré Alta

Escutar o Espírito no meio do turbilhão

ESPECIAL

ABUSOS SEXUAIS NA IGREJA

P. Luís Marinho | 17 Fevereiro 2023 | in Ponto SJ

É missão praticamente impossível nestes dias encontrar um pouco de serenidade para pôr por escrito o que se sente, o que se pensa, o que o Espírito diz a cada um e à comunidade depois da apresentação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica Portuguesa. Turbilhão talvez seja a palavra que melhor descreve o que experimento. Desejando ardentemente que também no turbilhão o Espírito se manifeste.

E a primeira constatação é que “não sei”! Como certeiramente confessou D. José Ornelas no passado dia 13 de fevereiro: “Este estudo da Comissão Independente apresenta-nos um número muito maior do que aquele que soubemos apurar até hoje. Pedimos desculpa por não termos sabido criar formas eficazes de escuta e de escrutínio interno, e por nem sempre termos gerido as situações de forma firme e guiada pela proteção prioritária dos menores”. Ou, como reconhecia o Papa Francisco, na sua Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018: “Com vergonha e arrependimento, como comunidade eclesial, assumimos que não soubemos estar onde deveríamos estar, que não agimos a tempo para reconhecer a dimensão e a gravidade do dano que estava sendo causado em tantas vidas. Nós negligenciamos e abandonamos os pequenos”.

No oceano de palavras, sugestões e decisões do passado e do presente que por estes dias se fazem ouvir, esta Carta continua a ser para mim uma bússola firme, que me conduz a ver melhor.

Sei que há sofrimentos a precisar de serem acolhidos. Sei que há feridas abertas a precisar de serem curadas. Sei que há silêncios ensurdecedores a precisarem de ser escutados. Sei que há pessoas, famílias e comunidades dilaceradas. Sei que há decisões urgentes a serem tomadas. Sei o quanto se espera dos Bispos de Portugal nas próximas semanas.

Mas também sei que não há soluções mágicas ou milagrosas. Apenas um exigente percurso que nos há de levar do “não saber” à procura humilde e decidida de caminhos possíveis.

Como o Papa Francisco estou profundamente convencido que “é impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus. Além disso, todas as vezes que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos, ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas”.

Há, com toda a certeza, decisões muito imediatas a serem tomadas, quer no atendimento às necessidades de tantas vítimas de abuso sexual, espiritual, de consciência e de poder dentro da Igreja, bem como de seguimento e enquadramento dos agressores identificados. Mas a decisão mais necessária – talvez a mais difícil – é a que também aponta o Papa Francisco: “a única maneira de respondermos a esse mal que prejudicou tantas vidas é vivê-lo como uma tarefa que nos envolve e corresponde a todos como Povo de Deus. Essa consciência de nos sentirmos parte de um povo e de uma história comum nos permitirá reconhecer os nossos pecados e erros do passado com uma abertura penitencial capaz de se deixar renovar a partir de dentro. Tudo o que for feito para erradicar a cultura do abuso em nossas comunidades, sem a participação ativa de todos os membros da Igreja, não será capaz de gerar as dinâmicas necessárias para uma transformação saudável e realista”.

Aos ministros ordenados da Igreja – e em especial aos Bispos e a quantos exercem a autoridade – compete colocar as mediações institucionais e sacramentais concretas, para que este seja claramente o tempo em que todos, como Povo de Deus, contribuímos decididamente para a transformação pessoal, eclesial e social que o Evangelho e a pessoa de Jesus Cristo nos exigem.

Convoque-se a Igreja, escutem-se as vítimas (passo decisivo para a conversão), escutem-se os testemunhos da Igreja de outros países e os passos que já deram, escute-se a Palavra de Deus, escute-se o que o Espírito diz à Igreja, escutem-se os sinais dos tempos e decidamos, juntos, os passos que precisamos de dar.


Maré Alta

Segunda parte da entrevista ao 7Margens

Cristina Inogés Sanz: O abuso de poder é a raiz de todos os outros, incluindo o abuso sexual

António Marujo | 11 Fev 2023 | in 7 Margens

O abuso de poder é a raiz e o tronco a partir do qual saem os ramos de todos os outros que conhecemos, diz a teóloga espanhola Cristina Inogés Sanz em entrevista ao 7MARGENS. Nesta segunda parte da entrevista cuja publicação iniciámos ontem, aborda-se ainda a questão da formação afectiva do clero e da relação com as mulheres, do acolhimento e integração de pessoas LGBTI nas comunidades cristãs, do Sínodo católico e do que se pode esperar do Papa Francisco, depois da morte do seu antecessor.

Formada na Faculdade Protestante de Madrid, investigadora nos departamentos de Teologia Fundamental e História da Iglesia, Cristina Inogés é também diplomada em Gestão Cultural, Museus e Património e teve a seu cargo a meditação de abertura do Sínodo 2021-24, com a presença do Papa. Com vários livros publicados, colabora com diversos meios de comunicação (incluindo o 7MARGENS) e trabalha na pastoral de acompanhamento e formação de comunidades católicas de pessoas LGBTI.

7MARGENS – A propósito dos leigos, já falou da questão do abuso do poder. Essa é a chave para entender também a questão dos abusos?

CRISTINA INOGÉS SANZ – Dos abusos sexuais, abusos espirituais, de consciência, laborais… O abuso de poder é a raiz e o tronco a partir do qual saem os ramos de todos os outros que conhecemos. Eles irão aparecer um de cada vez, mas começam a surgir.

Há muitos abusos na vida religiosa feminina, que por exemplo no caso de [Marko Ivan] Rupnik [ver 7MARGENS] se comprovou que eram abusos sexuais sobre toda uma comunidade. Mas é verdade que o clericalismo – essa forma tão bruta de exercer o poder – contagiou também a estrutura da vida religiosa. E no caso das mulheres, houve muito abuso de poder por parte da hierarquia feminina das congregações.

Isso deveria fazer-nos pensar que formação se dá, que formação têm os formadores, em que consiste a actualização e que formação permanente tem o clero. Falamos da formação como se fosse algo que acaba no seminário. Não, tem de haver formação permanente, que deve reflectir sobre documentos do Papa ou do Vaticano, mas que seja também sobre questões que é preciso reactualizar constantemente. E isso não se tem muito em conta.

O abuso de poder é o núcleo, o centro em que se deve insistir, para ir pouco a pouco tratando os outros abusos.

7M – Em Braga, no congresso sobre os seminários, em Novembro, falava da alfabetização emocional. Qual é o “desastre anunciado” a que se referia a propósito da formação nos seminários? É todo o modelo que está em causa?

Antes, havia escolas para meninos e escolas para meninas. Agora, há muitos anos que as escolas são mistas. Mas quando chegam ao seminário, venham de uma formação mista ou separada, [os seminaristas] entram num mundo onde não há presença feminina, perdem um ouvido e perdem um olho: não ouvem as mulheres e não vêem as mulheres. Entram num mundo em que mais de metade da humanidade não existe. Sei de seminários no meu país em que a formação dos seminaristas inclui falar-lhes contra as mulheres, contra os padres secularizados e contra o mundo LGBTI. Isso não é formar, isto é deformar, e é um abuso de consciência porque se está modificando a consciência dessa pessoa, a quem se estão a criar preconceitos. E espiritualmente está a provocar-se um dano tremendo, porque se está a condicionar a sua forma de pensar.

Essas pessoas, que já estão meio isoladas do mundo, não têm uma formação psico-afectivo-sexual e uma formação para a inteligência emocional. Todas as pessoas do mundo – padres e monjas incluídos –, pela condição humana, teremos de enfrentar uma crise, estejamos solteiros ou casados, sejamos padres ou monjas. Se não estivermos preparados para o afrontar e não soubermos contar o que se passa, não conseguimos pedir ajuda e começam os desastres: vidas duplas, ocultação, mentiras. E isso vai criando uma angústia tremenda na pessoa.

Se a pessoa for formada para ter confiança no seu formador e para que saiba dizer o que lhe acontecer, poderá pedir ajuda. Mas o formador tem de saber detectar que num momento concreto está a acontecer alguma coisa. Na inteligência emocional aprende-se a expressar o que se passa consigo mesmo, e também a detectar o que se passa com o outro. Mas se a formação não for feita, a pessoa cairá num abismo e ou abandona ou tem uma vida dupla ou simplesmente vive com uma angústia tremenda e um sentimento de culpabilidade.

7M – Trata esse tema no seu livro La Sinfonía Feminina (Incompleta) de Thomas Merton, sobre a relação desse monge cisterciense com a mãe e várias mulheres que passaram pela sua vida, incluindo uma de quem se enamorou…

Sim, conto a história de Merton e M., que muita gente lê como um horror de Merton, pelo facto de ele ter namorado com uma enfermeira, mas que na realidade lhe serviu para fazer uma inflexão, reorganizar a sua vida afectiva (que não a tinha organizada) e a partir daí decidir continuar a ser monge.

7M – E estamos a falar de um mestre espiritual e da mística…

O mestre espiritual por excelência do século XX. Esse é um caso em que vemos que a experiência de se ter enamorado de uma mulher não lhe tirou a sua vocação de monge nem de padre, mas levou-o a reflectir e reorganizar o seu mundo afectivo interior, que não tinha organizado – desde pequeno, com a morte da sua mãe, ele vivia um caos emocional. Ele reorganiza esse caos e o seu mundo afectivo e a partir daí toma a decisão de permanecer monge.

Quando se diz isto em alguns sítios, perguntam porque é que importa a vida sexual do clero. A mim, não me importa nada. Mas importa-me muito que o clero sofra por isso. E quando se procura dar uma solução, como se entra num mundo que é só deles, tomam-no como uma ingerência. E não é verdade.

7M – Fala-se do acolhimento de pessoas LGBTI nas comunidades cristãs, mas não há uma pedagogia para que as comunidades acolham as pessoas dessa condição. E sabemos que em muitos lugares de África, apesar do exemplo que já deu do Lesoto, esse acolhimento é ainda mais difícil. Como desbloquear esta situação?

R. – E não falemos da Ásia ou de países de maioria muçulmana… Há muitos sítios onde isso é de facto um tabu. É preciso entender e [para os cristãos] Deus fez-se carne e assumiu toda a condição humana. Se falamos de uma Igreja inclusiva, não se podem criar grupos à parte: um homossexual, uma lésbica, um trans, um que não é, ninguém escolheu ser assim. Nascemos assim e é uma questão tão natural como ser ruivos, morenos, de olhos verdes, altos ou baixos.

Tão pouco posso julgar alguém que diz que é homossexual e abordar tudo sempre desde o campo da moral. Se continuamos a tratar a questão LGBTI a partir da moral, nunca chegaremos a lado nenhum. Temos de começar a abordá-lo desde o campo da antropologia. Só a partir daí começaremos a encaixar as peças de modo que nos permita perceber que será um avanço não ter posições tão díspares e tão polarizadas. A questão LGBTI tem de ser tratada de uma maneira absolutamente normal.

7M – Também na Igreja?

As pessoas que estamos vinculadas à pastoral LGBTI somos como freelance; como não há uma pastoral aprovada pelas conferências episcopais, não há nada que sustente isso. Às vezes, alguns padres perguntam-me: “Porque te meteste nesse mundo?” “Porque vocês não entram.” Se não entram, nem sequer para conhecer e só julgam, o avanço nunca se pode dar. Não se pode passar a vida a julgar como as pessoas vivem a sua sexualidade. A Igreja não pode estar sempre a meter-se nas camas das pessoas, a vigiar e controlar a sua vida sexual.

O quarto é um âmbito privadíssimo e não temos de entrar aí. E a Igreja tem de reconhecer que há muitíssima gente LGBTI [dentro da comunidade cristã], não é algo que esteja apenas fora [dela]…

7M – Incluindo na hierarquia?

Incluindo na hierarquia, claro. O próprio Papa já admitiu que no Vaticano há um lobby gay. E também entre os santos os terá havido, mas isso era algo que não se perguntava nas causas de canonização.

Desconhecemos a história da homossexualidade porque, se soubéssemos algo dela, veríamos como houve épocas muito diferentes nas quais não se criaram problemas. Quando Oscar Wilde saiu da prisão em Inglaterra, onde tinha estado por ser homossexual, foi viver para França [em 1897, vindo a morrer em Paris] porque, ali, a Igreja Católica protegia os homossexuais. Então, o que se passou? A história da homossexualidade é muito explicada por James Allison. A nossa visão muda muito quando se conhecem certos detalhes.

7M – Regressando especificamente ao Sínodo: o que teremos diante de nós, nos próximos tempos?

Estamos na fase continental, que termina em Março, e a partir daí começaremos a elaborar o primeiro Instrumentum Laboris [instrumento de trabalho] para a assembleia de Outubro deste ano.

Há uma questão que é mais importante que esta fase continental: que cada pessoa tenha a síntese da sua diocese na sua mesa de trabalho ou de cabeceira. Porque a mudança tem de vir pelo mais próximo. Todas as pessoas que participaram na fase diocesana têm de ter muito presente o que saiu na síntese, para ver se isso vai sendo aplicado na sua diocese. A mudança não vai chegar por uma mudança geral de cima para baixo na vida da Igreja, ele vai ter de chegar da realidade mais próxima. Por isso, se saiu A, B e C, há que estar vigilantes para que A, B e C se cumpra, porque foi aprovado numa assembleia diocesana. Porque se isso não for cumprido, porque o bispo ou o clero dizem que não, isso é abuso de poder, isso é denunciável. Isso é o que as pessoas têm de entender.

7M – O que se passa é que parece que o Sínodo terminou: aprovaram-se as sínteses e agora pouco mais se fala mais do assunto.

Claro. Mas nesta fase continental os grupos também podiam participar. Consta-me que houve dioceses no meu país em que os bispos proibiram de participar na fase continental. E foram eles que responderam ao questionário que se fazia aos leigos. Isso é abuso de poder, absoluta e claramente. Isso é que deve ser evitado. E as pessoas devem estar conscientes de que sabem pensar, articular o pensamento e que é muito importante tudo o que pensaram.

7M – O que espera do Papa? Agora que morreu Ratzinger, Francisco está mais livre para fazer reformas ou mais condicionado?

Fácil não vai ser. Vimos isso com a reacção do secretário de Bento XVI, que é outra forma de ver como a oposição a Francisco que está dentro do próprio Vaticano está a lançar as peças. Bento não condicionava Francisco, que tomou decisões e redigiu documentos sem estar condicionado. Mas é certo que Bento era uma figura cujos “acólitos” se mantinham com alguma cautela [enquanto estava vivo].

Mas antes de estar enterrado, literalmente, antes de abrir a capela ardente, o seu secretário lançou a artilharia. Temos de estar atentos para ver como esta oposição férrea que há no Vaticano irá lançar as peças. Não creio que fiquem muito calados. Mas também é certo que Francisco tem recursos suficientes para afrontar a situação.

7M – Mas não sente que o Papa está mais frágil, animicamente?

Uma pessoa com 86 anos não é um jovem e tudo vai deixando marcas. Mas também é verdade – vê-se nas entrevistas, no que escreve, no que diz – que continua a ser a pessoa livre que chegou ao papado. Tem limitações, mas creio que ainda nos pode surpreender. Não sei dizer em quê, mas creio que ainda tem capacidade para nos surpreender com alguma coisa.

7M – E nessa surpresa pode estar a sua renúncia?

R. – Ele disse há pouco que havia assinado um documento a prever alguma incapacidade. Ele pode renunciar – talvez não antes que acabe o Sínodo [Outubro 2024]. Mas também seria o mais normal do mundo que nos habituássemos a que uma pessoa, numa determinada idade, renunciasse ao poder que tem. Se um presidente de uma empresa se demite… Mas demite-se e vai-se embora, não fica no escritório do lado. Também seria muito interessante criar um estatuto, [evitando] a precariedade com que se viveu o papado emérito de Bento. Se o Papa é o bispo de Roma, passa a ser o bispo emérito de Roma e não há nenhum problema. Isso seria o mais normal.


Maré Alta

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
À REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO E SUDÃO DO SUL
(Peregrinação Ecumênica de Paz no Sudão do Sul)
[31 de janeiro - 5 de fevereiro de 2023]

ENCONTRO COM OS BISPOS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Sede da CENCO (Kinshasa)
Sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Amados irmãos Bispos, bom dia!

Estou feliz por poder encontrar-vos e, de coração, agradeço a calorosa receção. Obrigado a D. Utembi Tapa pela saudação que me dirigiu e por vos ter dado voz com as suas palavras: agradeço-vos a coragem com que anunciais a consolação do Senhor, caminhando no meio do povo, partilhando as suas canseiras e esperanças.

Foi bom para mim passar estes dias na vossa terra, que representa, com a sua grande floresta, o «coração verde» da África, um pulmão para o mundo inteiro. A importância deste património ecológico recorda-nos que somos chamados a salvaguardar a beleza da criação e a defendê-la das feridas causadas pelo egoísmo rapace. Mas esta imensa extensão verde que é a vossa floresta constitui também uma imagem que fala à nossa vida cristã: como Igreja, temos necessidade de respirar o ar puro do Evangelho, expulsar o ar poluído da mundanidade, guardar o coração jovem da fé. É assim que imagino a Igreja africana e vejo esta Igreja congolesa: uma Igreja jovem, dinâmica, alegre, animada pelo anseio missionário, pelo anúncio de que Deus nos ama e que Jesus é o Senhor. A vossa é uma Igreja presente na história concreta deste povo, radicada de forma capilar na realidade, protagonista de caridade; uma comunidade capaz de atrair e contagiar com o seu entusiasmo e por isso, à semelhança das vossas florestas, com tanto «oxigénio»: Obrigado por serdes um pulmão que dá fôlego à Igreja universal!

Não é bonito começar um parágrafo com a palavra «purtroppo (infelizmente)», mas aqui tenho de o fazer. Infelizmente, a comunidade cristã desta terra – bem o sei – apresenta também outra face. De facto, o vosso rosto jovem, luminoso e belo aparece sulcado pela tristeza e o cansaço, marcado às vezes pelo medo e o desânimo. É o rosto duma Igreja que sofre pelo seu povo, é um coração no qual palpita, com trepidação, a vida das pessoas com as suas alegrias e tribulações. É uma Igreja sinal visível de Cristo que ainda hoje é rejeitado, condenado e desprezado nos inúmeros crucificados do mundo, e chora as nossas próprias lágrimas. É uma Igreja que, como Jesus, também quer enxugar as lágrimas do povo, empenhando-se em assumir as feridas materiais e espirituais das pessoas e fazendo correr sobre elas a água viva e salutar do lado de Cristo.

Convosco, irmãos, vejo Jesus sofredor na história deste povo, povo crucificado, povo oprimido, transtornado por uma violência que não poupa ninguém, marcado pela dor inocente, constrangido a conviver com as águas turvas da corrupção e da injustiça, que poluem a sociedade, e a padecer em tantos dos seus filhos a pobreza. Ao mesmo tempo, porém, vejo um povo que não perdeu a esperança, que abraça com entusiasmo a fé e imita os seus Pastores, que sabe voltar para o Senhor e entregar-se nas suas mãos, para que a ansiada paz, sufocada pela exploração, por egoísmos de parte, pelos venenos dos conflitos e das verdades manipuladas, possa finalmente chegar como uma dádiva do Alto.

E surge a pergunta: Como exercer o ministério nesta situação? Quando pensava em vós, Pastores do Povo santo de Deus, veio-me à mente a história de Jeremias, um profeta chamado a viver a sua missão num momento dramático da história de Israel, por entre injustiças, abominações e sofrimentos. Passou a vida a anunciar que Deus nunca abandona o seu povo e dá continuidade aos seus desígnios de paz mesmo em situações que parecem perdidas e irrecuperáveis. Mas, este anúncio consolador de fé, viveu-o Jeremias pessoalmente: foi ele o primeiro a experimentar a proximidade de Deus. Só assim pôde levar aos outros uma corajosa profecia de esperança. Também o vosso ministério episcopal vive entre estas duas dimensões, de que vos quero falar: a proximidade de Deus e a profecia para o povo.

Antes de mais nada gostava de vos dizer: Deixai-vos tocar e consolar pela proximidade de Deus. Ele está próximo de nós. A primeira palavra que o Senhor dirige a Jeremias é esta: «Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia» (Jer 1, 5). É uma declaração de amor, que Deus grava no coração de cada um de nós e ninguém a pode apagar, tornando-se fonte de conforto no meio das tempestades da vida. Para nós, que recebemos a vocação de ser Pastores do Povo de Deus, é importante basear-nos nesta proximidade do Senhor, «estruturar-nos na oração», passando horas diante d’Ele. Só assim se aproxima do Bom Pastor o povo que nos está confiado e só assim nos tornamos verdadeiramente Pastores, porque nós, sem Ele, nada podemos fazer (cf. Jo 15, 5). Poderemos até ser empresários, «professores», mas não seguimos a vocação do Senhor. Sem Ele nada podemos fazer. Oxalá não suceda imaginar-nos autossuficientes e, muito menos, ver no episcopado a possibilidade de escalar posições sociais e exercer o poder (como é feio este espírito de «carreirismo»)! E sobretudo que não entre o espírito da mundanidade, que nos faz ver o ministério segundo os critérios remuneradores da própria conta bancária, que nos torna frios e distantes na gestão daquilo que nos está confiado, que leva servir-se da função em vez de servir os outros, e a deixar de cuidar da relação indispensável que é a relação humilde e quotidiana da oração. Não esqueçamos que o pior que pode acontecer à Igreja é a mundanidade; é o pior. Sempre me impressionou aquele final do livro do cardeal Henry de Lubac sobre a Igreja, concretamente as últimas três, quatro páginas, onde ele diz o seguinte: a mundanidade espiritual é o pior que pode acontecer, pior ainda que o período dos Papas mundanos e vivendo em concubinato. É pior. E a mundanidade está sempre à espreita. Estejamos atentos!

Amados irmãos Bispos, cultivemos a proximidade com o Senhor para ser suas testemunhas credíveis e porta-vozes do seu amor junto do povo. É por nosso intermédio que Ele quer ungi-lo com o óleo da consolação e da esperança! Sois a voz com que Deus quer dizer aos congoleses: sois «um povo consagrado ao Senhor, vosso Deus» (Dt 7, 6). O anúncio do Evangelho, a animação da vida pastoral, a liderança do povo não se podem resolver com princípios alheios à realidade da vida diária, mas devem tocar as feridas e comunicar a proximidade divina, para que as pessoas descubram a sua dignidade de filhos de Deus e aprendam a caminhar de cabeça erguida, sem nunca a abaixar perante as humilhações e a opressão. Por vosso intermédio, este povo tem a graça de ouvir, dirigidas a si, palavras semelhantes às que o Senhor deu a Jeremias: És um povo abençoado; pensei em ti, conheci-te, amei-te, já antes de te formar no ventre materno! Se cultivarmos a proximidade com Deus, sentir-nos-emos impelidos para o povo e nunca deixaremos de sentir compaixão por quantos nos estão confiados. Esta atitude de compaixão não é mero sentimento, mas um sofrer com (patire cum). Animados e fortalecidos pelo Senhor, tornamo-nos, por nossa vez, instrumentos de consolação e reconciliação para os outros, para tratar as chagas de quem sofre, aliviar o sofrimento de quem chora, exaltar os pobres, libertar as pessoas de tantas formas de escravidão e opressão. Por outras palavras, a proximidade a Deus torna-nos profetas para o povo, capazes de semear a Palavra que salva na história ferida da própria terra.

E para penetrar neste segundo ponto – a profecia para o povo –, fixemos novamente a experiência de Jeremias. Depois de ter recebido a Palavra amorosa e consoladora de Deus, ele é chamado a ser «profeta das nações» (cf. Jer 1, 5), enviado a levar a luz onde há escuridão, a dar testemunho num contexto de violência e corrupção. E Jeremias, que come a Palavra do Senhor, tornando-se para ele gozo e alegria do coração (cf. 15, 16), confessa que esta mesma Palavra gera nele uma inquietação irreprimível e leva-o a encontrar os outros para serem tocados pela presença de Deus. «No meu coração – escreve ele –, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos. Esforçava-me por contê-lo, mas não podia» (20, 9). Não podemos guardar só para nós a Palavra de Deus, não podemos conter a sua força: ela é um fogo que queima a nossa apatia e acende em nós o desejo de iluminar quem está na escuridão. A Palavra de Deus é um fogo que abrasa dentro e nos impele a sair para fora! Eis a nossa identidade episcopal: abrasados pela Palavra de Deus, em saída para o Povo de Deus, com zelo apostólico!

Mas – podemos perguntar-nos – em que consiste este anúncio profético da Palavra, este ardor? Ao profeta Jeremias, o Senhor diz: «Eis que ponho as minhas palavras na tua boca; a partir de hoje, dou-te poder sobre os povos e sobre os reinos, para arrancares e demolires, para arruinares e destruíres, para edificares e plantares» (1, 9-10). São verbos fortes: primeiro, arrancar e demolir para poder, enfim, edificar e plantar. Trata-se de colaborar para uma história nova, que Deus deseja construir no meio dum mundo de perversão e injustiça. De igual modo também vós sois chamados a fazer ouvir a vossa voz profética, para que as consciências se sintam interpeladas e possa cada qual tornar-se protagonista e responsável por um futuro diferente. É necessário, pois, arrancar as plantas venenosas do ódio e do egoísmo, do rancor e da violência; demolir os altares consagrados aos ídolos do dinheiro e da corrupção; edificar uma convivência baseada na justiça, na verdade e na paz; e, finalmente, plantar sementes de renascimento, para que o Congo de amanhã seja verdadeiramente aquele que o Senhor sonha: uma terra abençoada e feliz, nunca mais violentada, oprimida nem ensanguentada.

Mas atenção! Não se trata duma ação política. A profecia cristã encarna-se em tantas ações políticas e sociais, mas a tarefa dos Bispos, e dos pastores em geral, não é esta. É a do anúncio da Palavra para acordar as consciências, para denunciar o mal, para alentar os angustiados e desesperados. «Consolai, consolai o meu povo»: esta frase aparece uma vez e outra; é um convite do Senhor para se consolar o povo: «consolai, consolai o meu povo». É um anúncio feito não só de palavras, mas também de proximidade e testemunho: proximidade em primeiro lugar aos presbíteros (os padres são o primeiro próximo dum bispo), escuta dos agentes pastorais, encorajamento no espírito sinodal para se trabalhar juntos. E testemunho, porque os Pastores devem ser os mais credíveis em tudo, em particular no cultivar a comunhão, na vida moral e na administração dos bens. Neste sentido, é essencial saber construir harmonia, sem se erguer num pedestal, sem asperezas, mas dando bom exemplo no apoio e perdão recíprocos, trabalhando juntos como modelos de fraternidade, paz e simplicidade evangélica. Oxalá nunca suceda que, enquanto o povo padece a fome, se possa dizer de vós: «eles sem se importarem, foram um para o seu campo, outro para o seu negócio» (cf. Mt 22, 5). Os negócios, por favor, deixemo-los fora da vinha do Senhor! Um pastor não pode ser um homem de negócios; não pode! Sejamos Pastores e servos do povo de Deus, não administradores de coisas nem homens de negócios, mas pastores! A administração do bispo deve ser a do pastor: à frente do rebanho, no meio do rebanho, atrás do rebanho. À frente do rebanho, para indicar o caminho; no meio do rebanho, para sentir o odor do rebanho e não o perder; atrás do rebanho, para ajudar aqueles que andam mais devagar, e também para deixar por um pouco sozinho o rebanho e ir ver onde encontra pastagens. O pastor deve mover-se nestas três posições.

Amados irmãos Bispos, partilhei convosco o que sentia no coração: cultivar a proximidade com o Senhor para ser sinais proféticos da sua compaixão pelo povo. Peço-vos para não transcurardes o diálogo com Deus e não deixardes que o fogo da profecia se apague por cálculos ou posições ambíguas com o poder, nem por uma vida cómoda e rotineira. À vista do povo que sofre e da injustiça, o Evangelho pede que levantemos a voz. Quando levantamos a voz segundo Deus, arriscamos. Fê-lo um vosso irmão, o servo de Deus D. Christophe Munzihirwa, pastor corajoso e voz profética, que protegeu o seu povo com a oferta da própria vida. No dia antes de morrer, enviou uma mensagem a todos dizendo: «Nestes dias, que mais podemos ainda fazer? Permaneçamos firmes na fé. Tenhamos confiança que Deus não nos abandonará e que de qualquer lado há de surgir para nós uma pequena luz de esperança. Deus não nos abandonará, se nos empenharmos por respeitar a vida dos nossos vizinhos, independentemente da etnia a que pertençam». No dia seguinte, foi morto numa praça da cidade, mas a sua semente, plantada nesta terra, juntamente com a de muitos outros, dará fruto. É bom recordar, com gratidão, grandes Pastores que marcaram a história do vosso país e da vossa Igreja, de quem vos evangelizou e precedeu na fé. Irmãos, são as vossas raízes, que vos robustecem no ardor evangélico. Penso no bem que recebi conhecendo o Cardeal Laurent Monsengwo Pasinya.

Queridos amigos, não tenhais medo de ser profetas de esperança para o povo, vozes unânimes da consolação do Senhor, testemunhas e arautos jubilosos do Evangelho, apóstolos de justiça, samaritanos de solidariedade: testemunhas de misericórdia e de reconciliação no meio de violências desencadeadas não só pela exploração dos recursos e dos conflitos étnicos e tribais, mas também e sobretudo pela força obscura do maligno, inimigo de Deus e do homem. Mas nunca desanimeis! O Crucificado ressuscitou, Jesus vence, aliás já venceu o mundo (cf. Jo 16, 33) e deseja brilhar em vós, na vossa obra preciosa, na vossa fecunda semente de paz. Irmãos, quero agradecer-vos pelo vosso serviço, o vosso zelo pastoral, o vosso testemunho.

E, chegados ao fim desta viagem, quero exprimir-vos todo o meu reconhecimento a vós e a quantos aqui a prepararam. Tivestes a paciência de esperar um ano, sois estupendos! Obrigado por isso. Precisastes de trabalhar duas vezes, porque, na primeira vez, a visita foi anulada, mas sei que sois misericordiosos com o Papa. Sinceramente, obrigado! No próximo mês de junho, celebrareis o Congresso Eucarístico Nacional em Lubumbashi: Jesus está realmente presente e operante na Eucaristia; lá reconcilia e cura, consola e une, ilumina e transforma; lá inspira, apoia e torna eficaz o vosso ministério. Que a presença de Jesus, Pastor manso e humilde de coração, vencedor do mal e da morte, transforme este grande país e seja sempre a vossa alegria e a vossa esperança. De coração vos abençoo.

Quero acrescentar apenas uma coisa! Disse-vos: «sede misericordiosos». A misericórdia. Perdoar sempre. Quando um fiel vem confessar-se, vem pedir perdão, vem pedir uma carícia ao Pai. Entretanto encontra-nos a nós, com dedo acusador: «Quantas vezes? E como o fizeste?…». Assim não. Perdoar. Sempre. «Sim, mas não sei… porque o Código diz…». O Código, devemos observá-lo, porque é importante; mas o coração do pastor vai mais além! Arriscai; pelo perdão, arriscai. Sempre. Perdoai sempre, no Sacramento da Reconciliação. E assim semeareis perdão para toda a sociedade.

De coração vos abençoo. E, por favor, continuai a rezar por mim, porque é um pouco difícil este serviço! Mas confio em vós. Obrigado.


Maré Alta

Urgentemente

ESPECIAL POESIA

Teresa Cunha Pinto | 23 Janeiro 2023 | in Ponto SJ

“É urgente o amor. É urgente um barco no mar.” As palavras são de Eugénio de Andrade, nascido José Fontinhas a 19 de janeiro de 1923. Celebramos o centenário do seu nascimento, o que me levou a recuperar o seu Urgentemente. Destruir palavras de ódio, inventar alegria, descobrir rosas e rios. É urgente o amor. O poeta escreve a urgência de uma entrega sem medida à vida. Não é esta a missão de Deus para nós? Entregarmo-nos à urgência do amor é fazer de Cristo o centro de toda a vida.

A urgência a que somos chamados não se trata de andar a correr desenfreadamente ou de viver em constante sobressalto. A urgência do amor leva-nos a caminhar, a permanecer, a empenhar, a perseverar. Porque sempre em confiança com Deus.

Ser urgente de amor é ser urgente de vida alegre e agradecida. Mas como inventar alegria ou motivos para nos alegrarmos? Só com um olhar de luz sobre todas as coisas. De maravilhas estamos repletos quando nos permitimos ser tocados por elas. As mais invisíveis, pequenas, ínfimas, transparentes. São assim as maravilhas de Deus, grandes aos olhos do coração.

Também Jesus, no meio da multidão, se faz sempre motivo de alegria para nós, revelando-nos a urgência que temos do Seu amor. Somos todos chamados a inventar alegria e a sermos alegria viva para o mundo. Mesmo quando nos parece impossível, mesmo quando tudo parece gritar o oposto.

Eugénio de Andrade também escreve a urgência de destruir o ódio, a crueldade, lamentos e espadas e a urgência de multiplicar beijos e searas, rios e manhãs claras. Eis o convite de permanecermos na simplicidade de tudo aquilo que é dádiva, oferta e dom.

Para quem quiser ouvir o poema Urgentemente cantado, vale a pena pela voz da artista A garota não. Para quem anda pelo Porto, a exposição “Eugénio de Andrade, A Arte dos Versos”, a decorrer na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, está aberta ao público até 29 de abril.

URGENTEMENTE

É urgente o amor
É urgente um barco no mar
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

Eugénio de Andrade, in “Até Amanhã“


Maré Alta

DOMINGO DA PALAVRA DE DEUS

SANTA MISSA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
III Domingo do Tempo Comum, 22 de janeiro de 2023

Jesus deixa a vida tranquila e incógnita de Nazaré, mudando para Cafarnaum, cidade situada junto do mar da Galileia, lugar de passagem, encruzilhada de povos e culturas diferentes. A instância que O impele é o anúncio da Palavra de Deus, que deve ser levada a todos. Vemos realmente no Evangelho que o Senhor a todos convida à conversão, e chama também os primeiros discípulos para transmitirem aos outros a luz da Palavra (cf. Mt 4, 12-23). Assumamos este dinamismo, que nos ajuda a viver o Domingo da Palavra de Deus: a Palavra é para todos, a Palavra chama à conversão, a Palavra torna-nos anunciadores.

A Palavra de Deus é para todos. O Evangelho apresenta-nos Jesus sempre em movimento, saindo ao encontro dos outros. Em nenhuma ocasião da sua vida pública, nos dá a ideia de ser um mestre estático, um professor sentado na sua cátedra; pelo contrário, vemo-Lo itinerante, vemo-Lo peregrino, a percorrer cidades e aldeias ao encontro de rostos e casos. Os seus pés são os do mensageiro que anuncia a boa-nova do amor de Deus (cf. Is 52, 7-8). Como observa o texto, lá onde Jesus prega, na Galileia dos gentios, ao longo da via do mar, na região de além do Jordão, jazia um povo mergulhado nas trevas: estrangeiros, pagãos, mulheres e homens de variadas regiões e culturas (cf. Mt 4, 15-16). E agora também eles podem ver a luz. Assim Jesus «amplia as fronteiras»: a Palavra de Deus, que sara e levanta, não se destina apenas aos justos de Israel, mas a todos; quer alcançar os que estão longe, curar os doentes, salvar os pecadores, reunir as ovelhas perdidas e encorajar a quantos têm o coração cansado e oprimido. Em suma, Jesus ultrapassa os confins para nos dizer que a misericórdia de Deus é para todos. Não esqueçamos isto: a misericórdia de Deus é para todos e para cada um de nós. Cada um pode dizer: «a misericórdia de Deus é para mim».

Este aspeto é fundamental também para nós. Recorda-nos que a Palavra é um dom dirigido a cada um e, por isso, não podemos jamais limitar o seu campo de ação, porque aquela, ultrapassando todos os nossos cálculos, germina de forma espontânea, imprevista e imprevisível (cf. Mc 4, 26-28), segundo modalidades e tempos que o Espírito Santo conhece. E se a salvação é destinada a todos, incluindo os mais distantes e os extraviados, então o anúncio da Palavra deve tornar-se a principal urgência da comunidade eclesial, tal como o foi para Jesus. Não nos aconteça professar um Deus de coração largo e ser uma Igreja de coração estreito (seria – ouso dizer – uma maldição); não nos aconteça pregar a salvação para todos e tornar intransitável o caminho para a acolher; não nos aconteça saber que somos chamados a levar o anúncio do Reino e transcurar a Palavra, dispersando-nos em tantas atividades secundárias ou tantos debates secundários. Aprendamos com Jesus a colocar a Palavra no centro, a alargar as fronteiras, abrir-nos às pessoas, gerar experiências de encontro com o Senhor, sabendo que a Palavra de Deus «não está cristalizada em fórmulas abstratas e estáticas, mas tem uma história dinâmica, feita de pessoas e acontecimentos, de palavras e ações, de evoluções e tensões» (XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Instrumentum laboris «A palavra de Deus na vida e na missão da Igreja», 2008, 10).

Passemos agora ao segundo aspeto: a Palavra de Deus, que se dirige a todos, chama à conversão. De facto, na sua pregação, Jesus repete: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu» (Mt 4, 17). Isto significa que a proximidade de Deus não é neutral, a sua presença não deixa as coisas como estão, não defende o «não te rales». Pelo contrário, a sua Palavra mexe connosco, desinquieta-nos, incentiva-nos à mudança, à conversão: põe-nos em crise, porque «é viva, eficaz e mais afiada que uma espada de dois gumes (...) e discerne os sentimentos e intenções do coração» (Heb 4, 12). É verdade! À semelhança duma espada, a Palavra penetra na vida, fazendo-nos discernir sentimentos e intenções do coração, ou seja, fazendo-nos ver qual é a luz do bem a que havemos de dar espaço e onde, ao contrário, se adensam as trevas dos vícios e pecados que temos de combater. A Palavra, quando penetra em nós, transforma o coração e a mente; muda-nos, levando a orientar a vida para o Senhor.

Este é o convite de Jesus: Deus aproximou-Se de ti, por isso dá-te conta da sua presença, dá espaço à sua Palavra e mudarás a perspetiva da tua vida. Por outras palavras: coloca a tua vida sob a Palavra de Deus. Este é o caminho que nos indica a Igreja: todos, mesmo os Pastores da Igreja, estamos sob a autoridade da Palavra de Deus; não sob os nossos gostos, as nossas tendências ou preferências, mas unicamente sob a Palavra de Deus que nos molda, converte, pede para permanecermos unidos na única Igreja de Cristo. Então, irmãos e irmãs, podemos perguntar-nos: A minha vida, que direção toma; donde tira a orientação? Das numerosas palavras que escuto, das ideologias ou da Palavra de Deus que me guia e purifica? E em mim, quais são os aspetos que exigem mudança e conversão?

Finalmente – terceiro aspeto – a Palavra de Deus, que se dirige a todos e chama à conversão, torna-nos anunciadores. Com efeito, Jesus passa pelas margens do lago da Galileia e chama Simão e André, dois irmãos que eram pescadores. Convida-os, com a sua Palavra, a segui-Lo, dizendo que fará deles «pescadores de homens» (Mt 4, 19): já não peritos só em barcos, redes e peixes, mas peritos na busca dos outros. E como, na navegação e na pesca, aprenderam a deixar a margem para lançar as redes ao largo, de igual modo tornar-se-ão apóstolos capazes de navegar no mar aberto do mundo, indo ao encontro dos irmãos e anunciando-lhes a alegria do Evangelho. Este é o dinamismo da Palavra: atrai-nos para a «rede» do amor do Pai e torna-nos apóstolos que sentem o desejo irreprimível de fazer subir para a barca do Reino todos os que encontram. E isto não é proselitismo, porque é a Palavra de Deus que chama, não a nossa palavra.

Assim, sintamos dirigido também a nós o convite para ser pescadores de homens: sintamo-nos chamados por Jesus pessoalmente para anunciar a sua Palavra, testemunhá-la nas situações de cada dia, vivê-la na justiça e na caridade, chamados «encarná-la» acarinhando a carne de quem sofre. Esta é a nossa missão: sair à procura de quem está perdido, de quem está oprimido e desanimado, para lhes levar, não nós mesmos, mas a consolação da Palavra, o anúncio desinquietador de Deus que transforma a vida, para lhes levar a alegria de saber que Ele é Pai e fala a cada um, levar a beleza de dizer: «Irmão, irmã, Deus aproximou-Se de ti, escuta-O e, na sua Palavra, encontrarás um dom estupendo!»

Irmãos e irmãs, quero concluir convidando simplesmente a agradecer a quem se esforça por que a Palavra de Deus volte a ser colocada no centro, partilhada e anunciada. Obrigado a quem a estuda e aprofunda a sua riqueza; obrigado aos agentes pastorais e a todos os cristãos empenhados na escuta e difusão da Palavra, especialmente os leitores e catequistas: hoje vou conferir o ministério a alguns deles. Obrigado a quantos acolheram os inúmeros convites que fiz para trazer sempre connosco o Evangelho e lê-lo todos os dias. E, por fim, um agradecimento particular aos diáconos e aos sacerdotes: Obrigado, queridos irmãos, porque não deixais faltar ao Povo santo o alimento da Palavra; obrigado por vos empenhardes a meditá-la, vivê-la e anunciá-la; obrigado pelo vosso serviço e os vossos sacrifícios. A todos nós, sirva de consolação e recompensa a doce alegria de anunciar a Palavra da salvação.


Maré Alta

Bento XVI: filho da Igreja, não do tempo

ESPECIAL ANÁLISE DO PONTIFICADO DE BENTO XVI (2)

(Continuação da secção Eu sou porque nós somos)

(3) A beleza do amor – E assim chegamos ao tema central das suas encíclicas: caritas. Não fosse o amor a única experiência de eternidade que podemos vivenciar neste mundo, finito e contingente, e ficaríamos admirados por um Papa dizer, sem pudor nem reservas: eros. A sua primeira encíclica Deus caritas est (2005) ficará certamente para a História do magistério da Igreja. Nela, a virtude teologal do amor cristão surge como unidade de eros e ágape. A sua posição equilibrada não lhe permite menosprezar nenhuma das expressões do amor humano. Se o amor é “uma única realidade” (Deus caritas est §8), trata-se de uma experiência humana com dimensões distintas. Há o dar e o receber, o entregar-se ao outro e acolher o dom que dele se recebe. E tanto é assim no amor puramente humano como na experiência religiosa de quem se sente amado por Deus. Estar unido ao ente amado, que por sua vez nos ama, tanto é possuí-lo como deixar-se possuir por ele. É por isso que o amor oblativo não se opõe ao amor do desejo possessivo da atração. Ágape encontra a sua condição de possibilidade no eros, e este degenera em violência sem o amor oblativo. Quando o prazer de possuir o outro se realiza no ato de a ele se oferecer completamente, a comunhão autêntica acontece. Nunca iremos esquecer que “amar” é o último verbo que Bento XVI emprega nas palavras que profere neste mundo. Ao morrer, apenas diz: “Jesus, amo-Te”.

Ao colocar o amor no centro, Bento XVI ultrapassa a lógica da troca comercial que nos reduz a objetos uns dos outros num tecido social de relação perversas. “Se o amor é inteligente, sabe encontrar também os modos para agir segundo uma previdente e justa conveniência, como significativamente indicam muitas experiências no campo do crédito cooperativo” (Caritas in veritate §65). Vemos, então, como Bento XVI, ao colocar o amor como tema central da sua reflexão teológica, é capaz de propor um olhar crítico da ordem económica vigente, propondo alternativas realistas.

Além disso, a centralidade do amor tem que ver com a dimensão estética da fé. Amar também se traduz na experiência de quem se deixa apaixonar pela beleza que podemos experimentar nesta vida. Ao ouvir música, Bento XVI fazia-se próximo de Deus cuja presença sentia através da beleza que também acontece neste mundo, passageiro e finito. Por isso, nunca se coibiu a si mesmo do prazer de tocar piano. Juntamente a dois dos grandes teólogos do seu tempo, Karl Barth e Hans Urs von Balthasar, assumiu uma paixão particular por Mozart. Num discurso proferido em 2007, após ter escutado o Requiem de Mozart, afirmou: “Em Mozart tudo é harmonia perfeita, cada nota, cada frase musical é assim e não poderia ser de outra forma (…) a «serenidade mozartiana» tudo envolve, em cada momento”. Nas suas palavras, a experiência estética é assim acolhida como “um dom da graça de Deus”, onde transparece “a resposta luminosa do Amor divino, que dá esperança”.

(4) Escândalos – Quando revisitamos o pontificado de Bento XVI, é difícil não referir os escândalos que tanto o desgastaram nas lides da Igreja. Para além do Vatileaks, ele teve ainda de enfrentar o enorme flagelo dos abusos perpetuados no seio de instituições católicas. Revelou, nesse contexto, ter coragem para introduzir novas medidas, punindo os culpados, como o célebre padre Maciel, fundador dos Legionários de Cristo. A carta que o Papa emérito publicou após a cimeira que decorreu no Vaticano em fevereiro de 2019 mostra como Bento XVI se preocupava enormemente em superar este flagelo abissal que põe em causa a credibilidade da Igreja.

(5) Humildade – Chegamos assim à humildade que transparece no olhar que o seu rosto manifesta. Não me esqueço da forma como Bento XVI se apresentou, pela primeira vez, ao povo de Deus enquanto Papa: como um “simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor.” Quando hoje se fala tanto em “clericalismo”, as palavras daquele breve discurso inaugural ecoam como expressão do desejo de uma Igreja que vive ao serviço do Outro e dos outros; ao serviço de Deus, do próximo e da comunidade humana; uma Igreja que, em vez de se servir dos outros para se manter no poder, se coloca ao serviço da fé e dos desafios que nos são dados viver.

Na esteira de Agostinho, para quem a humildade constitui uma virtude fundamental da fé em intrínseca conexão à Verdade, Bento XVI foi um papa que assumiu, sem vergonha, a sua fraqueza. Quem pode esquecer o gesto da renúncia naquela manhã de 11 de fevereiro de 2013? Ninguém duvida do facto de o seu pontificado ficar para sempre marcado pelo gesto que o conclui. A humildade que o discurso inaugural havia proclamado realizou-se integralmente nesse gesto da renúncia final. E, aberto o precedente, talvez se tenha instaurado uma nova prática na Igreja em relação ao papado e aos cargos de poder.

Muito se especula sobre os motivos da sua renúncia. Da minha parte, não tenho razões para desconfiar das suas palavras. No discurso curto e marcante da renúncia, ele próprio afirmou: “cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino”. Que mais é preciso dizer?

Essa perda de forças e de vigor manifesta-se na obra que Jago intitulou Habemus Hominem. Trata-se de uma escultura do Papa emérito na qual Bento XVI transparece em toda a sua humanidade, tão frágil quanto bela. Jago quer apenas manifestar a humildade da renúncia. Contemplar o olhar penetrante daquele rosto rugoso, admirar o realismo do seu corpo imperfeito e desgastado, que se reveste de um tecido fino, qual pele áspera a ponto de se rasgar na leveza do vento invisível, não nos leva apenas a aceitar a nossa condição de pessoas vulneráveis num mundo limitado e finito. Para além de sermos estimulados a reconhecer a vulnerabilidade de quem já viu muito tempo passar, ao contemplar a obra de Jago, também nos deixamos maravilhar pela debolezza humana.

A humildade que o discurso inaugural havia proclamado realizou-se integralmente nesse gesto da renúncia final. E, aberto o precedente, talvez se tenha instaurado uma nova prática na Igreja em relação ao papado e aos cargos de poder.

Assim, a fragilidade da nossa condição não se reduz ao fatalismo da nossa morte: abre-nos também à possibilidade de amarmos e de sermos amados. Ver beleza naquele busto de um Bento XVI nu de todo o poder, despido de toda a força, não se confunde com a pornografia dos realismos mundanos. Trata-se, antes, de aceitar e integrar a condição de dependência na abertura ao Outro, que nos pode salvar, e aos outros com quem podemos ir habitando este mundo a partir de encontros de comunhão.

Aliado às mãos que rezam, o olhar pacificado de Bento XVI que Jago esculpiu alimenta a nossa fé, a nossa esperança e o amor que ainda podemos realizar nesta vida. É assim em comunhão, reunidos em torno de Bento XVI, que hoje, no dia do seu funeral, melhor lhe podemos prestar homenagem. Paz à sua alma.


Maré Alta

MENSAGEM DO SANTO PADRE
FRANCISCO
PARA A CELEBRAÇÃO DO
56º DIA MUNDIAL DA PAZ

1º DE JANEIRO DE 2023

NINGUÉM PODE SALVAR-SE SOZINHO.
JUNTOS, RECOMECEMOS A PARTIR DE COVID-19 PARA TRAÇAR SENDAS DE PAZ

«Quanto aos tempos e aos momentos, irmãos, não precisais que vos escreva. Com efeito, vós próprios sabeis perfeitamente que o Dia do Senhor chega de noite como um ladrão» (I Carta de São Paulo aos Tessalonicenses 5, 1-2).

1. Com estas palavras, o apóstolo Paulo convidava a comunidade de Tessalónica a que, na expetativa do encontro com o Senhor, permanecesse firme, com os pés e o coração bem assentes na terra, capaz dum olhar atento sobre a realidade e os factos da história. Assim, embora apareçam tão trágicos os acontecimentos da nossa existência sentindo-nos impelidos para o túnel obscuro e difícil da injustiça e do sofrimento, somos chamados a manter o coração aberto à esperança, confiados em Deus que Se faz presente, nos acompanha com ternura, apoia os nossos esforços e sobretudo orienta o nosso caminho. Por isso, São Paulo não cessa de exortar a comunidade a vigiar, procurando o bem, a justiça e a verdade: «não durmamos (…) como os outros, mas vigiemos e sejamos sóbrios» (5, 6). É um convite a permanecer despertos, a não nos fechar no medo, na dor ou na resignação, não ceder à dissipação, nem desanimar, mas, pelo contrário, a ser como sentinelas capazes de vigiar vislumbrando as primeiras luzes da aurora, sobretudo nas horas mais escuras.

2. A Covid-19 precipitou-nos no coração da noite, desestabilizando a nossa vida quotidiana, transtornando os nossos planos e hábitos, subvertendo a aparente tranquilidade mesmo das sociedades mais privilegiadas, gerando desorientação e sofrimento, causando a morte de tantos irmãos e irmãs nossos.

Arrastados na voragem de desafios inesperados e numa situação que não era totalmente clara nem sequer do ponto de vista científico, o mundo da saúde mobilizou-se para aliviar a dor de inúmeras pessoas e procurar remediá-la; e de igual modo fizeram as autoridades políticas, que tiveram de tomar medidas notáveis em termos de organização e gestão da emergência.

A par das manifestações físicas, a Covid-19 provocou – inclusive com efeitos de longa duração – um mal-estar geral, que se concentrou no coração de tantas pessoas e famílias, com implicações não transcuráveis, incrementadas por longos períodos de isolamento e diversas limitações da liberdade.

Além disso, não podemos esquecer como a pandemia atingiu pontos sensíveis da ordem social e económica, pondo a descoberto contradições e desigualdades. Ameaçou a segurança laboral de muitos e agravou a solidão sempre mais generalizada nas nossas sociedades, especialmente a solidão dos mais frágeis e pobres. Pensemos, por exemplo, nos milhões de trabalhadores não regularizados em muitas partes do mundo, que ficaram sem trabalho nem qualquer apoio durante todo o período de confinamento.

Raramente os indivíduos e a sociedade progridem em situações que geram tamanho sentimento de derrota e amargura: na realidade, o mesmo enfraquece os esforços empreendidos pela paz e provoca conflitos sociais, frustrações e violências de vário género. Neste sentido, a pandemia parece ter transtornado inclusive as áreas mais pacíficas do nosso mundo, fazendo emergir inumeráveis fragilidades.

3. Passados três anos, é hora de pararmos um pouco para nos interrogar, aprender, crescer e deixar transformar, como indivíduos e como comunidade; um tempo privilegiado para nos prepararmos para o «Dia do Senhor». Já tive oportunidade de repetir várias vezes que, dos momentos de crise, nunca saímos iguais: sai-se melhor ou pior. Hoje somos chamados a questionar-nos: O que é que aprendemos com esta situação de pandemia? Quais são os novos caminhos que deveremos empreender para romper com as correntes dos nossos velhos hábitos, estar melhor preparados, ousar a novidade? Que sinais de vida e esperança podemos individuar para avançar e procurar tornar melhor o nosso mundo?

Certamente, tendo experimentado diretamente a fragilidade que carateriza a realidade humana e a nossa existência pessoal, podemos dizer que a maior lição que Covid-19 nos deixa em herança é a consciência de que todos precisamos uns dos outros, que o nosso maior tesouro, ainda que o mais frágil, é a fraternidade humana, fundada na filiação divina comum, e que ninguém pode salvar-se sozinho. Por conseguinte, é urgente buscar e promover, juntos, os valores universais que traçam o caminho desta fraternidade humana. Aprendemos também que a confiança posta no progresso, na tecnologia e nos efeitos da globalização não só foi excessiva, mas transformou-se numa intoxicação individualista e idólatra, minando a desejada garantia de justiça, concórdia e paz. Com muita frequência, neste nosso mundo que corre a grande velocidade, os problemas generalizados de desequilíbrios, injustiças, pobreza e marginalizações alimentam mal-estares e conflitos, e geram violências e mesmo guerras.

Enquanto a pandemia, por um lado, fez emergir tudo isto, por outro, permitiu-nos fazer descobertas positivas: um benéfico regresso à humildade; uma redução de certas pretensões consumistas; um renovado sentido de solidariedade que nos encoraja a sair do nosso egoísmo para nos abrirmos ao sofrimento dos outros e às suas necessidades; bem como um empenho, nalguns casos verdadeiramente heroico, de muitas pessoas que se sacrificaram para que todos conseguissem superar do melhor modo possível o drama da emergência.

E, de tal experiência, brotou mais forte a consciência que convida a todos, povos e nações, a colocar de novo no centro a palavra «juntos». Com efeito, é juntos, na fraternidade e solidariedade, que construímos a paz, garantimos a justiça, superamos os acontecimentos mais dolorosos. De facto, as respostas mais eficazes à pandemia foram aquelas que viram grupos sociais, instituições públicas e privadas, organizações internacionais unidos para responder ao desafio, deixando de lado interesses particulares. Só a paz que nasce do amor fraterno e desinteressado nos pode ajudar a superar as crises pessoais, sociais e mundiais.

4. Entretanto, quando já ousávamos esperar que estivesse superado o pior da noite da pandemia de Covid-19, eis que se abateu sobre a humanidade uma nova e terrível desgraça. Assistimos ao aparecimento doutro flagelo – uma nova guerra – comparável em parte à Covid-19 mas pilotado por opções humanas culpáveis. A guerra na Ucrânia ceifa vítimas inocentes e espalha a incerteza, não só para quantos são diretamente afetados por ela, mas de forma generalizada e indiscriminada para todos, mesmo para aqueles que, a milhares de quilómetros de distância, sofrem os seus efeitos colaterais: basta pensar nos problemas do trigo e nos preços dos combustíveis.

Não era esta, sem dúvida, a estação pós-Covid que esperávamos ou por que ansiávamos. Na realidade, esta guerra, juntamente com todos os outros conflitos espalhados pelo globo, representa uma derrota não apenas para as partes diretamente envolvidas mas também para a humanidade inteira. E enquanto para a Covid-19 se encontrou uma vacina, para a guerra ainda não se encontraram soluções adequadas. Com certeza, o vírus da guerra é mais difícil de derrotar do que aqueles que atingem o organismo humano, porque o primeiro não provem de fora, mas do íntimo do coração humano, corrompido pelo pecado (cf. Evangelho de Marcos 7, 17-23).

5. Enfim, o que se nos pede para fazer? Antes de mais nada, deixarmos mudar o coração pela emergência que estivemos a viver, ou seja, permitir que, através deste momento histórico, Deus transforme os nossos critérios habituais de interpretação do mundo e da realidade. Não podemos continuar a pensar apenas em salvaguardar o espaço dos nossos interesses pessoais ou nacionais, mas devemos repensar-nos à luz do bem comum, com um sentido comunitário, como um «nós» aberto à fraternidade universal. Não podemos ter em vista apenas a proteção de nós próprios, mas é hora de nos comprometermos todos em prol da cura da nossa sociedade e do nosso planeta, criando as bases para um mundo mais justo e pacífico, seriamente empenhado na busca dum bem que seja verdadeiramente comum.

Para fazer isto e viver melhor depois da emergência Covid-19, não se pode ignorar um dado fundamental: as variadas crises morais, sociais, políticas e económicas que estamos a viver encontram-se todas interligadas, e os problemas que consideramos como singulares, na realidade um é causa ou consequência do outro. E assim somos chamados a enfrentar, com responsabilidade e compaixão, os desafios do nosso mundo. Devemos repassar o tema da garantia da saúde pública para todos; promover ações de paz para acabar com os conflitos e as guerras que continuam a gerar vítimas e pobreza; cuidar de forma concertada da nossa casa comum e implementar medidas claras e eficazes para fazer face às alterações climáticas; combater o vírus das desigualdades e garantir o alimento e um trabalho digno para todos, apoiando quantos não têm sequer um salário mínimo e passam por grandes dificuldades. Fere-nos o escândalo dos povos famintos. Precisamos de desenvolver, com políticas adequadas, o acolhimento e a integração, especialmente em favor dos migrantes e daqueles que vivem como descartados nas nossas sociedades. Somente despendendo-nos nestas situações, com um desejo altruísta inspirado no amor infinito e misericordioso de Deus, é que poderemos construir um mundo novo e contribuir para edificar o Reino de Deus, que é reino de amor, justiça e paz.

Compartilho estas reflexões com a esperança de que, no novo ano, possamos caminhar juntos valorizando tudo o que a história nos pode ensinar. Formulo votos de todo o bem aos Chefes de Estado e de Governo, aos Responsáveis das Organizações Internacionais, aos líderes das várias religiões. Desejo a todos os homens e mulheres de boa vontade que possam, como artesãos de paz, construir dia após dia um ano feliz! Maria Imaculada, Mãe de Jesus e Rainha da Paz, interceda por nós e pelo mundo inteiro.

Vaticano, 8 de dezembro de 2022.

Francisco


Maré Alta

OPINIÃO PEDAGOGIA INACIANA

Ser como o salmão

P. Carlos Carvalho sj | 20 Dezembro 2022 | in Ponto SJ

No passado dia 5 de dezembro, no Colégio das Caldinhas, onde trabalho, tivemos a honra de receber a visita do Superior Geral dos Jesuítas, P. Arturo Sosa, sj, para grande alegria dos alunos e dos educadores. Deste dia, para além das perguntas que os nossos alunos tiveram a oportunidade de colocar ao Padre Geral, num encontro com toda a comunidade educativa no pavilhão, gostava de destacar a conversa com os educadores. Depois de uma breves palavras de introdução, os educadores colocaram algumas perguntas ao Padre Geral sobre como educar hoje, diante de tantos desafios, através da pedagogia inaciana.

Desta conversa retenho três ideias inspiradoras: a) que no presente, a nível mundial, um dos maiores problemas/desafios está na dificuldade de promover um diálogo inter-geracional; b) que educar para a Cidadania Global, um dos dez identificadores da Tradição Viva, é educar para um bem comum e não para o mérito próprio, isto é, para o serviço; c) que educar para a felicidade é educar para a liberdade, uma liberdade que não vive apegada ao poder ou a ideias, mas que se sente livre para seguir o Espírito Santo e o desejo de Deus para o mundo.

a) Educar para o diálogo. Vivemos num continente e num país com uma baixa taxa de natalidade e em progressivo envelhecimento, como comprovam os resultados estatísticos dos últimos sensos. Este nosso contexto não só levanta as frequentes questões de sustentabilidade do sistema de assistência social, como nos traz novas questões em relação à organização da sociedade e ao diálogo entre gerações. A escola é um espaço social onde este encontro de expectativas e visões do mundo se pode dar, alargando o horizonte das relações sociais e promovendo um efetivo diálogo entre distintas gerações, sobretudo, sensibilizando para a construção de uma sociedade mais justa e integradora, lutando contra a lógica de descarte e promovendo uma cultura de escuta e de diálogo.

b) Educar para o bem comum. É frequente avaliarmos o mérito dos alunos pelas notas, congelando todas as outras dimensões da pessoa. Num mundo cada vez mais global, com problemas e desafios que são de todos e que exigem o esforço de todos, estamos naturalmente formatados para o reconhecimento e incentivo do mérito individual. Todavia, as dimensões da Cidadania Global, objetivo recente da educação jesuítica, não só pretendem a consciencialização do cidadão para as grandes questões globais, como o seu compromisso com a justiça e com ações concretas de transformação do mundo, pela força criativa do serviço. A pandemia trouxe-nos a consciência que estamos todos juntos e que os problemas globais, como as alterações climáticas, exigem o compromisso de todos, por isso, mais do que educar indivíduos geniais, somos chamados a educar cidadão globais comprometidos com a construção do bem comum e a excelência humana.

c) Educar para a liberdade. O presépio, que neste tempo ocupa um lugar de destaque na nossa casa, é um grito de liberdade, que muda radicalmente a definição de felicidade. Para Maria e José, a liberdade está no compromisso e não no poder. Em Deus incarnado, a felicidade está no serviço e não no ser servido. Promover a autonomia do aluno e a sua responsabilidade, fazê-lo protagonista ativo do seu processo de aprendizagem não é apenas dar-lhe os meios digitais ou outros que lhe permitam aprender sozinho, mas ajudá-lo a aprender com os pares, desenvolvendo o sentido humano que o saber deve estar ao serviço da construção da felicidade de todos.

Quase no final da sua intervenção, o Padre Geral sintetizava estas ideias afirmando que o educador inaciano tem que ser como o salmão, nadar contra a corrente e não se deixar ir pelas correntes das modas.

Os salmões, para se poderem reproduzir, voltam, com muito esforço, nadando contra a corrente, ao lugar onde nasceram. Os educadores, como pessoas humanas em construção, devem também voltar às origens da sua vocação de humanizadores para poderem ajudar os alunos de hoje a descobrir as suas origens e a criar um mundo novo, mais semelhante ao do presépio. Nadar contra a corrente implica diálogo aberto com a diferença e confiança discernida da missão a que Deus nos chama como educadores inacianos e católicos, porque Deus não dorme, mas trabalha misteriosamente ajudando o mundo a caminhar para o bem. Nadar contra a corrente, mergulhar mais fundo no sentido das coisas e da vida, para dar uma resposta humana/divina às questões próprias de cada etapa de crescimento e para abrir novas portas de sentido.

Como referia o Padre Geral: “Para lograr este objetivo [educar hombres y mujeres para los demás], no contamos con milagros o intervenciones extraordinarias, sino que contamos con este tesoro aquí presente, que ya está en acción: contamos con el compromiso de cada persona, que da lo mejor de sí, que vive desde la verdad y la transparencia, en diálogo sincero y constructivo, con profesionalidad, busca el bien de toda la comunidad y se adhiere a una misión que no es sólo el desempeño de un oficio o el deseo de éxito, sino que es, desde ahora y en lo cotidiano, un compromiso con una humanidad reconciliada, esperanzada y feliz”.

Diante de Deus que incarna e assume a nossa humanidade, a nossa vocação de educadores adquire uma dimensão profunda e espiritual: educar não é apenas transmitir conhecimentos, mas voltar ao lugar de nascença para gerar uma nova humanidade. Para um educador inaciano, nadar contra a corrente, com ânimo e tenacidade, não significa estar fechado à novidade, em métodos antigos de ensino ou em pedagogias do passado, mas renovar o seu compromisso com o objetivo integral da educação jesuítica – letras e virtudes – no desejo de transformar o mundo através da educação dos seus alunos.


Maré Alta

SOLENIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO DA BEM-AVENTURADA VIRGEM MARIA

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia e feliz festa!

O Evangelho da Solenidade de hoje introduz-nos na casa de Maria para nos narrar a Anunciação (cf. Lc 1, 26-38). O anjo Gabriel saúda a Virgem assim: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo» (v. 28). Ele não a chama pelo nome, Maria, mas com um novo nome, que Ela não conhecia: cheia de graça! Cheia de graça e, portanto, sem pecado, é o nome que Deus lhe dá e que hoje nós celebramos.

Mas pensemos no assombro de Maria: só então Ela descobriu a sua identidade mais verdadeira. Com efeito, chamando-a com aquele nome, Deus revela-lhe o seu maior segredo, que antes Ela ignorava. Algo análogo pode acontecer também connosco. Em que sentido? No sentido que inclusive nós, pecadores, recebemos um dom inicial que encheu a nossa vida, um bem maior do que tudo, recebemos uma graça original. Falamos muito do pecado original, mas também recebemos uma graça original, da qual muitas vezes não estamos conscientes.

De que se trata? Em que consiste esta graça original? Foi o que recebemos no dia do nosso Batismo, que por isso nos fará bem recordar, e também celebrar! Faço uma pergunta. Esta graça recebida no dia do Batismo é importante, mas quantos de vós se lembram da data do vosso Batismo? Refleti sobre isto! E se não vos recordais, quando voltardes para casa perguntai ao padrinho, madrinha, pai ou mãe: “Quando fui batizado, batizada?”. Pois aquela data é o dia da grande graça, de um novo início de vida, da graça original que temos. Naquele dia Deus desceu sobre a nossa vida, e tornámo-nos seus filhos amados para sempre. Eis a nossa beleza original, pela qual nos devemos regozijar! Hoje Maria, surpreendida pela graça que a tornou bela desde o primeiro instante de vida, leva-nos a admirar-nos com a nossa beleza. Podemos captá-la através de uma imagem: a da veste branca do Batismo; ela recorda-nos que, por detrás do mal com que nos manchamos ao longo dos anos, em nós existe um bem maior do que todos aqueles males que nos aconteceram. Ouçamos o seu eco, ouçamos Deus que nos diz: “Filho, filha, eu amo-te e estou sempre contigo, tu és importante para mim, a tua vida é preciosa!”. Quando as coisas não correm bem e desanimamos, quando nos sentimos abatidos e corremos o risco de nos sentirmos inúteis ou errados, pensemos nisto, na graça original. Deus está ao nosso lado, Deus está comigo desde aquele dia. Reflitamos sobre isto!

Hoje, a Palavra de Deus ensina-nos outra coisa importante: que preservar a nossa beleza tem um preço, requer uma luta. Com efeito, o Evangelho mostra-nos a coragem de Maria, que disse “sim” a Deus, que escolheu o risco de Deus; e o trecho do Génesis, relativo ao pecado original, fala-nos de uma luta contra o tentador e as suas tentações (cf. Gn 3, 15). Mas também por experiência, todos nós sabemos: requer o esforço de escolher o bem; exige o esforço de preservar o bem que existe em nós. Pensemos nas numerosas vezes que o desperdiçamos, cedendo às seduções do mal, agindo de modo astuto pelos nossos próprios interesses ou fazendo algo que poluiria o nosso coração; ou até perdendo tempo com coisas inúteis e prejudiciais, adiando a oração, ou dizendo “não posso” a quem precisava de nós quando, ao contrário, nós podíamos.

Mas diante de tudo isto, hoje temos uma boa notícia: Maria, a única criatura humana sem pecado na história, está connosco na luta, é nossa irmã e sobretudo nossa Mãe. E nós, que temos dificuldade de escolher o bem, podemos confiar-nos a Ela. Confiando-nos, consagrando-nos a Nossa Senhora, digamos-lhe: “Segura a minha mão, Mãe, guia-me: contigo terei mais força na luta contra o mal, contigo redescobrirei a minha beleza original!”. Confiemo-nos a Maria hoje, todos os dias, repetindo-lhe: “Maria, confio-te a minha vida, a minha família, o meu trabalho, confio-te o meu coração e as minhas lutas. Consagro-me a ti!”. Que a Imaculada nos ajude a preservar do mal a nossa beleza!


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

Saúdo todos vós, romanos e peregrinos. Em particular, saúdo os membros do Movimento Cristão de Trabalhadores e a representação de Rocca di Papa, com a tocha que acenderá a Estrela de Natal colocada no topo da cidadezinha.

Na festa de Maria Imaculada, a Ação Católica Italiana vive a renovação da afiliação. Dirijo o meu pensamento às suas associações diocesanas e paroquiais, encorajando todos a progredir com alegria no serviço ao Evangelho e à Igreja.

Esta tarde irei a Santa Maria Maior, para rezar à Salus Populi Romani, e imediatamente depois à Praça de Espanha, para cumprir o tradicional ato de homenagem e de oração aos pés do monumento à Imaculada. Peço-vos que vos unais espiritualmente a mim neste gesto, que manifesta a devoção filial a nossa Mãe, a cuja intercessão confiamos o desejo universal de paz, particularmente para a martirizada Ucrânia, que sofre tanto! Penso nas palavras do Anjo à Virgem: «Nada é impossível a Deus» (Lc 1, 37). Com a ajuda de Deus, a paz é possível, o desarmamento é possível. Mas Deus quer a nossa boa vontade. Que Nossa Senhora nos ajude a converter-nos aos desígnios de Deus!

Desejo a todos feliz festa e bom caminho de Advento; a todos aqueles que estão aqui, especialmente aos jovens da Imaculada, precisamente hoje que é a sua festa. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Maré Alta

Caminhar com os pobres. Partilha de Advento

José Maria Caldeira Ribeiro, sj | 2 Dezembro 2022 | in Ponto SJ

Este texto é uma partilha sobre o meu Advento, por isso, gostava de dar uma breve contextualização:

Sou o Zé Maria, sou jesuíta desde 2017 e estou no magistério.

O magistério é uma fase de formação de um jesuíta, um período de dois anos entre os estudos de filosofia e os de teologia, onde a principal missão é a participação no trabalho apostólico e nas obras da Companhia. O meu magistério é na comunidade jesuíta de S. Pedro Claver, no Monte da Caparica, a trabalhar no Serviço Jesuíta aos Refugiados, a ser educador no Centro Juvenil P. Amadeu Pinto sj e a colaborar na paróquia de S. Francisco Xavier. Pode-se dizer que tenho uma missão onde é mais explícita a dimensão jesuítica de “caminhar com os pobres e descartados”.

O Advento deste ano está marcado, para mim, pela confiança, leveza e alegria. São moções que me chegam principalmente pela minha atual missão, mas não me parece que sejam exclusivas para um jesuíta em formação. Acho que podem ser graças que Deus nos está a querer a todos. Passo a explicar:

Confiança

Penso muitas vezes “Que posso eu fazer por esta pessoa nesta situação tão delicada?”.

Acredito sinceramente que Deus trabalha muito mais e muito melhor do que eu por cada uma das pessoas com quem trabalho e a quem me dedico. Deus trabalha, sem parar, na vida de cada pessoa e na salvação do mundo. É Ele quem faz justiça, que traz a solução dos problemas sociais, que é o protagonista da construção do Reino. Por muito que eu queira fazer o bem, Deus faz sempre mais e melhor.

Isto também se aplica na vida de cada um, nas suas relações, na família, com os amigos, no emprego, no trabalho voluntário… Deus faz sempre mais e melhor. E age, muitas vezes, sem que percebamos, sem que entendamos o Seu plano.

O nascimento de Jesus é o exemplo mais perfeito disto: o próprio Deus que encarna, quase na anonimidade, na pobreza, na periferia, sem lugar na hospedaria, cheio de “problemas sociais”… e é por aí que Deus prepara a salvação do mundo.

Por isso, como não confiar? Como não acreditar que Deus trabalha? Como não ter fé que, apesar de tudo o que acontece na nossa vida, o Senhor está em ação e, como não pode deixar de ser, nós mesmos e aqueles por quem rezamos estamos nas mãos de Deus.

Leveza

Com esta confiança vem uma leveza incrível. Há uma certa desresponsabilização pessoal. Não me entendam mal, pois nada tem que ver com uma menor empatia ou menor sentido de missão e seriedade no trabalho… não é isso.

Não me é pedido que resolva ou salve o mundo. Isso é tarefa de Deus! A mim, apenas me é pedido para “caminhar com” quem me é confiado, com amor e dedicação. Sou chamado a trabalhar, sim, mas não preciso de assumir todo o peso e responsabilidade da solução. Tento fazer a minha parte bem feita, entrego o pouco que sou e posso no altar, e Deus fará a parte dele.

Que descanso é trabalhar quando o peso e a tensão são entregues a Deus.

Parece-me que Deus prefere a nossa vida assim: “Venham a mim os que estão cansados e oprimidos e Eu vos aliviarei… O meu jugo é suave e a minha carga é leve.”

Alegria

À confiança e leveza segue-se a alegria, porque não há melhor missão no mundo do que trabalhar para Deus. É que somos criados para isso! Cada um com a sua vocação, a responder ao desejo de Deus para a sua vida, com autenticidade, da maneira como Deus nos sonha e cria.

Este Advento pode ser uma oportunidade para aprofundar esta alegria. Para mim está a ser. E por isso é tão importante rezarmos uns pelos outros, pedindo as enormes graças da descoberta e fidelidade às próprias vocações. Arrisco-me a pedir este favor: que rezemos pelas várias vocações dentro da Igreja, para que cada um descubra onde Deus o quer a caminhar e a trabalhar.


Maré Alta

XXXVII DIA MUNDIAL DA JUVENTUDE

SANTA MISSA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Catedral de Asti - Piemonte
Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo - Domingo, 20 de novembro de 2022

Vimos este jovem, o Stéfano, pedir para receber o ministério de Acólito no seu percurso rumo ao sacerdócio. Temos de rezar por ele, para que continue para diante na sua vocação e seja fiel; mas devemos rezar também por esta Igreja de Asti, para que o Senhor envie vocações sacerdotais, porque, como vedes, a maioria são idosos como eu: precisamos de sacerdotes jovens, como alguns aqui que são muito bons. Rezemos ao Senhor para que abençoe esta terra.

E daqui, destas terras, emigrou o meu pai para a Argentina; e vim a estas terras, preciosas pelos bons produtos do solo e sobretudo pela genuína laboriosidade da gente, para reencontrar o sabor das raízes. Entretanto, hoje, podemos ver mais uma vez como o Evangelho nos leva às raízes da fé. Estas, encontramo-las no terreno árido do Calvário, onde a semente que é Jesus, ao morrer, fez germinar a esperança: plantada no coração da terra, abriu-nos o caminho para o Céu; com sua morte, deu-nos a vida eterna; por meio do madeiro da cruz, trouxe-nos os frutos da salvação. Por isso, fixemos o nosso olhar n’Ele, fixemos o olhar no Crucificado.

Na cruz, aparece uma única frase: «Este é o rei dos judeus» (Lc 23, 38). Eis o seu título: Rei. Mas, observando Jesus, inverte-se a ideia que temos de um rei. Tentando visualizá-lo, pensaremos num homem forte sentado num trono com preciosas insígnias, um cetro na mão e anéis brilhantes nos dedos, enquanto solenemente fala aos súditos. Tal seria, em linhas gerais, a imagem dum rei que temos na cabeça. Mas fixando Jesus, vemos que é completamente diferente. Não está sentado num trono confortável, mas pendurado num patíbulo; o Deus que «derruba os poderosos de seus tronos» (Lc 1, 52), comporta-Se como servo cravado na cruz pelos poderosos; adornado apenas com cravos e espinhos, despojado de tudo mas rico de amor. Do trono da cruz, já não ensina as multidões com a palavra, nem levanta a mão para ensinar; faz mais: não aponta o dedo contra ninguém, mas abre os braços a todos. Assim Se manifesta o nosso Rei: de braços abertos – a brasa aduerte.

E só entrando no seu abraço é que compreendemos que Deus Se deixou levar até àquele ponto, até ao paradoxo da cruz, precisamente para abraçar tudo em nós, incluindo quanto havia de mais distante d'Ele: a nossa morte (Ele abraçou a nossa morte), o nosso sofrimento, as nossas pobrezas, as nossas fragilidades e as nossas misérias. Ele abraçou tudo isto. Fez-Se servo para que cada um de nós se sentisse filho (com a sua servidão pagou a nossa filiação); deixou-Se insultar e escarnecer, para que, em qualquer humilhação, já ninguém de nós estivesse sozinho; deixou-Se despojar, para que ninguém se sentisse despojado da sua dignidade; subiu à cruz, para que, em cada crucificado da história, houvesse a presença de Deus. Eis o nosso Rei, Rei de cada um de nós, Rei do universo, porque atravessou os confins mais remotos do humano, entrou nos buracos negros do ódio, nos buracos negros do abandono para iluminar cada vida e abraçar toda a realidade. Irmãos, irmãs, tal é o Rei que hoje festejamos! Não é fácil de compreender, mas é o nosso Rei. Eis a pergunta que devemos pôr-nos: mas este Rei do universo é o Rei da minha existência? Eu creio n’Ele? Como posso celebrá-Lo Senhor de tudo, se não Se torna também o Senhor da minha vida? E tu, Stéfano, que hoje inicias este caminho para o sacerdócio, não esqueças que Ele é o teu modelo: não te prendas às honras, não. Ele é o teu modelo; se não pensas ser sacerdote como este Rei, é melhor parares por aqui.

Mas fixemos de novo os olhos em Jesus Crucificado. Vê! Ele não observa a tua vida apenas durante um momento, não te dedica só um olhar fugaz, como fazemos nós muitas vezes com Ele, mas permanece ali a brasa aduerte a dizer-te no silêncio que nada de ti Lhe é estranho, que te quer abraçar, levantar, salvar assim como és, com a tua história, as tuas misérias, os teus pecados. Mas, Senhor, isto é verdade? Com as minhas misérias… Tu amas-me assim? Neste momento, cada um pense na sua própria pobreza: «Mas, Tu amas-me com toda esta pobreza espiritual que sou, com estas limitações?». Ele sorri e faz-nos compreender que nos ama e deu a vida por nós. Pensemos um pouco nos nossos limites, e também nas coisas boas: Ele ama-nos como somos, como somos agora. Ele dá-te a possibilidade de reinares na vida, se te abandonares ao seu amor cheio de mansidão, que se propõe mas não se impõe (o amor de Deus nunca se impõe), ao seu amor que sempre te perdoa. Nós muitas vezes cansamo-nos de perdoar às pessoas e, sobre elas, como que pomos o sinal da cruz, fazemos o seu enterro social. Ele nunca Se cansa de perdoar… nunca, nunca: sempre te põe de pé, sempre te devolve a tua dignidade real. Pensa: a nossa salvação, donde vem? Vem do facto de nos deixarmos amar por Ele, porque só assim somos libertos da escravidão do nosso egoísmo, do medo de estar sozinho e pensar que não vamos conseguir. Com frequência, irmãos, irmãs, coloquemo-nos diante do Crucificado, deixemo-nos amar, para que aqueles brasa aduerte nos abram, também a nós, o Paraíso, como ao «bom ladrão». Sintamos como que dirigida a nós aquela frase, a única que ouvimos hoje Jesus dizer na cruz: «Estarás comigo no Paraíso» (Lc 23, 43). Isto é o que Deus quer para nós, e no-lo quer dizer a todos nós, sempre que nos demoramos sob o seu olhar. E então compreendemos que não temos um deus desconhecido, lá em cima nos céus, poderoso e distante. Não! Mas um Deus próximo. A proximidade é o estilo de Deus: proximidade, com ternura e misericórdia. Tal é o estilo de Deus, e não tem outro: próximo, vizinho e terno; terno e compassivo, cujos braços abertos consolam e acariciam. Eis o nosso Rei!

Irmãos, irmãs, depois de O termos contemplado, que mais podemos fazer? O Evangelho de hoje coloca à nossa frente dois caminhos: diante de Jesus, temos quem se comporta como espetador e quem se envolve. Os espetadores são muitos; é a maioria. Olham; ver morrer alguém na cruz é um espetáculo. De facto – diz o texto – «o povo permanecia, ali, a observar» (23, 35). Não era má gente, muitos eram crentes, mas à vista do Crucificado, permanecem espetadores: não movem um passo na direção de Jesus, mas olham-No de longe, curiosos e indiferentes, sem verdadeiramente se interessar nem perguntar que podem fazer. Terão comentado («mas olha este…»), terão formulado juízos e opiniões («mas é inocente… e termina assim?»), alguém tê-Lo-á até lamentado, mas todos ficaram a olhar sem nada fazer, de braços cruzados. E até há espetadores perto da cruz: os chefes do povo, que querem assistir ao espetáculo cruento do fim inglorioso de Cristo; os soldados, que esperam que termine rapidamente a execução a fim de voltar para casa; um dos malfeitores, que descarrega o seu ódio sobre Jesus. Escarnecem, insultam, dizem da sua justiça.

Todos estes espetadores compartilham um refrão, que o texto repete três vezes: «Se és rei, salva-Te a Ti mesmo» (cf. 23, 35.37.39). Insultam-No assim, desafiam-No! Salva-Te a Ti mesmo! Exatamente o contrário daquilo que está a fazer Jesus, que pensa não em Si, mas em salvá-los a eles que O insultam. E aquele dito «salva-Te a Ti mesmo» propaga-se como que por contágio: desde os chefes passando pelos soldados e chegando à gente, a onda do mal atinge quase todos. Pensemos como é contagioso o mal! Contagia-nos como quando apanhamos uma doença infeciosa, que nos contagia imediatamente. Aquela gente fala de Jesus, mas não se sintoniza com Jesus nem um momento sequer. Põe-se à distância e fala. É o contágio letal da indiferença. A indiferença é uma doença ruim: «isto não me diz respeito, não tem a ver comigo». Indiferença para com Jesus e indiferença também para com os doentes, os pobres, os miseráveis da terra. Gosto de perguntar às pessoas e faço-o também aqui a cada um de vós. Sei que cada um de vós dá esmola aos pobres, e eu pergunto: «Quando tu dás esmola aos pobres, olha-os nos olhos? És capaz de olhar nos olhos aquele pobre, homem ou mulher, que te pede esmola? Quando dás esmola aos pobres, atiras a moeda ou tocas-lhe a mão? És capaz de tocar uma miséria humana?» Depois cada um dê a resposta, hoje. Aquela gente vivia na indiferença. Fala de Jesus, mas não sintoniza com Ele. E este é o contágio letal da indiferença, que cria distâncias relativamente às misérias. A onda do mal espalha-se sempre assim: começa-se por se colocar à distância, observar sem nada fazer e não se importar, depois pensamos só naquilo que nos interessa e habituamo-nos a virar a cara para o outro lado. Isto é um risco que corre também a nossa fé, que definha se permanecer uma teoria sem se fazer vida prática, se não houver envolvimento, se não nos gastarmos pessoalmente, se não nos comprometermos. Então tornamo-nos cristãos de fachada (cristãos tipo “água-de-colónia”, como ouvia dizer na minha casa), que dizem acreditar em Deus e querer a paz, mas não rezam nem cuidam do próximo. Não interessa Deus nem a paz, a estes cristãos apenas de língua, superficiais.

Esta era a onda má, que se encontrava no Calvário. Mas há também a onda benfazeja do bem. Entre muitos espetadores há um que se envolve, isto é, o «bom ladrão». Os outros zombam do Senhor, ele fala-Lhe e chama-O pelo nome: «Jesus»; muitos descarregam sobre Ele o seu ódio, ele confessa a Cristo os seus erros; muitos dizem «salva-Te a Ti mesmo», ele reza: «Jesus, lembra-Te de mim» (23, 42). Pede apenas isto ao Senhor. É uma linda oração! Se cada um de nós a rezasse todos os dias, estaria na boa estrada: a estrada da santidade: «Jesus, lembra-Te de mim». Assim um malfeitor torna-se o primeiro santo: aproxima-se de Jesus por um instante, e o Senhor estreita-o a Si para sempre. Ora, o Evangelho fala-nos do bom ladrão para nos convidar a vencer o mal, deixando de ser espetadores. Por favor! A indiferença é pior do que fazer o mal. E donde havemos de começar? Da confidência, de chamar a Deus pelo nome, precisamente como fez o bom ladrão, que, no fim da vida, reencontra aquela confidência corajosa das crianças que confiam, pedem, insistem. E, na confidência, admite os seus erros, chora não por si mesmo, mas diante do Senhor. E nós, temos esta confiança, trazemos a Jesus aquilo que somos dentro ou maquilhamo-nos diante de Deus, talvez com um toque de sacralidade e de incenso? Por favor, não viver a espiritualidade da maquilhagem: é fastidiosa. Diante de Deus, apenas água e sabão! Sem maquilhagem, mas a alma apresenta-se assim como ela é. E daqui vem a salvação. Quem pratica a confidência, como este bom ladrão, aprende a intercessão, aprende a levar a Deus aquilo que vê, os sofrimentos do mundo, as pessoas que encontra; aprende a dizer-Lhe, como o bom ladrão: «Lembra-Te, Senhor!» Não estamos no mundo apenas para nos salvar a nós mesmos. Não; mas para levar os irmãos e as irmãs ao abraço do Rei. O facto de interceder, de lembrar ao Senhor, abre as portas do Paraíso. Mas nós, quando rezamos, intercedemos? «Lembra-Te, Senhor! Lembra-Te de mim, da minha família, lembra-Te deste problema… lembra-Te… lembra-Te…» Devemos atrair a atenção do Senhor.

Irmãos, irmãs, hoje o nosso Rei olha-nos da cruz a brasa aduerte. Cabe a nós escolher se sermos espetadores ou envolvidos. Sou espetador ou quero envolver-me? Vemos as crises de hoje, o declínio da fé, a falta de participação... E que fazemos? Limitamo-nos a fazer teorias, limitamo-nos a criticar, ou arregaçamos as mangas, comprometemo-nos na vida, passamos do «se» das desculpas ao «sim» da oração e do serviço? Todos pensamos saber o que está errado na sociedade. Todos! Falamos todos os dias do que está errado no mundo e também na Igreja. Tantas coisas erradas na Igreja! Mas, depois, fazemos alguma coisa? Metemos as mãos na massa, como o nosso Deus pregado no madeiro, ou ficamos a olhar com as mãos nos bolsos? Hoje, enquanto Jesus, despido na cruz, tira todo o véu sobre Deus e destrói toda a falsa imagem da sua realeza, olhemos para Ele a fim de encontrar a coragem de olhar para nós mesmos, percorrer os caminhos da confidência e da intercessão e fazer-nos servos para reinarmos com Ele. «Lembra-Te, Senhor, lembra-Te»: façamos esta oração com maior frequência! Obrigado.


Maré Alta

Cultivar caminhos para a JMJ

João Valério | 13 Nov 2022 | in 7 Margens

“É preciso rasgar com aquilo que é costume, e inovar, e arriscar o que é diferente” – propôs D. Américo Aguiar numa celebração na Sé Nova de Coimbra em Outubro de 2021.[1] É um excelente propósito para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) de Lisboa e, felizmente, já se vê algum caminho nesse sentido. É de notar a extraordinária generosidade que tem surgido dos mais diversos campos, dos que, individualmente, têm contribuído para este projecto, até à esfera pública que desde cedo apoiou a iniciativa, e mesmo empresas e particulares que têm partilhado recursos para levar a cabo este importante encontro.

Naturalmente, caminho é sinónimo de imperfeição, de inacabado e, por isso, registam-se aqui pontos de reflexão onde, cremos, existe espaço para crescimento.

Processo, hierarquias e ligações

Começamos com um aspecto de organização. Que processo seria desejável promover?

Nas orientações oficiais da Santa Sé destaca-se que “Na preparação (…) é necessário encontrar tempos e modos apropriados para que a voz dos jovens seja ouvida dentro das estruturas de comunhão existentes (…) Ninguém deve ser colocado nem deixado colocar-se de lado. Desta forma, será possível reunir e coordenar todas as forças vivas da Igreja particular, bem como despertar aquelas que estão “adormecidas”.”[2]

É essencial promover a abertura à intervenção, em especial dos jovens, contrariando uma tendência de participação passiva, de execução de tarefas. Um processo hierárquico é mais simples, também mais confortável para todos, mas minimiza o potencial de novidade e a co responsabilidade dos jovens. Com Paulo Freire, relembramos a necessidade de uma pedagogia assente na participação, ao fazer um caminho de verdadeiro crescimento interior e formação de sentido crítico. É necessário especial empenho em criar espaços de comunicação eficazes e com suficiente tempo de reflexão.

Neste caso, a imensa complexidade de gestão torna as estruturas hierárquicas quase inevitáveis. Mas isso não impede que se promovam ligações não hierárquicas para ultrapassar as limitações dessa estrutura. Tomando a imagem estruturada da árvore, Christopher Alexander fala da cidade dizendo que “Quando pensamos em termos de árvores, estamos a trocar a humanidade e riqueza de uma cidade viva por uma simplicidade conceptual (…) Pois para a mente humana, a árvore é o mais simples veículo de pensamentos complexos. Mas a cidade não é, não pode e não deve ser uma árvore. A cidade é um receptáculo da vida.”[3]

Alexander propõe a malha (“semilattice”) como alternativa, pressupondo uma interligação de diversos nós ao longo do sistema, numa rede multifilar e multirelacional, na prática permitindo uma comunicação e interacção mais rica. Acreditamos que também nas organizações, forçar uma estrutura em árvore numa multidão de pessoas envolvidas é a maneira mais fácil, mas não a mais rica humanamente.

Chegar onde é preciso, também aos sítios diferentes

O propósito de que o encontro seja para todos é, também, uma excelente intenção. Mas chegar a todos não poderá ficar apenas pelos desejos e palavras, até porque muitos ficarão indiferentes à JMJ, se dito da maneira convencional. São João Bosco ia para as ruas e usava a magia e malabarismo para chegar ao mundo das crianças e jovens, partilhando a vida com eles e, depois, mostrando com a sua presença que a vida em Deus é algo especial, algo que vale a pena.

Tem de se partir de uma experiência de autenticidade para ajudar cada um a descobrir uma vida mais rica, mais completa. Levar Deus ao mundo, como diz frei Bento Domingues ao recordar o Papa Francisco: “É um Homem dos mundos todos, dos mundos todos. E a sua convicção cristã é uma convicção de abertura universal.”[4]

A pressa e os necessários espaços de silêncio e paragem

A pressa anda no ar. Mas não deixemos que a pressa de Maria seja vista em nós como impaciência! A pressa de Maria é um anseio, não uma ansiedade. A preparação da JMJ tem sido um longo caminho; é preciso fazer pausas entre etapas para reabastecer, pôr o caminho em perspectiva, pesar o que foi feito e o que pode ainda ser acrescentado. Só com tempo de paragem e um olhar mais atento se podem discernir aspectos invisíveis ao olhar quotidiano.

O Papa Francisco lembra que “Inúmeros jovens choram, sem que ninguém ouça o grito da sua alma (…) lembrai-vos de que aquele jovem do Evangelho – estava realmente morto – voltou à vida, porque foi visto por Alguém que queria que ele vivesse. Isto pode acontecer ainda hoje e todos os dias.”[5] Não corramos o risco de a JMJ ser uma experiência de festa que passa adiante de tantos que não têm a capacidade de redescobrir a alegria por si próprios.

A cidade temporária

Na era das cidades, universos e realidades virtuais, vamos ter a oportunidade da experiência de uma Lisboa que durante alguns dias irá ganhar uma segunda camada, bem real, uma segunda cidade em cima da cidade. Não estaremos talvez assim tão longe do imaginário da arquitectura e urbanismo do Metabolismo (Japão pós-Segunda Guerra Mundial) onde encontramos propostas utópicas de novas megaestruturas construídas sobre as cidades existentes, com um crescimento orgânico: estruturado, mas imenso, multiplicado num crescimento fractal.

Não falamos neste caso, evidentemente, de uma verdadeira megaconstrução sobre toda a cidade, mas existirão, ainda assim, novas estruturas que darão uma dimensão muito corpórea a essa cidade temporária. E, sobretudo, existirá uma cidade humana que se imiscui no espaço público e privado, criando novas dinâmicas, novas situações urbanas.

Uma multidão é a partir de certo ponto um fluido, que terá capacidade de preencher os interstícios da cidade e criar fluxos que transfiguram a cidade que conhecemos. De que maneira podem ser esses fluxos um verdadeiro ponto positivo para a cidade, e não apenas um incómodo para quem não se revê neste grande encontro?

Será ainda uma metamorfose temporária de usos – ginásios, escolas, jardins, salões paroquiais, que se transformam em algo diferente, uma inversão de lógicas. Xavier Monteys, arquitecto e professor na Universitat Politècnica de Catalunya, reflecte sobre a ideia de “utilizar mal” a casa, de a virar do avesso para lhe descobrir um lado novo. Encontrar uma nova casa na casa de sempre. Muitos terão a oportunidade de fazer esse exercício ao acolher jovens vindos de todo o mundo; também muitos locais virão a acolher um uso substancialmente diferente daquele para que foram concebidos, pelo que será necessário reflectir sobre o que isso representa em termos de cidade.

Liturgia e sustentabilidades em territórios transitórios

Que bom é ver o tema da sustentabilidade tratado nesta JMJ; no âmbito, aponta caminhos interessantes, parecendo querer voar para lá da mera sustentabilidade ambiental; no tempo, não é totalmente explícita, mas idealmente seria algo a considerar nos inúmeros passos que durante meses vão anteceder a semana principal e, ainda, nos caminhos de futuro que pode abrir ou reforçar a diversos níveis. O “legado positivo duradouro no território” assinalado na inspiradora e felizmente ambiciosa Carta-Compromisso terá que reflexos nesse território, e em que âmbito?

O palco-altar continua revestido até ao momento de um véu incógnito, do qual pouco se sabe além da localização. Será mais palco, ou mais altar? Da já grande colecção de altares de outras jornadas, encontramos perspectivas bastante distintas sobre um mesmo tema. Por vezes um lugar mais envolvido pela multidão, mais próximo da terra e dos jovens, outras vezes um pódio tão elevado que quase custa a crer ser possível alguma relação a tal distância vertical. Ainda a propósito do altar, foi pena a oportunidade perdida de um concurso de ideias, tal como chegou a ser feito no hino e logotipo. Muitos jovens teriam uma palavra a dizer e o resultado poderia sair mais enriquecido.

Já sobre os restantes elementos temporários, o que lhes irá acontecer? Como pensar o destino da desmontagem de todo o local, evitando que seja um recurso com fim a curto prazo? Por exemplo os confessionários – podem ter um formato que responda ao sacramento e que seja, simultaneamente, reflexo da Igreja viva e jovem, num evento que se quer explorador de caminhos? Se os confessionários são, antes de tudo, um lugar de diálogo, de reconciliação em Deus através de um sacerdote que nos acolhe, facilmente mesas e cadeiras poderiam formar, sem impacto significativo de recursos materiais, um conjunto de espaços de confissão. Se é uma Jornada diferente, e se procuramos uma Igreja renovada, será que a imagem da fila de confessionários que encontramos noutras Jornadas, como uma interminável colecção de paragens de autocarro, transmite essa mesma Igreja? Ou, querendo-se garantir que há lugar para diferentes sensibilidades sobre o assunto, nomeadamente com formatos de confessionários mais “tradicionais”, poderiam ser pensadas soluções compostas na sua essência por elementos têxteis que pudessem depois ser convertidos em algo de útil e necessário nas dioceses por Portugal fora?

Aquilo que fica

O parque verde é importante, mas não será, esperamos, o legado principal da JMJ. O essencial será a vivência dos jovens – com que imagem de Igreja se sairá desta JMJ, quer para os que regressam a suas casas fora de Portugal, quer para a Igreja portuguesa? Que processos, que ideias, que sistemas de trabalho, que ritmos da Igreja poderão ser trabalhados antes e mantidos depois?

O Papa Francisco desafia-nos a pensar e tomar iniciativa: “Queridos jovens, quais são as vossas paixões e os vossos sonhos? Fazei-os sobressair e, através deles, proponde ao mundo, à Igreja, a outros jovens, algo de belo no campo espiritual, artístico e social.”[6]

A caminho, enquanto ainda é tempo

Ainda temos alguns meses até à concretização da semana da JMJ. Cada um terá possibilidades de participação e colaboração diferentes nesse caminho, conseguindo dar um conjunto limitado de contributos. Será necessário o discernimento da vocação para encontrar os campos mais adequados para se envolver, contribuindo com o melhor de si. Como sugere o padre Vasco Pinto de Magalhães[7], fazer a pergunta certa: não “o que posso fazer mais” (numa lógica de acumulação e dispersão), mas sim “o que sou chamado a fazer” (no sentido de filtrar e dar profundidade).

É importante ter profissionais (e, mais do que apenas profissionais, pessoas cujo profissionalismo queira dizer experiência acumulada e amadurecida) que garantam que tudo se desenrola com qualidade, com conteúdo, com atenção aos pormenores que apenas conhece quem está habituado. É um evento que não permite deixar nada ao acaso, desde questões logísticas até à maneira como se propõem as diversas actividades e encontros. Mas também é importante não deixar que essa profissionalização tome conta da JMJ, que não a torne num monólito burocrático, pesado, que acabe por ficar longe da Igreja desejada pelo Papa Francisco e por muitos. Porque os meios são essenciais mas, no meio de tanta confusão, “pressa” e agitação há que garantir que não se esquece o ainda mais essencial: o foco não é a concretização prática da JMJ nem os meios que permitem erguê-la; o foco é o fim (ou melhor, a finalidade, que já está em curso e continuará mesmo depois da semana da JMJ) – levar Deus aos jovens e, ainda, levar Deus de maneira renovada ao nosso país e ao mundo. “As Jornadas Mundiais da Juventude não são “fogos de artifício”, momentos de entusiasmo com a finalidade em si mesmos”[8] diz-nos o Papa Francisco, a recordar isto mesmo. Trabalhemos o que ainda pode ser melhorado, para que seja uma JMJ verdadeiramente grande e preenchida. E, nas dificuldades, o mais importante: não desistir!

Notas
[1] Declarações citadas a partir de notícia da agência Ecclesia.
[2] Orientações pastorais para a celebração da Jornada Mundial da Juventude nas Igrejas particulares, ponto 4b (Dicastério para os leigos, a família e a vida)
[3] Christopher Alexander, A City Is Not a Tree (1965)
[4] Frei Bento Domingues, entrevista Primeira Pessoa, RTP1
[5] Mensagem do Papa Francisco para a XXXV Jornada Mundial da Juventude (Domingo de Ramos, 5 de abril de 2020)
[6] Mensagem do Papa Francisco para a XXXV Jornada Mundial da Juventude (Domingo de Ramos, 5 de abril de 2020)
[7] Vasco Pinto de Magalhães, Só Avança Quem Descansa (Apostolado da Oração, 2012)
[8] Orientações pastorais para a celebração da Jornada Mundial da Juventude nas Igrejas particulares, ponto 1


Maré Alta

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO REINO DO BAHREIN
por ocasião do "Bahrain Forum for Dialogue: East and West for Human Coexistence"
(3 - 6 DE NOVEMBRO DE 2022)

ENCONTRO COM OS MEMBROS DO "MUSLIM COUNCIL OF ELDERS"

DISCURSO DO SANTO PADRE

Mesquita do "Sakhir Royal Palace" em Awali
Sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Caro irmão, Doutor Ahmad Al-Tayyeb, Grande Imã de Al-Azhar,
Caros Membros do Conselho Muçulmano de Anciãos
Caros amigos,
As-salamu alaikum!

Saúdo-vos cordialmente, almejando que a paz do Altíssimo desça sobre cada um de vós: sobre vós, que pretendeis promover a reconciliação para evitar divisões e conflitos nas comunidades muçulmanas; sobre vós, que vedes no extremismo um perigo que corrói a verdadeira religião; sobre vós, que vos empenhais por dissipar interpretações erróneas que, através da violência, desvirtuam, instrumentalizam e danificam um credo religioso. A paz desça e permaneça sobre vós, que a desejais difundir incutindo nos corações os valores do respeito, da tolerância e da moderação; sobre vós, que vos propondes encorajar relações amistosas, respeito mútuo e confiança recíproca com aqueles que, como eu, aderem a uma fé religiosa diferente; sobre vós, irmãos e irmãs, que quereis promover nos jovens uma educação moral e intelectual que contraste toda a forma de ódio e intolerância. As-salamu alaikum [a paz esteja convosco]!

Deus é Fonte de paz. Que Ele nos conceda ser, por todo o lado, canais da sua paz! Quero, diante de vós, reiterar que o Deus da paz nunca conduz à guerra, nunca incita ao ódio, nunca apoia a violência. E nós, que cremos n’Ele, somos chamados a promover a paz através de instrumentos de paz, como o encontro, pacientes negociações e o diálogo, que é o oxigénio da convivência comum. Entre os objetivos que vos propondes, conta-se o de difundir uma cultura da paz baseada na justiça. Quero dizer-vos que este é o caminho, aliás o único caminho, já que a paz é «“obra da justiça” (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 78). Brota da fraternidade, cresce através da luta contra a injustiça e as desigualdades, constrói-se estendendo a mão aos outros» (Francisco, Discurso por ocasião da Leitura da Declaração Final e Encerramento do «VII Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais», Nur-Sultan, 15/IX/2022). A paz não pode ser apenas proclamada, deve ser enraizada. E isto é possível removendo as desigualdades e as discriminações, que geram instabilidade e hostilidade.

Agradeço o vosso empenho neste sentido, bem como o acolhimento que me reservastes e as palavras que proferistes. Venho ter convosco como crente em Deus, como irmão e peregrino de paz. Venho ter convosco para caminharmos juntos, no espírito de Francisco de Assis, que costumava dizer: «a paz que proclamais com a boca, haveis de a ter ainda mais abundante nos vossos corações» (Legenda dos três companheiros, XIV, 5: Fontes Franciscanas, 1469). Impressionou-me ver o costume de acolher um hóspede, nestas terras, não só com um aperto de mão, mas levando também a outra mão ao coração em sinal de afeto; como se dissesse: a tua pessoa não fica longe de mim; entra no meu coração, na minha vida. Com respeitoso afeto, também eu levo a mão ao coração, vendo cada um de vós e bendizendo ao Altíssimo pela possibilidade de nos encontrarmos.

Creio que precisamos cada vez mais de nos encontrar, conhecer e estimar, de antepor a realidade às ideias e as pessoas às opiniões, a abertura ao Céu aos distanciamentos na terra: antepor um futuro de fraternidade ao passado de hostilidade, superando os preconceitos e as incompreensões da história em nome d’Aquele que é Fonte de Paz. Aliás como poderão os fiéis de diferentes religiões e culturas conviver, acolher-se e estimar-se mutuamente, se nós permanecemos estranhos uns aos outros? Deixemo-nos guiar por este dito do Imã Ali – «as pessoas são de dois tipos: ou teus irmãos na fé ou teus semelhantes na humanidade» – e sintamo-nos chamados a cuidar de todos aqueles que o desígnio divino colocou ao nosso lado no mundo. Exortemos a todos para que, «esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e, juntos, defendam e promovam a justiça social, os bens morais, a paz e a liberdade para todos os homens» (Conc. Ecum. Vat. II, Decl. Nostra ætate, 3). São tarefas que cabem a nós, guias religiosos: à vista duma humanidade sempre mais ferida e dilacerada que, sob o vestido da globalização, respira com dificuldade e a medo, os grandes credos devem ser o coração que une os membros do corpo, a alma que dá esperança e vida às aspirações mais altas.

Nestes dias, falei da força da vida que resiste nos mais áridos desertos, abeberando-se na água do encontro e da convivência pacífica. Fi-lo ontem, tirando partido da surpreendente «árvore da vida» que se encontra aqui no Bahrein. A narração bíblica, que ouvimos, coloca a árvore da vida no centro do jardim das origens, no coração do projeto maravilhoso de Deus para o homem, um desígnio harmonioso capaz de abraçar toda a criação. Mas o ser humano distanciou-se do Criador e da ordem por Ele estabelecida. Daí tiveram origem problemas e desequilíbrios, que se sucedem uns aos outros na narração bíblica: litígios e homicídios entre irmãos (cf. Gn 4), desordens e devastações ambientais (cf. Gn 6-9), soberba e contrastes na sociedade humana (cf. Gn 11)... Em suma, uma aluvião de malvadez e morte que brotou do coração do homem, da centelha maléfica feita saltar por aquele mal que se agacha à porta do seu coração (cf. Gn 4, 7), para incendiar o jardim harmonioso do mundo. Mas todo este mal está radicado na rejeição de Deus e do irmão, na perda de vista do Autor da vida e na recusa a reconhecer-se guardião do irmão. Por isso as duas perguntas, que ouvimos, permanecem sempre válidas e não cessam, independentemente do credo professado, de interpelar cada existência e cada época: «onde estás?» (Gn 3, 9); «onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9).

Caros amigos, irmãos em Abraão, crentes no Deus único, os males sociais e internacionais, os males económicos e pessoais, bem como a dramática crise ambiental, que carateriza estes tempos e sobre a qual se refletiu hoje aqui, derivam em última análise do afastamento de Deus e do próximo. Por conseguinte, cabe-nos uma tarefa única, imprescindível: ajudar a reencontrar estas fontes de vida esquecidas, trazer novamente a humanidade a beber nesta antiga sabedoria, aproximar os fiéis à adoração do Deus do céu e aos homens para os quais Ele fez a terra.

E de que maneira? Os nossos meios são essencialmente dois: a oração e a fraternidade. Estas são as nossas armas, humildes e eficazes. Não devemos deixar-nos tentar por outros instrumentos, por atalhos indignos do Altíssimo, cujo nome de Paz é insultado por quantos creem nas razões da força, alimentam a violência, a guerra e o mercado das armas, «o comércio da morte» que, através de somas astronómicas de dinheiro, está a transformar a nossa casa comum num grande arsenal. Por trás de tudo isto, quantas tramas obscuras e quantas dolorosas contradições! Pensemos, por exemplo, nas inumeráveis pessoas que são obrigadas a migrar da sua terra por causa de conflitos alimentados pela compra a preços acessíveis de armamentos já sem validade, para acabar depois identificadas e rejeitadas noutras fronteiras através de equipamentos militares cada vez mais sofisticados. E, assim, a esperança é morta duas vezes! Pois bem, perante estes trágicos cenários, enquanto o mundo segue as quimeras da força, do poder e do dinheiro, somos chamados a lembrar, com a sabedoria dos anciãos e dos antigos, que Deus e o próximo vêm antes de tudo, que só a transcendência e a fraternidade nos salvam. Cabe a nós desenterrar estas fontes de vida; caso contrário, o deserto da humanidade será cada vez mais árido e mortífero. Sobretudo cabe a nós testemunhar – mais com os factos, do que com as palavras – que acreditamos nisto, nestas duas verdades. Temos uma grande responsabilidade diante de Deus e dos homens, e devemos ser modelos exemplares daquilo que pregamos, não só nas nossas comunidades e em nossa casa – isto já não basta –, mas também no mundo unificado e globalizado. Nós, que descendemos de Abraão, pai na fé dos povos, não podemos ter a peito somente «os nossos», mas devemos dirigir-nos, cada vez mais unidos, a toda a comunidade humana que habita na terra.

Com efeito, a todos, pelo menos no segredo do coração, se colocam os mesmos grandes interrogativos: Quem é o homem? Porquê o sofrimento, o mal, a morte, a injustiça? Que existe depois desta vida? Em muitos, anestesiados por um materialismo prático e por um consumismo paralisador, tais questões jazem adormecidas, enquanto noutros são silenciadas pelas chagas desumanas da fome e da pobreza. Pensemos na fome e pobreza de hoje. Oxalá que, entre os motivos do esquecimento daquilo que conta, não se inclua a nossa incúria, o escândalo de nos empenharmos noutra coisa que não a de anunciar o Deus que dá paz à vida e a paz que dá vida aos homens. Irmãos e irmãs, apoiemo-nos nisto, demos continuidade ao nosso encontro de hoje, caminhemos juntos! Seremos abençoados pelo Altíssimo e pelas criaturas mais pequeninas e frágeis que são as preferidas d’Ele: os pobres, as crianças e os jovens, que, depois de tantas noites tenebrosas, aguardam o surgir duma alvorada de luz e de paz. Obrigado!


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 30 de outubro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje, na Liturgia, o Evangelho narra o encontro entre Jesus e Zaqueu, chefe dos publicanos na cidade de Jericó (Lc 19, 1-10). No centro desta história está o verbo procurar. Estejamos atentos: procurar. Zaqueu «procurava ver Jesus» (v. 3) e Jesus, depois de o conhecer, diz: «O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido» (v. 10). Reflitamos um pouco sobre os dois olhares que se procuram: o olhar de Zaqueu que procura Jesus e o olhar de Jesus que procura Zaqueu.

O olhar de Zaqueu. Trata-se de um publicano, ou seja, um daqueles judeus que cobravam impostos em nome dos dominadores romanos - um traidor da pátria - e aproveitavam-se daquela sua posição. Por isso, Zaqueu era rico, odiado por todos e apontado como pecador. O texto diz que «era de pequena estatura» (v. 3) e com isto talvez aluda também à sua baixeza interior, à sua vida medíocre, desonesta, sempre com o olhar dirigido para baixo. Mas o importante é que ele era baixinho. No entanto, Zaqueu quer ver Jesus. Algo o impele a vê-lo. «Correndo à frente – diz o Evangelho – subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali» (v. 4). Subiu a um sicómoro: Zaqueu, o homem que dominava tudo, torna-se ridículo, vai no caminho do ridículo para ver Jesus. Pensemos no que aconteceria se, por exemplo, um ministro da economia subisse a uma árvore para olhar para outra coisa: correria o risco de ser ridicularizado. E Zaqueu correu o risco de ser ridicularizado para ver Jesus. Zaqueu, na sua baixeza, sente a necessidade de procurar outro olhar, o de Cristo. Ainda não o conhece, mas está à espera de alguém que o liberte da sua condição - moralmente baixa - que o tire da lama na qual se encontra. Isto é fundamental: Zaqueu ensina-nos que, na vida, nunca tudo está perdido. Por favor, nunca tudo está perdido, nunca! Podemos sempre criar espaço para o desejo de recomeçar, de iniciar de novo, de nos converter. Isto é o que Zaqueu faz.

Decisivo neste sentido é o segundo aspeto: o olhar de Jesus. Ele foi enviado pelo Pai para procurar quem se perdeu; e quando chega a Jericó, passa exatamente ao lado da árvore onde está Zaqueu. O Evangelho narra que «Jesus levantou os olhos e disse-lhe: “Zaqueu, desce depressa, pois tenho de ficar em tua casa”» (v. 5). É uma imagem muito bonita, porque se Jesus deve levantar os olhos, significa que olha para Zaqueu de baixo. Esta é a história da salvação: Deus não nos olhou do alto para nos humilhar nem julgar, não; pelo contrário, abaixou-se ao ponto de nos lavar os pés, olhando-nos de baixo e restituindo-nos dignidade. Assim, o cruzar dos olhares entre Zaqueu e Jesus parece resumir toda a história da salvação: a humanidade com as suas misérias procura a redenção, mas antes de mais Deus com misericórdia procura a criatura para a salvar.

Irmãos, irmãs, lembremo-nos disto: o olhar de Deus nunca pára no nosso passado cheio de erros, mas olha com infinita confiança para aquilo em que nos podemos tornar. E se por vezes nos sentimos pessoas de baixa estatura, não à altura dos desafios da vida e muito menos do Evangelho, mergulhados em problemas e pecados, Jesus olha para nós sempre com amor; como com Zaqueu, ele vem até nós, chama-nos pelo nome e, se o acolhermos, vem até à nossa casa. Então podemos perguntar-nos: como nos vemos a nós mesmos? Sentimo-nos inadequados e resignados, ou precisamente nesse momento, quando nos sentimos tristes, procuramos o encontro com Jesus? E depois: que olhar temos para aqueles que erraram e estão a lutar para se erguerem do pó dos seus erros? É um olhar do alto, que julga, despreza e exclui? Recordemos que é admissível olhar para uma pessoa do alto para baixo apenas para a ajudar a erguer-se: nada mais. Só neste caso é permitido olhar de cima para baixo. Mas nós cristãos devemos ter o olhar de Cristo, que abraça de baixo, que procura quem está perdido, com compaixão. Este é, e deve ser, o olhar da Igreja, sempre, o olhar de Cristo, e não o olhar condenador.

Oremos a Maria, cuja humildade o Senhor contemplou, e peçamos-lhe o dom de um novo olhar sobre nós e sobre os outros.


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

Ao celebrarmos a vitória de Cristo sobre o mal e a morte, rezemos pelas vítimas do ataque terrorista em Mogadíscio que matou mais de uma centena de pessoas, incluindo muitas crianças. Que Deus converta os corações dos violentos!

E oremos também ao Senhor Ressuscitado por quantos - sobretudo jovens - morreram esta noite em Seul, devido às trágicas consequências de um súbito tropel da multidão.

Ontem em Medellín, Colômbia, foi beatifica Maria Berenice Duque Hencker, fundadora das Pequenas Irmãs da Anunciação. A sua longa vida, que terminou em 1993, foi passada inteiramente ao serviço de Deus e dos irmãos, especialmente dos pequeninos e excluídos. Que o seu zelo apostólico, que a levou a anunciar a mensagem de Jesus para além das fronteiras do seu país, reforce em todos o desejo de participar, com oração e caridade, na difusão do Evangelho em todo o mundo. Um aplauso à nova Beata, todos!

Não nos esqueçamos, por favor, nas nossas orações e na nossa profunda tristeza, da atormentada Ucrânia. Rezemos pela paz, não nos cansemos de o fazer!

Desejo a todos bom domingo. E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Maré Alta

De que tipo de Amor é feita a Igreja?

Especial Matrimónio e Igreja

Margarida Vaqueiro Lopes | 21 Outubro 2022 | in Ponto SJ

A certeza foi musicada, há vários anos, pela Comunidade de Taizé e é hoje cântico recorrente em celebrações, noites de oração ou somente naqueles momentos em que precisamos de ter algo que trautear para nos lembrar das certezas que sempre tivemos.

Ponto prévio: cresci numa casa profundamente católica. A minha mãe foi catequista durante cerca de 50 anos, eu e as minhas irmãs fizemos toda a caminhada na Fé, desde o batismo ao Crisma, para além de uma vivência muito grande do Corpo Nacional de Escutas – onde, aliás, a segunda geração da família continua o percurso.

Andei na Catequese, no Grupo de Jovens, fiz parte do Coro Infantil, depois do Coro Juvenil e depois do Coro adulto que animava as celebrações da eucaristia numa paróquia que me viu crescer, me ajudou no caminho, se tornou casa. Fui escuteira durante muitos anos, pertenci à direção da associação juvenil ligada à paróquia. Organizei (e participei em) Festivais da Canção e de Teatro Cristãos, colaborei em meios de comunicação ligados à paróquia, à vigararia ou ao Patriarcado, fui chamada várias vezes para colocar ao serviço da Igreja os meus dons. Animei retiros espirituais – fiz outros tantos – fui a pé a Fátima e fui animadora de grupos de jovens.

Mudei de cidade, mas encontrei uma paróquia onde me integrei e voltei a assumir responsabilidades: servi enquanto leitora, fiz parte do Conselho Pastoral e da equipa que garantia o boletim de informação paroquial.

Casei-me na igreja matriz dessa nova casa e lá batizei a minha filha, que iniciou agora a sua própria caminhada, na Catequese e no Corpo Nacional de Escutas. Sou Católica desde que me conheço e sempre preguei o Amor que me ensinaram – em casa e nos lugares por onde tive a sorte de passar – sem entender por que havia tantas pessoas a duvidar de que a Igreja era lugar desse Amor que eu sempre encontrara e que vivia diariamente.

Até ao dia em que me separei.

Foram muitos meses (a conta pode fazer-se em anos) de reflexão, de angústias, de acompanhamento espiritual até à decisão que, sabia, não era aquela que pensara um dia ser solução. “Amar é um exercício de vontade”, já escrevi aqui. Mas a Verdade que Jesus nos ensina obriga-nos a pôr muitas coisas em causa. Até aquelas que julgámos para sempre. E para respeitar a pessoa que sou e a pessoa com quem me casara, não podia fazer da vida uma mentira. Da minha, da dele, da nossa filha.

Quando me separei, e ao contrário do que esperara (e do que precisava!), não pude voltar da mesma forma à casa que sempre me acolhera e de que tanto precisava. Os sacerdotes evitavam falar-me – salvo raras e importantíssimas exceções –, os antigos colegas de coro, de ministério do leitor, os vizinhos de banco nas eucaristias semanais preferiam ignorar a minha presença…os olhares mudaram, as bocas silenciaram, a distância fez-se sentir como uma espécie de rochedo que foi crescendo para me tapar uma porta que, de repente, me queriam dizer que já não podia passar.

O lugar que sempre fora de conforto, de crescimento, de porto seguro, tornara-se, de repente, um lugar onde sentia que não me queriam mais. Eu deixara de ser digna do Amor que cantamos tantas vezes. Deixara?

É que ao longo do caminho – precisamente porque tive o privilégio de privar e aprender com pessoas muito incríveis – sempre aprendera que Deus não nos retira o privilégio do Seu amor. Como um pai não deixa de amar os seus filhos quando eles fazem coisas de que os pais não gostam, Deus não podia ter deixado de me achar digna do Seu Amor. Apesar de eu não o sentir nas tantas pessoas que comigo se cruzavam.

A mágoa poderá até nem ter passado totalmente – mas cá estamos, a trabalhar o Perdão todos os dias – mas houve algo que já não me habita: a dúvida. Deus é Amor, sempre, e eu tenho a certeza disso mesmo que a Igreja, às vezes, teime em querer mostrar-me o contrário. Porque, entre outras coisas, percebi que ela só teima porque é feita de Homens. E, na sua humanidade, não consegue muitas vezes resistir aos ímpetos da sua condição: o julgamento, a sobranceria da alegada superioridade moral, o castigo. Algo que não faz parte do léxico divino, muito menos da mensagem cristã que nos devia guiar.

“Quem nunca pecou que atire a primeira pedra”, bradou Jesus naquela parábola que todos gostamos de citar – mesmo quando temos os bolsos cheiinhos delas para atirar. Podia também recordar a parábola do Bom Pastor ou a do Filho Pródigo. Qualquer uma delas me diz que eu sou tão digna de Amor quanto outra pessoa qualquer e é nessa certeza que me tenho tentado reconciliar com uma instituição que me falhou quando eu mais precisava – apesar de ter sido a Fé que me ensinou e me permitiu reerguer-me.

Felizes os puros de coração

Esta reflexão tornou-se mais constante nos últimos meses, ao assistir ao desmoronar do frágil castelo de cartas que, ao longo de décadas, foi construído em redor da questão dos abusos dentro da Igreja Católica. A tragédia que terá destruído a vida de centenas de pessoas, em Portugal, tem sido encarada por demasiados membros da Igreja – altas esferas também – com a mesma sobranceria com a qual me olharam depois de saberem do meu divórcio. A tentativa de conter os danos com a criação de comissões dentro da própria Igreja ou com a transferência de padres entre paróquias como se, por milagre, isso restaurasse o passado; a manutenção da ideia de que os sacerdotes são divinos, de que não padecem dos mesmos problemas que os restantes mortais; a perigosa tendência para assumir que a Igreja poderia estar acima da Lei porque tomara “as suas próprias medidas” não revelam que a organização é má ou criminosa – ainda que membros da sua congregação o passam ser. Mas revelam, gritam, que a Igreja é humana.

Deus enviou à sua Terra Jesus Cristo para que a sua divindade se revestisse de Humanidade. O Filho de Deus é manietado e morto por aqueles que lhe não quiseram reconhecer a origem divina, que se assustaram com a sua admissão da própria simplicidade – foi assim que se fez grande.

Jesus Cristo, Deus feito Homem, aparece-nos para ensinar a humildade, o serviço, a entrega desinteressada, o Amor incondicional. É Ele quem nos ensina a dar a outra face, é Ele quem aprende com as crianças a importância da inocência e da ingenuidade, é Ele quem nos mostra que a Verdade (Quid est Veritas?, pergunta Pilatos) deve ser sempre procurada e revelada, sejam quais forem as consequências a que leva – no Seu caso, foi a morte.

E nós, Igreja, na nossa Humanidade, teimamos em não entender nada daquilo que nos foi mostrado há mais de dois mil anos pelo Deus feito Homem a quem rezamos todos os dias. Conseguíssemos nós centrarmo-nos mais nas Suas palavras – “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” – e talvez pudéssemos estar a reconstruir sobre os terríveis erros do passado; talvez pudéssemos estar a ser sinal de Amor em tempos de turbulência; talvez pudéssemos, enquanto Igreja, ser aquilo que nos foi pedido: anunciadores de uma Boa Nova que é revestida de Verdade, de Amor e de Fé.

Assim, na nossa Humanidade, estamos apenas a ser uma Igreja agarrada a uma ideia de Amor inexistente – e que Jesus não ensinou: a de que há pessoas, há vidas mais dignas que outras. E de que nem todas são merecedoras do Amor de Deus.

E não pode haver algo mais falso do que isso. Porque Deus é Amor e a morte do Seu Filho não foi só para salvação de alguns.


Maré Alta

O que viram os Pastorinhos?

P. Nelson Faria, sj | 13 Outubro 2022 | in Ponto SJ

Chovia, e ninguém arredava pé. Mais de 50 mil pessoas juntaram-se em Fátima no dia 13 de outubro de 1917. O que as movia? A promessa de que algo extraordinário iria acontecer, pois uma senhora vestida de branco deixou-se ver por uns humildes “pastorinhos”, os nossos Jacinta e Francisco Marto, santos, e Lúcia.

A certa altura, Lúcia diz ao povo para olhar o Sol. O Sol parecia bailar, e mesmo os mais aguerridos ateus que por lá estavam para reportar a infantilidade da nação, surpreenderam-se com o inesperado fenómeno. Contudo, mais importante do que um sol que dança, é saber o que viram Francisco, Jacinta e Lúcia. O que viram os pastorinhos?

Lúcia viu três ‘quadros’, dos quais pode ler um breve resumo aqui ou saborear mais aprofundadamente nas Memórias da Irmã Lúcia, disponibilizadas em PDF pelo Santuário de Fátima. No primeiro, viu a Sagrada Família, em que São José e o Menino pareciam abençoar o mundo; no segundo, viu Jesus a caminho do Calvário, acompanhado por Nossa Senhora; e no terceiro viu Jesus e Maria, Maria já sem a espada no coração e Jesus em gestos de bênção sobre o mundo.

Demasiadas vezes reduzimos Fátima aos três segredos e suas paisagens de dor e perseguição. Mas acima de tudo, Fátima é esperança, é a possibilidade de renovar e reparar o mundo através do poder da nossa oração. É este o íntimo do Coração de Jesus e o centro da mensagem de Fátima.

Nem sempre podemos aliviar os sofrimentos dos que estão longe. Mas participando na sua dor, rezando o terço com empatia, quebramos o muro da indiferença que enregela o nosso mundo. E a bênção vem. E a bênção desce. E a bênção é.

Com a nossa oração não mudamos o coração de Deus. O Seu coração não precisa da nossa oração pois jamais deixou de sentir dor pelo sofrimento dos seus filhos. Com a nossa oração mudamos o nosso coração. Abrimos, isso sim, o nosso coração à missão de compaixão de Cristo pelo mundo, ao amor pelos outros.

Um coração aberto multiplica os gestos de bondade no mundo. Um coração aberto acompanha o Senhor e a sua Mãe na Via Sacra do mundo, uma Via Sacra que parece não ter fim, mas em que abunda a esperança da Ressurreição.

É pela empatia e participação amorosa nos sofrimentos do mundo, no derrogar da indiferença, que todo o mundo é abrasado no amor de Deus.

Neste mês de outubro, usemos o Rosário como a nossa arma de compaixão, para que a pedra do nosso coração dê lugar à vida divina do amor.


Maré Alta

OPINIÃO VIDA CRISTÃ

Cansado de ser cristão

P. Francisco Cortês Ferreira | 5 Outubro 2022 | in Ponto SJ

Porque é que às vezes parece ser tão difícil ser cristão? Porque é que temos a sensação que nos é pedido mais a nós que a quem não professa a fé cristã? Quantas vezes suspirámos cansados, quase derrotados pela exigência daquilo que achamos que é o que nos é pedido? Onde está essa paz tão prometida? Quando é que recebo dividendos por causa daquilo em que acredito? Onde está a minha recompensa? Aquela que me é devida por ser cristão?

No livro do profeta Habacuc, à pergunta “até quando, Senhor, pedirei socorro,
sem que me escutes?” (Hab 1, 2), Deus responde de modo meio estranho, quase cínico: “Se [a resposta] parece demorar, deves esperá-la”. (Hab 2,3). Deves esperá-la porque talvez ainda não te tenhas dado conta do que isso implica realmente. Do preço que tens que pagar pela consciência da verdadeira dimensão do seguimento de Jesus. Da constância na oração, na atenção aos sinais de Deus pelo meio das coisas da vida, na prioridade que é devida à leitura espiritual, ou do olhar espiritual que é devido às leituras de todos os dias. Tudo isso te é pedido. Jesus pede sempre um pouco de mais porque nunca pede menos que a vida. Ele aponta a essa exigência de caminho para que nos seja dada pela primeira vez a provar a doçura do ser (V. Joukovski). Aquela que talvez não exista na nossa vida neste momento, a verdadeira doçura das coisas, mais além daquela camada de açúcar superficial que mascara o verdadeiro sabor do bolo. E enquanto não percebermos isto estamos a desperdiçar uma vida que nos é dada uma só vez. Por isso insiste o Salmo: “Não endureçais os vossos corações” (Salmo 95, 8), para que o caminho seja o que é próprio do ser peregrino. Para que a tua vida não seja definida, conduzida ou pensada, profunda e espontaneamente, sem uma ligação íntima com Deus, sem estar numa ligação primordial com Ele, exposto diante d’Ele, em privado e em público, de uma maneira perceptível aquém e além de qualquer outra sensação (E. Salman). E para que enquanto caminhes “Não te envergonhes de dar testemunho de Nosso Senhor” (2Tim 1,8), mas guardes a boa doutrina que te foi confiada, “com o auxílio do Espírito Santo, que habita em nós” (2Tim 1,14).

Se o Espírito Santo habita em ti, que mais se te pode dar? Que mais te pode ser prometido senão Aquele que já habita em ti. Aquele que se move dentro de ti, e que te empurra à vida, à liberdade e à esperança. E tu que tantas vezes não te dás conta disso, é justo que peças a Jesus: aumenta a minha fé? (Lc 17, 5). Ou não seria mais justo dizer: Faz-me dar conta daquilo que já vive em mim. Mostra-me aquilo que vive em mim: o amor de Deus que foi derramado no meu coração, pelo Espírito que me habita. Porque vivo como se isso não fosse verdade. Como se a fé não fosse senão procurar qualquer coisa fora, uma recompensa ou qualquer coisa distintiva que me deveria ser dada porque acredito em Deus.

Quando lemos “o justo vive pela sua fé”, a expressão não deixa espaço para equívocos. O justo “vive” – é a palavra; não é “sustentado”, “animado” ou “fortalecido” pela sua fé. “Vive” como se a fidelidade não dependesse de nada mais que a própria vivência da fé. Como se o que estivesse no teu horizonte fosse, não a recompensa, mas o amadurecimento do coração a cada dia. Que mesmo que o nosso querer seja pequeno, na pequena rotina insignificante dos dias Deus estivesse a amadurecer em nós. Como se aquilo que me é dado não fosse mais que o caminho com tudo o que acontece, na família, no namoro, na amizade e no trabalho. Como se nessa aparente banalidade fosse chamado a viver com aquilo que já vive em mim e que sou chamado a deixar despontar. Deixar-me de desculpas e idiotices, de arrogâncias e de ideais e olhar para o que há de mais real em mim. Porque é na intimidade que se joga toda a nossa liberdade. Eu para Deus e Deus comigo. Eu ser esta coisa estranha que é ser discípulo d’Aquele que habita em mim. Rilke mostra esta intimidade de modo muito engraçado, com um poema que tem algo de ingénuo e comovedor:

Se muitas vezes te incomodo, Deus meu vizinho,

Durante a longa noite batendo à porta fortemente

É porque te oiço respirar raramente

E sei que na sala estás sozinho.

E se de alguma coisa precisares, ninguém há

Que nas mãos te deponha bebida habitual:

Estou sempre à escuta. Dá de ti sinal.

Meu ser perto está.

E talvez um dia, quando aquilo que nos habita despontar em nós, quando formos livres, possamos dizer com Paulo Le-Bao-Thim, mártir do Vietname do século XIX: No meio da tempestade lanço a âncora que me permitirá subir até ao trono de Deus: a esperança viva que está no meu coração.


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 2 de outubro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O andamento da guerra na Ucrânia tornou-se tão grave, devastador e ameaçador, a ponto de causar grande preocupação. Por isso hoje gostaria de dedicar-lhe toda a minha reflexão antes do Angelus. De facto, esta terrível e inconcebível ferida da humanidade, em vez de sarar, continua a sangrar cada vez mais, correndo o risco de se alargar.

Afligem-me com os rios de sangue e lágrimas derramados nestes meses. Entristecem-me os milhares de vítimas, particularmente crianças, e as muitas destruições, que deixaram numerosas pessoas e famílias sem abrigo e ameaçam com o frio e a fome vastos territórios. Tais ações nunca podem ser justificadas, nunca! É angustiante que o mundo esteja a aprender a geografia da Ucrânia através de nomes como Bucha, Irpin, Mariupol, Izium, Zaporizhzhia e outras localidades, que se tornaram lugares de sofrimento e medo indescritíveis. E o que dizer do facto que a humanidade está de novo diante da ameaça atómica? É absurdo.

Que mais deve ainda acontecer? Quanto sangue deve ainda escorrer para nos darmos conta de que a guerra nunca é uma solução, apenas destruição? Em nome de Deus e em nome do sentido de humanidade que habita em cada coração, renovo o meu apelo a um cessar-fogo imediato. Silenciar as armas e procurar as condições para negociações que conduzam a soluções que não sejam impostas pela força, mas concordadas, justas e estáveis. E serão assim se forem fundadas no respeito pelo valor sacrossanto da vida humana, bem como na soberania e integridade territorial de cada país, e nos direitos das minorias e das legítimas preocupações.

Deploro profundamente a grave situação que se criou nos últimos dias, com novas ações contrárias aos princípios do direito internacional. Ela aumenta o risco da escalada nuclear, a ponto de temer consequências incontroláveis e catastróficas em todo o mundo.

O meu apelo dirige-se antes de mais ao Presidente da Federação Russa, pedindo-lhe que ponha fim a esta espiral de violência e morte, inclusive para o bem do seu povo. Por outro lado, entristecido pelo imenso sofrimento do povo ucraniano como resultado da agressão que sofreu, faço um apelo igualmente confiante ao Presidente da Ucrânia para que esteja aberto a propostas sérias de paz. A todos os protagonistas da vida internacional e aos responsáveis políticos das nações, exorto a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para pôr fim à guerra em curso, sem se deixarem arrastar para escaladas perigosas, e a promover e apoiar iniciativas de diálogo. Por favor, deixemos que as gerações mais jovens respirem o ar saudável da paz, não o ar poluído da guerra, que é uma loucura!

Após sete meses de hostilidades, utilizemos todos os meios diplomáticos, também aqueles que eventualmente não foram utilizados até agora, para pôr fim a esta terrível tragédia. A guerra em si mesma é um erro e um horror!

Confiemos na misericórdia de Deus, que pode mudar os corações, e na intercessão materna da Rainha da Paz, ao elevarmos a nossa Súplica a Nossa Senhora do Rosário de Pompeia, espiritualmente unidos aos fiéis reunidos no seu Santuário e em tantas partes do mundo.


Maré Alta

Portugueses em balanço do encontro de Assis

A Economia de Francisco “não é uma utopia”.

De regresso a Portugal, o desafio é pô-la em prática

Clara Raimundo | 27 Set 2022 | in 7 Margens

“Não é uma utopia.” A frase, em letras garrafais, permaneceu durante largos minutos no ecrã gigante que servia de cenário ao palco do encontro A Economia de Francisco, enquanto o Papa Francisco, 85 anos, e Lilly Satidtanasarn, 14, assinavam um pacto pela nova economia, no sábado passado. Naquele momento, Rita, João, Leonor e Matheus sentiram exatamente o mesmo: a assinatura era de Lilly, mas todos os jovens naquela sala, incluindo eles próprios, estavam a assumir um enorme compromisso. E querem muito honrá-lo.

Rita Nascimento, gestora de projeto e aluna do programa de doutoramento em Sustentabilidade na Nova School of Business and Economics, e João Antunes, consultor na área de gestão, estratégia e recursos humanos, são dois dos 19 portugueses que participaram neste encontro que decorreu no final da semana passada. E contam ao 7MARGENS que já têm “uma série de ideias a fervilhar para pôr em prática” e estão ansiosos por contagiar outros com o “bichinho” da nova economia.

Casados, pais de 3 filhos, Rita e João arriscam dizer que o seu caminho n’A Economia de Francisco começou antes mesmo de saberem que o movimento existia. “Sobretudo desde que nasceram os miúdos, fomos impelidos a fazer algumas mudanças na nossa vida, em coisas práticas do dia a dia, nomeadamente na utilização de produtos sustentáveis”, explica Rita, 33. Um caminho que culminou na criação, durante a pandemia, de um pequeno negócio de venda online desses mesmos produtos, a Treedhis, e em que cada venda contribuía para a plantação de árvores em diferentes partes do mundo.

Agora, e também inspirados pela participação neste encontro, querem levar a marca mais longe e apostar sobretudo na educação e formação para, tal como ensinaram os seus filhos a serem mais amigos do ambiente e a cuidar da nossa “casa comum”, poderem ensinar muitas outras crianças.

Souberam da iniciativa do Papa e do encontro em Assis há apenas alguns meses, através da universidade onde Rita trabalha e estuda, e no início pensaram que seria algo “mais restrito”. “Viemos depois a perceber que não só iríamos aprender muito, como até poderíamos acrescentar alguma coisa com a nossa experiência”, explica João, de 35 anos.

“Somos católicos, temos formação na área da economia e gestão, fizemos ambos parte da AIESEC [a maior organização de estudantes do mundo] e, no fundo, encontrámos neste movimento uma forma de juntar duas dimensões muito importantes da nossa vida”, acrescenta Rita.

O mesmo pensou Leonor Távora, 36, religiosa das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, quando a irmã provincial da congregação lhe telefonou para convidá-la a juntar-se a este movimento. Licenciada em Economia e Gestão, trabalhou cinco anos como consultora num banco. Ao mesmo tempo, estava envolvida em vários projetos de voluntariado, e foi num deles que conheceu as Escravas do Coração de Jesus e o trabalho que elas desenvolviam no Bairro da Fonte da Prata (na Moita). Ali, começou por dar aulas de português a estrangeiros que acabavam de chegar ao nosso país e acompanhou alguns moradores nas dificuldades que tinham com os seus pequenos negócios. “Fui-me apaixonando pelas pessoas daquele bairro e pela missão das irmãs… E a maneira que encontrei de responder a tanto amor que recebia, e ao meu desejo de me aproximar mais de Deus, foi a de viver em comunidade e dedicar a minha vida ao serviço dos outros como Escrava”, justifica.

Depois de ter entrado para a congregação, propuseram-lhe que fosse estudar Teologia e Filosofia para Paris, na universidade dos jesuítas, de modo a ficar melhor preparada “para acompanhar as pessoas espiritualmente, e ajudá-las a encontrar um sentido para as suas vidas”. Foi , assim, quando estava em França (mais propriamente em Taizé), que recebeu o convite para participar na Economia de Francisco. “Para mim, foi como um presente, porque já muitas vezes tinha procurado ligar a Fé ao trabalho como economista e nem sempre tinha sido fácil”, refere a irmã Leonor.

Uns meses depois, surgia a pandemia de covid-19, obrigando a adiar o encontro global da Economia de Francisco, e a substituí-lo por encontros online. “Eu estava tão ocupada nos estudos que achei que a minha colaboração com o movimento poderia ser mais a nível da investigação”, recorda Leonor. “Então, fui estudar João Crisóstomo, considerado o fundador da Doutrina Social da Igreja e tentar perceber como é que este homem poderia iluminar o nosso tempo, ele que nas suas homilias falava tanto de esmola, e convidava a ajudar os mais pobres e a nunca se separar deles.”

Um convite que o Papa Francisco renovou durante o encontro em Assis, no seu discurso aos jovens. “Uma frase que ficou mesmo a ressoar em mim foi precisamente a de que A Economia de Francisco não existe se os pobres não estiverem no centro”, refere Leonor Távora. “E nesse sentido, dado o contexto em que vivemos, avizinha-se um ano difícil, por isso o desafio agora é sobretudo estar atenta.”

Leonor tem também a grande responsabilidade de partilhar com as restantes irmãs de toda a província da Europa Atlântica (que inclui Portugal, Inglaterra, França e Irlanda) aquilo que viu e ouviu. “Sendo nós uma congregação, muito da Economia de Francisco já o vivemos, é verdade, mas há sempre algum passo mais que pode ser dado, e é isso que agora nos cabe também descobrir, nós que temos contactos com tantos jovens e famílias em 24 países do mundo, vários edifícios, dinheiro no banco… ”

E o melhor é que “ninguém está sozinho” e neste encontro Leonor percebeu isso claramente. “O estar com as pessoas que até agora só tínhamos conhecido virtualmente, poder conhecê-las, tocar-lhes… ajudou-me a perceber que isto é real. E cada um de nós pode contar com esta rede que se criou”, refere.

Matheus Belucio, 29 anos, concorda. Há seis anos a viver em Portugal, este brasileiro com ascendência madeirense é aluno do doutoramento em Economia na Universidade de Évora e investigador da Economy of Francesco Academy,

Matheus está a estudar o impacto da economia no turismo religioso católico e a influência da caridade na ecoeficiência dos países e, neste encontro, teve oportunidade de encontrar-se presencialmente pela primeira vez com o investigador “sénior” que está a orientar o seu trabalho da academia e ouvir as suas “preciosas sugestões”.

Mas houve outro encontro que o marcou particularmente. É que, enquanto Francisco e Lilly assinavam o pacto pela nova economia, Matheus estava a pouco mais de um metro de distância. Ele foi um dos selecionados para ocupar os lugares no palco, junto ao Papa, e teve oportunidade de cumprimentá-lo no final.

“Este encontro pessoal marcou-me muito, não tenho palavras para descrever o que senti. Foi incrível o sorriso com que o Papa me acolheu, surpreendido quando lhe disse que era brasileiro… porque eu levava uma t-shirt da JMJ Lisboa 2023!”.

Francisco ofereceu a cada jovem que estava no palco um terço benzido por si, e Matheus não foi exceção. Mas não vai guardá-lo para si. “No espírito d’A Economia de Francisco, vou levá-lo para a Comunidade Shalom a que eu pertencia no Brasil e encontrar forma de ele ficar lá exposto, para que outros jovens possam vê-lo e sentir-se inspirados como eu me sinto”, explica.

“Para quem acompanhou o movimento desde o início, percebo que o encontro do Papa tenha sido uma emoção ainda maior. Mas mesmo para nós, que chegámos há pouco tempo, foi uma emoção muito grande, e a confirmação de que isto é mesmo liderado pelo Papa e ele quer levar isto para a frente connosco”, afirma Rita. João completa: “E nós comprometemo-nos a ir à luta, a tentar mudar efetivamente alguma coisa”.

Até porque, sublinha Matheus, “todos somos agentes para mudar o mundo, e a nossa caridade, seja sob que forma for, vai ter impacto no planeta”.


Maré Alta

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO CAZAQUISTÃO
(13 - 15 DE SETEMBRO DE 2022)

ABERTURA E SESSÃO PLENÁRIA DO
"VII CONGRESS OF LEADERS OF WORLD AND TRADITIONAL RELIGIONS"

DISCURSO DO SANTO PADRE

Palácio da Independência (Nur-Sultan)
Quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Irmãos e irmãs!

Permiti que vos trate assim com estas palavras diretas e familiares: «irmãos e irmãs». É deste modo que vos desejo saudar, Líderes religiosos e Autoridades, membros do Corpo Diplomático e das Organizações Internacionais, Representantes de instituições académicas e culturais, da sociedade civil e de várias organizações não-governamentais, em nome daquela fraternidade que a todos nos une enquanto filhos e filhas do mesmo Céu.

Frente ao mistério do infinito que nos sobrepuja e atrai, as religiões lembram-nos que somos criaturas: não somos omnipotentes, mas mulheres e homens em caminho para a mesma meta celeste. Assim a dimensão de criatura que partilhamos estabelece uma comunhão, uma real fraternidade. Recorda-nos que o sentido da vida não se pode reduzir aos nossos interesses pessoais, mas inscreve-se na fraternidade que nos carateriza. Só crescemos com os outros e graças aos outros. Amados Líderes e Representantes das religiões mundiais e tradicionais, encontramo-nos numa terra que, ao longo dos séculos, foi percorrida por grandes caravanas: nestes lugares, incluindo através da antiga rota da seda, entrelaçaram-se tantas histórias, ideias, crenças e esperanças. Possa o Cazaquistão continuar a ser uma terra de encontro entre quem está distante. Possa abrir uma nova rota de encontro, centrada sobre as relações humanas: no respeito, na honestidade do diálogo, no valor imprescindível de cada um, na colaboração; uma rota fraterna para caminhar juntos rumo à paz.

Ontem tomei, emprestada, a imagem da dombra; hoje, quero associar ao instrumento musical uma voz, a do poeta mais famoso do país, pai da sua literatura moderna, o educador e compositor muitas vezes representado precisamente junto com a dombra. Abai (1845-1904) – como é conhecido popularmente – deixou-nos escritos impregnados de religiosidade, nos quais transparece a alma melhor deste povo: uma sabedoria harmoniosa, que deseja a paz e procura-a interrogando-se com humildade, anelando por uma sabedoria digna do homem, nunca fechada em visões restritas e apertadas, mas pronta a deixar-se inspirar pelas mais variadas experiências. Abai provoca-nos com um interrogativo atemporal: «Que beleza pode ter a vida, se não se vai em profundidade?» (Poesia, 1898). Outro poeta interrogava-se sobre o sentido da existência, colocando nos lábios dum pastor destas terras infindas da Ásia uma pergunta igualmente essencial: «Para onde tende este meu breve vagar?» (G. Leopardi, Canto noturno dum pastor errante da Ásia). São questões como estas que suscitam a necessidade da religião, que nos lembram que nós, seres humanos, não existimos tanto para satisfazer interesses terrenos e tecer relações apenas de natureza económica, como sobretudo para caminhar juntos como viandantes com o olhar voltado para o Céu. Precisamos de encontrar um sentido para as questões últimas, cultivar a espiritualidade; temos necessidade – dizia Abai – de manter «desperta a alma e límpida a mente» (Palavra 6).

Irmãos e irmãs, o mundo espera de nós o exemplo de almas despertas e mentes límpidas, espera uma religiosidade autêntica. Chegou a hora de despertar daquele fundamentalismo que polui e corrói toda a crença, chegou a hora de tornar límpido e compassivo o coração. Mas é hora também de deixar apenas aos livros de história os discursos que por demasiado tempo, aqui e noutras partes, inculcaram suspeitas e desprezo a respeito da religião, como se esta fosse um fator desestabilizador da sociedade moderna. Nestes lugares, é bem conhecida a herança do ateísmo de Estado, imposto durante decénios, aquela mentalidade opressiva e sufocante para a qual o mero uso da palavra «religião» já gerava embaraço. Na realidade, as religiões não são problema, mas parte da solução para uma convivência mais harmoniosa. Com efeito a busca da transcendência e o valor sagrado da fraternidade podem inspirar e iluminar as opções a tomar no contexto das crises geopolíticas, sociais, económicas, ecológicas, mas – na sua raiz – espirituais, que atravessam muitas instituições de hoje, incluindo as democracias, comprometendo a segurança e a concórdia entre os povos. Portanto precisamos de religião para responder à sede de paz do mundo e à sede de infinito que habita o coração de cada homem.

Por isso, condição essencial para um desenvolvimento verdadeiramente humano e integral é a liberdade religiosa. Irmãos, irmãs, somos criaturas livres. O nosso Criador «pôs-Se de lado por nós», «limitou» por assim dizer a sua liberdade absoluta para fazer também de nós criaturas livres. Então como podemos coagir irmãos em nome d’Ele? «Enquanto acreditamos e adoramos – ensinava Abai –, não devemos dizer que podemos constranger os outros a crer e a adorar» (Palavra 45). A liberdade religiosa constitui um direito fundamental, primário e inalienável, que é preciso promover em todos os lugares e que não se pode limitar apenas à liberdade de culto. De facto, é direito de cada pessoa prestar testemunho público da sua própria crença: propô-lo, sem nunca o impor. É a prática correta do anúncio, diferente daquele proselitismo e doutrinamento de que todos são chamados a manter-se distantes. Relegar para a esfera privada a crença mais importante da vida privaria a sociedade duma riqueza imensa; ao contrário, favorecer contextos onde se respira uma convivência respeitosa das diversidades religiosas, étnicas e culturais é a forma melhor de valorizar os traços específicos de cada um, de unir os seres humanos sem os uniformizar, de promover as suas aspirações mais altas sem cortar as asas ao seu impulso.

Uma vez afirmado o valor imortal da religião, vejamos na atualidade o seu valor, que o Cazaquistão admiravelmente promove, hospedando há vinte anos este Congresso de relevância mundial. A presente edição leva-nos a refletir sobre o nosso papel no desenvolvimento espiritual e social da humanidade durante este período pós-pandémico.

Por entre vulnerabilidade e tratamento, a pandemia representa o primeiro de quatro desafios globais que quero delinear convocando a todos – mas de modo especial as religiões – para uma maior unidade de intentos. A Covid-19 colocou-nos a todos no mesmo plano. Fez-nos compreender que «não somos demiurgos – como dizia Abai –, mas mortais» (Ibid.): todos nos sentíamos frágeis, todos necessitados de assistência; ninguém plenamente autónomo, ninguém completamente autossuficiente. Mas agora não podemos delapidar aquela necessidade de solidariedade que sentíamos, prosseguindo como se nada tivesse acontecido, sem nos deixarmos interpelar pela exigência de enfrentar juntos as urgências que a todos dizem respeito. A isto, não devem ficar indiferentes as religiões: são chamadas a estar na vanguarda, a ser promotoras de unidade face às provas que arriscam a família humana a dividir-se ainda mais.

Especificamente cabe a nós, que acreditamos no Divino, ajudar os irmãos e irmãs do nosso tempo a não esquecer a vulnerabilidade que nos carateriza para não cair em falsas presunções de omnipotência suscitadas por progressos técnicos e económicos, que por si sós não bastam; não se deixar enrodilhar nos laços do proveito e do lucro, como se fossem remédio para todos os males; não favorecer um progresso insustentável que não respeite os limites impostos pela criação; não se deixar anestesiar pelo consumismo que estonteia, porque os bens são para o homem e não o homem para os bens. Em suma, a nossa vulnerabilidade comum, que veio ao de cima durante a pandemia, deveria estimular-nos a continuar, não como antes, mas com mais humildade e clarividência.

Além de sensibilizar para a nossa fragilidade e responsabilidade, os crentes na pós-pandemia são chamados ao cuidado: a cuidar da humanidade em todas as suas dimensões, tornando-se artesãos de comunhão – repito a expressão: artesãos de comunhão –, testemunhas duma colaboração que supere as barreiras da própria pertença comunitária, étnica, nacional e religiosa. Mas como empreender uma missão tão árdua? Donde começar? Da escuta dos mais vulneráveis, de dar voz aos mais frágeis, de fazer-se eco duma solidariedade global que diga respeito em primeiro lugar a eles, aos pobres, aos necessitados que mais sofreram com a pandemia, tendo esta posto prepotentemente a descoberto a iniquidade das desigualdades no planeta. Quantos não têm, ainda hoje, fácil acesso às vacinas! Tantos… Estejamos da sua parte, e não da parte de quem tem mais e dá menos; tornemo-nos consciências proféticas e corajosas, façamo-nos próximo a todos, mas especialmente aos demasiado esquecidos de hoje, aos marginalizados, às camadas mais vulneráveis e pobres da sociedade, àqueles que sofrem escondidos e em silêncio, longe dos holofotes. Aquilo que vos proponho não é apenas um caminho para ser mais sensíveis e solidários, mas um percurso de cura para as nossas sociedades. Sim, porque é precisamente a indigência que permite a propagação de epidemias e os outros grandes males que prosperam no terreno das contrariedades e desigualdades. O maior fator de risco do nosso tempo continua a ser a pobreza. A propósito e sabiamente, Abai perguntava-se: «Poderão quantos têm fome guardar uma mente límpida (...) e mostrar diligência em aprender? Pobreza e lites (…) geram (…) violência e ganância» (Palavra 25). Enquanto continuarem a assolar disparidades e injustiças, não poderão cessar os vírus piores do que a Covid, ou seja, os do ódio, da violência, do terrorismo.

E isto leva-nos ao segundo desafio planetário, que interpela de maneira particular os crentes: o desafio da paz. Nas últimas décadas, o diálogo entre os responsáveis das religiões incidiu principalmente sobre esta temática. No entanto, vemos os nossos dias ainda marcados pelo flagelo da guerra, por um clima de confrontos exasperados, pela incapacidade de recuar um passo e estender a mão ao outro. É preciso, irmãos e irmãs, um abanão da nossa parte. Se o Criador, a quem dedicamos a existência, deu origem à vida humana, como podemos nós – que nos professamos crentes – consentir que a mesma seja destruída? E como podemos pensar que os homens do nosso tempo – muitos dos quais vivem como se Deus não existisse – estejam motivados para se comprometer num diálogo respeitoso e responsável, se as grandes religiões, que constituem a alma de tantas culturas e tradições, não se empenham ativamente pela paz?

Recordados dos horrores e erros do passado, unamos os esforços para que o Omnipotente nunca mais acabe refém da vontade de potência humana. Abai lembra que «aquele que permite o mal e não se opõe ao mal, não pode ser considerado um verdadeiro crente, mas, no melhor dos casos, um crente tíbio» (cf. Palavra 38). Irmãos e irmãs, há necessidade, para todos e cada um, duma purificação do mal. O grande poeta cazaque insistia neste aspeto, escrevendo que quem «abandona a aprendizagem priva-se duma bênção» e «quem não é severo consigo mesmo e não é capaz de compaixão, não pode ser considerado crente» (Palavra 12). Irmãos e irmãs, purifiquemo-nos, pois, da presunção de nos sentir justos e de não ter nada a aprender dos outros; libertemo-nos das conceções redutoras e ruinosas que ofendem o nome de Deus com rigidezes, extremismos e fundamentalismos, e o profanam por meio do ódio, do fanatismo e do terrorismo, desfigurando inclusive a imagem do homem. Sim, porque «a fonte da humanidade – lembra Abai – é amor e justiça, (...) são eles as coroas da criação divina» (Palavra 45). Nunca justifiquemos a violência. Não permitamos que o sagrado seja instrumentalizado por aquilo que é profano. O sagrado não seja suporte do poder, e o poder não se valha de suportes de sacralidade!

Deus é paz, e sempre conduz à paz, nunca à guerra. Por isso empenhemo-nos ainda mais a promover e reforçar a necessidade de que os conflitos sejam resolvidos não com as razões inconclusivas da força, com as armas e as ameaças, mas com os únicos meios abençoados pelo Céu e dignos do homem: o encontro, o diálogo, as negociações pacientes, que se levam por diante a pensar particularmente nas crianças e nas jovens gerações. Elas encarnam a esperança de que a paz não seja o frágil resultado de frenéticas negociações, mas o fruto dum constante empenho educativo que promova os seus sonhos de progresso e de futuro. Neste sentido, Abai encorajava a expandir o saber, ultrapassar a fronteira da própria cultura, abraçar o conhecimento, a história e a literatura dos outros. Invistamos, por favor, nisto! Não nos armamentos, mas na instrução.

Depois dos desafios da pandemia e da paz, abracemos um terceiro desafio: o do acolhimento fraterno. Hoje sente-se grande fadiga para aceitar o ser humano. Todos os dias são descartados nascituros e crianças, migrantes e idosos. Existe uma cultura do descarte. Muitos irmãos e irmãs morrem sacrificados no altar do lucro, envolvidos pelo incenso sacrílego da indiferença. E contudo é sacro todo o ser humano. «Homo sacra res homini»: diziam os antigos (Séneca, Epistulae morales ad Lucilium, 95, 33). É tarefa primária nossa, isto é, das religiões, recordá-lo ao mundo. Nunca antes tínhamos assistido, como agora, a tão grandes deslocamentos de populações, causados por guerras, pobreza, alterações climáticas, pela busca dum bem-estar que o mundo globalizado permite conhecer, mas se revela frequentemente de difícil acesso. Está em curso um grande êxodo: das áreas mais desfavorecidas procura-se chegar às mais abastadas. Vemo-lo todos os dias no mundo inteiro, nas diferentes migrações. Não é notícia dos jornais, mas é um facto histórico que requer soluções partilhadas e clarividentes. Certamente, é instintivo defender as próprias certezas adquiridas e fechar as portas por medo; é mais fácil suspeitar do estrangeiro, acusá-lo e condená-lo do que conhecê-lo e compreendê-lo. Mas é nosso dever lembrar que o Criador, que vela sobre os passos cada criatura, nos exorta a ter um olhar semelhante ao d’Ele, um olhar que reconheça o rosto do irmão. Ao irmão migrante, é preciso recebê-lo, acompanhá-lo, promovê-lo e integrá-lo.

A língua cazaque convida a este olhar acolhedor: nela, o termo «amar» significa literalmente «ter um olhar bom sobre alguém». E a cultura tradicional destas regiões afirma a mesma coisa através dum lindo provérbio popular: «Se encontras alguém, procura fazê-lo feliz; talvez seja a última vez que o vês». Se o culto da hospitalidade, nestas estepes, lembra o valor insuprível de cada ser humano, Abai sanciona isso mesmo dizendo que «o homem deve ser amigo do homem» e que tal amizade se baseia numa partilha universal, porque as realidades importantes da vida e para além da vida são comuns. E coerentemente declara: «todas as pessoas são hóspedes umas das outras» e «o próprio homem é um hóspede nesta vida» (Palavra 34). Redescubramos a arte da hospitalidade, do acolhimento, da compaixão. E aprendamos também a corar: sim, a sentir aquela saudável vergonha que nasce da piedade pelo homem que sofre, da comoção e estupefação pela sua condição, pelo seu destino de que nos sentimos parte. É o caminho da compaixão, que nos torna mais humanos e mais crentes. Cabe a nós, além de afirmar a dignidade inviolável de todo o homem, ensinar a chorar pelos outros, porque só seremos verdadeiramente humanos, se sentirmos como nossas as fadigas da humanidade.

Há um último desafio global que nos interpela: a custódia da casa comum. À vista das convulsões climáticas, é preciso protegê-la, para que não fique sujeita às lógicas do lucro, mas seja preservada para as gerações futuras, em louvor do Criador. Escrevia Abai: «Que mundo maravilhoso nos deu o Criador! Com magnanimidade e generosidade nos deu a sua luz. Quando a mãe-terra nos alimentava ao seu seio, era o nosso Pai celeste que Se inclinava carinhosamente sobre nós» (Poesia «Primavera»). Com amoroso cuidado, o Altíssimo providenciou uma casa comum para a vida. E como podemos nós, que nos professamos Seus, permitir que aquela seja poluída, maltratada e destruída? Unamos esforços também neste desafio. Não é o último, em importância. Na verdade está ligado ao primeiro, ao pandémico. Vírus como a Covid-19 que, apesar de microscópicos, são capazes de esfrangalhar as grandes ambições do progresso, frequentemente estão relacionados com um equilíbrio deteriorado, em grande parte por nossa causa, na natureza que nos rodeia. Pensemos por exemplo na desflorestação, no comércio ilegal de animais vivos, nas explorações agropecuárias intensivas; é a mentalidade da exploração a devastar a casa onde habitamos. Mais: leva a eclipsar aquela visão respeitosa e religiosa do mundo desejada pelo Criador. Por isso, é imprescindível favorecer e promover a custódia da vida em todas as suas formas.

Queridos irmãos e irmãs, avancemos juntos, para que seja cada vez mais amistoso o caminho das religiões. Abai dizia que «o falso amigo é como uma sombra: quando o sol brilha sobre ti, não te livrarás dele, mas quando as nuvens se acumularem sobre ti, não se fará ver em parte alguma» (Palavra 37). Que isso não aconteça connosco! O Altíssimo liberte-nos das sombras da suspeita e da falsidade; conceda-nos cultivar amizades ensolaradas e fraternas, através do diálogo frequente e da sinceridade luminosa das intenções. E desejo agradecer aqui o esforço do Cazaquistão neste ponto: sempre procura unir, sempre procura incentivar o diálogo, sempre procura construir a amizade. Isto é um exemplo que o Cazaquistão dá a todos nós e devemos segui-lo, apoiá-lo. Não procuremos falsos sincretismos conciliatórios – não servem –, mas guardemos as nossas identidades abertas à coragem da alteridade, ao encontro fraterno. Só assim, por este caminho, nos tempos sombrios que vivemos, poderemos irradiar a luz do nosso Criador. A todos vós, obrigado!


Maré Alta

Educar é libertar

In ECCLESIA | Set 6, 2022

Reflexão do professor António Estanqueiro no regresso à escola.

Uma das tarefas mais importantes dos pais é educar os filhos para a autonomia e torná-los protagonistas da sua própria vida, equipando-os com valores e competências.

Pais e filhos caminham juntos. Chegará o dia em que os pais, por amor, deixarão que os filhos sigam com liberdade o seu caminho e tomem conta de si mesmos.

Superproteção

Como bons jardineiros, os pais atentos criam um ambiente de proteção e segurança para que os filhos cresçam de forma saudável. O que acontece a uma planta se a privarmos de sol e ar? Sufoca! Do mesmo modo, se os filhos forem superprotegidos, ficarão dependentes e imaturos, incapazes de tomar decisões por medo de falhar.

As crianças e os adolescentes não podem prescindir do olhar protetor e da orientação dos pais. Mas a atitude de superproteção, ainda que bem-intencionada, não educa. É preciso saber cuidar dos filhos, ajudá-los a satisfazer as suas necessidades (não os seus desejos ou caprichos) e dar-lhes amor incondicional, sem travar o processo de autonomia.

Em geral, as crianças pequenas gostam de andar de mão dada com os pais e de sentir a sua proximidade. Gostam de abraços e beijos. O mesmo não se verifica com os adolescentes. Apesar da sua necessidade de amor e segurança, eles tendem a distanciar-se dos pais e a aproximar-se dos amigos, com quem interagem presencialmente ou através das redes sociais. Querendo afirmar a sua autonomia, os adolescentes detestam perguntas incómodas sobre as suas companhias e os seus comportamentos. Muitas vezes põem à prova a paciência e a capacidade de diálogo dos pais na gestão dos conflitos.

Na família e na escola, a arte da educação consiste em dar autonomia progressiva às crianças e aos adolescentes, de acordo com a sua idade e a sua maturidade. Por isso, o autoritarismo e a permissividade são estilos educativos inaceitáveis. Tem de haver equilíbrio entre o controlo e a liberdade.

Autonomia

Como educar para a autonomia? Não há receitas universais, porque cada jovem é diferente e único nas suas capacidades e no seu ritmo de desenvolvimento.

Na prática, um dos princípios essenciais para todos os educadores, pais e professores, é orientar e ajudar os jovens, motivando-os para que se esforcem e façam aquilo que podem e devem fazer sozinhos, na realização das suas tarefas em casa e na escola. Assim, ganham autonomia no processo de aprendizagem.

Pede-se aos pais que ensinem os filhos a enfrentar desafios e a resolver problemas, em vez de lhes afastarem todos os obstáculos do caminho. Pequenas doses de adversidade na vida são um boa oportunidade para que eles cresçam e se tornem mais resilientes, mais fortes e mais capazes de lidar com a frustração. É no confronto com a realidade e na interação positiva com os outros que os jovens podem desenvolver competências pessoais, sociais e emocionais (por exemplo, o autoconhecimento, a automotivação, o autocontrolo, a empatia, a comunicação assertiva e a cooperação).

Educar exige regras e limites. Há circunstâncias em que os filhos precisam de supervisão para prevenir comportamentos de risco, que ponham em perigo a sua saúde ou a sua segurança e o respeito pelos outros. Quando necessário, os pais devem dizer “não” com amor firme. Nem tudo é negociável. Em última instância, os pais decidem.

Mas é bom que os filhos sintam algum espaço de liberdade para explorar o mundo à sua volta, arriscar, fazer escolhas e tomar decisões, ainda que cometam erros. Deste modo, poderão aprender com as suas experiências, reforçar a autoconfiança e adquirir o sentido de responsabilidade.

Educar é promover a autonomia responsável e solidária. A educação na família e na escola será tanto mais eficaz, quanto mais depressa os jovens se tornarem autónomos e aprenderem a voar sozinhos. Educar é libertar.

António Estanqueiro

Professor e Formador


Maré Alta

João Paulo I, a beatificação de um Papa feliz

Tony Neves | 4 Set 2022 | in 7 Margens

A manhã deste 4 de setembro acordou com chuva e trovoada em Roma, mas nem por isso a Praça de S. Pedro deixou de se encher de peregrinos. O Papa Francisco, apesar das visíveis dificuldades de locomoção, presidiu à beatificação do seu antecessor, João Paulo I, e recitou o Ângelus, mantendo-se sentado durante o resto do tempo da celebração da Eucaristia.

Nas concorridas entradas da Praça de S. Pedro, oferecia-se o jornal L’Osservatore Romano, dedicado à beatificação. Já dentro, era distribuído o guião da celebração. Milhares de cadeiras colocadas na Praça esperavam pelas pessoas com o número especial da revista Luoghi dell’Infinito, do jornal Avvenire, todo ele dedicado ao novo Beato: “Giovanni Paolo I, il sorriso della speranza”. Foram leituras inspiradoras para as quase duas horas de espera até à chegada do Papa Francisco e início da missa.

Num dos artigos deste L’OR, o Secretário de Estado do Vaticano, cardeal Piero Parolin, valoriza o facto de João Paulo I ser o primeiro Papa eleito depois do Vaticano II. O cardeal resume assim as prioridades do Papa Luciani: beber nas fontes do Evangelho, um novo fôlego missionário, a colegialidade episcopal, a insistência na pobreza eclesial e no serviço aos mais pobres, a busca da unidade dos cristãos, no dialogo inter-religioso e o diálogo entre as nações a favor da justiça e da paz…

Na curta homilia, o Papa Francisco disse: “Com o sorriso, o Papa Luciani conseguiu transmitir a bondade do Senhor. É bela uma Igreja com o rosto alegre, o rosto sereno, o rosto sorridente, uma Igreja que nunca fecha as portas, que não exacerba os corações, que não se lamenta nem guarda ressentimentos, que não é bravia nem impaciente, não se apresenta com modos rudes, nem padece de saudades do passado, caindo no retrogradismo. Rezemos a este nosso pai e irmão e peçamos-lhe que nos obtenha ‘o sorriso da alma’, um sorriso transparente, que não engana: o sorriso da alma.”

Albino Luciani nasceu a 17 de Outubro de 1912. Padre em 1935, doutorou-se em Teologia na Universidade Gregoriana. Seria nomeado bispo em 1958, sendo ordenado na Basílica de S. Pedro pelo Papa João XXIII. Bispo de Vittorio Venetto (1958-1969), mudar-se-ia para Veneza onde foi o patriarca, de 1969 até à eleição papal. Nomeado cardeal pelo Papa Paulo VI a 5 de Março de 1973, seria eleito Papa a 26 de Agosto de 1978, sendo até agora o último italiano. O início de pontificado teve lugar a 3 de Setembro e a sua morte inesperada ocorreria a 28 do mesmo mês, com apenas 65 anos de idade. O seu papado duraria 33 curtos dias, muito marcantes pela simplicidade, fé e alegria que transmitia. Foi o sucessor de Paulo VI e antecessor de João Paulo II, ambos já canonizados.

A história reconhece-o como o “Papa do sorriso”, o primeiro a escolher um nome duplo (João Paulo), decisão que constitui um profundo gesto de homenagem aos seus dois predecessores. Morreu durante a noite com um enfarte do miocárdio.

O padre João Aguiar, sempre atento ao ritmo da Igreja e do mundo, relembra uma intervenção notável do Papa agora beatificado de que perduram as marcas da sua humildade (ver 7MARGENS) e os seis “queremos” programáticos: “Recordo-os, resumidamente: ‘queremos prosseguir, sem paragens, a herança do Concílio Vaticano II, cujas normas sábias devem continuar a cumprir-se (…) queremos conservar intacta a grande disciplina da Igreja, na vida dos sacerdotes e dos fiéis, tal como a celebrada riqueza da sua história a assegurou através dos séculos (…) queremos recordar a toda a Igreja que o seu primeiro dever continua sendo o da evangelização (…) queremos continuar o esforço ecuménico, que vemos como a última indicação dos nossos imediatos predecessores, velando com fé intacta, com esperança invencível e com amor indeclinável pela realização do grande mandamento de Cristo: Que todos sejam um (Jo., 17, 21) (…) queremos prosseguir com paciência e firmeza naquele diálogo sereno e construtivo, que o nunca suficientemente chorado Paulo VI pôs como fundamento e programa da sua ação pastoral, expondo as linhas mestras na sua excelente encíclica Ecclesiam Suam: que os homens se reconheçam mutuamente enquanto homens; e quando se trate daqueles que não partilham a nossa fé, que estejamos sempre dispostos a dar-lhes o testemunho da fé que está em nós e da missão que nos confiou Cristo (…) queremos, enfim, favorecer todas as iniciativas louváveis e valiosas, que possam defender e incrementar a paz no mundo conturbado (…)”.

Tony Neves é padre católico e trabalha em Roma como assistente geral dos Missionários do Espírito Santo (CSSp, Espiritanos), congregação de que é membro.


Maré Alta

Em visita a Taizé

Von der Leyen falou da Europa e da sua condição de crente

In 7Margens | 27 Ago 2022

A presidente da Comissão Europeia (CE), Ursula von der Leyen, surgiu este sábado em Taizé, no Sul de França, a falar das grandes opções das políticas da União, como havia sido anunciado, mas também a falar das motivações profundas de crente, que não são indiferentes à sua ação política.

A primeira surpresa, tanto para os que estavam esta semana naquela comunidade como para os que a seguiam pela Internet, foi que Von der Leyen não foi apenas debitar mais um discurso. Refugiou-se ali durante 48 horas, para conhecer a comunidade ecuménica, falar com os jovens e participar nas atividades que pautam o ritmo das pessoas. “A experiência ultrapassou as expectativas”, nas suas palavras.

Nunca tendo ido a Taizé, há muitos anos que ela se sentia perto do “espírito de Taizé”. Como explicou no início da sua intervenção, a pedido do irmão Aloïs, prior da comunidade, quando era jovem, há perto de meio século, os irmãos e primos vinham da Alemanha até àquela aldeia onde o irmão Roger Schütz decidira, décadas antes, criar um centro de acolhimento de refugiados. Foi uma época de “escuridão e de dúvidas” na família de Ursula von der Leyen, pois uma irmã com 11 anos tinha morrido de cancro. A verdade é que os familiares regressavam “diferentes”, como ela confessou.

Sabia-se que a presidente vem de uma família luterana e que é mãe de sete filhos. Mas neste sábado, no período de diálogo com os presentes, a primeira pergunta, vinda de um jovem de Hong Kong, não teve muito a ver com conteúdo da intervenção que acabara de escutar. Ele pretendia saber que papel tem Deus nas decisões políticas da presidente da CE.

Ela não se fez rogada na resposta. “Está sempre presente, porque a fé está sempre presente na pessoa que sou”, começou por dizer. Está presente também, no sentido de que tem a noção de que “um dia, terá de prestar contas pelo que fez e deixou de fazer”. Finalmente, porque, nos dias mais complicados e angustiantes, tem um mote que a acompanha — “Independentemente daquilo que venha, não posso cair mais fundo que não seja nas mãos de Deus” — e isso dá-lhe um sentimento de que Deus está com ela.

Três desafios: a paz, o planeta e a solidariedade intergeracional

A conferência propriamente dita, sobre a atualidade europeia, foi inspirada na parábola dos talentos, sobre a qual se havia refletido em Taizé, no sentido de tesouros que nos são confiados e aos quais podemos ser ou não fieis, dependendo dos objetivos que queremos dar à vida.

Nesta linha, Ursula von der Leyen disse que cada geração tem “uma missão” relacionada com os tesouros que lhe foram confiados. Assim, a geração dos fundadores da União Europeia, perante uma Europa dividida e dilacerada pela guerra, deu-se como tarefa pacificar a sociedade e unificar o continente. Essa missão permitiu passar à geração da atual presidente da CE o que chamou “um imenso tesouro” de uma Europa em paz e com prosperidade, uma União que é uma “democracia de democracias”, ainda assente em valores que não pode descuidar, porque são frágeis e carecem de aprofundamento.

E chegou à questão-chave: que continente quer e pode a geração atual deixar à geração seguinte, a daqueles que escutavam a oradora? Em resposta a dirigente europeia apontou três grandes desideratos: o compromisso com a paz; o compromisso com o planeta; e a solidariedade entre as gerações.

“A paz é hoje um bem partilhado entre os 27 países da União e é impensável que os seus membros entrem em guerra entre si”, observou. Mas a verdade, continuou ela, é que aquilo que parecia impensável aconteceu: a guerra desencadeou-se nas fronteiras da Europa, em virtude da invasão por parte da Rússia.

O valor da paz, que é fundador da União, saltou de novo para o centro da política europeia, com os objetivos de assegurar a paz e a segurança na Europa. E, sublinhou a oradora, foi porque os valores básicos que sustentam a União foram postos em causa, que esta se colocou ao lado da Ucrânia e tem estado a ajudá-la.

“Meus amigos, se a Rússia parar de lutar, deixa de haver guerra na Ucrânia; mas se a Ucrânia deixar de lutar, deixa de haver Ucrânia”, enfatizou Von der Leyen, num ponto sublinhado por forte aplauso da assistência.

Quanto ao segundo desiderato, relacionado com a Casa Comum, começou por afirmar que “a Criação foi-nos confiada, mas a Criação não nos pertence e nós esquecemos isso”. “O tesouro que herdámos e que devíamos preservar e cuidar devorámo-lo bocado a bocado, numa economia que extrai, consome e deita fora. Isto não pode continuar”, afirmou. Neste contexto, referiu a importância do “Pacto Ecológico Europeu” que, entre outros objetivos, pretende aproveitar a atual situação de crise (relacionada com a guerra) para acelerar a transição para as energias limpas, reconhecendo, embora, que tanto a pandemia como, já em 2022, a invasão da Ucrânia fizeram retardar os planos, para responder a situações de emergência.

As responsabilidades globais com o planeta dependem de aspetos geoestratégicos, mas são uma questão de sobrevivência e, nessa medida, são responsabilidade da atual geração para com as próximas gerações. E isto é algo que tem a ver com a solidariedade intergeracional, o terceiro ponto da conferencista.

A esperança de Ursula e a ‘radical incerteza’ dos jovens

Ursula von der Leyen disse-se consciente deste desafio, também em termos pessoais e familiares, e reconheceu que se está a colocar um fardo pesado nas gerações mais novas; desde logo, o fardo “da radical incerteza” em que estão cada vez mais a viver. Citou, a propósito, o Papa Francisco que, para caraterizar este momento, afirmou: “Sempre que um jovem cai, toda a humanidade cai. No entanto, quando um jovem se levanta novamente, o mundo inteiro também se levanta.”

Afirmou-se confiante no futuro, dando como exemplo o que, durante a fase mais complicada da pandemia, os mais novos deram no apoio aos mais velhos, desde logo aos avós, e citando também os gestos de milhares de jovens que se voluntariaram para apoiar os refugiados da guerra na Ucrânia. Citou, por outro lado, várias iniciativas da União Europeia para apoiar os jovens, nomeadamente nos campos da formação e emprego.

Num dos momentos de contacto com os jovens, Ursula von der Leyen esteve com um pequeno grupo de jovens portugueses, que com ela cantaram o hino da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, como se pode ver num vídeo publicado pelo DN.

(Esta notícia foi escrita com base na audição da conferência, procurando ser fiel aos pontos essenciais do que foi dito. Entretanto, o texto foi disponibilizado na página da Comissão Europeia.)


Maré Alta

OPINIÃO: EDUCAÇÃO DOS FILHOS

Educação rima com…verão!

Joana Alexandre | 8 Agosto 2022 | in Ponto SJ

Educação rima com… verão! O verão é um período ideal para estimular a autonomia das crianças e jovens. Se por um lado se sai das rotinas e de algum modo se quebram regras, o verão acaba por ser um período importante para treinar novas competências: tirar fraldas, ensinar a nadar de uma forma mais descontraída, sem horários e sem professor; introduzir novos alimentos, como frutas ou legumes frescos; fazer amigos e improvisar brincadeiras no areal da praia, sem recurso ao telemóvel ou a outro dispositivo móvel; estimular a curiosidade, seja pela possibilidade de visitar novos lugares, seja pela possibilidade de explorar o que temos diariamente tão perto. O verão deve ser também o tempo de olhar o mundo que nos rodeia, estimular a ética do cuidado pela natureza: debatem-se as preocupações climáticas em família? O cuidado pelo nosso mar e rios? Recicla-se em férias? Que papel e responsabilidade devem ter os cuidadores num tempo em que as mudanças climáticas se sentem bem de perto?

O verão deve ser também sinónimo de tempo em família. Criar momentos de lazer conjuntos que possibilitem uma comunicação (mais) positiva; abordar-se temas que a rotina engole e não permite aprofundar no bulício do dia a dia; saborear esse tempo, o tempo das refeições sem tempo, que entram pelas noites quentes de verão. Fazer atividades em conjunto, estimular a cumplicidade. O tempo em família é também o tempo que permite (re)visitar familiares mais distantes, ou amigos que já se tornaram, tantas vezes, família; regressar ao passado, às origens, ouvir estórias que muitas vezes só voltam a ser revisitadas e contadas mais tarde, passando-as, assim, de geração em geração.

O verão é também sinónimo de frustração. É hoje comum encontrarmos adolescentes que não sabem lidar com os silêncios, ou com momentos sem estimulação. Aborrecer-se é, assim, algo que parece impensável e ao mesmo tempo assustador, mas que se torna fundamental para um crescimento saudável. Num período em que os adolescentes estão permanentemente ligados a um telemóvel ou outro dispositivo, importa criar momentos de “shut down” ou “standby”. De que forma podemos estimular nos adolescentes um tempo de contemplação – tantas vezes confundido com aborrecimento – que estimule uma maior capacidade de reflexão sobre si e sobre o mundo? Asch, psicólogo social do século XX, usou o termo sonambulismo social para definir a passividade do ser humano, que limita o seu repertório comportamental e que nos faz agir apenas por imitação. Importa criarmos novas gerações pensantes ou que apenas se cingem à imitação hoje em dia tão reforçada pelo peso das redes sociais?

O verão deve ser também sinónimo de supervisão. Pensando novamente nos adolescentes e na adolescência – período fulcral para o desenvolvimento da autonomia e da identidade, em que os pares ganham maior peso (ou peso total) –, deverá a supervisão fazer parte da educação? Margarida Gaspar de Matos, psicóloga e coordenadora de vários projetos na área da saúde mental, escreveu em tempos que os adolescentes precisam de espaço para aprender a crescer com autonomia, mas com regras e monitorização. A palavra liberdade deve estar associada a responsabilidade, mas os cuidadores não se podem, em meu entender, desresponsabilizar neste processo. O verão traz consigo excessos.

Num período em que os adolescentes estão mais expostos a comportamentos de risco, não podemos esquecer que neurologicamente, estando o seu sistema límbico (sistema associado à componente emocional e relacional) mas ativo, o córtex frontal, que regula o comportamento, encontra-se, ainda, em maturação. A supervisão parental requerer tempo, atenção e esforço por parte dos cuidadores, mas tem um papel protetor no desenvolvimento saudável dos adolescentes. O desafio é encontrar o equilíbrio entre supervisão e autonomia. A supervisão é estar presente: amar, regular e estruturar, colocar limites. Alertar para os riscos dos comportamentos de risco, ser consistente nas regras, saber dizer que “não”, debater, negociar, envolver os adolescentes nos processos de decisão. É também apoiar, ouvir, reconfortar. Supervisão é, assim, também afeto.

Educação rima, assim, com verão, tempo privilegiado para as aprendizagens em contextos informais, tão importantes para um desenvolvimento completo; tempo de partilhas e de criação de memórias coletivas; tempo sem tempo, sem pressa; tempo para refrescar, fazer “reset”, ganhar novo folego para um novo ano letivo que se avizinha. Bons mergulhos, caro leitor!


Maré Alta

BISPO DO PORTO EXORTA NOVOS PADRES A ESTAREM PRÓXIMOS DO POVO

Na ordenação de seis novos sacerdotes, D. Manuel Linda afirmou que “o segredo da beleza e do encanto do ministério ordenado passa por esta proximidade sentimental, pela familiaridade existencial ao povo de Deus”.

No domingo 10 de julho, foi dia de festa na diocese do Porto com a ordenação de seis novos sacerdotes.

Do Seminário Maior do Porto foram ordenados Alexandre Manuel Teixeira Moreira, de Cabeça Santa, Penafiel, Hugo Joel Pereira Cunha, de S. João de Ovar, Ovar, José Emanuel Rodrigues Félix Milheiro Amorim, de Guetim, Espinho e Tiago Daniel Machado Dias, de Ordem, Lousada.

A estes se juntaram outros dois sacerdotes formados pelo Seminário Redemptoris Mater: Gerardo Alberto Angel Comayagua, de El Salvador e Massimiliano Maria Arrigo, de Palermo, Itália.

Presidiu à celebração o bispo do Porto que, na sua homilia, pediu aos novos padres para estarem próximos do povo. D. Manuel Linda lembrou que “o segredo da beleza e do encanto do ministério ordenado passa por esta proximidade sentimental, pela familiaridade existencial ao povo de Deus”.

“Nunca passeis à margem do povo que vos vai ser confiado. Nunca troqueis a solicitude da proximidade por ideias abstratas e efémeras, ainda que tocadas pelas modas culturais do momento” – frisou.

O bispo do Porto exortou os novos sacerdotes a servirem “o Senhor presente nos irmãos” evitando “passar ao lado dos outros sem lhes estender a mão”.

Deixou claro o aviso para não dedicarem tempo a “imaginários doentios de fuga à realidade”.

“Não cultueis ao luxo e à ostentação pois estes são os vícios que o povo menos suporta. Não cultiveis a sombra da fuga, pois se o padre não está com os seus estes também não podem estar com o seu pároco. Não faleis do alto da vossa importância pois o bom senso diz-nos que isto fratura, e o princípio da sinodalidade reconhece que todos somos fiéis em cristo e igualmente responsáveis pela sua Igreja” – declarou D. Manuel Linda.

O bispo do Porto não deixou de recordar as dificuldades que os novos sacerdotes podem vir a encontrar nas comunidades que vão servir pois “as condições do clero atuais são outras e bem mais difíceis que as do passado”.

Assinalou que “os sacerdotes antigos não tinham de pastorear ao mesmo tempo cinco ou seis paróquias”, mas serviram o povo “no acolhimento e na simpatia”. “Sei bem que sois dotados do mesmo desejo de servir o povo de Deus” – disse o bispo do Porto.

D. Manuel Linda saudou com alegria os novos sacerdotes deixando-lhes um incentivo a serem “guias espirituais”.

(in: site da diocese)


Maré Alta

Diocese do Porto

Plano Diocesano de Pastoral 2022|2023

Abraça o presente!

Juntos por um caminho novo.

II. Um plano para abraçar a todos e por todos

1. O contexto

O Plano Pastoral 2022/2023 articula-se e sintoniza-se com a proposta elaborada pelo COD (Comité Organizador Diocesano) para a JMJ 2023, inspirada na cena bíblica da Visitação da Virgem Maria à prima Isabel (Lc 1,39-45).

Depois do 1.º ano (2021/2022), focado no movimento de Maria, que se levantou apressadamente e se pôs a caminho, o próximo ano pastoral de 2022/2023 “é uma oportunidade para valorizar as dinâmicas do acolhimento e da hospitalidade, ao nível familiar e das comunidades cristãs, numa altura em que seremos convidados a hospedar jovens e a partilhar com eles as nossas riquezas familiares, culturais, eclesiais. É fundamental preparar bem as pré-jornadas, que são decisivas para o bom êxito da JMJ Lisboa 2023” (PDP 2021/2022, p. 7).

Na sequência do processo sinodal em curso, importa continuar a dar resposta à questão fundamental do Sínodo: “como se realiza hoje aquele ‘caminhar juntos’, que permite à Igreja anunciar o Evangelho, em conformidade com a missão que lhe foi confiada?”, e ter em conta, num processo de discernimento pastoral, as indicações, intuições e sugestões da fase diocesana do processo sinodal.

2. O lema: Abraça o presente! Juntos por um caminho novo.

O lema fundamental comum aos três anos é este: Juntos por um caminho novo. O subtema de 2021/2022 foi “Levanta-te”. O subtema para o ano pastoral 2022/2023, partindo da frase “Maria saudou Isabel” (Lc 1, 40), é este: “Abraça o presente”.

O abraço de Maria e Isabel é o abraço de duas mulheres que partilham a alegria pelo maravilhoso e surpreendente presente de uma vida nova, que uma e outra acolhem em gestação no seio materno. É o abraço de quem se acolhe mutuamente no amor, de quem partilha o Evangelho da Vida, em carne viva. É o abraço de quem abraça a graça, os desafios e a oportunidade da hora presente.

‘Abraçar’ tem, portanto, para nós, não apenas a dimensão afetuosa da reciprocidade do amor, mas inclui também o desafio de ‘abraçar’, de acolher com amor, de escutar com atenção, de discernir à luz do Senhor, de responder e de corresponder às muitas oportunidades, dificuldades e desafios do tempo presente. Neste sentido, “abraça o presente” significa sobretudo “vive no presente”, não no passado nem no futuro. O Espírito afirma o primado do hoje, contra a tentação de fazer-se paralisar pelas amarguras e nostalgias do passado, ou de focar-se nas incertezas do amanhã e deixar-se obcecar pelos temores do futuro. Não há tempo melhor para nós: agora e aqui, onde estamos, é o único e irrepetível momento para fazer o bem, para fazer da vida uma dádiva!

Este presente que nos propomos abraçar, que desejamos acolher de braços abertos, tem, por isso, muitos rostos e significados: é a graça da JMJ que nos desafia a reconhecer os jovens como o agora, ou o presente de Deus.

É o presente deste processo sinodal em curso e de aprendizagem e conversão pastoral contínuas, para uma Igreja de participação, comunhão e missão.

É o presente que Deus nos oferece no rosto de todos os jovens, vindos de todas as partes do mundo, para a JMJ, como verdadeiros peregrinos da esperança: eles irão entrar nas nossas casas, nas nossas realidades familiares e eclesiais, para animar e renovar as nossas vidas. São um presente que queremos abraçar, acolher e envolver, abrindo portas e janelas ao sopro da novidade do Espírito.

Maria torna-se, em tudo isto, modelo de uma Igreja de braços abertos, que acolhe (cf. Lc 1, 26-38). E, tal como na cena de Emaús, em que o anfitrião se torna acolhido, também Isabel, que recebe Maria, é acolhida por Ela. Como Maria, cada pessoa é chamada a tornar-se pessoa-soleira, capaz de acolher quem entra ou se cruza na sua vida. Como Maria, a comunidade cristã torna-se um Corpo que acolhe, para se tornar um lugar que gera vida. A esta luz, devemos cuidar por formar comunidades hospitaleiras, pautadas por um estilo pastoral amável e dialogal, simples e familiar, feito de presença, de escuta e de proximidade, capaz de promover a cultura do encontro, de propor e de acompanhar, num ambiente muito familiar, que gera e regenera vidas novas em Cristo.


Maré Alta

X ENCONTRO MUNDIAL DAS FAMÍLIAS

SANTA MISSA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Praça de São Pedro
Sábado, 25 de junho de 2022

No âmbito do X Encontro Mundial das Famílias, este é o momento da ação de graças. Hoje trazemos, com gratidão, à presença de Deus – como num grande ofertório – tudo o que o Espírito Santo semeou em vós, queridas famílias. Algumas de vós participaram nos momentos de reflexão e partilha aqui no Vaticano; outras animaram e viveram os mesmos momentos nas respetivas dioceses, formando uma espécie de imensa constelação. Imagino a riqueza de experiências, propósitos, sonhos, como não mancaram também as preocupações e as incertezas. Agora apresentamos tudo ao Senhor e pedimos-Lhe que vos sustente com a sua força e o seu amor. Sois pais, mães, filhos, avós, tios; sois adultos, crianças, jovens, idosos; cada qual com uma experiência diversa de família, mas todos com a mesma esperança feita oração: Que Deus abençoe e guarde as vossas famílias e todas as famílias do mundo.

Na segunda Leitura, São Paulo falou-nos de liberdade. A liberdade é um dos bens mais apreciados e procurados pelo homem moderno e contemporâneo. Todos desejam ser livres, não sofrer condicionamentos, nem ver-se limitados; por isso aspiram a libertar-se de qualquer tipo de «prisão»: cultural, social, económica. E, no entanto, quantas pessoas carecem da liberdade maior: a liberdade interior! A maior liberdade é a liberdade interior. O Apóstolo lembra-nos, a nós cristãos, que esta é primariamente um dom, quando exclama: «Foi para a liberdade que Cristo nos libertou» (Gal 5, 1). A liberdade foi-nos dada. Nascemos, todos, com muitos condicionamentos, interiores e exteriores, e sobretudo com a tendência para o egoísmo, isto é, para nos colocarmos a nós mesmos no centro e privilegiar os nossos próprios interesses. Mas, desta escravidão, libertou-nos Cristo. Para evitar equívocos, São Paulo adverte-nos que a liberdade dada por Deus não é a liberdade falsa e vazia do mundo que, na realidade, é «uma ocasião para os [nossos] apetites carnais» (Gal 5, 13). Essa, não! A liberdade, que Cristo nos conquistou com o preço do seu Sangue, está inteiramente orientada para o amor, a fim de que – como dizia, e nos diz hoje a nós, o Apóstolo –, «pelo amor, [nos façamos] servos uns dos outros» (Gal 5, 13).

Todos vós, esposos, ao formar a vossa família, com a graça de Cristo fizestes esta corajosa opção: não usar a liberdade para proveito próprio, mas para amar as pessoas que Deus colocou junto de vós. Em vez de viver como «ilhas», fizestes-vos «servos uns dos outros». Assim se vive a liberdade em família! Não há «planetas» ou «satélites», movendo-se cada qual pela sua própria órbita. A família é o lugar do encontro, da partilha, da saída de si mesmo para acolher o outro e estar junto dele. É o primeiro lugar onde se aprende a amar. Nunca o esqueçais: a família é o primeiro lugar onde se aprende a amar.

Irmãos e irmãs, ao mesmo tempo que reafirmamos com grande convicção tudo isto, bem sabemos que na realidade dos factos não é sempre assim, por muitos motivos e pelas mais variadas situações. Por isso, justamente enquanto afirmamos a beleza da família, sentimos mais do que nunca que devemos defendê-la. Não deixemos que seja poluída pelos venenos do egoísmo, do individualismo, da cultura da indiferença e da cultura do descarte, perdendo assim o seu DNA que é o acolhimento e o espírito de serviço. A caraterística própria da família: o acolhimento, o espírito de serviço dentro da família.

A relação entre os profetas Elias e Eliseu, apresentada na primeira Leitura, faz-nos pensar na relação entre as gerações, na «passagem do testemunho» entre pais e filhos. No mundo atual, esta relação não é simples, revelando-se muitas vezes motivo de preocupação. Os pais temem que os filhos não consigam orientar-se no meio da complexidade e confusão das nossas sociedades, onde tudo parece caótico, precário, acabando por extraviar-se da sua estrada. Este medo torna alguns pais ansiosos; outros, superprotetores. E por vezes acaba até por bloquear o desejo de trazer novas vidas ao mundo.

Faz-nos bem refletir sobre a relação entre Elias e Eliseu. Elias, num momento de crise e medo face ao futuro, recebe de Deus a ordem de ungir Eliseu como seu sucessor. Deus faz compreender a Elias que o mundo não termina com ele, e manda-lhe transmitir a outro a sua missão. Tal é o significado deste gesto descrito no texto: Elias lança o seu manto sobre os ombros de Eliseu e, a partir daquele momento, o discípulo tomará o lugar do mestre para continuar o seu ministério profético em Israel. Deus mostra, assim, que tem confiança no jovem Eliseu. O velho Elias passa a Eliseu a função, a vocação profética. Tem confiança num jovem, tem confiança no futuro. Naquele gesto, está contida toda uma esperança, e é com esperança que passa o testemunho.

Como é importante, para os pais, contemplar o modo de agir de Deus! Deus ama os jovens, mas isto não significa que os preserve de todo o risco, desafio e sofrimento. Deus não é ansioso, nem superprotetor. Pensai bem nisto: Deus não é ansioso, nem superprotetor; pelo contrário, tem confiança neles e chama cada um à medida alta da vida e da missão. Pensemos no pequeno Samuel, no adolescente David, no jovem Jeremias; pensemos sobretudo naquela donzela de dezasseis ou dezassete anos que concebeu Jesus: a Virgem Maria. Fia-Se duma donzela. Queridos pais, a Palavra de Deus mostra-nos o caminho: não é preservar os filhos do mínimo incómodo e sofrimento, mas procurar transmitir-lhes a paixão pela vida, acender neles o desejo de encontrar a sua vocação e abraçar a missão grande que Deus pensou para eles. É precisamente esta descoberta que torna Eliseu corajoso, determinado, que o torna adulto. O afastamento dos pais e a morte dos bois são o sinal concreto de que Eliseu compreendeu que agora «é a vez dele», que é hora de acolher a vocação de Deus e levar por diante aquilo que viu o seu mestre fazer. E fá-lo-á com coragem até ao fim da sua vida. Queridos pais, se ajudardes os filhos a descobrirem e acolherem a sua vocação, vereis que serão «fascinados» por esta missão e terão força para enfrentar e superar as dificuldades da vida.

Quero ainda acrescentar que a melhor maneira de um educador ajudar a outrem a seguir a sua vocação é abraçar com um amor fiel a própria. Foi o que os discípulos viram Jesus fazer; e o Evangelho de hoje mostra-nos um momento emblemático disso mesmo, quando Jesus «Se dirigiu resolutamente para Jerusalém» (Lc 9, 51), sabendo bem que lá seria condenado e morto. E, no caminho para Jerusalém, Ele vê-Se repelido pelos habitantes da Samaria; uma rejeição, que suscita a reação indignada de Tiago e João, mas que Jesus aceita pois faz parte da sua vocação: ao princípio, fora rejeitado em Nazaré –pensemos naquele dia na sinagoga de Nazaré (cf. Mt 13, 53-58) –, agora, na Samaria e, no fim, será rejeitado em Jerusalém. Jesus aceita tudo isto, porque veio para tomar sobre Si os nossos pecados. De igual modo, não há nada mais animador para os filhos do que ver os seus pais viverem o casamento e a família como uma missão, com fidelidade e paciência, apesar das dificuldades, horas tristes e provações. E, o que sucedeu com Jesus na Samaria, acontece em toda a vocação cristã, incluindo a vocação familiar. Todos o sabemos: há momentos em que é preciso assumir as resistências, os fechamentos, as incompreensões que provêm do coração humano e, com a graça de Cristo, transformá-los em acolhimento do outro, em amor gratuito.

E no caminho para Jerusalém, imediatamente depois deste episódio que, de certo modo, nos descreve a «vocação de Jesus», o Evangelho apresenta-nos outros três chamamentos, três vocações de igual número de aspirantes a discípulos de Jesus. O primeiro é convidado a não procurar, no seguimento do Mestre, uma morada estável, uma acomodação segura. Com efeito Ele «não tem onde reclinar a cabeça» (Lc 9, 58). Seguir Jesus significa pôr-se em movimento e estar sempre em movimento, sempre «em viagem» com Ele através das vicissitudes da vida. Como tudo isto é verdade para vós, casados! Também vós, ao acolher a vocação para o matrimónio e a família, deixastes o vosso «ninho» e começastes uma viagem, da qual não podíeis conhecer de antemão todas as etapas, e que vos mantém em constante movimento, com situações sempre novas, factos inesperados, surpresas (algumas dolorosas). Assim é o caminho com o Senhor: dinâmico, imprevisível mas sempre uma maravilhosa descoberta! Lembremo-nos de que o repouso de cada discípulo de Jesus encontra-se justamente em fazer cada dia a vontade de Deus, seja ela qual for.

O segundo discípulo é convidado a não voltar atrás porque queria, «primeiro, sepultar o pai» (cf. Lc 9, 59-60). Não se trata de faltar ao quarto mandamento, que permanece sempre válido e é um mandamento que nos santifica imenso; mas é um convite a obedecer, antes de tudo, ao primeiro mandamento: amar a Deus sobre todas as coisas. O mesmo se verifica com o terceiro discípulo, chamado a seguir Cristo resolutamente e de todo o coração, sem «olhar para trás», nem mesmo para se despedir dos seus familiares (cf. Lc 9, 61-62).

Queridas famílias, também vós sois convidadas a não ter outras prioridades, a «não olhar para trás», isto é, a não vos lamentardes repassando a vida de outrora, a liberdade de antes com as suas ilusões enganadoras: a vida fossiliza-se quando não acolhe a novidade do chamamento de Deus, chorando pela falta do passado. E este caminho de lamentar a falta do passado e non acolher as novidades que Deus nos manda, sempre nos fossiliza; faz-nos duros, faz-nos desumanos. Quando Jesus chama, nomeadamente ao matrimónio e à família, pede para olharmos em frente, e sempre nos precede no caminho, sempre nos precede no amor e no serviço. Quem O segue, não fica dececionado!

Queridos irmãos e irmãs, providencialmente todas as Leituras da liturgia de hoje nos falam de vocação, que é precisamente o tema deste X Encontro Mundial das Famílias: «O amor familiar: vocação e caminho de santidade». Com a força desta Palavra de vida, animo-vos a retomar resolutamente o caminho do amor familiar, partilhando com todos os membros da família a alegria desta vocação. E não é uma estrada fácil, não é um caminho fácil: haverá momentos escuros, momentos de dificuldade nos quais pensaremos que tudo acabou. O amor que viveis entre vós seja sempre aberto, comunicativo, capaz de «tocar com a mão» os mais frágeis e os feridos que encontrardes pelo caminho: frágeis no corpo e frágeis na alma. De facto é quando se dá que o amor, incluindo o amor familiar, se purifica e fortalece.

A aposta no amor familiar é corajosa: é preciso coragem para casar. Vemos muitos jovens que não têm a coragem de se casar, e muitas vezes acontece uma mãe vir dizer-me: «Faça qualquer coisa, converse com o meu filho, que não se casa; tem 37 anos!» – «Mas, senhora, deixe de lhe passar a ferro as camisas, comece a senhora a mandá-lo sair um pouco, que saia do ninho». Porque o amor familiar impele os filhos a voarem, ensina-os a voar e impele-os a voar. Não é possessivo: sempre dá liberdade. E depois, nos momentos difíceis, nas crises – crises, todas as famílias as têm –, por favor, não sigais o caminho mais fácil: «volto para casa da mãe». Não. Andai avante com esta aposta corajosa. Haverá momentos difíceis, haverá momentos duros, mas avante, sempre. O teu marido, a tua esposa tem aquela centelha de amor que vós sentistes ao princípio: deixai-a sair de dentro, redescobri o amor. E isto ajudar-vos-á imenso nos momentos de crise.

A Igreja está convosco; antes, a Igreja está em vós! Com efeito, a Igreja nasceu de uma família, a família de Nazaré, e é composta principalmente por famílias. Que o Senhor vos ajude cada dia a permanecer na unidade, na paz, na alegria e também numa fiel perseverança que nos faz viver melhor e mostra a todos que Deus é amor e comunhão de vida.


Maré Alta

Cardeal Hollerich põe o dedo em algumas feridas

7Margens | 17 Jun 2022

Os jovens e o diálogo com as periferias foram talvez dos setores menos escutados na presente fase do Sínodo. Mas o relator geral, o cardeal luxemburguês Jean-Claude Hollerich, dá algumas “dicas” sobre como comunicar com eles. Numa entrevista ao suplemento Igreja Viva, do bracarense Diário do Minho, o cardeal é colocado perante a questão de saber “como é que podemos construir pontes com quem defende posições diametralmente opostas aos ensinamentos da Igreja”. “Cristo não tinha problemas em aproximar-se dos pecadores, dos colaboradores com o Império Romano, dos corruptos… Até chamou alguns deles para serem seus discípulos”, responde o entrevistado.

“Nós – observa – precisamos de grande liberdade espiritual e de grande abertura. Jesus não era o inimigo de ninguém, e nós por vezes consideramos que temos inimigos. Se eu ouvir o discurso dentro da Igreja, muitos grupos de políticos são considerados inimigos. Se temos os olhos da fé, temos que ver pessoas que foram criadas por Deus, que são amadas por Deus, que não partilham as nossas crenças. Mas são amadas por Deus na mesma. E a nossa atitude tem que expressar esse amor de Deus”.

“Inimigos da Igreja? Somos todos irmãos”

Aquele que é também presidente da COMECE (Comissão das Conferências de Bispos da União Europeia) fala, nas respostas a João Pedro Quesado, dos contactos mantidos com políticos que não são católicos e que muitas vezes são até considerados inimigos da Igreja. Porém, faz notar o prelado, quando o assunto são os direitos humanos, questões sociais ou alterações climáticas, existe uma grande proximidade de posições e a possibilidade de trabalhar juntos por um melhor futuro para a humanidade. “Este é o ensinamento da Fratelli tutti: que somos todos irmãos. Temos que parar de ver as pessoas como inimigas. Elas podem-nos considerar inimigos, mas não devemos entrar nesse jogo”, entende o arcebispo do Luxemburgo.

E remata o seu ponto de vista deste modo: “Um exercício a fazer durante este Sínodo é ter as pessoas nas margens a expressar as suas opiniões. Nós podemos aprender ao ouvi-las. Ouvir as pessoas na margem não é condescendente, mas é algo de que precisamos, porque o Espírito Santo também está a trabalhar através delas. Este momento do Espírito Santo é muito importante nas teologias da sinodalidade. Devemos ver o Espírito Santo no mundo e nos grupos marginalizados”.

No contexto de uma resposta sobre a renovação da Igreja, inspirada pelo Concílio Vaticano II, Jean-Claude Hollerich destaca a necessidade e relevância de estar próximo e escutar as gerações mais novas.

“Eu gosto de estar com jovens, e tenho que os ouvir… quais são os seus sonhos, os seus medos, os seus valores, e o que é importante para eles dentro do cristianismo…”, observa.

Essa escuta é importante, porque, como bispos, “algumas vezes, caímos na tentação de estarmos apenas rodeados de conselheiros, que repetem sempre as mesmas coisas. E fica-se longe da realidade. Portanto é preciso fazer um esforço para estar em contacto com os jovens”, salienta.

A Igreja precisa de “perder peso para ficar em forma”

O relator geral do Sínodo, que foi professor universitário antes de ser bispo e que antes disso foi missionário no Japão, entende que para evangelizar é preciso ter uma atitude positiva face à cultura e civilização de quem é evangelizado. Pressente que nos encontramos perante uma mudança de civilização, que “Deus está presente na nova era que está a chegar” e que “temos que O encontrar”. E não é apenas o bispo que pode fazer essa descoberta: “Todo o povo de Deus tem que avançar, eu pelo menos espero. Acho que tal Igreja é capaz de reagir e mudar a sua linguagem e estilo muito mais do que uma Igreja em pirâmide, que é muito inflexível. Precisamos de muita flexibilidade e de discernimento, porque temos que ver onde Deus está presente nesta nova civilização”.

O que se vê, no entanto, particularmente na Europa, é um recuo do número de cristãos. “Se eu olhar para a realidade da Igreja na Europa, é esse o caso. (…) Pela primeira vez na história recente da Alemanha, o número de protestantes e católicos juntos é menor que 50% da população. Essa tendência existe em todo o lado”.

”Nós vamos tornar-nos uma Igreja de minoria, mas não tenho medo disso”, afirma o cardeal, explicando a sua visão: “Jesus nunca disse que devemos ser a maioria, influenciar a política e por aí adiante. Mas tem que ser uma minoria viva, cheia de vida e de esperança. Ainda temos uma Igreja de serviços, onde se recebem os sacramentos como um serviço, depois de fazer determinadas coisas pré-definidas. Mas a Igreja é uma comunidade viva. Tenho a certeza de que uma Igreja assim vai inspirar a sociedade, porque as minorias podem ser muito influentes numa sociedade. Mas temos que mudar”. E faz um paralelismo consigo mesmo: “Se eu participasse na maratona, teria que perder algum peso, e talvez a Igreja tenha que perder algum peso para estar novamente em forma”.

Uma atitude positiva relativamente à sexualidade

A última parte da entrevista gira em torno dos abusos sexuais na Igreja Católica. Hollerich reconhece que o problema se encontra longe de estar fechado. Cita os relatórios mais recentes, em França e em diversas dioceses alemãs e dá exemplos de formas como, na sua arquidiocese, se tem atuado quanto à prevenção, junto dos jovens candidatos a padres. Para ele, os abusos sexuais na Igreja “são piores do que no resto da sociedade, porque as pessoas olham para as pessoas da Igreja como aqueles que falam por Deus. Temos que nos limpar, sem hesitação”, conclui.

Defende, neste campo, uma atitude positiva relativamente à sexualidade. Quando as pessoas, incluindo padres, vivem problemas neste âmbito, o caminho não pode ser a condenação, mas a aceitação, a conversa, o aconselhamento. E, num tom mais pessoal e até intimista, voltou a confessar que, como jovem padre, lhe acontecia apaixonar-se por mulheres, tendo encontrado um modo de lidar com a situação: “Tomei uma decisão para a minha vida, e quero manter essa decisão. A primeira coisa a fazer é encontrar formas naturais de lidar com isto. Quando me apaixono por uma jovem, não a devo levar ao cinema. Mas, ao mesmo tempo, posso agradecer a Deus por esse sentimento de amor. Os homens casados também se apaixonam, mas permanecem fiéis à sua esposa e, depois de algum tempo, percebem que o amor da sua mulher é o mais importante. Acho que é o mesmo para os padres”.

Para ler o texto integral da entrevista, aceder aqui.


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça de São Pedro
Domingo, 12 de junho de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia e bom domingo!

Hoje é a solenidade da Santíssima Trindade, e no Evangelho da celebração Jesus apresenta-nos as outras duas Pessoas divinas, o Pai e o Espírito Santo. Do Espírito diz: «não falará por si mesmo, mas dirá o que ouvir, e anunciar-vos-á». E depois, a propósito do Pai, diz: «Tudo o que o Pai possui é meu» (Jo 16, 14-15). Notamos que o Espírito Santo fala, mas não de si mesmo: anuncia Jesus e revela o Pai. E notamos também que o Pai, que possui tudo, porque é a origem de todas as coisas, dá ao Filho tudo o que possui: não reserva nada para si, doa-se inteiramente ao Filho. Ou seja, o Espírito Santo não fala de si mesmo, fala de Jesus, fala de outros. E o Pai, ele não se doa a si mesmo, doa o Filho. É a generosidade aberta, um aberto ao outro.

E agora olhemos para nós, para aquilo de que falamos e para aquilo que possuímos. Quando falamos, queremos sempre que se digam coisas boas sobre nós, e muitas vezes só falamos de nós mesmos e do que fazemos. Quantas vezes! “Fiz isto, aquilo…”, “Tinha este problema...”. Fala-se sempre assim. Quanta diferença do Espírito Santo, que fala anunciando os outros, e o Pai anuncia o Filho! E, sobre o que possuímos, como somos invejosos, e como é difícil para nós partilhá-lo com outros, inclusive com aqueles que não têm o necessário! Com palavras é fácil, mas na prática é muito difícil.

É por isso que celebrar a Santíssima Trindade não é tanto um exercício teológico, mas uma revolução no nosso modo de viver. Deus, no qual cada Pessoa vive para a outra em relação contínua, não para si mesmo, provoca-nos a viver com os outros e para os outros. Abertos. Hoje podemos perguntar-nos se a nossa vida reflete o Deus no qual acreditamos: eu, que professo fé em Deus Pai e Filho e Espírito Santo, acredito realmente que para viver preciso dos outros, preciso de me entregar aos outros, preciso de servir os outros? Afirmo isto com palavras ou afirmo-o com a minha vida?

O Deus trino e único, queridos irmãos e irmãs, deve ser mostrado assim, com atos antes das palavras. Deus, que é o autor da vida, é transmitido menos através dos livros e mais através do testemunho da vida. Aquele que, como escreve o evangelista João, «é amor» (1 Jo 4, 16), revela-se através do amor. Pensemos nas pessoas boas, generosas e mansas que conhecemos: recordando a sua maneira de pensar e de agir, podemos ter um pequeno reflexo de Deus-Amor. E o que significa amar? Não só querer o bem e fazer o bem, mas antes de mais, pela raiz, acolher, estar aberto aos outros, dar espaço aos outros. Isto significa amar, pela raiz.

Para melhor o compreender, pensemos nos nomes das Pessoas divinas, que pronunciamos cada vez que fazemos o sinal da cruz: em cada nome há a presença do outro. O Pai, por exemplo, não o seria sem o Filho; do mesmo modo o Filho não pode ser pensado sozinho, mas sempre como Filho do Pai. E o Espírito Santo, por sua vez, é o Espírito do Pai e do Filho. Em suma, a Trindade ensina-nos que um nunca pode ficar sem o outro. Não somos ilhas, estamos no mundo para viver à imagem de Deus: abertos, necessitados de outros e necessitados de ajudar os outros. Então, coloquemo-nos esta última pergunta: na vida quotidiana, também eu sou um reflexo da Trindade? O sinal da cruz que faço todos os dias – Pai, Filho e Espírito Santo – aquele sinal da cruz que fazemos todos os dias, permanece simplesmente um gesto, ou inspira a minha maneira de falar, de encontrar, de responder, de julgar, de perdoar?

Que Nossa Senhora, filha do Pai, mãe do Filho e esposa do Espírito, nos ajude a acolher e testemunhar na vida o mistério de Deus-Amor.


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

Ontem em Breslávia, Polónia, foram beatificadas a irmã Pasqualina Jahn e nove irmãs mártires, da Congregação das Irmãs de Santa Isabel, assassinadas no final da segunda guerra mundial num contexto hostil à fé cristã. Estas dez religiosas, embora conscientes do perigo em que se encontravam, mantiveram-se próximas dos idosos e dos doentes quem cuidavam. Que o seu exemplo de fidelidade a Cristo nos ajude a todos, especialmente aos cristãos perseguidos em diferentes partes do mundo, a dar testemunho do Evangelho com coragem. Um aplauso às novas Beatas!

Hoje é o Dia Mundial contra o trabalho infantil. Trabalhemos todos para eliminar este flagelo, para que nenhum menino nem menina seja privado dos seus direitos fundamentais nem forçado ou coagido a trabalhar. A das crianças exploradas para o trabalho é uma realidade dramática que nos desafia a todos!

Está sempre vivo no meu coração o pensamento pela população da Ucrânia, afligida pela guerra. Que o passar do tempo não arrefeça a nossa dor e preocupação por estas pessoas atormentadas. Por favor, não nos habituemos a esta trágica realidade! Tenhamo-la sempre no nosso coração. Rezemos e lutemos pela paz.

Saúdo todos, incluindo os jovens da Imaculada. Desejo-vos bom domingo. E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista.


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

REGINA CAELI

Praça São Pedro
Domingo, 5 de junho de 2022

Caros irmãos e irmãs, bom dia, bom domingo!

E hoje também boa festa, porque se celebra a Solenidade de Pentecostes. Celebra-se a efusão do Espírito Santo sobre os Apóstolos, que teve lugar cinquenta dias após a Páscoa. Jesus prometeu-o várias vezes. Na liturgia de hoje, o Evangelho regista uma destas promessas, quando Jesus disse aos discípulos: «O Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas e recordar-vos-á o que vos disse» (Jo 14, 26). Eis o que faz o Espírito: ensina e recorda o que Cristo disse. Reflitamos sobre estas duas ações, ensinar e recordar, porque é assim que Ele faz entrar o Evangelho de Jesus nos nossos corações.

Antes de tudo, o Espírito Santo ensina. Desta forma, ajuda-nos a superar um obstáculo que se apresenta na experiência da fé: o da distância. Ele ajuda-nos a superar o obstáculo da distância na experiência da fé. De facto, pode surgir a dúvida de que entre o Evangelho e a vida quotidiana exista uma grande distância: Jesus viveu há dois mil anos, foram outros tempos, outras situações, e por isso o Evangelho parece ultrapassado, parece inadequado para falar aos nossos dias com as suas necessidades e problemas. Também a nós surge esta pergunta: o que pode o Evangelho dizer na era da internet, e na época da globalização? Como pode incidir a sua palavra?

Podemos dizer que o Espírito Santo é especialista em preencher distâncias, Ele sabe como transpor distâncias; Ele ensina-nos a superá-las. É Ele que liga o ensinamento de Jesus a cada tempo e a cada pessoa. Com Ele as palavras de Cristo não são uma memória, não: as palavras de Cristo pelo poder do Espírito Santo tornam-se vivas, hoje! O Espírito torna-as vivas para nós: através da Sagrada Escritura Ele fala-nos e orienta-nos no presente. O Espírito Santo não teme o passar dos séculos; pelo contrário, Ele torna os crentes atentos aos problemas e vicissitudes do seu tempo. De facto, quando o Espírito Santo ensina, atualiza: ele mantém a fé sempre jovem. Arriscamo-nos a fazer da fé uma peça de museu: é o risco! Ele, ao contrário, põe-na ao passo com os tempos, sempre atualizada, a fé em dia: esta é a sua tarefa. Pois o Espírito Santo não se prende a épocas nem a modas passageiras, mas traz aos dias de hoje a atualidade de Jesus, ressuscitado e vivo.

E como faz isto o Espírito? Fazendo-nos recordar. Eis o segundo verbo, recordar. O que significa recordar? Recordar significa trazer de volta ao coração, recordar: o Espírito traz o Evangelho de volta ao nosso coração. Acontece como com os Apóstolos: eles ouviram Jesus muitas vezes, no entanto tinham-no compreendido pouco. O mesmo acontece connosco. Mas a partir do Pentecostes, com o Espírito Santo, recordam e compreendem. Acolhem as suas palavras como feitas especialmente para eles e passam de um conhecimento exterior, de um conhecimento da memória, para uma relação viva, uma relação convicta e jubilosa com o Senhor. É o Espírito que faz isto, que nos faz passar do “ouvir dizer” para um conhecimento pessoal de Jesus, que entra no coração. Assim o Espírito muda a nossa vida: Ele faz com que os pensamentos de Jesus se tornem os nossos pensamentos. E fá-lo relembrando-nos as suas palavras, trazendo-nos ao coração, hoje, as palavras de Jesus.

Irmãos e irmãs, sem o Espírito para nos recordar Jesus, a fé fica esquecida. Tantas vezes a fé torna-se uma recordação sem memória: mas a memória está viva e a memória viva é trazida pelo Espírito. E nós - perguntemo-nos - somos cristãos esquecidos? Talvez seja suficiente uma adversidade, um cansaço, uma crise para esquecer o amor de Jesus e cair na dúvida e no nosso medo? Ai de nós! Tenhamos o cuidado de não nos tornarmos cristãos esquecidos. O remédio é invocar o Espírito Santo. Façamo-lo com frequência, especialmente em momentos importantes, antes de decisões difíceis e nas situações complicadas. Peguemos o Evangelho e invoquemos o Espírito. Podemos dizer: “Vem, Espírito Santo, recorda-me Jesus, ilumina o meu coração”. É uma bela oração, esta: “Vem, Espírito Santo, recorda-me Jesus, ilumina o meu coração”. Digamo-la juntos? “Vem, Espírito Santo, recorda-me Jesus, ilumina o meu coração”. Depois, abramos o Evangelho e leiamos um pequeno trecho, lentamente. E o Espírito fará com que ele falar à nossa vida.

Que a Virgem Maria, cheia do Espírito Santo, acenda em nós o desejo de rezar a Ele e de receber a Palavra de Deus.


Depois do Regina Caeli

Estimados irmãos e irmãs

No Pentecostes o sonho de Deus sobre a humanidade torna-se realidade; cinquenta dias após a Páscoa, povos que falam línguas diferentes encontram-se e compreendem-se. Mas agora, cem dias após o início da agressão armada contra a Ucrânia, o pesadelo da guerra, que é a negação do sonho de Deus, desceu de novo sobre a humanidade: povos em confronto, povos a matarem-se, povos que, em vez de se aproximarem, são expulsos das próprias casas. E à medida que a fúria da destruição e da morte grassa e o conflito se reacende, alimentando uma escalada cada vez mais perigosa para todos, renovo o apelo aos líderes das nações: por favor, não leveis a humanidade à ruína! Não leveis a humanidade à ruína, por favor! Que se realizem verdadeiras conversações, negociações concretas para um cessar-fogo e para uma solução sustentável. Que o clamor desesperado do povo sofredor seja ouvido - vemo-lo todos os dias nos meios de comunicação social - que a vida humana seja respeitada e que tenha fim a terrível destruição de cidades e aldeias no leste da Ucrânia. Continuemos, por favor, a rezar e a trabalhar pela paz, sem nos cansarmos.

Ontem, em Beirute, foram beatificados dois frades menores capuchinhos, Leonard Melki e Thomas George Saleh, sacerdotes e mártires, assassinados por ódio à fé na Turquia respetivamente em 1915 e 1917. Estes dois missionários libaneses, num contexto hostil, deram provas de confiança inabalável em Deus e de abnegação para com o próximo. Que o seu exemplo reforce o nosso testemunho cristão. Eram jovens, tinham menos de 35 anos. Um aplauso aos novos Beatos!

(…)

Eu rezo por vós, vós rezai por mim. Desejo a todos bom domingo. Bom almoço e até à vista.


Maré Alta

Acima da dor e da palavra

Octávio Carmo | 29 Maio 2022 | in Ponto SJ

Para onde nos leva Jesus, com a sua Ascensão? 40 dias depois da sua passagem do deserto, com as marcas da sua execução, Cristo mostra uma verdade fundamental: como humanos, na dor e a caminho da glória, estamos entre o que fomos e o que havemos de ser.

Como jornalista, esta passagem lembra-me a importância do que não se diz: Jesus completa a sua missão em silêncio. Aos discípulos, cabe a enorme tarefa de inventar palavras, de audácia e profecia. É preciso vislumbrá-las e acolhê-las, sem medo, para que nos devolvam sentidos perdidos nas agruras dos dias, nas pressas da vida, no que deixamos de ver e sentir, porque demasiado preocupados em sermos mercadoria de um sistema que só valoriza o que se pode comprar e vender.

Não somos seres de certezas. Convicções, talvez, fé para muitos, mas sempre em tensão. Aprendi com alguém que admiro muito que a verdade é um lugar do qual não podemos voltar os mesmos. Enquanto pessoas, nós habitamos a dúvida. E é através dela que vamos fazendo o nosso caminho ao encontro do que é Outro.

Procuramos sinais. Interpretá-los. Precisamos de humildade, porque eles não servem apenas para confirmar o que queremos; mais, muitas vezes, o que nos salva é a capacidade de entender quando esses mesmos sinais nos dizem o que não gostaríamos de ouvir.

A vida não é uma adivinhação, mas uma construção. O caminho que seguimos nem sempre é evidente e, por vezes, precisamos de uma luz, um gesto, um som que nos conforte nesta procura, de sentido e dos sentidos, para percebermos que podemos continuar. Elevados, acima do que vemos.

O monte da Ascensão é, acima de tudo, um horizonte de sentido. Outro tempo. E regresso ao início, à necessidade de ser mais do que comprar e produzir. De ser humano e aspirar às coisas do Alto. Alerto, a este respeito, para o crescimento do que se poderia denominar espiritualidade da produtividade – centrada na autoajuda e nos efeitos positivos do equilíbrio interior para o desempenho social – longe, diria, de uma libertação espiritual e de um caminho de fé.

É impossível não pensar no enorme desafio que é ascender, como Jesus, no tempo em que vivemos: os elementos que constituem a existência humana estão espalhados, a pessoa movimenta-se agora em vários círculos de relação (trabalho, família, paróquia, partido, clube, etc.) num ritmo intenso, à procura de sentido, de horizontes para a sua vida.

É um desafio que me toca, em particular neste Dia Mundial das Comunicações Sociais: ao estatuto do discurso que se dirige ao Transcendente, une-se a questão do estatuto do silêncio, elemento cada vez mais raro na sociedade em hipervelocidade. A intenção de mostrar a comunidade a partir da sua vivência de fé, nos diversos níveis, carrega também a oportunidade de desmistificar e remistificar, transpondo linguagem e categorias de pensamento da espiritualidade para outras áreas da sociedade. Mais alto. Mais longe.

O nosso caminhar pertence ao futuro, lá onde o tempo seja um abraço sem fim, não uma mera sucessão de momentos, com sentido de existência. Desconstruir e reconstruir, sem que o final seja o contrário do começo.


Maré Alta

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA O LVI DIA MUNDIAL DAS COMUNICAÇÕES SOCIAIS

Escutar com o ouvido do coração

Queridos irmãos e irmãs!

No ano passado, refletimos sobre a necessidade de «ir e ver» para descobrir a realidade e poder narrá-la a partir da experiência dos acontecimentos e do encontro com as pessoas. Continuando nesta linha, quero agora fixar a atenção noutro verbo, «escutar», que é decisivo na gramática da comunicação e condição para um autêntico diálogo.

Com efeito, estamos a perder a capacidade de ouvir a pessoa que temos à nossa frente, tanto na teia normal das relações quotidianas como nos debates sobre os assuntos mais importantes da convivência civil. Ao mesmo tempo, a escuta está a experimentar um novo e importante desenvolvimento em campo comunicativo e informativo, através das várias ofertas de podcast e chat audio, confirmando que a escuta continua essencial para a comunicação humana.

A um médico ilustre, habituado a cuidar das feridas da alma, foi-lhe perguntada qual era a maior necessidade dos seres humanos. Respondeu: «O desejo ilimitado de ser ouvidos». Apesar de frequentemente oculto, é um desejo que interpela toda a pessoa chamada a ser educadora, formadora, ou que desempenhe de algum modo o papel de comunicador: os pais e os professores, os pastores e os agentes pastorais, os operadores da informação e quantos prestam um serviço social ou político.

Escutar com o ouvido do coração

A partir das páginas bíblicas aprendemos que a escuta não significa apenas uma perceção acústica, mas está essencialmente ligada à relação dialogal entre Deus e a humanidade. O «shema’ Israel – escuta, Israel» (Dt 6, 4) – as palavras iniciais do primeiro mandamento do Decálogo – é continuamente lembrado na Bíblia, a ponto de São Paulo afirmar que «a fé vem da escuta» (Rm 10, 17). De facto, a iniciativa é de Deus, que nos fala, e a ela correspondemos escutando-O; e mesmo este escutar fundamentalmente provém da sua graça, como acontece com o recém-nascido que responde ao olhar e à voz da mãe e do pai. Entre os cinco sentidos, parece que Deus privilegie precisamente o ouvido, talvez por ser menos invasivo, mais discreto do que a vista, deixando consequentemente mais livre o ser humano.

A escuta corresponde ao estilo humilde de Deus. Ela permite a Deus revelar-Se como Aquele que, falando, cria o homem à sua imagem e, ouvindo-o, reconhece-o como seu interlocutor. Deus ama o homem: por isso lhe dirige a Palavra, por isso «inclina o ouvido» para o escutar.

O homem, ao contrário, tende a fugir da relação, a virar as costas e «fechar os ouvidos» para não ter de escutar. Esta recusa de ouvir acaba muitas vezes por se transformar em agressividade sobre o outro, como aconteceu com os ouvintes do diácono Estêvão que, tapando os ouvidos, atiraram-se todos juntos contra ele (cf. At 7, 57).

Assim temos, por um lado, Deus que sempre Se revela comunicando-Se livremente, e, por outro, o homem, a quem é pedido para sintonizar-se, colocar-se à escuta. O Senhor chama explicitamente o homem a uma aliança de amor, para que possa tornar-se plenamente aquilo que é: imagem e semelhança de Deus na sua capacidade de ouvir, acolher, dar espaço ao outro. No fundo, a escuta é uma dimensão do amor.

Por isso Jesus convida os seus discípulos a verificar a qualidade da sua escuta. «Vede, pois, como ouvis» (Lc 8, 18): faz-lhes esta exortação depois de ter contado a parábola do semeador, sugerindo assim que não basta ouvir, é preciso fazê-lo bem. Só quem acolhe a Palavra com o coração «bom e virtuoso» e A guarda fielmente é que produz frutos de vida e salvação (cf. Lc 8, 15). Só prestando atenção a quem ouvimos, àquilo que ouvimos e ao modo como ouvimos é que podemos crescer na arte de comunicar, cujo cerne não é uma teoria nem uma técnica, mas a «capacidade do coração que torna possível a proximidade» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 171).

Ouvidos, temo-los todos; mas muitas vezes mesmo quem possui um ouvido perfeito, não consegue escutar o outro. Pois existe uma surdez interior, pior do que a física. De facto, a escuta não tem a ver apenas com o sentido do ouvido, mas com a pessoa toda. A verdadeira sede da escuta é o coração. O rei Salomão, apesar de ainda muito jovem, demonstrou-se sábio ao pedir ao Senhor que lhe concedesse «um coração que escuta» ( 1 Rs 3, 9). E Santo Agostinho convidava a escutar com o coração (corde audire), a acolher as palavras, não exteriormente nos ouvidos, mas espiritualmente nos corações: «Não tenhais o coração nos ouvidos, mas os ouvidos no coração» [1]. E São Francisco de Assis exortava os seus irmãos a «inclinar o ouvido do coração» [2].

Por isso, a primeira escuta a reaver quando se procura uma comunicação verdadeira é a escuta de si mesmo, das próprias exigências mais autênticas, inscritas no íntimo de cada pessoa. E não se pode recomeçar senão escutando aquilo que nos torna únicos na criação: o desejo de estar em relação com os outros e com o Outro. Não fomos feitos para viver como átomos, mas juntos.

A escuta como condição da boa comunicação

Há um uso do ouvido que não é verdadeira escuta, mas o contrário: o espionar. De facto, uma tentação sempre presente, mas que neste tempo da social web parece mais assanhada, é a de procurar saber e espiar, instrumentalizando os outros para os nossos interesses. Ao contrário, aquilo que torna boa e plenamente humana a comunicação é precisamente a escuta de quem está à nossa frente, face a face, a escuta do outro abeirando-nos dele com abertura leal, confiante e honesta.

Esta falta de escuta, que tantas vezes experimentamos na vida quotidiana, é real também, infelizmente, na vida pública, onde com frequência, em vez de escutar, «se fala pelos cotovelos». Isto é sintoma de que se procura mais o consenso do que a verdade e o bem; presta-se mais atenção à audience do que à escuta. Ao invés, a boa comunicação não procura prender a atenção do público com a piada foleira visando ridicularizar o interlocutor, mas presta atenção às razões do outro e procura fazer compreender a complexidade da realidade. É triste quando surgem, mesmo na Igreja, partidos ideológicos, desaparecendo a escuta para dar lugar a estéreis contraposições.

Na realidade, em muitos diálogos, efetivamente não comunicamos; estamos simplesmente à espera que o outro acabe de falar para impor o nosso ponto de vista. Nestas situações, como observa o filósofo Abraham Kaplan [3], o diálogo não passa de duólogo, ou seja um monólogo a duas vozes. Ao contrário, na verdadeira comunicação, o eu e o tu encontram-se ambos «em saída», tendendo um para o outro.

Portanto, a escuta é o primeiro e indispensável ingrediente do diálogo e da boa comunicação. Não se comunica se primeiro não se escutou, nem se faz bom jornalismo sem a capacidade de escutar. Para fornecer uma informação sólida, equilibrada e completa, é necessário ter escutado prolongadamente. Para narrar um acontecimento ou descrever uma realidade numa reportagem, é essencial ter sabido escutar, prontos mesmo a mudar de ideia, a modificar as próprias hipóteses iniciais.

Com efeito, só se sairmos do monólogo é que se pode chegar àquela concordância de vozes que é garantia duma verdadeira comunicação. Ouvir várias fontes, «não parar na primeira locanda» – como ensinam os especialistas do oficio – garante credibilidade e seriedade à informação que transmitimos. Escutar várias vozes, ouvir-se – inclusive na Igreja – entre irmãos e irmãs, permite-nos exercitar a arte do discernimento, que se apresenta sempre como a capacidade de se orientar numa sinfonia de vozes.

Entretanto para quê enfrentar este esforço da escuta? Um grande diplomata da Santa Sé, o cardeal Agostinho Casaroli, falava de «martírio da paciência», necessário para escutar e fazer-se escutar nas negociações com os interlocutores mais difíceis a fim de se obter o maior bem possível em condições de liberdade limitada. Mas, mesmo em situações menos difíceis, a escuta requer sempre a virtude da paciência, juntamente com a capacidade de se deixar surpreender pela verdade – mesmo que fosse apenas um fragmento de verdade – na pessoa que estamos a escutar. Só o espanto permite o conhecimento. Penso na curiosidade infinita da criança que olha para o mundo em redor com os olhos arregalados. Escutar com este estado de espírito – o espanto da criança na consciência dum adulto – é sempre um enriquecimento, pois haverá sempre qualquer coisa, por mínima que seja, que poderei aprender do outro e fazer frutificar na minha vida.

A capacidade de escutar a sociedade é ainda mais preciosa neste tempo ferido pela longa pandemia. A grande desconfiança que anteriormente se foi acumulando relativamente à «informação oficial», causou também uma espécie de «info-demia» dentro da qual é cada vez mais difícil tornar credível e transparente o mundo da informação. É preciso inclinar o ouvido e escutar em profundidade, sobretudo o mal-estar social agravado pelo abrandamento ou cessação de muitas atividades económicas.

A própria realidade das migrações forçadas é uma problemática complexa, e ninguém tem pronta a receita para a resolver. Repito que, para superar os preconceitos acerca dos migrantes e amolecer a dureza dos nossos corações, seria preciso tentar ouvir as suas histórias. Dar um nome e uma história a cada um deles. Há muitos bons jornalistas que já o fazem; e muitos outros gostariam de o fazer, se pudessem. Encorajemo-los! Escutemos estas histórias! Depois cada qual será livre para sustentar as políticas de migração que considerar mais apropriadas para o próprio país. Mas então teremos diante dos olhos, não números nem invasores perigosos, mas rostos e histórias de pessoas concretas, olhares, expetativas, sofrimentos de homens e mulheres para ouvir.

Escutar-se na Igreja

Também na Igreja há grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. É o dom mais precioso e profícuo que podemos oferecer uns aos outros. Nós, cristãos, esquecemo-nos de que o serviço da escuta nos foi confiado por Aquele que é o ouvinte por excelência e em cuja obra somos chamados a participar. «Devemos escutar através do ouvido de Deus, se queremos poder falar através da sua Palavra» [4]. Assim nos lembra o teólogo protestante Dietrich Bonhöffer que o primeiro serviço na comunhão que devemos aos outros é prestar-lhes ouvidos. Quem não sabe escutar o irmão, bem depressa deixará de ser capaz de escutar o próprio Deus [5].

Na ação pastoral, a obra mais importante é o «apostolado do ouvido». Devemos escutar, antes de falar, como exorta o apóstolo Tiago: «cada um seja pronto para ouvir, lento para falar» (1, 19). Oferecer gratuitamente um pouco do próprio tempo para escutar as pessoas é o primeiro gesto de caridade.

Recentemente deu-se início a um processo sinodal. Rezemos para que seja uma grande ocasião de escuta recíproca. Com efeito, a comunhão não é o resultado de estratégias e programas, mas edifica-se na escuta mútua entre irmãos e irmãs. Como num coro, a unidade requer, não a uniformidade, a monotonia, mas a pluralidade e variedade das vozes, a polifonia. Ao mesmo tempo, cada voz do coro canta escutando as outras vozes na sua relação com a harmonia do conjunto. Esta harmonia é concebida pelo compositor, mas a sua realização depende da sinfonia de todas e cada uma das vozes.

Cientes de participar numa comunhão que nos precede e inclui, possamos descobrir uma Igreja sinfónica, na qual cada um é capaz de cantar com a própria voz, acolhendo como dom as dos outros, para manifestar a harmonia do conjunto que o Espírito Santo compõe.

Roma, São João de Latrão, na Memória de São Francisco de Sales, 24 de janeiro de 2022.

Francisco

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[1] «Nolite habere cor in auribus, sed aures in corde» ( Sermo 380, 1: Nova Biblioteca Agostiniana 34, 568).
[2] Carta à Ordem inteira: Fontes Franciscanas, 216.
[3] Cf. «The life of dialogue» , in J. D. Roslansky (ed.), Communication. A discussion at the Nobel Conference (North-Holland Publishing Company – Amesterdão 1969), 89-108.
[4] D. Bonhöfffer, La vita comune (Queriniana – Bréscia 2017), 76.
[5] Cf. ibid., 75.


Maré Alta

Como conheci Carlos de Foucauld — a importância das mediações

José Manuel Pereira de Almeida | 12 Mai 2022 | in 7 Margens

Conheci Carlos de Foucauld há muitos anos. Mas ainda me falta muito para o conhecer bem. Até porque ele realizou um itinerário pessoal complexo, a sua vida foi vivida como uma aventura.

Quando na pré-JEC, aluno do 1.º ano do Liceu Camões (correspondente ao atual 5.º ano; o professor de moral era o P. Luís Mafra), fui, com a equipa, fazer uma visita ao Bairro da Curraleira, em Lisboa, encontrei-o na Fraternidade das Irmãzinhas de Jesus. Para fazer a referência a uma delas, cito a Ivete: fazia tantos anos em Portugal (tinha chegado em 1952) quantos eu de vida.

Na minha “Missa-nova” na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Olivais Sul, lembro-me da presença de várias irmãzinhas, e lembro-me que a Susana propôs uma das intenções da Oração dos Fiéis (recordo, a propósito, que outras foram propostas por Alfredo Bruto da Costa e por Manuela Silva). O meu primeiro ano de serviço presbiteral foi vivido na comunidade do Prior Velho onde estava uma (então) recente Fraternidade das Irmãzinhas de Jesus. Foi lá que reencontrei a Ivete e a Susana; e onde conheci a Mónica, com quem continuo uma relação de amizade e de acompanhamento, agora mais por mails e por mensagens no WhatsApp… Durante todo esse ano fui conhecendo melhor Carlos de Foucauld. Na realidade quotidiana, no diálogo com os pobres, no sonho, na esperança, num certo estilo de vida.

Quando fui para Roma – onde durante quatro anos estudei teologia moral – passava um fim-de-semana por mês em Tre Fontane (casa geral das Irmãzinhas de Jesus) para um dia de deserto no sábado e para a Missa do Domingo, à qual se seguia o almoço fraterno. Foi no primeiro ano que encontrei Jean-François Six, autor de um livrinho comprado na Livraria Moraes e lido na juventude, o Itinerário espiritual de Carlos de Foucauld. Noutro dos muitos livros deste autor (As Bem-aventuranças hoje) tinha tomado conhecimento da existência actual da União, a única proposta feita por Carlos de Foucauld para todos os baptizados – leigos, padres e religiosos –, da qual ele foi membro até à morte, convidando cada um(a) a tornar-se, no seu quotidiano, um “missionário isolado”, um “desbravador evangélico”. Foi assim que de Carlos de Foucauld, padre secular da Diocese de Viviers, por mediação de Jean-François Six, me chegou este convite.

Pouco depois, Magdeleine de Jésus, fundadora das Irmãzinhas de Jesus, dizia-me no final de uma dessas Missas de Domingo em Tre Fontane: “Somos da mesma família!”

A emblemática Fraternidade da Curraleira

Depois de 1991, regressando a Lisboa para a Pastoral Universitária, como assistente do MCE e capelão da Capela do Rato, colaborei na iniciativa de encontros de verão na Fraternidade de Fátima. As irmãzinhas de Jesus e os irmãozinhos de Jesus que, em Portugal, estão presentes em Setúbal nas pessoas do Luís e do Henrique (com quem me tinha encontrado em Beni Abbès anos antes num retiro com René Voillaume, fundador dos Irmãozinhos de Jesus, e a Irmãzinha Jeane, uma das primeiras irmãzinhas, companheira de toda a vida da Irmãzinha Magdeleine), associavam-se, para estes encontros, com o casal Lena e Tó Bento, que faziam o acompanhamento pastoral da Comunidade Cristã do Prior Velho, e comigo. O dinamismo das Irmãzinhas Casimira, Prazeres e Glória fazia quase tudo; o resto era dado pelo saber de artesanato da Céu, pela frescura da Cecília (o que ela gostava de anedotas!), da Esmeralda (na altura, a mais nova), da Viviana (que tinha feito de S. Romão, na Serra da Estrela, a sua segunda terra) e da Clara, quando vinha da Suíça. Por lá passaram muitos jovens ao longo daquela década. A minha (a nossa) esperança era e é de que esse tempo de vida simples, de reflexão, de oração e de trabalho manual tenham possibilitado a cada um, a cada uma, fazer uma bela e significativa experiência de encontro com Jesus, à maneira de Carlos de Foucauld. Também aqui, a importância da mediação.

Em cada ano em Fátima ou em Chelas (com a conhecida insistência da Irmãzinha Aida Maria, que eu tinha conhecido na Fraternidade da Rua do Sol; nesses tempos, a Fraternidade Secular e a Fraternidade Sacerdotal tinham, parece-me, um maior dinamismo entre nós) se celebrava o 1º de dezembro. Ao recordar fraternidades hoje desaparecidas – até porque as realidades onde elas se inseriam também desapareceram – não posso deixar de referir uma particularmente emblemática em Lisboa: a da Curraleira (bairro de lata) com a não menos emblemática presença da Irmãzinha Montserrat. Essa casa foi habitada depois pelo Edgar Silva, quando era assistente nacional do MCE.

Com as Irmãzinhas e por sua iniciativa celebrámos na Sé Patriarcal, com o Cardeal Policarpo, a Missa de ação de graças pela beatificação de Carlos de Foucauld.

Mais tarde, chegou de Roma, depois de muito tempo em África, a Maria de Montserrat (uma catalã independentista) para se juntar à fraternidade da Quinta da Fonte, na Apelação, onde se encontrava a Maria do Carmo.

E este ano, se Deus quiser, além dos dois livros publicados em português, um das Paulinas, outro da Paulus, uma Missa de ação de graças pela canonização de Carlos de Foucauld há-de ser celebrada também no 1º de dezembro em Fátima, se os esforços da Irmãzinha Maria de Fátima forem coroados de êxito.


Maré Alta

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
PARA O II DIA MUNDIAL DOS AVÓS E DOS IDOSOS

(XVII domingo do Tempo Comum – 24 de julho de 2022)

“Dão fruto mesmo na velhice” (Sl 92, 15)

Caríssima, caríssimo!

O versículo 15 do Salmo 92 – «dão fruto mesmo na velhice » – é uma boa notícia, um verdadeiro «evangelho» que podemos, por ocasião do II Dia Mundial dos Avós e Idosos, anunciar ao mundo. O mesmo vai contracorrente relativamente àquilo que o mundo pensa desta idade da vida e também ao comportamento resignado de alguns de nós, idosos, que caminhamos com pouca esperança e sem nada mais esperar do futuro.

Muitas pessoas têm medo da velhice. Consideram-na uma espécie de doença, com a qual é melhor evitar qualquer tipo de contacto: os idosos não nos dizem respeito – pensam elas – e é conveniente que estejam o mais longe possível, talvez juntos uns com os outros, em estruturas que cuidem deles e nos livrem da obrigação de nos ocuparmos das suas penas. É a «cultura do descarte»: aquela mentalidade que, enquanto nos faz sentir diversos dos mais frágeis e alheios à sua fragilidade, permite-nos imaginar caminhos separados entre «nós» e «eles». Mas, na realidade, uma vida longa – ensina a Sagrada Escritura – é uma bênção, e os idosos não são proscritos de quem se deve estar à larga, mas sinais vivos da benevolência de Deus que efunde a vida em abundância. Bendita a casa que guarda um ancião! Bendita a família que honra os seus avós!

Com efeito, a velhice constitui uma estação que não é fácil de entender, mesmo para nós que já a vivemos. Embora chegue depois dum longo caminho, ninguém nos preparou para a enfrentar; parece quase apanhar-nos de surpresa. As sociedades mais desenvolvidas gastam muito para esta idade da vida, mas não ajudam a interpretá-la: proporcionam planos de assistência, mas não projetos de existência[1]. Por isso é difícil olhar para o futuro e individuar um horizonte para onde tender. Por um lado, somos tentados a exorcizar a velhice, escondendo as rugas e fingindo ser sempre jovens, por outro parece que nada mais se possa fazer senão viver desiludidos, resignados a não ter mais «frutos para dar».

O fim da atividade laboral e os filhos já autónomos fazem esmorecer os motivos pelos quais gastamos muitas das nossas energias. A consciência de que as forças declinam ou o aparecimento duma doença podem pôr em crise as nossas certezas. O mundo – com os seus ritmos acelerados, que sentimos dificuldade em acompanhar – parece não nos deixar alternativa, levando-nos a interiorizar a ideia do descarte. Assim se eleva para o céu esta súplica do Salmo: «Não me rejeites no tempo da velhice; não me abandones, quando já não tiver forças» (71, 9).

Mas o mesmo Salmo, que repassa a presença do Senhor nas diversas estações da existência, convida-nos a continuar a esperar: chegada a velhice e os cabelos brancos, o Senhor continuará a dar-nos a vida e não deixará que sejamos oprimidos pelo mal. Confiando n’Ele, encontraremos a força para multiplicar o louvor (cf. Sal 71, 14-20) e descobriremos que envelhecer não é apenas a deterioração natural do corpo ou a passagem inevitável do tempo, mas também o dom duma vida longa. Envelhecer não é uma condenação, mas uma bênção!

Por isso, devemos vigiar sobre nós mesmos e aprender a viver uma velhice ativa, inclusive do ponto de vista espiritual, cultivando a nossa vida interior através da leitura assídua da Palavra de Deus, da oração diária, do recurso habitual aos Sacramentos e da participação na Liturgia. E, a par da relação com Deus, cultivemos as relações com os outros: antes de mais nada, com a família, os filhos, os netos, a quem havemos de oferecer o nosso afeto cheio de solicitude; bem como as pessoas pobres e atribuladas, das quais nos façamos próximo com a ajuda concreta e a oração. Tudo isto ajudará a não nos sentirmos meros espetadores no teatro do mundo, não nos limitarmos a olhar da sacada, a ficar à janela. Ao contrário, apurando os nossos sentidos para reconhecerem a presença do Senhor,[2]. seremos como uma «oliveira verdejante na casa de Deus» (Sal 52, 10), poderemos ser uma bênção para quem vive junto de nós.

A velhice não é um tempo inútil, no qual a pessoa deva pôr-se de lado recolhendo os remos para dentro do barco, mas uma estação para continuar a dar fruto: há uma nova missão, que nos espera, convidando-nos a voltar os olhos para o futuro. «A nossa sensibilidade especial de idosos, da idade anciã às atenções, pensamentos e afetos que nos tornam humanos deve voltar a ser uma vocação para muitos. E será uma escolha de amor dos idosos para com as novas gerações»[3]. É o nosso contributo para a revolução da ternura [4], uma revolução espiritual e desarmada da qual vos convido, queridos avós e idosos, a fazer-vos protagonistas.

O mundo vive um período de dura provação, marcado primeiro pela tempestade inesperada e furiosa da pandemia, depois por uma guerra que fere a paz e o desenvolvimento à escala mundial. Não é por acaso que a guerra tenha voltado à Europa no momento em que está a desaparecer a geração que a viveu no século passado. E estas grandes crises correm o risco de nos tornar insensíveis ao facto de que existem outras «epidemias» e outras formas generalizadas de violência que ameaçam a família humana e a nossa casa comum.

Perante tudo isto, temos necessidade duma mudança profunda, duma conversão, que desmilitarize os corações, permitindo a cada um reconhecer no outro um irmão. E nós, avós e idosos, temos uma grande responsabilidade: ensinar às mulheres e aos homens do nosso tempo a contemplar os outros com o mesmo olhar compreensivo e terno que temos para com os nossos netos. Aprimoramos a nossa humanidade ao cuidar do próximo e, hoje, podemos ser mestres dum modo de viver pacífico e atento aos mais frágeis. A nossa atitude poderá, talvez, ser confundida com fraqueza ou servilismo, mas serão os mansos – não os agressivos e prevaricadores – que herdarão a terra (cf. Mt 5, 5).

Um dos frutos que somos chamados a produzir é o de guardar o mundo. «Todos nos sentamos nos joelhos dos avós, que nos tiveram ao colo»[5]; mas hoje é o momento de colocar sobre os nossos joelhos – com a ajuda concreta ou mesmo só com a oração –, juntamente com os nossos netos, muitos outros assustados que ainda não conhecemos e que talvez fujam da guerra ou sofram por causa dela. Guardemos no nosso coração – como fazia São José, pai terno e solícito – os pequeninos da Ucrânia, do Afeganistão, do Sudão do Sul...

Muitos de nós maturaram uma consciência sábia e humilde, de que o mundo tanto precisa: não nos salvamos sozinhos, a felicidade é um pão que se come juntos. Testemunhemo-lo àqueles que se iludem de encontrar realização pessoal e sucesso na contraposição. Todos o podem fazer, mesmo os mais frágeis: até mesmo o deixarmo-nos cuidar – muitas vezes por pessoas que provêm doutros países – é uma maneira de dizer que é não só possível mas também necessário vivermos juntos.

Neste nosso mundo, queridas avós e queridos avôs, queridas idosas e queridos idosos, estamos chamados a ser artífices da revolução da ternura! Façamo-lo aprendendo a usar cada vez mais e melhor o instrumento mais precioso e apropriado que temos para a nossa idade: a oração. «Tornemo-nos, também nós, um pouco poetas da oração: adquiramos o gosto de procurar palavras que nos são próprias, voltando a apoderar-nos daquelas que a Palavra de Deus nos ensina» [6]. A nossa imploração confiante pode fazer muito: é capaz de acompanhar o grito de dor de quem sofre e pode contribuir para mudar os corações. Podemos ser «o “grupo coral” permanente dum grande santuário espiritual, onde a oração de súplica e o canto de louvor sustentam a comunidade que trabalha e luta no campo da vida» [7].

Deste modo o Dia Mundial dos Avós e Idosos é uma oportunidade para dizer mais uma vez, com alegria, que a Igreja quer fazer festa juntamente com aqueles que o Senhor – como diz a Bíblia – «saciou com longos dias» (Sal 91, 16). Celebremo-la juntos! Convido-vos a anunciar este Dia nas vossas paróquias e comunidades, a visitar os idosos mais abandonados, em casa ou nas residências onde estão hospedados. Procuremos que ninguém viva este dia na solidão. Ter alguém para cuidar pode mudar a orientação dos dias de quem já não espera nada de bom do futuro; e dum primeiro encontro pode nascer uma nova amizade. A visita aos idosos abandonados é uma obra de misericórdia do nosso tempo!

Peçamos a Nossa Senhora, Mãe da Ternura, que faça de todos nós dignos artífices da revolução da ternura para, juntos, libertarmos o mundo da sombra da solidão e do demónio da guerra.

A todos vós e aos vossos entes queridos, chegue a minha Bênção, com a certeza da minha afetuosa proximidade. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim!

Roma, São João de Latrão, na festa dos Santos Apóstolos Filipe e Tiago, 3 de maio de 2022.

[1] Cf. Francisco, Catequese sobre a velhice: 1. A graça do tempo e a aliança das idades da vida (23 de fevereiro de 2022).
[2] Cf. Francisco, Catequese sobre a velhice: 5. Fidelidade à visita de Deus para a geração seguinte (30 de março de 2022).
[3] Francisco, Catequese sobre a Velhice: 3. A velhice, recurso para a juventude incauta (16 de março de 2022).
[4] Cf. Francisco, Catequese sobre São José: 8. São José, pai na ternura (19 de janeiro de 2022).
[5] Francisco, Homilia na Missa do I Dia Mundial dos Avós e Idosos (25 de julho de 2021).
[6] Francisco, Catequese sobre a família: 7. Os avós (11 de março de 2015).
[7] Ibidem.


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

REGINA CAELI

Praça São Pedro
Domingo, 1° de maio de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom domingo!

O Evangelho da Liturgia hodierna (Jo 21, 1-19) narra a terceira aparição de Jesus Ressuscitado aos Apóstolos. É um encontro que tem lugar no lago da Galileia e diz respeito sobretudo a Simão Pedro. Tudo começa com ele que diz aos outros discípulos: «Vou pescar» (v. 3). Nada de estranho, era pescador, mas tinha abandonado aquela profissão desde quando, precisamente nas margens do lago, tinha deixado as redes para seguir Jesus. E agora, enquanto o Ressuscitado se faz esperar, Pedro, talvez um pouco desanimado, propõe aos outros o regresso à vida anterior. E os outros aceitam: «Também nós vamos contigo». Mas, «Naquela noite nada apanharam» (v. 3).

Também nos pode acontecer, por cansaço, desilusão, talvez por preguiça, de esquecer o Senhor e negligenciar as grandes escolhas que fizemos, contentarmo-nos com qualquer outra coisa. Por exemplo, não dedicamos tempo a falar uns com os outros em família, preferindo passatempos pessoais; esquecemos a oração, deixando-nos levar pelas próprias necessidades; negligenciamos a caridade, com a desculpa das urgências diárias. Mas, fazendo assim, ficamos desapontados: foi precisamente a deceção que sentiu Pedro, com as redes vazias, como ele. É uma estrada que te leva para trás e não te satisfaz.

E o que faz Jesus com Pedro? Volta novamente para a margem do lago onde tinha escolhido Pedro, André, Tiago e João, os quatro. Ele não repreende – Jesus não repreende, toca o coração, sempre – mas chama ternamente os discípulos: «Amigos» (v. 5). Depois convida-os, como antes, a lançarem de novo as redes, com coragem. E mais uma vez as redes se enchem até transbordar. Irmãos e irmãs, quando as nossas redes estão vazias na vida, não é o momento de sentir pena de nós mesmos, de nos divertirmos, de regressar aos velhos passatempos. É tempo de recomeçar com Jesus, é tempo de encontrar a coragem para recomeçar, é tempo de se fazer ao largo com Jesus. Três verbos: repartir, recomeçar, fazer-se ao largo. Sempre, perante uma desilusão, ou uma vida que perdeu um pouco o sentido – “hoje sinto que voltei atrás...” – parte de novo com Jesus, recomeça, faz-te ao largo! Ele está à tua espera. E pensa apenas em ti, em mim, em cada um de nós.

Pedro precisava daquele “choque”. Quando ouve João clamar: «É o Senhor!» (v. 7), mergulha imediatamente na água e vai em direção a Jesus. É um gesto de amor, porque o amor vai além do útil, do conveniente e do devido; o amor gera espanto, inspira impulsos criativos e gratuitos. Assim, enquanto João, o mais novo, reconhece o Senhor, é Pedro, o mais velho, que se lança para ir ao seu encontro. Naquele mergulho há todo o entusiasmo recém-descoberto de Simão Pedro.

Prezados irmãos e irmãs, hoje Cristo Ressuscitado convida-nos a um novo impulso, todos nós, cada um de nós, convida-nos a mergulhar no bem sem medo de perder algo, sem calcular demasiado, sem esperar que outros comecem. Porquê? Não esperar os outros, porque para conhecer Jesus tem é preciso arriscar. É preciso arriscar com coragem, e recomeçar, e recomeçar arriscando, correr riscos. Perguntemo-nos: sou capaz de algum ímpeto de generosidade, ou impeço os impulsos do coração e fecho-me no hábito, ou no medo? Lançar-se, mergulhar. Esta é a palavra de Jesus hoje.

Então, no final deste episódio, Jesus dirige a Pedro, três vezes, a pergunta: «Amas-me?» (vv. 15.16). O Ressuscitado pergunta hoje também a nós: Amas-me? Porque na Páscoa Jesus quer que o nosso coração ressuscite; porque a fé não é uma questão de conhecimento, mas de amor. Amas-me? pergunta Jesus a ti, a mim, a todos nós, que temos as redes vazias e muitas vezes temos medo de recomeçar; a ti, a mim, a todos nós, que não temos coragem de mergulhar e talvez tenhamos perdido o impulso. Amas-me? pergunta Jesus. A partir de então, Pedro deixou de pescar para sempre e dedicou-se ao serviço de Deus e dos irmãos, a ponto de dar a vida aqui, onde nos encontramos agora. E nós, queremos amar Jesus?

Que Nossa Senhora, que prontamente disse “sim” ao Senhor, nos ajude a redescobrir o impulso do bem.


Depois do Regina Caeli

Prezados irmãos e irmãs!

Ontem, em Milão, foram beatificados o padre Mario Ciceri e Armida Barelli. O primeiro foi um vice-pároco da zona rural; dedicou-se à oração e à confissão, visitou os doentes e acompanhava os jovens no oratório, como educador manso e guia seguro. Um exemplo brilhante de pastor. Armida Barelli foi a fundadora e animadora da Juventude Feminina da Ação Católica. Viajou por toda a Itália para chamar as jovens ao compromisso eclesial e civil. Colaborou com o padre Gemelli na criação de um instituto secular feminino e da Universidade Católica do Sagrado Coração, que celebra hoje o seu dia anual e em sua honra intitulou-o “Com coração de mulher”. Um aplauso aos novos Beatos!

Hoje começa o mês dedicado à Mãe de Deus. Gostaria de convidar todos os fiéis e comunidades a rezar o Terço pela paz todos os dias de maio. O meu pensamento dirige-se imediatamente à cidade ucraniana de Mariupol, “cidade de Maria”, barbaramente bombardeada e destruída. Também agora, a partir daqui, renovo o apelo à criação de corredores humanitários seguros para as pessoas presas na siderurgia daquela cidade. Eu sofro e choro, pensando no sofrimento do povo ucraniano e em particular dos mais débeis, dos idosos e das crianças. Chegam relatos terríveis de crianças expulsas e deportadas.

E enquanto assistimos a uma regressão macabra da humanidade, pergunto-me, juntamente com tantas pessoas angustiadas, se estamos realmente à procura da paz; se existe a vontade de evitar uma contínua escalation militar e verbal; se estamos a fazer tudo o que é possível para silenciar as armas. Peço-vos, não nos arrendamos à lógica da violência, à espiral perversa das armas. Tomemos o caminho do diálogo e da paz! Rezemos.

E hoje é a festa do trabalho. Que seja um incentivo à renovação do nosso compromisso para que o trabalho possa ser digno em toda a parte e para todos. E que o mundo do trabalho inspire a vontade de desenvolver uma economia de paz. Gostaria de recordar os operários que morreram no trabalho: uma tragédia difundida, talvez demasiado.

Depois de amanhã, 3 de maio, é o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, patrocinado pela UNESCO. Presto homenagem aos jornalistas que pagam pessoalmente para servir este direito. No ano passado, 47 morreram e mais de 350 foram presos em todo o mundo. Um agradecimento especial àqueles que corajosamente nos informam sobre os flagelos da humanidade.
(…)
Feliz domingo a todos! E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista.


Maré Alta

O sexo e o centro da moralidade cristã

Inês Teotónio Pereira | in Ponto SJ | 18 Abril 2022

Sabemos mais sobre a moral sexual do que sobre as obras de misericórdia, ou até quantas e quais são. Cristãos e não cristãos têm todos qualquer coisa importante a dizer sobre o dilema dos divorciados e das pessoas que vivem em uniões de facto, sobre o seu lugar no seio da Igreja e sobre o acesso aos sacramentos – se têm ou não esse direito. Muitos têm opiniões construídas e elaboradas sobre o modo de vida dos outros, assim como tinham as alcoviteiras das aldeias de antigamente, lendo-lhes a alma e julgando os seus pecados – como se fosse possível julgar pecados. Na mesma linha de sabedoria popular, também são raros os católicos que não tenham discutido algures no tempo e à mesa de um bar qualquer, quase sempre aos gritos – porque da moral trata-se aos gritos -, as razões filosóficas ou só porque sim, da castidade no namoro, da homossexualidade ou dos diversos “tipos” de infidelidade. Como encaixar tudo isto no Cristianismo? Foram jantaradas regadas destes assuntos. E os preservativos: lembram-se quando o debate público sobre a cristandade se resumia ao uso dos preservativos e ao que a Igreja tinha a dizer sobre o assunto?

Escreveu CS Lewis há décadas: “Dizem que o sexo se tornou um problema grave porque não se falava sobre o assunto. Nos últimos anos não foi isso que aconteceu. Todos os dias se fala sobre o assunto e continua a ser um problema. Se o silêncio fosse a causa do problema, a conversa seria a sua solução. Mas não foi. Acho que é exactamente o contrário”. Depois de dedicar ao tema um capítulo do livro, Mere Christianity – livro este baseado num programa de rádio transmitido durante a II Guerra Mundial e que devia ser de leitura obrigatória a todos os cristãos -, CS Lewis acaba assim a sua reflexão simples e resumida: “Apesar de eu ter falado bastante a respeito de sexo, quero deixar tão claro quanto possível que o centro da moralidade cristã não está aí. (…) Existem duas coisas dentro de um ser humano que competem entre si para fazerem com que a pessoa se torne predominantemente numa delas: a parte animal e a diabólica. A diabólica é a pior das duas. E é por isso que um moralista frio e pretensiosamente virtuoso, que vai regularmente à Igreja, pode estar bem mais perto do Inferno do que uma prostituta. É claro, porém, que é melhor não ser nenhum dos dois”.

Lemos as Escrituras e aprendemos que Jesus preocupou-se pouco ou nada com quem dormia com quem. Preocupou-se antes de tudo, com todo o vigor e de todas as formas possíveis, em nos mostrar através de parábolas, episódios concretos e dando exemplos simples, que não devemos, não precisamos, nem temos de julgar o comportamento moral ou ético uns aos outros. Jesus veio libertar-nos desse fardo, dessa tarefa do julgamento, que obviamente não é humana e que a História e outras culturas e religiões nos têm mostrado o quão desumana pode ser. Para julgar o que quer que se seja – que não pertença ao âmbito da justiça de César – está cá Ele. A nós, assiste-nos a simples tarefa de acolher e respeitar. Amar o próximo.

A moral sexual. A preparação do Sínodo, em que pela primeira vez todos os batizados podem e devem participar, vai certamente revelar aos Bispos que um dos grandes fossos que separa os jovens da Igreja, a educação cristã da educação que os pais e as comunidades dão aos seus filhos, é a moral sexual. Aquilo que tanto baralha os jovens casais, os nossos filhos, são as diferentes propostas, os diferentes mundos por onde andam e com quem convivem. Os nossos noivos vivem quase todos em união de facto, os namorados não são castos, a homossexualidade não é tabu e em cada ano que passa há mais divórcios que casamentos.

Como conciliar tudo isto como a vida das paróquias, dentro dos movimentos ou nas comunidades cristãs. Como podem sentir-se os nossos filhos e jovens parte da Igreja quando lhes dizem que vivem em pecado, que a Igreja é para os puros e quando a maioria nem faz ideia o significado do pecado e do arrependimento, da castidade como virtude cristã, ou da diferença entre uma proposta feita pela Igreja e de uma condição para pertencer à Igreja? Num mundo em que a sexualidade é uma banalidade cedo demais, em que a complexidade desta dimensão na vida dos jovens os torna vulneráveis, sem critério e desorientados, a existência da dimensão espiritual no seu crescimento é uma urgência. E o Cristianismo, mais do que nunca, é a resposta. Só precisamos de saber acolher em vez de escolher.

A gravidade de tudo isto, deste fosso, não é fundamentalmente para a Igreja em si, enquanto instituição, e para a sua crise de fiéis – como se de uma crise de sócios ou de militantes se tratasse – , mas sim, para os jovens. Os jovens, ao afastarem-se da Igreja passam a ter de enfrentar este mundo complexo sozinhos, sem Deus, apenas e só porque na sua inocente ignorância não se acham dignos de entrarem numa Igreja. Sim, os nossos Bispos têm uma gigantesca tarefa pela frente.

Jesus estava a desenhar no chão, continuava pacientemente à espera que aqueles homens decidissem o que fazer com a mulher apanhada em adultério: se a matavam pelo seu comportamento imoral ou se a deixavam viver. Só lhes fez uma pergunta e deixou-os com as suas consciências. Até que um a um acabaram por deixar cair as pedras.

São 14, as Obras de Misericórdia: sete espirituais e sete corporais. Se cada cristão soubesse e praticasse metade delas todos os dias, mais acolhíamos e menos excluíamos.


Maré Alta

A SUA IMMAGINE
RAIUNO

“A ESPERANÇA SOB ASSÉDIO”

O PAPA FRANCISCO EM CONVERSA COM LORENA BIANCHETTI

(Especial da Sexta-Feira Santa)

Lorena Bianchetti: Santidade, antes de mais nada obrigada, pois estou aqui em nome de todas as pessoas que neste momento vivem estados de espírito complexos: de perplexidade, de angústia, de medo, de sofrimento. Começo mencionando uma hora: três horas, três horas da tarde. Jesus morre na cruz e morre inocente. Há tantas pessoas inocentes que não querem a guerra, mas que a sofrem. Nos últimos dias veem-se imagens de corpos sem vida nas ruas, fala-se até de fornos crematórios ambulantes, mas também de estupros, devastações e barbáries.

O que está a acontecer à humanidade, Santidade?

Santo Padre: Mas isto não é uma novidade, cara. Um escritor disse que “Jesus Cristo está em agonia até ao fim do mundo”, está em agonia nos seus filhos, nos seus irmãos, sobretudo nos pobres, nos marginalizados, nas pessoas pobres que não se podem defender. Neste momento, na Europa, esta guerra atinge-nos muito. Mas olhemos um pouco para mais longe. O mundo está em guerra, o mundo está em guerra! A Síria, o Iémen, pensemos nos Rohingya, expulsos, sem pátria. Em todo o lado há guerra. O genocídio ruandês há 25 anos. Porque o mundo escolheu – é difícil dizê-lo – mas escolheu o esquema de Caim e a guerra é implementar o cainismo, ou seja, matar o irmão.

Lorena Bianchetti: E precisamente porque há o bem e há o mal, tem-nos avisado muitas vezes sobre a forma como o mal age. Disse-nos que o diabo se apresenta de uma forma amável, alicia-nos, mas na realidade o mal só quer que falhemos: não há diálogo com o diabo. E por isso pergunto-lhe, precisamente à luz do que dizia, como podemos encontrar formas de mediação, formas de diálogo com quem, ou pelo menos, com aqueles que desejam e perseguem apenas a prepotência?

Santo Padre: Quando eu digo que não há diálogo com o diabo é porque o diabo é mau, sem nada de bom! Dizemos que ele é como o mal absoluto. Aquele que se rebelou totalmente contra Deus! Mas com pessoas doentes, que têm esta doença do ódio, falamos, dialogamos, e Jesus dialogou com muitos pecadores, até com Judas, que depois se tornou “amigo”, sempre com ternura porque todos nós temos sempre o espírito do Senhor, que Ele semeou em nós algo de bom. E quando estou diante de uma pessoa e tenho sempre – todos dizemos isto de forma diferente – quando estamos diante de uma pessoa devemos pensar no que estamos a dizer sobre esta pessoa: do lado mau ou do lado oculto, do melhor. Todos nós temos algo de bom, todos nós! É precisamente o selo de Deus em nós. Nunca devemos considerar acabada uma vida que não acabou... que acabou no mal, dizer “Este é um condenado”. Lembro-me da senhora que se foi confessar ao cura d’Ars porque o marido se tinha atirado da ponte. O cura ouviu-a, ela estava a chorar. “O que mais me irrita é que ele está no inferno”. “Pára”, disse-lhe ele. “Entre a ponte e o rio está a misericórdia de Deus”. Deus procura sempre salvar-nos até ao fim, porque semeou em nós a parte boa. Semeou-a também em Caim, Abel e Caim, mas Caim fez uma ação de violência e é com esta ação que se faz uma guerra.

Lorena Bianchetti: Mas, na sua opinião, existe empenho suficiente do ponto de vista cultural – estou a dizer também a nível eclesial, não apenas a nível cultural – existe empenho suficiente para alertar as pessoas contra a tentação de cair e viver o inferno no coração já nesta terra? Digo isto porque por vezes vivemos numa sociedade em que parece que o diabólico é decididamente mais fascinante, mais estimulante do que o bom, o honesto, o gentil e também o espiritual, que aparece e é proposto como maçante.

Santo Padre: Sim, é verdade. O mal é mais sedutor. Voltando ao diabo, alguns dizem que eu falo demasiado sobre o diabo. Mas é uma realidade. Eu acredito nisto, eh! Alguns dizem: “Não, é um mito”. Eu não vou com o mito, vou com a realidade, eu acredito. Mas é sedutor. A sedução procura entrar, prometer algo sempre. Se os pecados fossem feios, se não tivessem algo de belo, ninguém pecaria. O diabo apresenta algo belo no pecado e leva ao pecado. Por exemplo, aqueles que fazem a guerra, aqueles que destroem a vida dos outros, aqueles que exploram as pessoas no seu trabalho. No outro dia ouvi uma família contar como o pai, que casou jovem, teve de trabalhar como operário, saindo de manhã cedo e voltando à noite, por pouco dinheiro, explorado por uma empresa bilionária. Isto também é guerra. Também é destruição, não apenas os tanques, isto também é destruição. O diabo procura sempre a nossa destruição. Porquê? Porque nós somos a imagem de Deus. Voltemos ao início, às três horas da tarde. Jesus morre, morre sozinho. A mais completa solidão, abandonado até por Deus: “Porque me abandonaste?”. A mais completa solidão, porque queria descer à mais terrível das solidões do homem para nos livrar dela. Ele regressa ao Pai, mas é o primeiro a descer, está em cada pessoa explorada, que sofre guerras, que sofre destruição, que sofre tráfico. Quantas mulheres são escravas do tráfico, aqui em Roma e nas grandes cidades. É obra do mal. É uma guerra.

Lorena Bianchetti: Em suma, como Dostoievski disse em Os Irmãos Karamazov: “A batalha entre Deus e o diabo está no coração do homem”. É aí que se decide o jogo.

Santo Padre: É aí que se joga. É por isso que precisamos da mansidão, da humildade para dizer a Deus: “Sou um pecador, mas tu salvas-me, ajudas-me”. Pois cada um de nós tem dentro de si a possibilidade de fazer o que quantos destroem as pessoas fazem, que exploram as pessoas. Porque o pecado é uma possibilidade da nossa fraqueza e também do nosso soberba.

Lorena Bianchetti: Dizia antes, recordava, a frase pronunciada por Jesus na cruz: “Meu Deus, por que me abandonaste?” e esta frase traduz a solidão, mas também o desânimo, a angústia e portanto também o desespero, o estado de espírito que todos nós experimentamos quando não sabemos qual pode ser a solução para uma dor, mas também para um sentimento de culpa. A propósito de desespero, Santidade, vem-me à mente uma imagem desta guerra – e digo isto como mãe – um pai a correr com o filho nos braços porque foi atingido por estilhaços de uma bomba. Ele e a esposa a correr para o hospital, desesperados. A notícia que chegou foi que esta criança infelizmente não se salvou. Não consigo imaginar um desespero mais angustiante do que o de dois pais que perdem um filho desta forma. O que diria aos pais que estão a passar por esta experiência angustiante?

Santo Padre: Na vida, aprende-se. Tive de aprender muitas coisas e ainda tenho de aprender porque espero viver um pouco mais, mas tenho de aprender. E uma das coisas que aprendi foi a não falar quando alguém está a sofrer. Seja uma pessoa doente, seja uma tragédia. Pego-lhes na mão, em silêncio. Mas quando vêm [a dizer] e tu estás doente “Não, mas isto, aquilo, mas o Senhor...”. Cala-te! Silêncio. Em frente da dor: silêncio. E choro. É verdade que chorar é um dom de Deus, é um dom que devemos pedir: a graça de chorar, perante as nossas fraquezas, perante as fraquezas e tragédias do mundo. Mas não há palavras. Citou Dostoievski. Vem-me à mente aquele livrete que é como um resumo de toda a sua filosofia, da sua teologia, de tudo: Memórias do Subsolo. E ali está, quando alguém morre, quando uma pessoa morre – são condenados, prisioneiros que estão no hospital – alguém morre lá, pegam nele e levam-no. E o outro, da outra cama, diz: “Por favor, parai! Ele também tinha uma mãe”. A figura da mulher, a figura da mãe, em frente da cruz. Esta é uma mensagem, é uma mensagem de Jesus para nós, é a mensagem da sua ternura na sua mãe. No pior momento da sua vida, Jesus não insultou.

Lorena Bianchetti: Dado que menciona as mulheres, Santidade, havia mulheres debaixo da cruz, debaixo da cruz de Jesus. Há outra imagem que gostaria de lhe propor. Voltemos novamente à Ucrânia. Uma grávida, carregada numa maca porque foi ferida na guerra, transportada no meio dos escombros, tentando acariciar o seu ventre com o último suspiro de força que lhe restava. Pelo que sabemos, nem esta mulher com o seu filho se salvaram. Mas o que realmente me vem à mente são as mulheres, a força das mulheres. Vêm-me à mente as mães russas, vêm-me à mente as mães ucranianas. E por isso pergunto-lhe qual o papel das mulheres: quão importante é um papel ativo das mulheres, na mesa de negociações, para construírem concretamente a paz?

Santo Padre: “As mulheres são capazes de dar vida até a um morto” é um ditado. As mulheres estão na encruzilhada das maiores fatalidades, elas estão lá, são fortes. É interessante. Jesus é o esposo da Igreja e a Igreja é uma mulher, é por isso que a Igreja-Mãe é tão forte. Não estou a falar de clericalismo, dos pecados da Igreja. Não, Igreja-Mãe significa aquela que está aos pés da cruz a apoiar-nos, a nós pecadores. Algo que me impressiona tanto, que me faz pensar em Maria e nas outras mulheres aos pés da cruz. Por vezes tive de ir a alguma paróquia num bairro chamado Villa Devoto, em Buenos Aires, e ia de autocarro, o 86. Ele passava em frente da prisão e muitas vezes eu via uma fila de mães de presos lá. Expunham os seus rostos pelos seus filhos, porque todos os que passavam, diziam: “Esta é a mãe de alguém que está dentro”. E toleravam os controlos mais vergonhosos, mas para verem o seu filho. A força de uma mulher, de uma mãe que é capaz de acompanhar os seus filhos até ao fim. E esta é Maria e as mulheres aos pés da cruz. Acompanha o filho, sabendo que muitas pessoas dizem: “Mas como educou o filho que acabou assim?”. Tagarelice imediata. Mas as mulheres não se preocupam: quando há um filho envolvido, quando há vida envolvida, as mulheres vão em frente. Por isso o que diz – dar às mulheres um papel em momentos difíceis, em momentos de tragédia – é tão importante, é muito importante. Elas sabem o que é vida, o que se prepara para a vida e o que é a morte, conhecem-na bem. Falam esta linguagem.

Lorena Bianchetti: E há, Santidade – também porque estamos a falar das muitas mortes causadas pela guerra – há mortes mais silenciosas, mas não menos sangrentas. Estou a pensar naqueles que foram assassinados pelas máfias e estou a pensar nas mulheres mortas pelos seus companheiros. É verdade que os últimos serão os primeiros no Céu, mas como podem estas pessoas e aqueles que perdem os seus afetos acreditar na justiça, numa recompensa já nesta terra?

Santo Padre: A exploração das mulheres é o nosso pão quotidiano. A violência contra as mulheres é o nosso pão de cada dia. Mulheres que sofrem golpes, que sofrem violência por parte dos seus companheiros e carregam isto em silêncio ou afastam-se sem dizer porquê. Nós, homens, teremos sempre razão: somos os perfeitos. E as mulheres estão condenadas ao silêncio pela sociedade. “Não, mas esta é louca, é uma pecadora”. Era o que costumavam dizer sobre Madalena: “Olha o que ela fez, é uma pecadora!”. “E tu não és um pecador? Não erras?”. Mas as mulheres são a reserva da humanidade, posso dizer isto: estou convencido disto. As mulheres são a força. E ali, aos pés da cruz, os discípulos fugiram, as mulheres não, as que o seguiram ao longo da vida. E Jesus, a caminho do Calvário, pára em frente de um grupo de mulheres que choravam. Elas têm a capacidade de chorar, nós, homens, somos mais brutos. Ele pára [e diz]: “Chorai pelos vossos filhos”, porque farão muitas coisas contra eles.

Lorena Bianchetti: E neste período, Santidade, estou a pensar na fuga: há estas imagens que falam da fuga de ucranianos que são forçados a deixar as suas terras, as suas casas, os seus afetos. É um dos últimos êxodos a que provavelmente estamos, infelizmente, a habituar-nos. Mas, neste caso, houve uma resposta concreta e real. Uma resposta que, peço-lhe, na sua opinião derrubou os muros da indiferença, do preconceito para com aqueles que fogem de outras partes do mundo porque estão feridos pela guerra, ou continuam a dividir os refugiados em categorias incómodas?

Santo Padre: É verdade. Os refugiados estão divididos. Primeira classe, segunda classe, cor da pele, [quer sejam] provenientes de um país desenvolvido [ou de] um que não é desenvolvido. Nós somos racistas, somos racistas. E isto é mau. O problema dos refugiados é um problema que até Jesus sofreu, porque era um migrante e refugiado no Egito quando era criança, para escapar à morte. Quantos destes sofrem para escapar à morte! Há um quadro da fuga para o Egito que um pintor piemontês fez. Ele enviou-mo e eu fiz alguns santinhos: há José com o menino em fuga. Mas não é São José com a barba, não. É um sírio, de hoje, com a criança, a fugir da guerra de hoje. O rosto de angústia que estas pessoas têm, como Jesus forçado a fugir. E Jesus já passou por todas estas coisas, mas ele está lá. Na cruz estão os povos dos países da África em guerra, do Médio Oriente em guerra, da América Latina em guerra, da Ásia em guerra. Há alguns anos eu disse que estávamos a viver a terceira guerra mundial em pedaços. Mas ainda não aprendemos. Eu – sou um ministro do Senhor e um pecador, escolhido pelo Senhor – mas, pecador assim, quando fui a Redipuglia em 2014, para a comemoração do centenário, vi e chorei. Chorei unicamente. Todos os jovens, todos os rapazes. Então um dia fui ao cemitério de Anzio e vi aqueles jovens que tinham desembarcado em Anzio. Todos jovens! E eu chorei lá, outra vez. Choro diante disto. Há dois anos, penso que, quando houve a comemoração do desembarque na Normandia, vi os chefes de governo, houve um encontro... eles estavam a comemorar isto. Mas por que não comemoramos todos nós os 30.000 soldados que morreram na praia da Normandia? A guerra cresce com a vida dos nossos filhos, dos nossos jovens. É por isso que digo que a guerra é uma monstruosidade! Vamos a estes cemitérios que são precisamente a vida desta memória. Pensemos naquela cena que está escrita: barcos a chegar à Normandia, abriam-se, saltavam fora com os fuzis os jovens e os alemães... (ndr o Santo Padre imita o gesto de disparar). 30.000, na praia.

Lorena Bianchetti: Isso leva-me precisamente à corrida aos armamentos, a este tema. Um argumento que já abordou muitas vezes, e talvez nem sempre lhe tenha sido dada a ênfase certa. Pois disse que, nos últimos tempos, se investiu mais em armas do que em educação ou formação. Por que os seres humanos não aprenderam com o passado e continuam a usar armas para resolver os seus problemas?

Santo Padre: Eu compreendo os governantes que compram armas, compreendo-os. Não os justifico, mas compreendo-os. Porque temos de nos defender, porque [é] o esquema cainista de guerra. Se fosse um esquema de paz, isto não seria necessário. Mas vivemos com este esquema demoníaco, [que diz] para nos matarmos uns aos outros por causa do poder, por causa da segurança, por causa de muitas coisas. Mas penso nas guerras ocultas, que ninguém vê, que estão longe de nós. Tantas. Porquê? Para explorar? Esquecemos a linguagem da paz: esquecemo-nos dela. Fala-se de paz. As Nações Unidas fizeram tudo, mas não tiveram êxito. Regresso ao Calvário. Lá Jesus fez tudo. Ele tentou com piedade, com benevolência, convencer os líderes e [em vez disso] não: guerra, guerra, guerra contra ele! Por mansidão, opõem-se à guerra pela segurança. “É melhor que um homem morra pelo povo”, diz o sumo sacerdote, porque, ao contrário, os romanos virão. E a guerra.

Lorena Bianchetti: Então faço uma ligação com o que estava a dizer. Há pouco falámos sobre as mulheres aos pés da cruz. Mas a propósito dos homens que têm poder. Na época havia Pilatos, Herodes, Caifás. Todos eles poderiam ter salvo uma pessoa inocente, mas não o fizeram: preferiram não enfrentar o risco da verdade. Essas pessoas morreram, mas a sua forma de fazer as coisas continua a ser atual. Porque não temos a coragem de escolher este bem e de defender o Homem que nos tinha simplesmente pedido para nos amarmos uns aos outros?

Santo Padre: Há uma mulher no Evangelho sobre a qual não se fala muito – um pouco en passant, diz-se – é a esposa de Pilatos. Ela compreendeu alguma coisa. Diz ao marido: “Não te envolvas com este homem justo”. Mas Pilatos não a ouve, “coisas de mulher”. Mas esta mulher, que passa inesperada, sem força no Evangelho, compreendeu o drama lá de longe. Porquê? Talvez ela fosse mãe, tinha essa intuição de mulher. “Toma cuidado para que não te enganem”. Quem? O poder. O poder que é capaz de mudar a opinião das pessoas de domingo para sexta-feira. O Hosana de domingo torna-se o Crucifica-o! de sexta-feira. E este é o nosso pão quotidiano. Precisamos de mulheres que deem o alarme.

Lorena Bianchetti: Então, Santidade, Jesus na cruz, depois daquela frase, “Meu Deus, por que me abandonaste?”. Estávamos a falar de desespero, desânimo e também solidão: Sexta-feira Santa é um pouco como o dia da solidão. E a solidão faz-me inevitavelmente pensar no que cada um de nós sentiu durante o período mais difícil da pandemia. Penso nos idosos, nos jovens, nas pessoas que vivem a provação da doença, naqueles que usavam aparelhos porque não conseguiam respirar. E também penso em Vossa Santidade, a 27 de março de 2020. Quais foram os seus pensamentos naquele momento, ao atravessar a Praça de São Pedro completamente vazia, molhada pela chuva, ao chegar ao adro?

Santo Padre: Não sei se pensei. Senti, sim. Procurava, sentia o drama daquele momento, de tantas pessoas. A senhora sublinhou a solidão, o sofrimento daquele momento, dos idosos. É curioso: são eles que pagam sempre a conta. E os jovens também, porque roubamos a esperança aos jovens. Fazemo-los seguir o caminho da Turandot: “a esperança que sempre desilude”. Não, a esperança não desilude! Mas são os jovens e os idosos que têm nas mãos e no coração a possibilidade de reagir: é por isso que insisto tanto para que os jovens e os idosos dialoguem. A sabedoria dos idosos, mas com a solidão que eles sofreram. A sabedoria dos idosos é muitas vezes negligenciada e deixada de lado num lar de idosos. Gostava de visitar os lares de idosos em Buenos Aires, havia tantos numa grande cidade. Perguntei a uma mulher: “Como estás? Quantos filhos? Ah, quatro? E eles vêm?”. “Sim, não me deixam sozinha”. A enfermeira ouviu e na saída disse: “Padre, há seis meses que não vem ninguém”. O abandono dos idosos e o abandono da sabedoria, porque por vezes somos super-homens, sabemos tudo. Nós não sabemos nada! A solidão dos idosos e o uso dos jovens, porque os jovens sem a sabedoria que vem de um povo irão errar. Jesus tinha tudo isto no seu coração naquele momento: estávamos todos lá. A senhora lembrou a Statio Orbis de março, há dois anos, e sentia tudo isto. Mas eu não sabia que a praça estaria vazia, não sabia. Eu cheguei lá e [não havia] ninguém. Sim, eu sabia que com a chuva haveria poucas pessoas, mas ninguém. Foi uma mensagem do Senhor para compreender bem a solidão. A solidão dos idosos, a solidão dos jovens que deixamos sozinhos. “Deixai que sejamos livres”. Não! Serão escravos sozinhos. Acompanhemo-los! É por isso que é importante que recebam a herança dos idosos, a sua bandeira devedora. A solidão dos jovens, dos idosos. A solidão das pessoas com problemas mentais em casas de saúde. A solidão das pessoas que passam por uma tragédia pessoal e familiar. A solidão de uma mulher que é espancada pelo marido, mas [que] se cala para salvar a sua família. Temos muitas solidões nossas. Também a senhora tem a sua. Eu tenho as minhas: a senhora terá as suas, com certeza. Pequenas solidões, mas é nisto, nessas pequenas solidões, que podemos compreender a solidão de Jesus, a solidão da cruz.

Lorena Bianchetti: Alguma vez se sentiu sozinho no exercício do seu ministério?

Santo Padre: Não, Deus tem sido bom para mim. Não sei. Sempre, quando há algo negativo, ele põe alguém para me ajudar! Faz-se presente. Tem sido muito generoso. Talvez porque Ele sabe que eu não consigo fazê-lo sozinho! (ndr risos).

Lorena Bianchetti: Sabe que a 27 de março – penso que estou realmente a falar em nome de todos – pegou-nos realmente no colo, deu-nos muita força naquele dia. A partir de então, cada um de nós tomou consciência e, de alguma forma, penso que recomeçámos. Outra pergunta porque, como já dissemos, Jesus foi flagelado, humilhado, coroado de espinhos, crucificado. E tudo isto, de alguma forma, lhe veio da sua família, porque foi traído por Judas, foi negado por Pedro. Em suma, os golpes mortais vieram precisamente dos seus próximos. Quais são então as feridas que a Igreja continua hoje a infligir ao Crucificado?

Santo Padre: Falo claramente, porque estou convencido disto. A cruz mais dura que a Igreja hoje carrega sobre o Senhor é a mundanidade, o espírito da mundanidade. O espírito de mundanidade, que é um pouco como o espírito de poder, mas não apenas de poder, está a viver num estilo mundano que – curiosamente – é alimentado e cresce com dinheiro. Há uma coisa interessante. Nas três tentações do diabo a Jesus, o diabo faz propostas mundanas. A primeira, a fome, compreende-se: é humana – mas depois o quê? Poder, vaidade: coisas mundanas. Porque o caminho é atraente e quando cai na mundanidade, no espírito mundano, a Igreja é derrotada. O espírito de mundanidade é o que mais dói hoje, mas tem sido sempre assim. Quando Jesus nos diz: “por favor fazei uma opção clara, não podeis servir dois senhores”. Ou servis a Deus – e eu estava à espera que Ele dissesse “ou servis o diabo” – mas Ele não diz isso. “Ou servis a Deus ou servis o dinheiro”. Usar dinheiro para fazer o bem, para apoiar a família através do trabalho, é ótimo. Mas servir! E a mundanidade aprecia muito isto.

Lorena Bianchetti: Leão XIII, li, tinha uma oração contra o diabo introduzida no final da missa porque, disse, havia o risco de o diabo poder entrar na Igreja também através das fendas das portas. Na sua opinião, então, será esta a fenda através da qual o diabo conseguiu entrar hoje na Igreja?

Santo Padre: A mundanidade, mas isto acontece desde sempre. [Em] cada época a mundanidade muda de nome, mas é sempre mundanidade. Rezo esta prece, a São Miguel Arcanjo, todos os dias, pela manhã. Todos os dias! Para que me ajude a vencer o diabo. Quem me ouvir pode dizer: “Mas Santidade, estudou, é Papa e ainda acredita no diabo?”. Sim, acredito, caro, acredito. Tenho medo dele, é por isso que tenho de me defender tanto. O diabo que fez todas as manobras para que Jesus acabasse, como ele fez, na cruz. Poder das trevas sobre Jesus: “Esta é a vossa hora”, o poder das trevas.

Lorena Bianchetti: E assim, Santidade, volto à guerra na Ucrânia. Porque Kyiv – como vemos, as imagens continuam a chegar – está completamente destruída. Cinzas. Talvez essa mesma paisagem de que o diabo tanto gosta. Por isso pergunto-lhe: Kyiv já não é apenas um lugar geográfico, mas aos olhos do mundo representa muito mais. No seu coração, o que é?

Santo Padre: Uma dor. A dor é uma certeza, é um sentimento que tira tudo. Quando alguém, após uma cirurgia, sente dor física, a ferida que foi feita, pede uma anestesia, algo para ajudar a tolerá-la. Mas [para] dor humana, dor moral, não há anestesia. Apenas oração e pranto. Estou convencido de que hoje não choramos bem. Esquecemo-nos de chorar. Se posso dar um conselho, para mim e para as pessoas, é pedir o dom das lágrimas. E chorar, como Pedro chorou, depois de ter traído Jesus. Ele chorou, quando fugiu, quando o negou. Ele chorou. Um grito que não é um desabafo, não. É uma vergonha feita fisicamente e creio que nos falta vergonha. Estamos tantas vezes sem vergonha – é um insulto que se usa na minha terra natal: “[aquele] é sem vergonha” – mas a graça de chorar. Há uma bela oração, há uma missa para pedir o dom das lágrimas. Uma bela prece naquela missa é assim: “Senhor, tu que da rocha fizeste sair água, faz sair lágrimas da rocha do meu coração”. O coração duro, o coração que não se comove, não sabe chorar. Pergunto-me: quantas pessoas, diante das imagens de guerras, quaisquer guerras, foram capazes de chorar? Alguns sim, tenho a certeza, mas muitos não. Começam a justificar ou a atacar. Não, isto (ndr o Santo Padre aponta para o coração): é preciso curar isto. E Jesus toca aqui. Hoje, Sexta-feira Santa, em frente de Jesus Crucificado, deixa que ele toque o teu coração, deixa que Ele te fale com o seu silêncio e com a sua dor. Que Ele te fale através daquelas pessoas que sofrem no mundo: sofrem de fome, sofrem de guerra, sofrem de tanta exploração e de todas estas coisas. Deixa que Jesus te fale e por favor não fales tu. Silêncio. Deixa que seja Ele e pede a graça de chorar.

Lorena Bianchetti: Quanto podem as religiões fazer para remover essa desertificação dos corações? Quanto e que palavras pretende dirigir também aos bispos ortodoxos?

Santo Padre: Sim, eles também estão a preparar a Páscoa connosco com uma semana de diferença, porque – também os católicos orientais – seguem o calendário juliano, não o gregoriano. Aproveito esta oportunidade para enviar uma mensagem de fraternidade a todos os meus irmãos bispos ortodoxos, que estão a viver esta Páscoa com a mesma dor com que nós, eu e muitos católicos a estamos a viver. Não é fácil ser bispo... e graças a Deus que não é fácil! É por isso que não compreendo aqueles que querem tornar-se bispos! Eles não sabem o que os espera! Mas gostaria de aproveitar esta oportunidade para saudar todos os bispos ortodoxos como irmãos na fé.

Lorena Bianchetti: Há outra frase que Jesus pronuncia na cruz: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. Perdão. O senhor disse que oferecer a outra face não significa sofrer em silêncio, ceder à injustiça. Recordou-nos que Jesus também denuncia a injustiça, e especificou que ele o faz sem raiva nem violência, mas com ternura. Santidade, como podemos ser amáveis ou perdoar todas as pessoas que nos ferem, aquelas pessoas que matam inocentes, que agridem não só física, mas também psicologicamente?

Santo Padre: dou-lhe a minha receita. Se eu não fiz esse mal, é porque Ele me impediu com a Sua mão, com a Sua misericórdia. Disto estou certo, porque de outra forma teria feito tantas [coisas] como eles, tanto mal. Nisto posso dizer que sou uma testemunha da misericórdia de Deus. É por isso que não posso condenar alguém que vem pedir perdão. Devo perdoar sempre. Cada um de nós pode dizer isto sobre si mesmo no seu esquema pessoal (n.d.r., exame de consciência). É verdade que talvez não seja capaz de dizer afetivamente: “Vem caro, dá-me um beijo”. Não, talvez eu fique zangado! Mas digo: “Senhor, livra-me da raiva, eu perdoo, mas não tenho o sentimento de perdão. Eu perdoo. Tu arranja-te levar este perdão...".

Lorena Bianchetti: O perdão tem uma raiz apenas divina.

Santo Padre: Sim, o perdão no final é algo assim.

Lorena Bianchetti: Também estou a pensar na solidão, voltando a Jesus na cruz, penso em todas aquelas pessoas que, também como resultado da Covid, perderam os seus empregos. Há muitas pessoas, Santidade, que vivem com este tipo de dificuldade. Que palavras de esperança lhes quer transmitir?

Santo Padre: A palavra-chave que acabou de dizer é esperança. A esperança não é acariciar e dizer: “Ah, tudo vai passar, não te preocupes”. A esperança é uma tensão para o futuro, para o céu também. É por isso que a figura da esperança é a âncora: a âncora atirada ali e eu aqui com a corda, para chegar lá, para resolver situações, mas sempre com essa corda. A esperança nunca desilude, mas faz-nos esperar. A esperança é a doméstica da vida católica, da vida cristã. É realmente a mais humilde das virtudes. Está escondida, mas se não a tiveres [à mão], não encontrarás o caminho certo. A esperança é o que te faz encontrar o caminho certo. Ter esperança é não ter a ilusão: “Vou… [ter com] alguém para ler a mão... isto vai dar certo”. Não, isto não é esperança. A esperança é a certeza de que tenho na minha mão a corda daquela âncora lançada. Gostamos de falar de fé, tanto, da caridade: olha para ela! A esperança é um pouco a virtude oculta, a pequenina, a pequenina de casa. Mas é a mais forte para nós.

Lorena Bianchetti: Então esta é também a mensagem para os jovens, porque penso naqueles que veem o futuro a ser arrancado das suas mãos: disse isto muito claramente há pouco. É por isso que não planeiam muito, nem sempre acreditam em relações duradouras, não formam famílias. Em suma, digamos que mesmo a nível institucional e cultural não são muito ajudados. Portanto, que palavras gostaria de lhes dizer?

Santo Padre: Não confundir esperança com otimismo. Podemos comprar o otimismo no quiosque. Sabe, o otimismo é vendido! Mas a esperança é outra coisa. A esperança é ter a certeza de que estamos a caminhar para a vida. Há um poeta argentino que – bom, um grande poeta – [há] uma frase, um poema, que sempre me impressionou, uma definição de vida: “A vida é uma morte que chega”. Não, a vida não é uma morte que chega: a vida é, talvez, da morte chegar à vida! A esperança é forte nisto: é aquela corda da âncora. Nunca desilude! Mas é humilde, é verdadeiramente a doméstica da vida cristã. Mas muitas vezes são as domésticas que levam em frente a vida de uma família.

Lorena Bianchetti: Santidade, para concluir. Hoje é Sexta-feira Santa, mas a história da salvação não termina aqui. Graças a Deus, o Evangelho tem um final feliz porque há a ressurreição de Jesus: esse é o centro da história da salvação. Quais são os seus votos para esta Páscoa?

Santo Padre: Uma alegria interna. Há um salmo que diz: “Quando o Senhor nos libertou da Babilónia, parecia-nos [estar] a sonhar”. O pranto de alegria. É alegria. Os meus votos são por que não se perca a esperança, a verdadeira esperança – que não desilude – é pedir a graça de chorar, mas o choro de alegria, o choro de consolação, o choro de esperança. Tenho a certeza, repito, temos de chorar mais. Esquecemo-nos de chorar. Vamos pedir a Pedro que nos ensine a chorar como ele chorou. E depois o silêncio da Sexta-feira Santa.

Lorena Bianchetti: Santidade, são quase três horas. Como devemos viver este momento hoje?

Santo Padre: (ndr não responde, permanece em silêncio).

Lorena Bianchetti: Posso abraçá-lo em nome de todos? Obrigada, Santidade! Obrigada.

Santo Padre: Sou eu que agradeço. O Senhor a abençoe!


Maré Alta

Dá-me a honra desta dança

Mariana Viana Baptista | in Ponto SJ | 6 Abril 2022

Há uns tempos, como tantas vezes, andava em luta, à procura do silêncio na oração. Nesse dia, até me tinham sido propostos uns pontos para me guiar, para me ajudar a desenterrar do coração a matéria-prima para trabalhar com Deus. Mas nem isso me serviu para aqueles minutos difíceis de aproveitar. Muita agitação, muitos temas soltos a ir e vir, sem princípio, meio ou fim.

Desconcentrada, inquieta, frustrada por não conseguir “fazer a coisa bem”, desisti. Ou melhor… desisti de controlar. Aceitei que aquele tempo não ia ser o que eu tinha pensado, que aquilo que Deus me queria dizer não tinha nada a ver com alguma ordem de trabalhos que pudesse ter escrita na cabeça. E deixei-me levar, de olhos fechados, como numa dança. E imaginei-me, de facto, a dançar.

Gostar de dançar não significa dançar bem, e dançar sozinho não tem nada a ver com dançar com um par. Dita a tradição que as danças a pares são guiadas pelos homens; as mulheres deixam-se conduzir. Pela minha experiência, esta parte que nos compete é muito mais difícil, porque é preciso ouvir e sentir a música e o seu ritmo, mas confiar e deixar fluir, sem sermos nós a decidir se vamos para a esquerda ou para a direita, para trás ou para a frente, mais rápido ou mais devagar. Exige um equilíbrio tenso entre o esforço da concentração e a liberdade do abandono, para não haver pisadelas, tropeções e colisões de joelhos.

Descobri, por tudo isto, que a oração é como uma dança com o Espírito que me quer guiar pela música que vai tocando a cada momento. Ninguém dança a valsa ao som de kizomba, nem se dança twist ao som de samba. Assim, também a oração vai pedindo gestos e atitudes diferentes, consoante o que se passa dentro e fora de mim.

Uma vez, um amigo dizia-me: “o cantor escolhe a música que canta e nós temos de dançar sempre; pode mudar o ritmo, pode mudar o estilo, mas temos de dançar!”. Contava-me isto porque conversava com ele sobre a sua perseverança e alegria genuína, que me deixavam desarmada: sabia bem as dificuldades que diariamente enfrentava. Acho de uma enorme beleza que se possa viver a vida, tantas vezes tão exigente, de uma forma leve e alegre, sem ser leviana ou ingénua. Para ele, a dança não era só para dias de festa – era também uma forma de fidelidade.

Na oração – como na vida e na dança -, não escolho a música, mas procuro confiar que, com rodopios e tropeções pelo meio, começo e acabo sempre nas mãos de Deus. Sou convidada a receber o que estiver a tocar, com o amparo do Senhor que me chama ao Seu encontro.

Muitas vezes, quando me disponho a rezar, o meu maior bloqueio é a expectativa que tenho desse momento. Mas a oração não é uma coreografia ensaiada! Posso estar familiarizada com a música que está a tocar no momento ou até estar à vontade com o estilo e conhecer alguns passos. Mas a maior parte das vezes é improviso e isso exige muita intimidade. Exige que procure conhecer cada vez melhor o Par com quem danço e os Seus movimentos e que me deixe surpreender por Ele. Mesmo que a dança não flua, a música continua a tocar e o Espírito permanece disponível para guiar e dar vida. Tropeço e recomeçamos, vezes sem conta. E, quanto mais danço, mais vezes me consigo abandonar. Vou aprendendo a ser maleável, sem ser um peso morto; a estar inteira, mas não estática. E tropeço mais umas vezes, mas retomamos.

Nesse dia em que rezar começou por parecer uma luta frustrante, não resolvi nenhum assunto, mas saboreei a dança. E apercebi-me de que, acima de tudo, a dança é gratuita. A dança não procura respostas, utilidade, produtividade ou resultados. O bom da dança é a dança. E, cada vez mais, devia ser assim a minha oração: consciente da honra e da graça que é viver em intimidade com Deus, desfrutar do encontro, da relação que se balança ao som do que tiver de ser.

Façamo-nos à pista.


Maré Alta

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
A MALTA
(2-3 DE ABRIL DE 2022)

SANTA MISSA

HOMILIA DO SANTO PADRE

Largo dei Granai, Floriana
Domingo, 3 de abril de 2022

Jesus, «de madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo vinha ter com Ele» ( Jo 8, 2). Assim começa o episódio da mulher adúltera. O horizonte aparece sereno: uma manhã no lugar santo, no coração de Jerusalém. Protagonista é o povo de Deus, que no átrio do templo procura Jesus, o Mestre: deseja escutá-Lo, porque a sua palavra ilumina e encoraja. A sua doutrina não de forma alguma abstrata: toca a vida e liberta-a, transforma-a, renova-a. Nisto se revela a intuição, o «faro» do povo de Deus, que não se contenta com o templo feito de pedras, mas reúne-se à volta da pessoa de Jesus. Nesta página, vislumbra-se o povo dos crentes de todos os tempos, o povo santo de Deus, que aqui em Malta é numeroso e vivaz, fiel na busca do Senhor, ligado a uma fé concreta, vivida. Por tudo isso vos agradeço!

Na presença do povo que O veio encontrar, Jesus não tem pressa: «sentou-Se – diz o Evangelho – e pôs-Se a ensinar» (8, 2). Mas, na escola de Jesus, há lugares vazios. Há alguns ausentes: são a mulher e os seus acusadores. Não foram ter com o Mestre como os outros, sendo diversas as razões da ausência: escribas e fariseus pensam que já sabem tudo, não precisam do ensinamento de Jesus; ao passo que a mulher é uma pessoa perdida, extraviada procurando a felicidade por caminhos errados. Temos, pois, ausências por motivos diferentes, como aliás será diferente o desfecho da própria vicissitude. Detenhamo-nos nestes ausentes.

Em primeiro lugar, os acusadores da mulher. Neles vemos a imagem daqueles que se vangloriam de ser justos, observadores da lei de Deus, pessoas regradas e justas. Não se preocupam com os próprios defeitos, mas mostram-se muito atentos na descoberta dos alheios. Assim se apresentam a Jesus: não com o coração disponível para O escutarem, mas «para O fazerem cair numa armadilha e terem de que O acusar» (8, 6). É um intento que fotografa a interioridade destas pessoas cultas e religiosas, que conhecem as Escrituras, frequentam o templo, mas subordinam tudo isto aos próprios interesses e não combatem os pensamentos maus que se agitam no seu coração. Aos olhos do povo, parecem peritos de Deus, e contudo não reconhecem Jesus; antes pelo contrário, veem-No como um inimigo que precisam de eliminar. Para o conseguir, colocam diante d’Ele uma pessoa, como se fosse uma coisa, chamando-a desdenhosamente «esta mulher» e denunciando publicamente o seu adultério. Pressionam para que a mulher seja apedrejada, derramando sobre ela a aversão que eles sentem pela compaixão de Jesus. E fazem tudo isto sob o manto da sua fama de homens religiosos.

Irmãos e irmãs, estas pessoas dizem-nos que, até na nossa religiosidade, se podem insinuar a traça da hipocrisia e o vício de apontar o dedo; e isto a todo o momento, em qualquer comunidade. Há sempre o perigo de entender mal Jesus, ter o seu nome nos lábios, mas negá-Lo nas obras. E pode-se fazê-lo mesmo quando se levantam estandartes com a cruz. Então como saber se somos discípulos na escola do Mestre? Pelo nosso olhar, pelo modo como olhamos para o próximo e como olhamos para nós mesmos. Aqui está o ponto para definir a nossa pertença.

Pelo modo como olhamos para o próximo: se o fazemos como Jesus nos faz ver hoje, isto é, com um olhar de misericórdia, ou de forma inquisitória, por vezes até desdenhosa, como os acusadores do Evangelho, que se erguem como defensores da Deus, mas não se apercebem de espezinhar os irmãos. Na realidade, quem julga defender a fé apontando o dedo contra os outros, até pode possuir uma visão religiosa, mas não adota o espírito do Evangelho, porque esquece a misericórdia, que é o coração de Deus.

Para compreender se somos verdadeiros discípulos do Mestre, é preciso verificar também como olhamos para nós mesmos. Os acusadores da mulher estão convencidos de que não têm nada a aprender. Com efeito a aparência externa é perfeita, mas falta a verdade do coração. São a figura dos crentes de cada época que fazem da fé um elemento de fachada, onde sobressai o aspeto exterior solene, mas falta a pobreza interior, que é o tesouro mais precioso do homem. De facto, para Jesus o que conta é a abertura disponível de quem não se sente perfeito, mas necessitado de salvação. Por isso, quando estivermos em oração e mesmo quando tomarmos parte em belas cerimónias religiosas, será bom perguntarmo-nos se estamos sintonizados com o Senhor. Podemos perguntá-lo diretamente a Ele: «Jesus, estou aqui convosco, mas Vós que quereis de mim? Que quereis que mude no meu coração, na minha vida? Como quereis que veja os outros?» Ser-nos-á útil rezar assim, porque o Mestre não Se satisfaz com a aparência, mas busca a verdade do coração. E quando Lhe abrimos de verdade o coração, Jesus pode operar maravilhas em nós.

Vemos acontecer isto mesmo na mulher adúltera. A sua situação parece irremediável, mas aos seus olhos abre-se um horizonte novo, antes inconcebível. Coberta de insultos, pronta a receber palavras implacáveis e severos castigos, com maravilha sua vê-se absolvida por Deus, que lhe abre de par em par um futuro inesperado: «Ninguém te condenou? – diz-lhe Jesus – Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar» (8, 10.11). Que diferença entre o Mestre e os acusadores! Estes citaram a Escritura para condenar; Jesus, Palavra de Deus em pessoa, reabilita completamente a mulher, restituindo-lhe a esperança. Deste caso, aprendemos que qualquer advertência, se não for movida pela caridade e não contiver caridade, afunda ainda mais quem a recebe. Deus, pelo contrário, deixa sempre aberta uma possibilidade e sabe encontrar sempre caminhos de libertação e salvação.

A vida daquela mulher muda graças ao perdão. Encontraram-se a Misericórdia e a miséria. Estão ali Misericórdia e miséria. E a mulher muda. Apetece-me pensar que, perdoada por Jesus, ela por sua vez aprendeu a perdoar. Talvez passasse a ver os seus acusadores, já não como pessoas rígidas e perversas, mas como aqueles que lhe permitiram encontrar Jesus. O Senhor quer que também nós, seus discípulos, nós como Igreja, perdoados por Ele, nos tornemos testemunhas incansáveis de reconciliação: testemunhas dum Deus para o Qual não existe a palavra «irrecuperável»; dum Deus que sempre perdoa, sempre. Deus perdoa sempre. Somos nós que nos cansamos de pedir perdão. Um Deus que continua a crer em nós e todas as vezes dá a possibilidade de recomeçar. Não há pecado ou fracasso que, levados a Ele, não possam tornar-se ocasião para começar uma vida nova, diferente, sob o signo da misericórdia. Não há pecado que não se possa superar por esta estrada. Deus perdoa tudo. Tudo.

Assim é o Senhor Jesus; sabe-o bem quem fez experiência do seu perdão; quem, como a mulher do Evangelho, descobre que Deus nos visita através das nossas chagas interiores: é sobretudo nestas que o Senhor prefere fazer-Se presente, pois não veio para os sãos, mas para os doentes (cf. Mt 9, 12). E hoje esta mulher, que conheceu a misericórdia na sua miséria e volta curada pelo perdão de Jesus, sugere-nos, como Igreja, que principiemos de novo a frequentar a escola do Evangelho, a escola do Deus da esperança que sempre nos surpreende. Se O imitarmos, não seremos levados a concentrar-nos na denúncia dos pecados, mas a sair amorosamente à procura dos pecadores. Não ficaremos a contar os presentes, mas iremos em busca dos ausentes. Não voltaremos a apontar o dedo, mas começaremos a pôr-nos à escuta. Não descartaremos os desprezados, mas olharemos como primeiros aqueles que são considerados últimos. Isto, irmãos e irmãs, é o que Jesus nos ensina hoje com o exemplo. Deixemo-nos surpreender por Ele e acolhamos com alegria a sua novidade.


Maré Alta

Da invasão da Ucrânia: recados a mim mesmo…

João Paiva | 21 Março 2022 | in Ponto SJ

Como muitos de nós, dei comigo absolutamente tomado pelos últimos acontecimentos na Ucrânia, na Europa, no mundo, em todos e em cada um de nós. Embora meio em choque, a quente, refleti e escrevi sobre o que me pareceu mais relevante na tensão entre a guerra e a esperança. Volvidas algumas semanas sobre a invasão, verto em escrita partilhada alguns recados a mim mesmo:

Informado mas recolhido

Cheguei a estar horas a fio preso à televisão. Foi uma reação natural mas cuja desintoxicação, ainda em curso, carece do meu trabalho. Hoje em dia, com resistência interior, imponho-me não ler mais do que alguns artigos de jornal por dia e tomar apenas um dos telejornais. Em chave autocrítica, o que eu perdi nos primeiros tempos foi a qualidade do tempo de recato e oração. Cheguei a quebrar alguns rituais de paragem e noto bem o preço que paguei, eu e alguns outros, que me suportaram mais hiperativo, mas ao mesmo tempo cansado, tenso, irritado e com menos rumo. Interpreto com naturalidade este desnorte: eu já sabia que a existência era contingente, que a crueldade pontuava, que nada era garantido, que a liberdade projetada na fé de Deus em nós tinha um preço. Mas aqui, tudo isto, que aparece em pequenas doses na nossa vida, está em formato do shot. Absorvido este excesso, sinto um apelo a uma qualquer pós-ressaca. Não tenho neste momento a meu cargo sistemático crianças e jovens em processo educativo. Sei bem, porém, a criatividade e a atenção que, nesta tensão entre a informação que traz a verdade incontornável e a moderação, há um desafiante discernimento.

Atuante mas contemplativo

Com uma razoável impulsividade, que certamente inclui bondade, mas que terá o seu quê de mecanismo de fuga e inquietação, envolvi-me com outras pessoas na mobilização de redes solidárias para o acolhimento de refugiados ucranianos. Compreendo-me a esta distância, mas sublinho a fragilidade maior neste caminho: não raras vezes, perdi a noção da positividade e do sentido. Tomado por certa urgência, real ou antecipada, o que me faltou e desejo retomar com mais força, é esse olhar que não prescinde do belo. E o horizonte contemplativo é parte não descartável, como aponta a metáfora evangélica de Marta e Maria. O fazedismo sempre foi tentação minha e notei-o exacerbado estes dias…

Generoso mas prudente

No contexto nacional, o processo de acolhimento de migrantes ucranianos é um misto generosidade, voluntarismo, emoção, eficácia, improviso, planeamento, racionalidade, ingenuidade, ação, coração, etc. À medida que o tempo passa, a tendência é para moderar e amparar os caminhos, tentando conferir sustentabilidade aos processos de acolhimento. Ao gesto generoso se deve somar o amparo jurídico, a tentativa de dar lastro institucional, o olhar e a concretude que dão futuro ao gesto de acolher. E tudo isto pede algum tempo. Nem sempre estive munido deste equilíbrio. Quando a emoção avulsa e certa pressa tomou conta das ocorrências, o processo fragilizou. Ir buscar gente à fronteira da Ucrânia sem contexto institucional, legal e sem avaliar as condições para o respetivo acolhimento, é o exemplo típico de alguma imprudência. Do ponto de vista pessoal será inspirador, nas ofertas de bens e vontades, contar armas, metáfora irónica neste contexto… Não convém também, como me aconteceu bastas vezes, alimentar autopressões mais ou menos morais, sobre o pouco que faço: a caridade, como a nossa fé, é sempre pequena… e há que conviver bem com isso. Quem se mete nestas coisas da solidariedade sabe que as surpresas acontecem, que a expetativa deve ser gerida (e principalmente baixada, até zero, no melhor dos sentidos). Por vezes, diante de joio que vinha no meio do trigo, cheguei a pensar “onde eu me meti, mais valia ter ficado no sofá”. É tentação pura, e o caminho, quando algo corre menos bem, é dar melhor e não deixar de dar.

Comunicante mas contido

Notei-me muito falador e pouco escutante. Em qualquer conversa, emito… e falo sobre a guerra. Digo-me otimista mas muito preocupado. Especulo, filosofo (baratamente…), adivinho futuros. Medos… Este é um dos aspetos que existia antes da guerra: sou um dos distraídos que despreza o ouvido em favor da boca. Recomendo a mim mesmo, principalmente agora, mais silêncio e mais escuta. E se gosto de falar (porque gosto), pois que espere pelas perguntas dos outros. Meu jejum mais preciso é o da palavra.

Colhido pelo facto mas aberto ao quotidiano

Perante o compreensível mergulho na realidade que nos engole, é muito importante ir retomando alguns gestos. Sem tal significar distração ou anestesia, a vida continua e isso é uma das respostas à brutalidade deste tempo. Abandonei durante três semanas o cuidado da horta e a remoção das daninhas de hoje fez-me refletir com algum sentido autocrítico. A natureza ensina…

Realista mas esperançado

Há desafios neste cenário, nos planos das ideias e da ação, que são duma complexidade extrema. Quando analogicamente penso num matulão numa escola em bullying violento ativo, e na forma como eu, se pudesse, o travaria (usando força, bem entendido), fico partido diante da convicção de não responder à guerra com a guerra e, ao mesmo tempo, sensível ao justo pragmatismo de uma paz mundial (ainda) armada. O que fui vivendo nestes tempos, em dança de moções, levou-me variadas vezes aquilo a que poderia chamar recomeços amorosos. Recordo com inspiração as máximas de Santa Teresa (mais contemplativa) ou de Teresa de Calcutá (mais ativa, mas mística nos seus desertos), sempre apontando para a grande pequenez do amor. Nas guerras maiores, o elixir é o mesmo das guerras menores: salvar-me-á sempre, a mim e a todos, o amor que falta. O amor que somos chamados a derramar no espaço e no tempo, também e principalmente neste instante incerto.


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 20 de março de 2022

Depois do Angelus

Queridos irmãos e irmãs!

Também esta semana caíram mísseis e bombas sobre civis, idosos, crianças e mães grávidas. Fui visitar as crianças feridas aqui em Roma. A uma falta um braço, outra tem uma ferida na cabeça... Crianças inocentes! Penso nos milhões de refugiados ucranianos que devem fugir, abandonando tudo, e sinto uma grande tristeza por aqueles que nem sequer têm a oportunidade de escapar. Tantos avós, doentes e pobres, separados das suas famílias, muitas crianças e pessoas frágeis são deixadas a morrer debaixo das bombas, sem poder receber ajuda e sem encontrar segurança nem sequer nos abrigos antiaéreos. Tudo isto é desumano! Com efeito, é até sacrílego, porque vai contra a santidade da vida humana, especialmente contra a vida humana indefesa, que deve ser respeitada e protegida, não eliminada, e que vem antes de qualquer estratégia! Não esqueçamos: é cruel, desumano e sacrílego! Rezemos em silêncio por aqueles que sofrem.

Consola-me saber que às pessoas deixadas sob as bombas não falta a proximidade dos Pastores, que nestes dias trágicos vivem o Evangelho da caridade e da fraternidade. Nos últimos dias falei com alguns deles por telefone, como estão próximos do povo de Deus! Obrigado, caros irmãos e irmãs, por este testemunhe e pelo apoio concreto que corajosamente ofereceis a tantas pessoas desesperadas! Penso também no Núncio Apostólico recentemente nomeado, D. Visvaldas Kulbokas, que permanece em Kiev com os seus colaboradores desde o início da guerra e que, com a sua presença, me aproxima todos os dias do povo ucraniano mártir. Estejamos próximos deste povo, abracemo-lo com afeto, com empenho concreto e com a oração. E, por favor, não nos habituemos à guerra e à violência! Não nos cansemos de acolher com generosidade, como continuamos a fazer: não só agora, na emergência, mas também nas semanas e meses vindouros. Pois, como sabeis, no início todos nós fazemos o melhor que podemos para acolher, mas depois o hábito arrefece-nos um pouco o coração e esquecemo-nos. Pensemos nestas mulheres, nestas crianças que, com o passar do tempo, sem trabalho, separadas dos maridos, serão procuradas pelos “abutres” da sociedade. Protejamo-las, por favor!

Convido todas as comunidades e todos os fiéis a unir-se a mim na sexta-feira, 25 de março, solenidade da Anunciação, para fazer um solene ato de consagração da humanidade, especialmente da Rússia e da Ucrânia, ao Coração Imaculado de Maria, para que Ela, Rainha da Paz, obtenha a paz para o mundo!

Desejo bom domingo a todos vós. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Maré Alta

Carta de um tempo de guerra

Aqui rezo, cheio de dor, por ti. E tu retribuis-me com uma amizade sincera, com um: “está tudo bem” ou um “não te preocupes”.

P. Francisco Cortês Ferreira, sj | in Ponto SJ | 9 de Março

A propósito da guerra fui vasculhar a biblioteca aqui de casa e encontrei uma carta que não resisto em partilhar:

Querido XX

Nunca poderei expressar a minha gratidão por todas essas palavras amigas que me enviaste. Gostava de me fazer de forte, e dizer que não estou comovido, como os homens fortes, diante desse papel amarrotado, que me escreveste em breves pausas de combate, com o pequeno lápis que levas sempre no bolso esquerdo, ao lado das balas.

Como responder a tal fidelidade? Essa fidelidade amiga que resiste aos campos nevados, aos gritos dos homens em desespero, ao impacto surdo das bombas disparadas, na verdade, por ninguém. Essa fidelidade que resiste ao frio que aconchega os cadáveres dos nossos amigos de infância que partiram contigo. Esses das brincadeiras ingénuas, dos jeitos amuados, dos joelhos esfolados, dos cabelos despenteados e colados à testa pelo suor das corridas intermináveis. Os nossos amigos que eram os príncipes imortais das nossas aventuras sonhadas juntos.

Aqui rezo, cheio de dor, por ti. E tu retribuis-me com uma amizade sincera, com um: “está tudo bem” ou um “não te preocupes”. Sabes que não é assim, que qualquer bala perdida fechará os teus olhos para sempre. Mas isso não te importa. Perguntas-me pelos meus estudos, pelos meus amores, pelo meu futuro (que viverei quando já tiveres, há muito, desaparecido). Pedes ao Senhor que me abençoe.

A verdade é que a minha vida foi também desfeita pelos estilhaços de todas essas bombas que vos matam. Sinto-me a perder o sentido de ordem interior em que tinha empacotado a minha existência. Desfeito de saudades vossas. Magoado pelas vossas palavras, talvez as últimas, que me consolam. Magoam e consolam, por serem as últimas.

Vou tentando meditar, tentando não deixar que as imagens dos vossos rostos me atrapalhem o que me resta da luz de Deus. Imagino essas trincheiras enlameadas neste inverno que não deixa entrar a primavera. Talvez as primeiras flores surjam quando vocês já não estejam entre nós. Talvez vocês morram de verdade e estas palavras já não vos cheguem.

Fizeram-se gigantes para mim. Existem apenas no silêncio da noite, quando me recolho para meditar em silêncio a Palavra de Deus como único ponto de cristalização que dá horizonte à minha vida. A única coisa que ainda me ordena, que me re-situa, que me consola. Como um íman que recolhe os últimos restos de profundidade das coisas, as últimas fontes de esperança, os últimos olhares de benevolência. Nesse momento apresento ao Altíssimo o último lugar de disciplina, de quietude, de cura e de alegria da minha vida. E recordo baixinho as palavras do Salmo:

Ele estabeleceu a paz nas tuas fronteiras
e saciou-te com a flor do trigo.
Ele manda as suas ordens à terra,
e a sua palavra corre velozmente;
faz cair a neve, branca como a lã,
espalha a geada como se fosse cinza;

faz cair o granizo como migalhas de pão;
com o seu frio, quem pode resistir?
Envia a sua palavra e o gelo derrete-se;
faz soprar o vento e correr as águas

(Sl. 147, 14-18)

Esta manhã o gelo começou a derreter e as primeiras flores brotarão em breve, com os pássaros que chegam do sul. Daqui a poucas semanas festejaremos a Páscoa, e cantaremos alegres a sua mensagem de paz. ´

Escrevo-te estas palavras na esperança que as leias. Se não puderes, que os anjos as sussurrem aos ouvidos, quando repousado, entrares na glória de Deus.

Que o Senhor te abençoe e te guarde.


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 6 de março de 2022

Depois do Angelus

Amados irmãos e irmãs!

Rios de sangue e de lágrimas correm na Ucrânia. Isto não é apenas uma operação militar, mas uma guerra, que semeia morte, destruição e miséria. O número de vítimas está a crescer, tal como as pessoas em fuga, especialmente mães e crianças. A necessidade de assistência humanitária naquele país atormentado está a crescer dramaticamente a cada hora que passa.

Faço um apelo urgente para que os corredores humanitários sejam verdadeiramente seguros, e para que o acesso da ajuda às áreas sitiadas seja garantido e facilitado, a fim de proporcionar socorro vital aos nossos irmãos e irmãs oprimidos pelas bombas e pelo medo.

Agradeço a quantos acolhem refugiados. Sobretudo, apelo a que cessem os ataques armados, à prevalência das negociações – e que prevaleça também bom senso – e se volte ao respeito do direito internacional!

E gostaria também de agradecer aos jornalistas que puseram a própria vida em risco para fornecer informações. Obrigado, irmãos e irmãs, por este serviço! Um serviço que nos permite estar próximos do drama daquela população e de avaliar a crueldade de uma guerra. Obrigado, irmãos e irmãs.

Rezemos juntos pela Ucrânia: temos as suas bandeiras à nossa frente. Rezemos juntos, como irmãos, a Nossa Senhora, Rainha da Ucrânia. Ave Maria...

A Santa Sé está disposta a fazer tudo, para se colocar ao serviço desta paz. Nestes dias, dois Cardeais foram à Ucrânia, para servir o povo, para ajudar. O Cardeal Krajewski, Esmoler, para levar ajuda aos necessitados, e o Cardeal Czerny, Prefeito “ad interim” do Dicastério para o Serviço de Desenvolvimento Humano Integral. A presença dos dois Cardeais ali é a presença não só do Papa, mas de todo o povo cristão que se quer aproximar e dizer: “A guerra é uma loucura! Parai, por favor! Olhai para esta crueldade!”.


Maré Alta

Escutar: Um poder mal usado

Conta-se que o filósofo Aristipo, discípulo de Sócrates, foi muito criticado por se ter ajoelhado diante do tirano Dionísio. Aristipo justificou-se dizendo que não era culpa sua o facto de Dionísio ter os ouvidos… nos pés!

Aristipo tinha compreendido bem que os seres humanos não gostam das palavras verdadeiras, mas apreciam as palavras complacentes. Somos todos como o tirano Dionísio. E a comunicação mediática entendeu-o bem. A política tornou-se muitas vezes a arte de encontrar as palavras que a maioria quer ouvir dizer. Não importa se são verdadeiras ou falsas, se se realizarão ou se depressa serão esquecidas. O importante é que hoje o Dionísio que está em nós fique satisfeito. A responsabilidade do outro lado é também do consumidor, do cidadão, do espetador, porque, como afirmava Plutarco: «Como cada um, autocomprazendo-se, é o primeiro e principal adulador de si, aceita sem dificuldade um testemunho exterior que confirme os seus desejos e as suas ilusões». No mercado das palavras, andamos, na maior parte das vezes, à procura do que nos convém.

Esta necessidade de confirmação encontrou também um rosto feminino na bruxa da “Branca de Neve”, que interroga o espelho para se ouvir confirmada na sua absoluta beleza. Mas de vez em quando a realidade desilude-nos e devolve-nos uma imagem menos agradável do que esperávamos. Por vezes, o espelho da realidade é impiedoso, mas se deixamos de o escutar, tornamo-nos protagonistas das ações mais deploráveis.

De Dionísio em diante, o poder afinou cada vez mais a manipulação da escuta. Se, por um lado, as empresas escutam de maneira falsa e interesseira os gostos e as tendências dos clientes, por outro há também um poder que se alimenta recusando a escuta. Se, por exemplo, num processo judicial o acusado não é escutado ou não lhe é garantida a legítima defesa, ou não são escutadas as testemunhas que podem justifica-lo, estamos diante da injustiça perpetrada mediante o abuso do poder. «Não te escuto» quer dizer «para mim não existes e posso fazer de ti o que eu quiser».

Ao contrário, a escuta autêntica é a premissa necessária para julgar. O preconceito é uma barreira à escuta. Renunciamos a escutar quando pretendemos saber já, supomos conhecer, estamos convictos de que a nossa ideia corresponde necessariamente à verdade. Hoje, mais que nunca, são muitas as vítimas da injusta ausência de escuta.

É claro, portanto, que a reconstrução de um mundo justo passa através do exercício da escuta. Vemo-lo antes de tudo na relação entre pais e filhos, adultos e jovens. A necessidade de se ser aprovado e reconhecido passa necessariamente através da experiência da escuta: um pai tem nas mãos o poder de gerar frustração ou bem-estar no seu filho simplesmente refutando ou acolhendo o implícito, e por vezes silencioso, pedido de escuta. Também uma instituição, também a Igreja, tem nas suas mãos o poder de dar acolhimento ou transmitir indiferença. Muitas feridas que trazemos aos ombros foram geradas pela perceção, verdadeira ou presumida, de não termos sido escutados: nessas ocasiões não nos sentimos amados.

Vendo bem, a capacidade de escutar é precisamente a possibilidade dada ao ser humano para evitar o risco do delírio de omnipotência e para reconhecer que foi feito para a relação. A criança aprende a escutar antes de aprender a falar, aliás, aprende a falar precisamente porque tem a capacidade de escutar: falar quer dizer inicialmente repetir aquilo que escuto. Isto quer dizer que nunca aprenderia a falar se não houvesse antes de mim alguém que me dirige a palavra e que posso escutar. Apenas porque escuto, posso falar. Hoje, talvez, já não somos capazes de falar precisamente porque deixámos de escutar. É como se ao não escutar, eliminássemos a verdade da nossa origem.

Esta dinâmica é muito clara na revelação bíblica: «Deus disse» é o primeiro passo da história da salvação. O ser humano escuta. Reconsiderar a nossa atitude para a escuta significa também reapropriar-se da nossa identidade diante de Deus. Graças a esta capacidade de escuta, o ser humano pode receber o dom da lei. Reencontramos aqui o profundo nexo, que no latim é evidente, entre escutar (“audire”) e obedecer (“ob-audire”). Não se pode obedecer sem escutar. Se a rebelião fundamental do ser humano consiste na recusa da relação com Deus e com os outros, só pode começar com o fechamento dos ouvidos. O mal começa daí, da des-obediência, da traição do dom da escuta: o eu toma o todo o espaço quando não há mais nada que entra na nossa vida.

Obedecer à realidade quer dizer, antes, reconhecer a tarefa que ela, generosamente, como dizia Viktor Frankl, tem para nós. Sem esta escuta, restam as ideias sem pernas. Arriscamo-nos a construir castelos sem alicerces.

Uma sociedade tem o poder de escutar a sua história ou de romper a relação com o seu passado. A memória coletiva é o fundamento da reconstrução. Quando Israel regressa do exílio, como descreve o livro de Neemias, precisa de escutar a narração do seu caminho rumo à terra prometida: diante dos escombros, o povo precisa de reconstruir, mas só o pode fazer sobre o fundamento do seu passado.

Há muitas vozes, e facilmente podemos ser enganados. Há quem grita mais forte e quem fala de maneira mais suave. Por isso a escuta não é simplesmente ouvir. O ouvir fica pela orelha, a escuta é a capacidade de ligar a cabeça e o coração. É o início do discernimento: escuta-se quando se compreende com o intelecto e se sente com o coração. Só numa escuta honesta reencontramos a nossa plena identidade, integrando as dimensões fundamentais da nossa pessoa.

Gateano Piccolo | In L'Osservatore Romano | in SNPC | Publicado em 17.02.2022


Maré Alta

Escutar: Um poder mal usado

Conta-se que o filósofo Aristipo, discípulo de Sócrates, foi muito criticado por se ter ajoelhado diante do tirano Dionísio. Aristipo justificou-se dizendo que não era culpa sua o facto de Dionísio ter os ouvidos… nos pés!

Aristipo tinha compreendido bem que os seres humanos não gostam das palavras verdadeiras, mas apreciam as palavras complacentes. Somos todos como o tirano Dionísio. E a comunicação mediática entendeu-o bem. A política tornou-se muitas vezes a arte de encontrar as palavras que a maioria quer ouvir dizer. Não importa se são verdadeiras ou falsas, se se realizarão ou se depressa serão esquecidas. O importante é que hoje o Dionísio que está em nós fique satisfeito. A responsabilidade do outro lado é também do consumidor, do cidadão, do espetador, porque, como afirmava Plutarco: «Como cada um, autocomprazendo-se, é o primeiro e principal adulador de si, aceita sem dificuldade um testemunho exterior que confirme os seus desejos e as suas ilusões». No mercado das palavras, andamos, na maior parte das vezes, à procura do que nos convém.

Esta necessidade de confirmação encontrou também um rosto feminino na bruxa da “Branca de Neve”, que interroga o espelho para se ouvir confirmada na sua absoluta beleza. Mas de vez em quando a realidade desilude-nos e devolve-nos uma imagem menos agradável do que esperávamos. Por vezes, o espelho da realidade é impiedoso, mas se deixamos de o escutar, tornamo-nos protagonistas das ações mais deploráveis.

De Dionísio em diante, o poder afinou cada vez mais a manipulação da escuta. Se, por um lado, as empresas escutam de maneira falsa e interesseira os gostos e as tendências dos clientes, por outro há também um poder que se alimenta recusando a escuta. Se, por exemplo, num processo judicial o acusado não é escutado ou não lhe é garantida a legítima defesa, ou não são escutadas as testemunhas que podem justifica-lo, estamos diante da injustiça perpetrada mediante o abuso do poder. «Não te escuto» quer dizer «para mim não existes e posso fazer de ti o que eu quiser».

Ao contrário, a escuta autêntica é a premissa necessária para julgar. O preconceito é uma barreira à escuta. Renunciamos a escutar quando pretendemos saber já, supomos conhecer, estamos convictos de que a nossa ideia corresponde necessariamente à verdade. Hoje, mais que nunca, são muitas as vítimas da injusta ausência de escuta.

É claro, portanto, que a reconstrução de um mundo justo passa através do exercício da escuta. Vemo-lo antes de tudo na relação entre pais e filhos, adultos e jovens. A necessidade de se ser aprovado e reconhecido passa necessariamente através da experiência da escuta: um pai tem nas mãos o poder de gerar frustração ou bem-estar no seu filho simplesmente refutando ou acolhendo o implícito, e por vezes silencioso, pedido de escuta. Também uma instituição, também a Igreja, tem nas suas mãos o poder de dar acolhimento ou transmitir indiferença. Muitas feridas que trazemos aos ombros foram geradas pela perceção, verdadeira ou presumida, de não termos sido escutados: nessas ocasiões não nos sentimos amados.

Vendo bem, a capacidade de escutar é precisamente a possibilidade dada ao ser humano para evitar o risco do delírio de omnipotência e para reconhecer que foi feito para a relação. A criança aprende a escutar antes de aprender a falar, aliás, aprende a falar precisamente porque tem a capacidade de escutar: falar quer dizer inicialmente repetir aquilo que escuto. Isto quer dizer que nunca aprenderia a falar se não houvesse antes de mim alguém que me dirige a palavra e que posso escutar. Apenas porque escuto, posso falar. Hoje, talvez, já não somos capazes de falar precisamente porque deixámos de escutar. É como se ao não escutar, eliminássemos a verdade da nossa origem.

Esta dinâmica é muito clara na revelação bíblica: «Deus disse» é o primeiro passo da história da salvação. O ser humano escuta. Reconsiderar a nossa atitude para a escuta significa também reapropriar-se da nossa identidade diante de Deus. Graças a esta capacidade de escuta, o ser humano pode receber o dom da lei. Reencontramos aqui o profundo nexo, que no latim é evidente, entre escutar (“audire”) e obedecer (“ob-audire”). Não se pode obedecer sem escutar. Se a rebelião fundamental do ser humano consiste na recusa da relação com Deus e com os outros, só pode começar com o fechamento dos ouvidos. O mal começa daí, da des-obediência, da traição do dom da escuta: o eu toma o todo o espaço quando não há mais nada que entra na nossa vida.

Obedecer à realidade quer dizer, antes, reconhecer a tarefa que ela, generosamente, como dizia Viktor Frankl, tem para nós. Sem esta escuta, restam as ideias sem pernas. Arriscamo-nos a construir castelos sem alicerces.

Uma sociedade tem o poder de escutar a sua história ou de romper a relação com o seu passado. A memória coletiva é o fundamento da reconstrução. Quando Israel regressa do exílio, como descreve o livro de Neemias, precisa de escutar a narração do seu caminho rumo à terra prometida: diante dos escombros, o povo precisa de reconstruir, mas só o pode fazer sobre o fundamento do seu passado.

Há muitas vozes, e facilmente podemos ser enganados. Há quem grita mais forte e quem fala de maneira mais suave. Por isso a escuta não é simplesmente ouvir. O ouvir fica pela orelha, a escuta é a capacidade de ligar a cabeça e o coração. É o início do discernimento: escuta-se quando se compreende com o intelecto e se sente com o coração. Só numa escuta honesta reencontramos a nossa plena identidade, integrando as dimensões fundamentais da nossa pessoa.

Gateano Piccolo | In L'Osservatore Romano | in SNPC | Publicado em 17.02.2022


Maré Alta

A maravilhosa inutilidade de uma semente

Isabel Lopes Cardoso | 2 Fevereiro 2022 | in Ponto SJ

A utilidade como critério de vida, como indicador do “sucesso” e “progresso” – vocabulário perigoso – oferece-nos das imagens mais distorcidas de Deus que podemos encontrar.

Há um ditado indiano, parte dos escritos hindus, que diz: “Com que nome Te hei-de chamar? A Ti que estás para lá de qualquer nome?”

Há uma espécie de despreendimento total neste ditado, um abandono do controlo sobre as imagens que temos de Deus, pois Ele está para além de todas essas imagens. Jesus veio quebrar essas mesmas imagens. Os discípulos esperavam algo dele e de certa forma – e perdoem-me a ousadia – Ele desiludiu-os. Desiludiu-os porque eles viviam na ilusão, numa imagem construída de quem o Messias deveria ser, não compreendendo uma outra realidade que se apresentasse fora dos enquadramentos que eles tinham estipulado. Por isso, só o compreenderam, verdadeiramente, na Ressurreição. Na cruz, morrem as imagens e as esperanças associadas às imagens que tinham de quem Jesus deveria ser. Foi na Ressurreição, que uma vez abandonadas essas imagens, os discípulos despertaram para a Verdade, para a Vida, para a Boa Nova que Jesus nos/lhes trazia. A boa nova, não a velha.

O P. Cecil Azzopardi, sj, numa das suas intervenções deliciosamente desconfortantes e libertadoras, interpela-nos: “Que realidade é esta a quem chamamos Deus?” Desafia-nos a juntarmos os retalhos dos títulos, imagens, traços que compusemos sobre quem Deus é, numa tentativa de conhecer mas também de controlar a realidade, e de as pormos de lado.

“Como podemos falar de Deus, sem termos tido uma experiência de Deus?”, pergunta-nos Azzopardi, sj. Afinal, como podemos falar do amor, sem o termos experimentado? Como podemos compreender a dor, sem termos experimentado a dor?

Quem tem por critério de vida a utilidade, pouco deverá conhecer sobre “esta realidade a quem chamamos Deus”. Para quem a utilidade é uma medida no amor, nas relações, na forma como lidamos com os sentimentos, como consegue compreender o Amor de Deus? Um amor incondicional, um amor sem se’s, um amor sem medidas… é difícil de compreender.

Um dia, em conversa com um amigo, tentando eu entender este Amor de Deus e o que significa a Sua misericórdia, perante a minha incapacidade, de momento, em compreender como Deus me podia amar, ficando eu tão aquém daquilo que eu achava que Deus queria de mim, dando-me Ele tanto e eu falhando tanto, vezes e vezes já sem conta, este meu bom amigo, contou-me a seguinte história:

Um agricultor-semeador escolhe a sua semente favorita, a semente que irá fazer brotar a mais hermosa flor. Prepara a terra como quem ajeita uma almofada de penas, fofa, formando um vale de sonhos onde a cabeça irá repousar, acordando no dia seguinte, renovada, preparada para o novo dia. O Semeador semeia a semente e sonha com a formosa flor que irá desabrochar: de um rebento, num espreguiçar despreocupado soltar-se-ão as pétalas, e uma a uma, ocuparão o seu lugar de flor, numa coreografia de harmoniosa sintonia. O Semeador irá regar a flor, dar-lhe-á de beber, saciará todas as suas necessidades, deixará entrar o sol, proporcionará tudo aquilo que a encha de vida, para que ela cresça e venha a ser a linda flor, amorosamente sonhada até ao mais ínfimo detalhe. Dará espaço ao tempo, e tempo à terra para que as raízes assentem e se entranhem nesse vale dos sonhos que as alimenta e sustenta. E com tudo preparado e oferecido, acompanhando diariamente o crescimento da sua flor, o Semeador faz aquilo que lhe falta fazer: esperar. Espera que a flor desabroche no esplendor radioso para o qual foi criada.

Ao contarem-me esta história, pausaram aqui mesmo e perguntaram-me: “E se a flor não desabrochar, morrer na terra ou não conseguir crescer para ser a formosa flor que neste ponto da história, todos esperamos que aconteça? O que dirá o seu Semeador? Como se sentirá ele? Ficará zangado com a flor, dizendo-lhe: Eu dei-te tudo, fiz tudo para que fosses a flor mais bonita de todo este jardim, e tu não aproveitaste o que te dei, o que te dei de graça?”

E com paciência, sabendo que eu já sabia a resposta mas que ainda não a compreendia na totalidade, o meu amigo continuou: o Semeador não ficará zangado. O Semeador não semeou pedindo nada em troca à sua semente. O Semeador não plantou a semente na condição dessa ter de desabrochar e ser a mais bonita e florida flor do jardim. Plantou apenas, sonhou, cuidou e deixou crescer, amando a sua semente, não por vir a ser flor, mas por ser somente, a sua semente, aquela em quem pôs todo o seu agrado.

Também Deus será assim connosco, também será assim o Seu amor. Um amor sem condições. Um amor que não ama porque eu cumpro, atinjo as metas, porque sou profícua no trabalho, na vida social, na maneira utilitária com que encaro a minha missão e vocação. Um amor assim não nos amaria quando mais precisamos, quando não atingimos a nossa plenitude, o sonho para o qual fomos feitos, quando ficamos aquém das nossas próprias expectativas e exigências.

Como podemos conhecer esta realidade a quem chamamos Deus, se usamos do critério da exigência e utilidade para a compreender, para a experienciar, construindo uma realidade sobre quem Deus é, que é tudo menos o que Ele é, sendo um espelho da nossa parca versão do que é o amor? Viver com o critério de um amor utilitário, torna difícil experienciar e assim compreender o Amor de Deus: O amor de quem tudo dá, sendo no dar, que É.


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 6 de fevereiro de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da Liturgia de hoje leva-nos às margens do lago da Galileia. A multidão aglomera-se à volta de Jesus, enquanto alguns pescadores desiludidos, incluindo Simão Pedro, lavavam as suas redes após uma noite de pesca que correu mal. E eis que Jesus entra precisamente na barca de Simão; depois convida-o a fazer-se ao largo e a lançar de novo as redes (cf. Lc 5, 1-4). Façamos uma pausa nestas duas ações de Jesus: primeiro entra na barca e depois, a segunda, convida-o a fazer-se ao largo. Aquela noite correra mal, sem peixe, mas Pedro confia e faz-se ao largo.

Antes de tudo, Jesus entra na barca de Simão. Para fazer o quê? Para ensinar. Pede precisamente aquela barca, que não estava cheia de peixe mas que regressara vazia à margem, depois de uma noite de fadiga e desilusão. É uma bela imagem também para nós. Todos os dias a barca da nossa vida deixa as margens da nossa casa para navegar no mar das atividades diárias; todos os dias procuramos “pescar ao largo”, cultivar sonhos, perseguir projetos, viver o amor nas nossas relações. Mas muitas vezes, como Pedro, experimentamos a “noite das redes vazias” – a noite das redes vazias – a desilusão de nos esforçarmos muito e não vermos os resultados desejados: «Trabalhamos a noite inteira e nada apanhamos» (v. 5), diz Simão. Quantas vezes também nós ficamos com uma sensação de derrota, enquanto o desapontamento e a amargura surgem no coração. Dois carunchos muito perigosos.

O que faz então o Senhor? Escolhe precisamente entrar na nossa barca. Dali quer anunciar o Evangelho. Aquela barca vazia, o símbolo da nossa incapacidade, torna-se a “cátedra” de Jesus, o púlpito do qual ele proclama a Palavra. O Senhor gosta de fazer isto – o Senhor é o Senhor das surpresas, dos milagres nas surpresas: entrar na barca da nossa vida quando nada temos para lhe oferecer; entrar nos nossos vazios e enchê-los com a sua presença; servir-se da nossa pobreza para proclamar a sua riqueza, das nossas misérias para proclamar a sua misericórdia. Lembremo-nos disto: Deus não quer um navio de cruzeiro, uma pobre barca “escangalhada” é suficiente para ele, desde que o acolhamos. Isto sim, acolhê-lo; não importa em que barca, acolhê-lo. Mas nós – pergunto-me – deixamos que ele entre na barca da nossa vida? Será que lhe pomos à disposição o pouco que temos? Por vezes sentimo-nos indignos d’Ele, porque somos pecadores. Mas esta é uma desculpa de que o Senhor não gosta, porque O afasta de nós! Ele é o Deus da proximidade, da compaixão, da ternura, e não procura o perfeccionismo: procura acolhimento. Também a ti diz: “Deixa-me entrar na barca da tua vida” – “Mas, Senhor, olha...” – “Assim, deixa-me entrar, tal como é”. Pensemos nisto.

Deste modo o Senhor reconstrói a confiança de Pedro. Tendo entrado na sua barca, depois de ter pregado, diz-lhe: «Faz-te ao largo» (v. 4). Não era um momento adequado para pescar, em plena luz do dia, mas Pedro confia em Jesus. Ele não se baseia nas estratégias dos pescadores, que conhecia bem, mas na novidade de Jesus. Naquela admiração que o levava a fazer o que Jesus lhe dizia. É assim também para nós: se acolhermos o Senhor na nossa barca, podemos fazer-nos ao largo. Com Jesus, navegamos no mar da vida sem temor, sem ceder à desilusão quando não pescamos nada, e sem ceder ao “não há mais nada a fazer”. Sempre, tanto na vida pessoal como na vida da Igreja e da sociedade, há algo de belo e corajoso que pode ser feito, sempre. Podemos recomeçar sempre, o Senhor convida-nos a pôr-nos sempre em questão porque Ele abre novas possibilidades. Aceitemos então o convite: afastemos o pessimismo e a desconfiança e façamo-nos ao largo com Jesus! Também a nossa pequena barca vazia testemunhará uma pesca milagrosa.

Oremos a Maria, que como ninguém acolheu o Senhor na barca da vida: que ela nos encoraje e interceda por nós.


Depois do Angelus

Amados irmãos e irmãs

Celebramos hoje o Dia internacional contra as mutilações genitais femininas. Cerca de três milhões de jovens são submetidas a esta intervenção todos os anos, muitas vezes em condições muito perigosas para a sua saúde. Esta prática, infelizmente generalizada em muitas partes do mundo, desrespeita a dignidade das mulheres e mina seriamente a sua integridade física.

E na próxima terça-feira, memória litúrgica de Santa Josefina Bakhita, celebraremos o Dia mundial de oração e reflexão contra o tráfico de pessoas. Trata-se de uma ferida profunda, infligida pela vergonhosa perseguição de interesses económicos sem qualquer respeito pela pessoa humana. Tantas jovens – vemo-las nas ruas – que não são livres, são escravas de traficantes, que as enviam a trabalhar e, se não levarem o dinheiro, são espancadas. Isto acontece hoje nas nossas cidades. Pensemos seriamente nisto.

Face a estes flagelos da humanidade, expresso a minha dor e exorto todos os responsáveis a agirem de forma decisiva para prevenir tanto a exploração como as práticas humilhantes que afligem as mulheres e as meninas em particular.

Hoje, na Itália, celebramos também o Dia pela Vida, com o tema “Preservar todas as vidas”. Este apelo é válido para todos, especialmente para as categorias mais débeis: os idosos, os doentes, e também as crianças às quais se impede de nascer. Uno-me aos Bispos italianos na promoção da cultura da vida como resposta à lógica do descarte e à diminuição demográfica. Todas as vidas devem ser preservadas, sempre!

Estamos habituados a ver e ler nos meios de comunicação social muitas coisas negativas, más notícias, acidentes, assassinatos... tantas coisas. Mas hoje gostaria de mencionar duas coisas bonitas. Uma, em Marrocos, como todo o povo se uniu para salvar Rayan. Estavam lá todas as pessoas, a trabalhar para salvar um menino! Deram o melhor de si. Infelizmente não se salvou. Mas este exemplo – vi hoje em “Il Messaggero” – as fotografias de um povo, à espera de salvar um menino... Obrigado a este povo por este testemunho!

E outra, que aconteceu aqui em Itália, e que não aparecerá no jornal. No Monferrato: John, um rapaz ganês, 25 anos, um migrante, que sofreu tudo o que muitos migrantes sofrem para chegar aqui, e no final estabeleceu-se no Monferrato, começou a trabalhar, para construir o seu futuro, numa empresa vinícola. E depois adoeceu com um cancro terrível, está em fins de vida. E quando lhe disseram a verdade, perguntando-lhe o que gostaria de fazer, [ele respondeu:] “Voltar para casa para abraçar o meu pai antes de morrer”. Diante da morte, pensou no seu pai. E naquela cidade do Monferrato, fizeram imediatamente uma recolha e, cheio de morfina, colocaram-no, juntamente com um amigo, num avião e mandaram-no embora para que pudesse morrer nos braços do seu pai. Isto mostra-nos que hoje, no meio de tantas más notícias, há coisas boas, há “santos da porta ao lado”. Obrigado por estes dois testemunhos que nos fazem bem.
(…)

Desejo a todos bom domingo. E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista.


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

AUDIÊNCIA GERAL

Sala Paulo VI
Quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Catequese sobre São José 9. São José, homem que "sonha"

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje gostaria de me concentrar na figura de São José como homem que sonha. Na Bíblia, como nas culturas dos povos antigos, os sonhos eram considerados um meio pelo qual Deus se revelava (Cf. Gn 20, 3; 28, 12; 31, 11.24; 40, 8; 41, 1-32; Nm 12, 6; 1 Sm 3, 3-10; Dn 2; 4; Job 33, 15.). O sonho simboliza a vida espiritual de cada um de nós, o espaço interior, que cada um é chamado a cultivar e preservar, onde Deus se manifesta e muitas vezes nos fala. Mas devemos também dizer que dentro de cada um não existe apenas a voz de Deus: existem muitas outras vozes. Por exemplo, as vozes dos nossos receios, as vozes das experiências passadas, as vozes das esperanças; e há também a voz do maligno que nos quer enganar e confundir. Por conseguinte, é importante ser capaz de reconhecer a voz de Deus no meio de outras vozes. José demonstra que sabe cultivar o silêncio necessário e, sobretudo, tomar as decisões corretas perante a Palavra que o Senhor lhe dirige interiormente. Hoje, será bom para nós retomarmos os quatro sonhos do Evangelho que o têm como protagonista, para compreender como nos colocarmos perante a revelação de Deus. O Evangelho narra-nos quatro sonhos de José.

No primeiro sonho (cf. Mt 1, 18-25), o anjo ajuda José a resolver o drama que o assola quando soube da gravidez de Maria: «Não temas receber Maria por esposa, pois o que nela foi concebido vem do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos seus pecados» (vv. 20-21). E a sua resposta foi imediata: «Despertando, José fez como o anjo do Senhor lhe havia mandado» (v. 24). Muitas vezes a vida coloca-nos diante de situações que não compreendemos e que parecem não ter solução. Rezar nesses momentos significa deixar que o Senhor nos indique o que é justo fazer. Na verdade, muitas vezes é a oração que nos dá a intuição da saída, como resolver aquela situação. Caros irmãos e irmãs, o Senhor nunca permite que um problema surja sem nos conceder também a ajuda necessária para o enfrentar. Não nos lança sozinhos na fornalha. Não nos lança no meio das feras. Não. O Senhor quando nos mostra um problema ou revela um problema, dá-nos sempre a intuição, a ajuda, a sua presença, para sairmos dele, para o resolver.

O segundo sonho revelador de José chega quando a vida do menino Jesus está em perigo. A mensagem é clara: «Levanta-te, toma o menino e sua mãe e vai para o Egito; fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar» (Mt 2, 13). José obedeceu sem hesitação: «Levantou-se durante a noite, tomou o menino e a sua mãe e partiu para o Egito. Ali permaneceu até à morte de Herodes» (vv. 14-15). Na vida, todos nós experimentamos perigos que ameaçam a nossa existência ou a daqueles que amamos. Nestas situações, rezar significa ouvir a voz que nos pode dar a mesma coragem de José, para enfrentar as dificuldades sem sucumbir.

No Egito, José espera um sinal de Deus para poder regressar a casa, e este é o conteúdo do terceiro sonho. O anjo revela-lhe que aqueles que queriam matar o menino morreram e ordena-lhe que parta com Maria e Jesus e regresse à pátria (cf. Mt 2, 19-20). José «levantou-se, tomou o menino e a sua mãe e foi para a terra de Israel» (v. 21). Mas precisamente na viagem de regresso, «ao ouvir que Arquelau reinava na Judeia, no lugar de seu pai Herodes, não ousou ir para lá» (v. 22). Eis então a quarta revelação: «Advertido em sonhos, retirou-se para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré» (vv. 22-23). O medo também faz parte da vida e precisa da nossa oração. Deus não nos promete que nunca teremos medo, mas que, com a sua ajuda, este não será o critério para as nossas decisões. José experimenta o medo, mas Deus guia-o através dele. O poder da oração ilumina as situações de escuridão.

Penso neste momento em tantas pessoas que estão esmagadas pelo peso da vida e já não conseguem ter esperança nem rezar. Que São José as ajude a abrir-se ao diálogo com Deus, para encontrar luz, força e paz. E penso também nos pais diante dos problemas dos filhos. Filhos com muitas doenças, filhos doentes, inclusive com enfermidades permanentes: quanto sofrimento nisto. Pais que veem orientações sexuais diferentes nos filhos; como gerir isto e acompanhar os filhos e não se esconder numa atitude condenatória. Pais que veem os filhos que vão embora, morrem, por causa de uma doença e também – é mais triste, lemos todos os dias nos jornais – jovens que fazem leviandades e acabam num acidente de carro. Os pais que veem os filhos que não rendem na escola e não sabem o que fazer… Muitos problemas dos pais. Pensemos em como os ajudar. E a estes pais, digo: não vos assusteis. Sim, há o sofrimento. Muito. Mas pensai como José resolveu os problemas e pedi a José que vos ajude. Nunca condeneis um filho. Sinto tanta ternura – também em Buenos Aires – quando ia de autocarro e passava diante da prisão: havia uma fila de pessoas que esperavam para entrar e visitar os encarcerados. E estavam ali as mães, faziam-me sentir tanta ternura: face ao problema de um filho que errou, foi preso, não o deixavam sozinho, encaravam o problema e acompanhavam-no. Esta coragem; coragem de pai e de mãe que acompanham os filhos sempre, sempre. Peçamos ao Senhor que conceda a todos os pais e a todas as mães esta coragem que deu a José. E depois rezar a fim de que o Senhor nos ajude nestes momentos.

A oração, no entanto, nunca é um gesto abstrato nem intimista, como querem fazer aqueles movimentos espirituais mais gnósticos do que cristãos. Não, não é isto. A oração está sempre indissociavelmente ligada à caridade. Só quando unimos a oração com o amor, o amor pelos filhos, como o caso que acabei de mencionar, ou o amor ao próximo, somos capazes de compreender as mensagens do Senhor. José rezava, trabalhava e amava – três ações boas para os pais: rezar, trabalhar e amar – e por isso recebeu sempre o necessário para enfrentar as provações da vida. Confiemo-nos a ele e à sua intercessão.

São José, vós sois o homem que sonha,
ensinai-nos a recuperar a vida espiritual
como o lugar interior onde Deus se manifesta e nos salva.
Retirai de nós o pensamento de que rezar é inútil;
ajudai cada um de nós a corresponder ao que o Senhor nos indica.
Que o nosso raciocínio seja irradiado pela luz do Espírito,
o nosso coração encorajado pela Sua força
e os nossos receios salvos pela Sua misericórdia. Ámen


Maré Alta

Dar a César o que é de César

P. António Ary, sj | in Ponto SJ | 20 Janeiro 2022

No evangelho segundo S. Marcos (com paralelos em Mateus e Lucas) encontramos uma famosa disputa de Jesus com os seus adversários, acerca do pagamento dos impostos exigidos pelas autoridades romanas, que Jesus conclui afirmando: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” (Mc 12,17)

Esta resposta constitui um “clássico” e uma máxima orientadora para um modo de estar cristão no âmbito social, político e económico. No entanto, de tanto repetir-se pode acabar por perder o seu sentido. A controvérsia com os fariseus, mais do que sobre economia ou política, parte de um problema religioso: pagar o imposto ao imperador romano é, para um judeu devoto, reconhecer a legitimidade de uma autoridade em concorrência com Deus, único soberano de Israel. Assim, para o Antigo Testamento, qualquer questão política ou económica é, antes de mais, um assunto religioso pela possibilidade de incorrer no pecado por definição que é a idolatria. Com a sua réplica, Jesus não contrapõe uma total separação de esferas, mas antes vem trocar as voltas a esta relação: para um cristão, tudo aquilo que é religioso, é também político, económico e social, pois frente a um Deus que é Amor, o pecado maior é a indiferença (outro nome do egoísmo).

O preceito sobre o que é de Deus e o que é de César não pode, portanto, servir para desligar a nossa fé daquilo que é a vida pública e social. A fé cristã é, por natureza, política, não porque os padres, bispos, ou o Papa, devam exercer o poder político, ditar as leis ou determinar a organização económica (modos de presença da Igreja na sociedade hoje felizmente ultrapassados), mas porque cada cristão é chamado a viver como membro e como construtor de uma comunidade de irmãos. O mandamento do amor, principio básico de toda a moral cristã, não se aplica apenas às acções e relações privadas, mas também ao nosso comportamento em sociedade: como cidadãos, trabalhadores, consumidores ou adeptos de futebol… E na esfera social, política e económica o amor tem um nome específico: chama-se bem comum. Para um cristão, as instituições não existem como entidades abstratas e impessoais, mas apenas em função das pessoas que elas estão destinadas a servir. Por detrás das diferentes estruturas sociais, está o próximo que somos chamados a amar e cuidar, e cada gesto nosso tem um impacto no todo, seja grande ou pequeno, desde separar o lixo a cumprir com as obrigações fiscais, e portanto pode ser um gesto de amor ou desamor.

A defesa do bem comum, como distintivo do modo cristão de olhar a sociedade, exige atenção, discernimento e o desejo de escolher, diria S. Inácio de Loyola, apenas aquilo que mais ajuda ao fim de toda estrutura e grupo social, a dignidade de cada pessoa, querida e amada por Deus. Deste princípio fundamental a Igreja tem vindo a elaborar uma “doutrina social” que oferece aos cristãos e a todas as pessoas de boa vontade, como ferramenta para construir sociedades mais justas e orientadas para o maior bem de toda a humanidade. De toda essa reflexão, gostaria de destacar apenas duas consequências que podem servir de resumo e de ponto de partida para o aprofundamento de cada um:

Em primeiro lugar, a atenção aos membros mais necessitados da sociedade, como critério orientador: aquilo que a Igreja designa como “opção preferencial pelos pobres”. A Bíblia, e de modo especial os evangelhos, falam-nos de um Deus que tem um carinho e um cuidado especial pelos últimos: o órfão e a viúva, no Antigo Testamento, a ovelha perdida ou o filho pródigo das parábolas de Jesus. Esta preferência não significa que Deus ame mais a uns do que a outros, mas sim a sua implicação pela transformação do mundo no sentido da justiça e da paz, um ideal que os cristãos são chamados a assumir e pôr em prática nas suas acções e modos de vida.

Em segundo lugar está o especial dever de participação nas coisas públicas que traz consigo a fé cristã. Acreditar em Jesus, desejar imitá-lo e segui-lo deve suscitar o nosso interesse pelas questões sociais, políticas e económicas, de modo a agir com a consciência informada e com determinação, tomando parte nos debates e fazendo as escolhas que as mais diversas situações exigem, tendo no horizonte o ideal do bem comum. A fé cristã não contém nenhuma solução única, nem reconhece nenhum partido que a represente, mas sim obriga cada um a fazer escolhas conscientes, buscando todo o esclarecimento necessário e votando (ou não) em nome do bem comum e do que lhe parece ser a melhor forma de construir uma sociedade mais humana e fraterna.

Artigo originalmente publicado no essejota.net, um site da Pastoral Juvenil dos Jesuítas que já não está disponível. No momento em que foi publicado estavam programados diversos atos eleitorais.


Maré Alta

Aprendi a ouvir com uma cega

Francisco Montellano, sj |in Ponto SJ | 14 Janeiro 2022

A precipitação sobre o outro faz-nos cavalgar a nossa opinião sobre a fragilidade da relação; a brusquidão precipita o fechamento, como as ostras escondem as pérolas.

Em tempo de eleições, estamos todos com a atenção voltada para os debates, para a troca de argumentos e de ideias, procurando algo que nos ajude a expressar os nossos desejos para o país, para a sociedade, para os outros – os que conhecemos e os que não. Por isto mesmo, tenho sido interpelado pela nossa tão escabrosa incapacidade de conviver com o que nos escandaliza, com o que é diferente de nós.

Tive a oportunidade de me cruzar, há uns dias, com um documentário sobre a vida de Nadia Boulanger. Esta mulher, talvez a mais famosa professora de análise musical do séc. XX, ensinou uma geração de grandes compositores (Phillip Glass, Aaron Copland, Astor Piazzolla…) a partir da sala do seu apartamento, em Paris. Ficou conhecida, como pedagoga, pela sua capacidade de ouvir e pela sua abertura à novidade. Sim, os testemunhos que se vêem são belos, mas o que impressiona é a fogosidade desta mulher nonagenária! A postura desta senhora, já quase cega mas com um ouvido imensamente sensível, tem uma enorme bagagem, mas parece que isso não lhe pesa – mais, que a torna aberta e disponível.

Todos somos habitados de um enorme desejo de nos expressarmos, de comunicarmos o que nos habita interiormente, de saciar as nossas carências e aspirações; esta dimensão expressiva é vital. É por isto que vamos formando opiniões e aderindo ou rejeitando certas formulações e ideias, conforme correspondam ou não com um bom nome para aquilo que experimentamos.

Por outro lado, há também um desejo profundo de alteridade, que configura uma abertura a este mesmo desejo vindo dos outros. Esta receptividade enriquece e alarga o horizonte de compreensão que nos movemos, porque expande as fronteiras do nosso mundo interior; o espanto – tão caro aos filósofos desde Platão – permite-nos apreciar de forma nova dados já conhecidos (cf. Mt 13, 52).

Pensemos num exemplo. O meu desejo de expressão leva-me a procurar qual o partido político que mais vai de encontro àquilo que tenho por ajustado quanto ao trabalho, ao lazer, ao cuidado com os mais desfavorecidos, etc. Há, porém, outras visões com as quais me cruzo, neste processo de identificação, e que questionam esta minha escolha, pedindo-me razões e argumentos que substanciem a minha adesão. O incumprimento de qualquer um dos termos conduz àquelas expressões caricatas e extremamente irritantes a que, infelizmente, nos vamos acostumando como parte de qualquer debate: perguntas com respostas ao lado, discursos redondos e vazios, ataques pessoais como manobras de diversão… Capacidade de espera e abertura à novidade são dois pólos em confronto, cuja tensão permite a boa comunicação humana.

Creio que podemos dar um outro nome ao binómio expressão/recepção: hospitalidade. Se considerarmos os grandes relatos de hospitalidade, há uma conjugação singular entre o acolhimento de um outro, que não cumpre inteiramente os códices e práticas de uma dada cultura ou povo, e a afirmação da identidade pessoal, posta em xeque por este outro que se me depara. No seu livro Sur l’hospitalité, Jacques Derrida repara que, a partir da mesma raíz latina hostis, podemos chegar a dois termos: ao hóspede, hospes, ou ao inimigo, hostis. Quão distantes são os extremos, saídos do mesmo ponto de partida! Derrida apela-nos, como em toda a sua obra, a considerar os dois pólos em simultâneo; como numa dobra, em que se vêm ambas as frentes de um tecido, unidas por um traço concreto que lhe confere uma direcção.

Precisamos de nos exercitar nesta sã alternância entre expressão e recepção, sob pena de perdermos a capacidade de comunicar. A tensão é a condição de possibilidade que nos permite uma sociedade plural sem entrincheiramentos nem relativismos. O desejo de homogeneidade – a dos iguais a mim ou a dos amorfos – configura a nossa mentalidade tribal, um impulso primitivo que garantiu a nossa sobrevivência quando éramos uma espécie vulnerável, à mercê de grandes predadores. O regresso a esta mentalidade tribal é uma recusa da capacidade de diálogo, de conviver e acolher, no campo de batalha que pode ser a vida quotidiana. Aquele que me ameaça, que me obriga a alargar a fronteira do meu olhar até à terra que desconheço, pode ser simultaneamente aquele estrangeiro que me traz novos perfumes!

Voltemos a Nadia Boulanger. A sua passagem longa pelo mundo da música não se cingiu a um ensino monótono, tirânico, unidireccional. Era a primeira a estudar com os seus alunos as novidades que eles lhe traziam, mesmo quando não era do seu gosto pessoal; sabe-se que não dava grande valor à música atonal de Schönberg, mas foi uma estudiosa da sua obra. Era uma discípula dos corais de Bach, mas sabia falar a linguagem da música serial.

Quando lhe perguntaram o que procura incutir nos seus alunos, a resposta é clara: a atenção. “Antes de encorajar alguém [numa direcção concreta], é necessário saber se essa pessoa traz em si um amor; se ela é capaz de se interessar no que faz, seja o qual for [essa coisa], em si mesma”. A atenção de que fala Boulanger é uma atenção para o outro, uma atenção que tem em si uma intenção de diálogo. O diálogo começa na exposição à peça, aos seus sons, à suas notas, evoluindo depois para uma relação entre o que recebo e o que desejo expressar através dessas mesmas notas, agora interpretadas, filtradas pela minha experiência subjectiva.

Há uma sabedoria nesta postura passiva de esperar até ao fim para decidir. Precisamos de atentar àquilo que fica mascarado, encapotado sob entoações, para poder entabular um diálogo expressivo, hospitaleiro. A precipitação sobre o outro faz-nos cavalgar a nossa opinião sobre a fragilidade da relação; a brusquidão precipita o fechamento, como as ostras escondem as pérolas.

A passividade põe-nos em risco de descobrir o que nos é estranho, o que desconhecemos; pomo-nos em risco de ser levados a uma mudança de opinião, de convicção – ao contrário do que se pode crer, é sinal de sabedoria mudar de opinião quando há razões para isso! Nadia Boulanger descobriu que não estava fadada a ser compositora, apesar do seu esforço inicial. Este é o risco que comporta a hospitalidade, mas, sem este risco, ficamos presos no nosso eu, na monotonia da mesmidade.


Maré Alta

(Seguramente que algumas pessoas torceram o nariz a estas palavras do papa Francisco – que não ‘tem papas na língua’, como se diz em bom português – e nos confronta com as nossas opções…)

PAPA FRANCISCO

AUDIÊNCIA GERAL

Sala Paulo VI
Quarta-feira 5 de janeiro de 2022

Catequese sobre São José 6. São José, o pai putativo de Jesus

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje meditaremos sobre São José como pai de Jesus. Os Evangelistas Mateus e Lucas, apresentam-no como o pai putativo de Jesus e não como pai biológico. Mateus especifica-o, evitando a fórmula “gerou”, utilizada na genealogia para todos os antepassados de Jesus; mas define-o como «esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado o Cristo» (1, 16). Enquanto Lucas afirma isto, dizendo que era pai de Jesus «como se supunha» (3, 23), isto é, aparecia como pai.

A fim de compreender a paternidade putativa ou legal de José, é necessário ter em mente que em tempos antigos no Oriente a instituição da adoção era muito comum, mais do que é hoje. Pensemos no caso comum em Israel do “levirato”, formulado da seguinte maneira no Deuteronómio: «Se os irmãos residirem juntos, e um deles morrer sem deixar filhos, a viúva não poderá casar com um estranho; o seu cunhado é que se juntará a ela e a tomará como mulher, observando o costume do levirato. E o primeiro filho que ela tiver usará o nome do irmão morto, a fim de que esse nome não se extinga em Israel» (25, 5-6). Por outras palavras, o pai desta criança é o cunhado, mas o pai legal continua a ser o falecido, que dá ao recém-nascido todos os direitos hereditários. O objetivo desta lei era duplo: assegurar a descendência do falecido e a preservação do património.

Como pai oficial de Jesus, José exerce o direito de impor o nome ao filho, reconhecendo-o juridicamente. Juridicamente é o pai, mas não generativamente, não o gerou.

Antigamente o nome era o compêndio da identidade de uma pessoa. Mudar o nome significava mudar a si mesmo, como no caso de Abrão, cujo nome Deus mudou para “Abraão”, que significa “pai de muitos”, pois, diz o Livro do Génesis, «farei de ti o pai de inúmeros povos» (17, 5). O mesmo vale para Jacob, que é chamado “Israel”, que significa “aquele que luta com Deus”, porque lutou com Deus para o forçar a conceder-lhe a bênção (cf. Gn 32, 29; 35, 10).

Mas, sobretudo, dar o nome a alguém ou a algo significava afirmar a própria autoridade sobre o que era denominado, como fez Adão quando conferiu um nome a todos os animais (cf. Gn 2, 19-20).

José já sabe que para o filho de Maria havia um nome estabelecido por Deus – o nome de Jesus é dado pelo seu verdadeiro pai, Deus – o nome “Jesus”, que significa “O Senhor salva”, como o Anjo lhe explicou: «Porque ele salvará o povo dos seus pecados» (Mt 1, 21). Este aspeto particular da figura de José permite-nos hoje refletir sobre a paternidade e a maternidade. E acho que isto é muito importante: pensar na paternidade, hoje. Pois vivemos numa época de notável orfandade. É curioso: a nossa civilização é um pouco órfã, e sente-se esta orfandade. Ajude-nos a figura de São José a entender como se resolve o sentido de orfandade que hoje nos faz tanto mal.

Não é suficiente pôr um filho no mundo para dizer que também somos pais ou mães. «Não se nasce pai, torna-se tal... E não se torna pai, apenas porque se colocou no mundo um filho, mas porque se cuida responsavelmente dele. Sempre que alguém assume a responsabilidade pela vida de outrem, em certo sentido exerce a paternidade a seu respeito» (Carta ap. Patris corde). Penso, em particular, em todos aqueles que se abrem a acolher a vida através da adoção, que é uma atitude tão generosa e positiva. José mostra-nos que este tipo de vínculo não é secundário, não é uma alternativa. Este tipo de escolha está entre as formas mais elevadas de amor e de paternidade e maternidade. Quantas crianças no mundo estão à espera de alguém que cuide delas! E quantos cônjuges desejam ser pais e mães, mas não o conseguem por razões biológicas; ou, embora já tenham filhos, querem partilhar o afeto familiar com quantos não o têm. Não devemos ter medo de escolher o caminho da adoção, de assumir o “risco” do acolhimento. E hoje, também, com a orfandade, existe um determinado egoísmo. Há dias, falei sobre o inverno demográfico que há atualmente: as pessoas não querem ter filhos, ou apenas um e nada mais. E muitos casais não têm filhos porque não querem, ou têm só um porque não querem outros, mas têm dois cães, dois gatos… Pois é, cães e gatos ocupam o lugar dos filhos. Sim, faz rir, entendo, mas é a realidade. E esta negação da paternidade e da maternidade diminui-nos, cancela a nossa humanidade. E assim a civilização torna-se mais velha e sem humanidade, porque se perde a riqueza da paternidade e da maternidade. E a Pátria que não tem filhos sofre e – como dizia alguém um pouco humoristicamente – “e agora quem pagará os impostos para a minha reforma, que não há filhos? Quem se ocupará de mim?”: ria, mas é a verdade. Peço a São José a graça de despertar as consciências e pensar nisto: em ter filhos. A paternidade e a maternidade são a plenitude da vida de uma pessoa. Pensai nisto. É verdade, existe a paternidade espiritual e a maternidade espiritual para quem se consagra a Deus; mas quem vive no mundo e se casa, deve pensar em ter filhos, em dar a vida, pois serão eles que lhes fecharão os olhos, que pensarão no seu futuro. E também, se não podeis ter filhos, pensai na adoção. É um risco, sim: ter um filho é sempre um risco, quer natural quer adotivo. Mas pior é não os ter, é negar a paternidade, negar a maternidade, tanto a real como a espiritual. A um homem e a uma mulher que voluntariamente não desenvolvem o sentido da paternidade e da maternidade, falta algo principal, importante. Pensai nisto, por favor. Espero que as instituições estejam sempre prontas a ajudar neste sentido da adoção, controlando seriamente, mas também simplificando o procedimento necessário para que se realize o sonho de tantos pequeninos que precisam de uma família, e de tantos cônjuges que desejam entregar-se com amor. Há tempos ouvi um testemunho de uma pessoa, um médico – importante a sua profissão – não tinha filhos e com a esposa decidiram adotar uma criança. E quando chegou o momento, ofereceram-lhes uma e disseram: “Mas não sabemos como será a saúde dela. Talvez possa ter alguma doença”. E ele – tinha-o visto – respondeu: “Se o senhor me tivesse perguntado isto antes de entrar, talvez teria dito não. Mas vi-o: aceito-a”. Esta é a vontade de ser pai, de ser mãe também na adoção. Não tenhais medo disto.

Rezo para que ninguém se sinta sem um vínculo de amor paterno. E quantos estão doentes de orfandade continuem em frente sem este sentimento tão negativo. Possa São José exercer a sua proteção e a sua ajuda sobre os órfãos; e que interceda pelos casais que desejam ter um filho. Por isto, rezemos juntos:

São José,
vós que amastes Jesus com amor de pai,
estai próximo das muitas crianças que não têm família
e que desejam um pai e uma mãe.
Apoiai os cônjuges que não podem ter filhos,
Ajudai-os a descobrir, através deste sofrimento, um projeto maior.
Fazei com que a ninguém falte uma casa, um relacionamento,
uma pessoa que se ocupe dele ou dela;
e curai o egoísmo daqueles que se fecham à vida,
para que possam abrir o coração ao amor. Ámen.


Maré Alta

Família: Papa escreve aos casais de todo o mundo, para abordar impacto da pandemia e dos confinamentos

Dez 26, 2021| in Ecclesia

Francisco destaca necessidade de transformar cada casa num «lugar de acolhimento e compreensão», manifestando proximidade a quem viveu situações de «rotura»

Cidade do Vaticano, 26 dez 2021 (Ecclesia) – O Papa escreveu uma carta aos casais de todo o mundo, aludindo aos vários impactos da pandemia e dos confinamentos, com uma mensagem de “proximidade”, particularmente a quem viveu momentos de perda e separação.

“Vivemos enormemente a incerteza, a solidão, a perda de entes queridos e fomos impelidos a sair das nossas seguranças, dos nossos espaços de controlo, da nossa forma de fazer as coisas, das nossas ambições, para nos interessarmos não apenas pelo bem da nossa família, mas também pelo da sociedade, que depende igualmente do nosso comportamento pessoal”, refere o documento, divulgado hoje pelo Vaticano, na festa litúrgica da Sagrada Família (primeiro domingo depois do Natal).

Francisco assinala o primeiro aniversário da proclamação do ano especial ‘Família Amoris Laetitia’, iniciativa que teve início na solenidade de São José deste ano (19 de março) e decorre até à celebração do X Encontro Mundial das Famílias, em Roma (26.06.2022).

“Sempre tive presente as famílias nas minhas orações, mas mais ainda durante a pandemia que colocou todos duramente à prova, sobretudo os mais vulneráveis. O momento que estamos a atravessar leva-me a aproximar, com humildade, estima e compreensão, de toda a pessoa, casal e família na sua situação concreta”, escreve.

O Papa convida a refletir sobre algumas “dificuldades e oportunidades” que as famílias têm vivido neste tempo de pandemia, em que passaram mais tempo juntas, “proporcionando uma oportunidade única para cultivar o diálogo em família”.

“Obviamente isto requer um exercício especial de paciência; não é fácil estar juntos o dia todo, quando se tem que trabalhar, estudar, divertir-se e descansar na mesma casa”, acrescenta.

Francisco deseja que esta oportunidade de estar juntos seja “um refúgio no meio das tempestades” e que a família seja “um lugar de acolhimento e compreensão”.

A carta admite que, para muitos casais, a convivência durante estes confinamentos foi “particularmente difícil”, com “discussões e feridas”, chegando até à “rotura da relação”, nalguns casos.

“A estas pessoas, desejo manifestar também a minha proximidade e afeto”, indica.

Nem sequer é possível poupar aos filhos a amargura de ver que os seus pais já não estão juntos. Mesmo assim, não deixeis de procurar ajuda para que se possa dalguma forma superar os conflitos, a fim de que estes não provoquem ainda mais sofrimento entre vós e aos vossos filhos”.

Francisco deixa um apelo ao “perdão”, sublinhando que Deus acompanha e ama “incondicionalmente” todas as pessoas.

“As diferentes situações da vida – a idade que vai passando, a chegada dos filhos, o trabalho, as doenças – são circunstâncias em que o compromisso mutuamente assumido obriga cada um a abandonar a própria inércia, as certezas, os espaços de tranquilidade para sair rumo à terra que Deus promete”, refere aos casais católicos.

O Papa deixa uma reflexão sobre a importância da paternidade e da maternidade, da autoridade e da educação dos filhos, desafiando as famílias a “colaborar na Igreja”.

“Compete às famílias o desafio de lançar pontes entre as gerações para a transmissão dos valores que constroem a humanidade. É necessária uma nova criatividade para expressar, nos desafios atuais, os valores que nos constituem como povo nas nossas sociedades, e como Povo de Deus na Igreja”, precisa.

Francisco encoraja os jovens que se preparam para o casamento, num momento de dificuldades por causa da pandemia, em que “aumenta ainda mais a incerteza laboral”, e aos avós que sofreram com o isolamento, longe dos netos.

“Que São José inspire em todas as famílias a coragem criativa, tão necessária nesta mudança de época que estamos a viver, e Nossa Senhora acompanhe na vossa vida conjugal a gestação da cultura do encontro, tão urgente para superar as adversidades e os contrastes que obscurecem o nosso tempo”, conclui.

O Papa publicou a 8 de abril de 2016 a sua exortação apostólica sobre a Família, ‘Amoris laetitia’ (A Alegria do Amor), uma reflexão que recolhe as propostas de duas assembleias do Sínodo dos Bispos (2014 e 2015) e dos inquéritos aos católicos de todo o mundo.

OC


Maré Alta

Uma visão de conjunto

P. António Valério, sj | 12 Dezembro 2021 | in Ponto SJ

Aproximando-nos do Natal, a Igreja põe diante das nossas vidas um tempo extraordinário, o Advento, que poderia ser descrito de muitas formas. Um tempo de ausência, deserto, preparação, conversão, espera…

As figuras do Advento, apresentadas ao longo das suas várias semanas são fortes, com traços bem definidos, vida simbólicas que expressam características da nossa vida que encontram, de alguma forma, um eco muito concreto nas nossas vidas.

A austeridade inflamada de João Baptista, um profeta do deserto que clama a favor de uma mudança radical dos corações, semelhante a uma mutação cósmica: que os montes se aplanem e os vales se levantem, para que os caminhos sejam direitos para a vinda do Salvador. O homem das dúvidas e dos sonhos, José, que vê na gravidez de Maria um duro golpe aos seus projetos e se abandona ao desconhecido de uma forma desconcertante para quem, como nós, gosta de ter nas mãos as rédeas do seu destino. E, por fim, uma jovem mulher, de joelhos, que aceita de Deus um convite estranho, inoportuno, que mudaria a sua vida para sempre, e a vida de todos os homens e mulheres, a partir de uma palavra tão densa: “Faça-se”…

Um grito de mudança e o silêncio do acolhimento, algo que faz tremer por fora e aceitar por dentro… e nada fica fora do convite, do chamamento, da vinda de um amor ainda não conhecido e tremendamente próximo e desejado.

Se estas figuras do Advento nos fazem sintonizar numa dinâmica de espera e aceitação da ainda desconhecida surpresa, é muito interessante ver “o outro lado”, as motivações de quem decide, na sua eternidade, fazer-se convidado para uma tal mudança de vidas e corações.

Nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio não propõe meditações próprias do Advento, mas coloca-as dentro de uma série de meditações que têm o ponto de partida do “lado de lá”. Isto significa que, para Inácio, aliás, como o é para a fé católica, o mistério da Encarnação é total iniciativa de Deus, que não consegue ficar indiferente ao estado da humanidade.

Por isso, a segunda semana dos Exercícios Espirituais começa com a contemplação da Encarnação, em que Inácio põe a Santíssima Trindade, as três pessoas divinas, que “observavam toda a planície ou redondeza de todo o mundo, cheia de homens, em tanta diversidade, assim em trajes como em gestos: uns brancos e outros negros, uns em paz e outros em guerra, uns chorando e outros rindo, uns sãos e outros enfermos, uns nascendo e outros morrendo, etc; e como, vendo que todos desciam ao inferno, se determina, na sua eternidade, que a segunda pessoa se faça homem, para salvar o género humano. E, assim, chegada a plenitude dos tempos, é enviado o anjo S. Gabriel a nossa Senhora”. [cfr. EE, 102-109]

É curioso notar que a vinda de Deus à nossa história seja antecedida, na lógica de Inácio, por uma extraordinária visão de conjunto das coisas. A universalidade do ver e do agir de Deus está aqui presente como a consideração da vida e da história humanas em todas as suas circunstâncias, necessitadas da “visita” de Deus, que vem ao encontro de todas as coisas, todas as situações, sem deixar de fora homem ou mulher nenhum em particular.

Esta meditação poderia ser um bom exercício para o nosso Advento. Olhando a “redondeza” da minha vida, tão diversa, como poderei ter a sensibilidade de perceber que estas realidades são olhadas, desejadas e visitadas por Deus? Daria um sentido muito mais “acolhedor” do Natal, receber Aquele que me vem salvar.


Maré Alta

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 12 de dezembro de 2021

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da Liturgia de hoje, terceiro Domingo de Advento, apresenta-nos vários grupos de pessoas – as multidões, os publicanos e os soldados – que são tocados pela pregação de João Baptista e depois perguntam-lhe: «O que devemos fazer?» (Lc 3, 10). O que devemos fazer? Esta é a pergunta que fazem. Reflitamos um momento sobre esta questão.

Essa pergunta não vem de um sentido de dever. Pelo contrário, é o coração tocado pelo Senhor, é o entusiasmo pela sua vinda que leva a dizer: o que devemos fazer? João afirma: “O Senhor está próximo” – “O que fazer?”. Demos um exemplo: pensemos que um ente querido nos vem visitar. Aguardamo-lo com alegria e impaciência. A fim de o receber adequadamente, limparemos a casa, prepararemos a melhor refeição possível, talvez um presente... Em suma, daremos o melhor de nós. Assim acontece com o Senhor, a alegria pela sua vinda faz-nos dizer: o que devemos fazer? Mas Deus formula esta questão a um nível mais elevado: o que devo fazer da minha vida? A que sou chamado? O que me realiza?

Ao colocar esta questão, o Evangelho recorda-nos algo importante: a vida apresenta-nos uma tarefa. A vida não é inútil, não é deixada ao acaso. Não! É um dom que o Senhor nos dá, dizendo-nos: descobre quem és, e trabalha para realizar o sonho que é a tua vida! Cada um de nós – não nos esqueçamos – é uma missão a realizar. Portanto, não tenhamos medo de perguntar ao Senhor: o que devo fazer? Repitamos-Lhe frequentemente esta pergunta. Ela aparece também na Bíblia: nos Atos dos Apóstolos algumas pessoas, ouvindo Pedro que anunciava a ressurreição de Jesus, «emocionaram-se até ao fundo do coração com essas palavras. E perguntaram a Pedro e aos outros apóstolos: “Que havemos de fazer?”» (cf. 2, 37). Perguntemo-nos também nós: o que é bom fazer por mim e pelos irmãos? Como posso contribuir para o bem da Igreja, para o bem da sociedade? O Tempo de Advento serve para isto: parar e perguntar-nos como preparar o Natal. Estamos ocupados com tantos preparativos, com dons e coisas que passam, mas perguntemo-nos o que devemos fazer por Jesus e pelos outros! O que devemos fazer?

A esta pergunta “o que devemos fazer?” responde João Batista no Evangelho, diferentemente para cada grupo. Com efeito, João recomenda a quantos têm duas túnicas para partilhar com aqueles que não têm nenhuma; aos publicanos, que cobram impostos, diz: «Nada exijais além do que vos foi estabelecido» (Lc 3, 13); e aos soldados: «Não exerçais violência sobre ninguém» (v. 14). A cada um foi dirigida uma palavra específica, relativa à situação real da sua vida. Isto oferece-nos um precioso ensinamento: a fé encarna-se na vida concreta. Não se trata de uma teoria abstrata. A fé não é uma teoria abstrata, uma teoria generalizada, não, a fé toca a carne e transforma a vida de cada um. Pensemos sobre a concretismo da nossa fé. Eu, a minha fé: é algo abstrato ou concreto? Levo-a adiante ao serviço dos outros, na ajuda?

E assim, concluindo, perguntemo-nos: o que posso fazer concretamente? Nestes dias, à medida que nos aproximamos do Natal. Como posso fazer a minha parte? Assumamos um compromisso concreto, mesmo que pequeno, que se ajuste à nossa situação de vida, e levemo-lo a cabo para nos prepararmos para este Natal. Por exemplo: posso telefonar àquela pessoa sozinha, visitar aquele idoso ou doente, fazer algo para servir um pobre, um necessitado. Ou ainda: talvez eu tenha um perdão a pedir ou a conceder, uma situação a esclarecer, uma dívida a saldar. Talvez tenha negligenciado a oração, e depois de tanto tempo é hora de me aproximar do perdão do Senhor. Irmãos e irmãs, encontremos algo concreto e realizemo-lo! Que nos ajude Nossa Senhora, em cujo ventre Deus se fez carne.


Maré Alta

Papa contra populismo e pela política como arte do bem comum

7Margens | 5 Dez 21

O Papa Francisco manifestou a sua preocupação pelo retrocesso da democracia que hoje se verifica – e não apenas no continente europeu –, num discurso proferido este sábado, no Palácio Presidencial de Atenas, após a intervenção da Presidente da República da Grécia, Katerina Sakellaropoulou.

A democracia, segundo Francisco, requer a participação e o envolvimento de todos e, portanto, esforço e paciência, acrescentou. Contrapondo-se à complexidade democrática, temos o autoritarismo com as suas propostas fáceis, aparentemente tentadoras. Francisco nota que, em várias sociedades, preocupadas com a segurança e anestesiadas pelo consumismo, o cansaço e o descontentamento têm conduzido a uma espécie de “cepticismo democrático”.

Para o Papa, o cepticismo em relação à democracia é igualmente fomentado “pelo afastamento das instituições, pelo medo da perda de identidade e pela burocracia”. O remédio, acrescenta, não se encontra, contudo, na busca obsessiva de popularidade, na sede de visibilidade, na proclamação de promessas impossíveis, nem na adesão a colonizações ideológicas abstractas. O remédio é a “boa política”. É que, explicou ainda Francisco no discurso que se pode ler no portal do Vaticano, “a política é uma coisa boa e é isso que deve ser na prática, como responsabilidade máxima do cidadão, enquanto arte do bem comum”.

Francisco preconizou a necessidade de se prestar uma atenção especial aos mais frágeis. Citando Alcide de Gasperi, um dos pais fundadores da Europa, – que afirmou: “Fala-se muito daqueles que vão para a esquerda ou para a direita, mas o decisivo é seguir em frente e seguir em frente significa ir em direcção à justiça social” –, o Papa considerou que a justiça social é o antídoto para as polarizações que, podendo animar a democracia, também a podem exasperar.

A uma Europa “bloqueada e descoordenada”, que se encontra “dilacerada pelo egoísmo nacionalista”, em vez de ser “a força motriz da solidariedade”, o Papa dirigiu um apelo veemente: “Gostaria de exortar mais uma vez uma visão comunitária diante da questão migratória, e encorajar a atenção aos mais necessitados para que, de acordo com as possibilidades de cada país, possam ser acolhidos, protegidos, promovidos e integrados no pleno respeito pelos seus direitos humanos e dignidade”, pediu o Francisco. A propósito destes “protagonistas de uma terrível odisseia moderna”, o Papa lembrou que, quando Ulisses desembarcou em Ítaca, não foi reconhecido pelos senhores do lugar, que lhe tinham usurpado a casa e a propriedade, mas por aqueles que cuidaram dele. “A sua enfermeira percebeu que era ele vendo suas cicatrizes.”

O Papa Francisco também se referiu à pandemia, que nos fez redescobrir frágeis, aludindo à necessidade de vacinação e de uma atenção aos mais frágeis, particularmente os idosos, que “são o sinal da sabedoria de um povo”. Pedindo que eles nunca sejam descartados, disse que não podem ser as primeiras vítimas da “cultura do desperdício”.

A jornada do Papa incluiu uma visita de cortesia a Ieronymos II, arcebispo de Atenas e toda a Grécia, perante quem apelou à colaboração entre cristãos de diferentes denominações. “Aqui, como noutros lugares, tornou-se indispensável o apoio prestado aos mais necessitados durante os períodos mais duros da crise económica. Desenvolvamos, juntos, formas de cooperação na caridade, abramo-nos e colaboremos em questões de caráter ético e social para servir as pessoas do nosso tempo e levar-lhes a consolação do Evangelho.”

Neste domingo, penúltimo dia da viagem ao Chipre e à Grécia, Francisco terá, de manhã, aquele que será seguramente um dos pontos altos destes dias, quando chegar, às 10h45 (menos duas horas em Lisboa), ao campo de refugiados de Lesbos. Quando esteve na mesma ilha, em 2016, o Papa clamou contra a indiferença europeia e levou para Roma, no avião, três famílias de refugiados sírios. É possível que, desta vez, repita o gesto.


Maré Alta

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA O DIA INTERNACIONAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

[3 de dezembro de 2021]

«Vós sois meus amigos» (Jo 15, 14)

Queridos irmãos e irmãs!

Por ocasião do vosso Dia Internacional, quero dirigir-me diretamente a vós que viveis uma condição de deficiência qualquer, para dizer que a Igreja vos ama e precisa de cada um de vós para cumprir a sua missão ao serviço do Evangelho.

Jesus, o amigo

Jesus é nosso amigo: foi Ele mesmo que o disse aos seus discípulos durante a Última Ceia (cf. Jo 15, 14). As suas palavras chegam até nós e iluminam o mistério da nossa ligação com Ele e da nossa pertença à Igreja. «A amizade com Jesus é indissolúvel. Nunca nos deixa, embora às vezes pareça calado. Quando precisamos d’Ele, deixa-Se encontrar por nós, e está ao nosso lado para onde quer que formos» (Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit, 154). Nós, cristãos, recebemos um dom: o acesso ao coração de Jesus e à amizade com Ele. É um privilégio que recebemos sem o merecer e que se torna a nossa chamada: a nossa vocação é sermos amigos d’Ele.

Ter Jesus como amigo é a maior das consolações e pode fazer de cada um de nós um discípulo agradecido, jubiloso e capaz de testemunhar que a própria fragilidade não é um obstáculo para viver e comunicar o Evangelho. Com efeito, a amizade confiante e pessoal com Jesus pode ser a chave espiritual para aceitar as limitações que todos experimentamos e viver em paz a nossa condição. Dela pode nascer uma alegria que «enche o coração e a vida inteira» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 1), pois a amizade com Jesus, como escreveu um grande exegeta, é «uma centelha que ateia o incêndio do entusiasmo» [1].

A Igreja é a vossa casa

O Batismo torna cada um de nós membro de pleno direito da comunidade eclesial e dá a cada um, sem exclusões nem discriminações, a possibilidade de exclamar: «Eu sou Igreja». De facto, a Igreja é a vossa casa. Nós, todos juntos, somos Igreja, porque Jesus escolheu ser nosso amigo. Ela «não é uma comunidade de pessoas perfeitas – queremos aprendê-lo cada vez melhor no processo sinodal que iniciamos –, mas de discípulos a caminho, que seguem o Senhor porque se reconhecem pecadores e necessitados do seu perdão» (Francisco, Catequese, na Audiência Geral de 13/IV/2016). Neste povo, que avança por entre as vicissitudes da história guiado pela Palavra de Deus, «todos são protagonistas, ninguém pode ser considerado um mero figurante» (Francisco, Discurso aos fiéis da diocese de Roma, 18/IX/2021) . Por isso, também cada um de vós é chamado a oferecer a própria contribuição para o percurso sinodal. Estou convencido de que, se este for verdadeiramente «um processo eclesial participado e inclusivo» [2], a comunidade eclesial sairá realmente dele enriquecida.

Muitos de vós ainda hoje, infelizmente, «são tratados como corpos estranhos à sociedade (…), sentem que vivem sem pertença nem participação. Ainda há tanto que [vos] impede de beneficiar da plena cidadania» (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 98). A discriminação ainda está demasiado presente em vários níveis da vida social; aquela alimenta-se de preconceitos, da ignorância e duma cultura que tem dificuldade em compreender o valor inestimável de toda a pessoa: concretamente, o facto de continuar a considerar a deficiência – que é o resultado da interação entre as barreiras sociais e as limitações de cada um – como se fosse uma doença contribui para vos estigmatizar mantendo segregada a vossa existência.

No que diz respeito à vida da Igreja, «a pior discriminação (...) é a falta de cuidado espiritual» (Evangelii gaudium, 200), que às vezes se manifestou na negação do acesso aos Sacramentos, experimentada infelizmente por alguns de vós. O Magistério é muito claro nisto e, recentemente, o Diretório para a Catequese afirmou de forma explícita que «ninguém pode recusar os Sacramentos às pessoas com deficiência» (n. 272). Face às discriminações, é precisamente a amizade de Jesus, recebida por todos como um dom imerecido, que nos resgata e permite viver as diferenças como riqueza. Realmente Jesus não nos chama servos, mulheres e homens de dignidade inferior, mas amigos: confidentes dignos de conhecer tudo o que Ele recebeu do Pai (cf. Jo 15, 15).

No tempo da provação

A amizade de Jesus protege-nos no tempo da provação. Sei bem que a pandemia da Covid-19, da qual com dificuldade vamos saindo, teve e continua a ter repercussões muito duras na vida de tantos de vós. Refiro-me, por exemplo, à necessidade de permanecer em casa por longos períodos, à dificuldade que muitos estudantes com deficiência têm para aceder aos instrumentos de ensino à distância, aos serviços às pessoas que estiveram longamente interrompidos em vários países, e a muitos outros incómodos que cada de vós teve de enfrentar. Mas sobretudo penso em quantos de vós viveis dentro de estruturas residenciais e no sofrimento que implicou a separação forçada dos vossos entes queridos. Nestes lugares, o vírus foi muito violento e, apesar de toda a dedicação do pessoal, ceifou muitas vítimas. Sabei que o Papa e a Igreja estão particularmente próximos de vós, com afeto e ternura.

A Igreja está ao lado daqueles dentre vós que ainda estão a lutar contra o coronavírus; como sempre, ela reitera a necessidade de se cuidar de cada um, sem que a condição de deficiência seja de obstáculo para o acesso aos melhores tratamentos disponíveis. Neste sentido, algumas Conferências Episcopais, como a da Inglaterra e País de Gales [3] e a dos Estados Unidos, [4] intervieram para pedir que se respeite o direito de todos a serem tratados sem discriminação.

O Evangelho é para todos

Da amizade com o Senhor deriva também a nossa vocação. Ele escolheu-nos para darmos muito fruto e para que o nosso fruto permaneça (cf. Jo 15, 16). Definindo-Se como a Videira verdadeira, quis que cada ramo pudesse, unido a Ele, dar fruto. Sim, Jesus deseja que cheguemos à «felicidade para a qual fomos criados. Quer-nos santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa» (Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate, 1).

O Evangelho também é para ti. Dirigida a cada um, é uma Palavra que consola e, ao mesmo tempo, chama à conversão. O Concílio Vaticano II, ao falar da vocação universal à santidade, ensina que «os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade. (...) Para alcançar esta perfeição, empreguem os fiéis as forças recebidas segundo a medida em que as dá Cristo, a fim de que (...) se consagrem com toda a alma à glória do Senhor e ao serviço do próximo» (Const. dogm. Lumen gentium, 40).

Contam-nos os Evangelhos que, quando algumas pessoas com deficiência encontraram Jesus, a sua vida mudou profundamente e começaram a ser testemunhas d’Ele. É o caso, por exemplo, do homem cego de nascença que, uma vez curado por Jesus, afirma corajosamente diante de todos que Ele é um profeta (cf. Jo 9, 17); e muitos outros proclamam, com alegria, aquilo que o Senhor fez por eles.

Sei que alguns de vós vivem condições de extrema fragilidade. Mas é precisamente a vós que me quero dirigir, talvez pedindo – onde for necessário – aos vossos familiares ou a quem vos acompanha de mais perto que vos leiam estas minhas palavras ou transmitam este meu apelo: pedir-vos para rezar. O Senhor escuta atentamente a oração de quem confia n’Ele. E ninguém diga «eu não sei rezar», porque, como diz o Apóstolo, «o Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir, para rezarmos como deve ser; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis» (Rm 8, 26). Com efeito, nos Evangelhos, Jesus ouve quem se Lhe dirige mesmo de forma aparentemente inadequada, talvez só com um gesto (cf. Lc 8, 44) ou um grito (Mc 10, 46-48). Na oração, há uma missão acessível a cada um e eu gostaria de a confiar de modo especial a vós. Não há ninguém tão frágil que não possa rezar, adorar o Senhor, dar glória ao seu Nome santo e interceder pela salvação do mundo. Diante de Deus Todo-Poderoso, descobrimo-nos todos iguais.

Queridos irmãos e irmãs, a vossa oração é mais urgente hoje do que nunca. Santa Teresa d’Ávila escreveu que, «em tempos difíceis, são necessários amigos fortes de Deus para sustentáculo dos fracos». [5] O tempo da pandemia mostrou-nos claramente que a condição de vulnerabilidade é comum a todos: «demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos» [6]. E o primeiro modo de o fazer é precisamente rezar. Podemos fazê-lo todos; e ainda que tivéssemos, como Moisés, necessidade dum sustentáculo (cf. Ex 17, 10-12), temos a certeza de que o Senhor ouvirá a nossa súplica.

Desejo-vos todo o bem. Que o Senhor vos abençoe e Nossa Senhora vos guarde.

Roma, São João de Latrão, 20 de novembro de 2021.

Francisco

________________________________________
[1] Rudolf Schnackenburg, Amicizia con Gesù (Brescia 2007), pg. 68.
[2] Sínodo dos Bispos, Documento preparatório. Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão, 2.
[3] Conferência dos Bispos de Inglaterra e Gales, Coronavirus and Access to Treatment (20 de abril de 2020).
[4] Conferência dos bispos Católicos dos estados unidos – Departamento para os Assuntos públicos, Statement on Rationing Protocols by Health Care Professionals in Response to COVID-19 (3 de abril de 2020).
[5] Vida, 15, 5.
[6] Francisco , Momento extraordinário de oração em tempo de epidemia (27 de março de 2020).

Maré Alta

“A leitura dos Evangelhos é tremendamente revolucionária”

Entrevista de Jorge Wemans e António Marujo | 18 Nov 21| in Sete Margens

(Apenas algumas passagens – a entrevista é longa – da autora de um dos mais belos e interessantes livros publicados ultimamente. Parece longa, mas o formato entrevista facilita)

Irene Vallejo, nascida em Saragoça em 1979, autora de O Infinito Num Junco (ed. Bertrand), esteve esta semana em Lisboa para participar na abertura das comemorações do centenário do nascimento de José Saramago e falar sobre o seu livro em entrevistas e debates. Em entrevista ao 7MARGENS falou também acerca da Bíblia, quase ausente do livro que apaixonou milhares de leitores em, por enquanto, mais de 30 países.

A leitura dos Evangelhos, diz, “é tremendamente inspiradora e tremendamente revolucionária”. Esses textos “transformaram o mundo” e o Sermão da Montanha é “um dos textos essenciais da humanidade”, que “não se consegue ler sem estremecer”…

7MARGENS – Depois de um livro tão fabuloso como O Infinito Num Junco ainda é possível voltar a escrever outro livro? Está a trabalhar num novo projeto?

IRENE VALLEJO – Por enquanto estou a adaptar-me a esta nova situação (risos)… Dou entrevistas, participo em feiras do livro, vídeos e debates, e viajo bastante, trabalhando com as editoras responsáveis pela tradução do meu livro em mais de 30 línguas. Tudo isto em diferentes países, diferentes línguas e culturas. E ainda mantenho a colaboração semanal com El País e com o [jornal mexicano] Milenio. É um trabalho muito exigente e um grande desafio em que me interessa aprender e assimilar tudo isto que é novo para mim. Desempenho um papel um pouco inesperado para mim, esta presença pública permanente… Não sei como, sem o ter pretendido, assumi um papel de defensora das Humanidades…, talvez pela ausência de outros porta-vozes.

Tenho muita vontade de escrever outro livro, mas agora não tenho a tranquilidade para pensar nisso. Sou de ritmos lentos, preciso de preparar muito bem a estrutura do que vou escrever, antes de o começar a fazer.

7M – Mas tem alguma ideia em vista?

Sim. Tenho duas ideias. Não sei por qual optarei. Debato-me entre uma e outra. Tomo notas, recolho algum material, mas preciso de mais calma, maior tranquilidade para pensar nisso…

7M – Vamos então ao que nos parece faltar neste O Infinito Num Junco: a Bíblia é um livro, melhor, uma biblioteca, cujas palavras ao longo dos séculos foram proclamadas em alta voz. Mas quase não fala dela. Porquê esta ausência?

É verdade que a menciono aqui e ali. Refiro a tradução dos Setenta, menciono Santo Agostinho, lembro a importância dos cristãos no desenvolvimento do formato códice e outras coisas mais. Mas sim, o facto é que havia uma terceira parte do meu livro que chegaria até à invenção da imprensa. A primeira parte é sobre a Grécia, a segunda sobre Roma, mas queria abordar todos aqueles séculos em que os livros foram manuscritos, séculos em que os livros viveram perigosamente. Quando chega a imprensa, os livros começam a ser facilmente multiplicados e torna-se mais fácil garantir que as obras sobrevivem. Mas enquanto só existiam poucas cópias de cada livro por ser preciso copiá-los palavra a palavra, letra a letra, era muito mais fácil destruírem-se todas as cópias de uma criação literária.

Nessa terceira parte do meu livro abordava essa passagem do mundo pagão ao mundo cristão, tratava de como sobreviveram os livros nas abadias e nos mosteiros medievais, falava da Vulgata como fenómeno de tradução, e muitos outros aspetos que nos caracterizam como “povo do livro”.

Mas o meu editor achou que o ensaio com todas essas três partes ia ficar demasiado volumoso. Teve receio que desanimasse potenciais leitores. E aconselhou-me a centrar-me no mundo antigo greco-latino. Se o livro fosse bem aceite eu poderia escrever um novo ensaio sobre o que neste está apenas esboçado. Quer o tempo medieval, quer o contributo oriental – escrevo sobre o Próximo Oriente, mas não sobre a China e o Japão, sobre a invenção do papel. Enfim, ficaram muitos aspetos de fora, mas recomendaram-me que as abordasse em novo ensaio. E, pronto!… tudo isso pode ser o gérmen de outro livro.

“Sou uma apaixonada por Santo Agostinho”

7M – Que temas podem aparecer?

Com a queda do mundo antigo surgem muitas questões interessantes: que rotas e caminhos segue o conhecimento, como vai encontrando lugares em que o protegem, o amparam… e também com muitos conflitos, muitos dilemas nascidos do enfrentamento do mundo cristão com outra cultura, outras religiões.

Há toda essa interrogação dos intelectuais cristãos – “Que fazemos? Assumimos ou não a cultura deste mundo pagão?…” – e a adoção de soluções intermédias, desde os que queriam fazer tábua rasa dessas culturas, até aos que queriam apropriar-se de identidades pagãs da Antiguidade para as cristianizar. O que se procurou fazer com Séneca é muito típico deste último esforço: quase se cristianizou a sua obra. E a Virgílio também, com a interpretação de que a sua Elegia antecipa o nascimento de Cristo. Fizeram-se muitas operações para assimilar a cultura existente e em simultâneo o cristianismo vai absorvendo o platonismo e passa por diversas etapas, formando uma mistura muito curiosa de elementos em princípio discordantes que vai fazendo o seu caminho e que finalmente cria uma cultura mestiça. Essa mestiçagem interessa-me muito.

7M – Então já há um ponto de partida para um novo livro…

Sim, há um ponto de partida para um novo livro. Por outro lado, também o mundo islâmico assume parte da tradição clássica e reaparece na Europa um pouco mais à frente… todas estas operações me parecem fascinantes, mas disseram-me: isto já é demasiado complexo, vai tornar o ensaio demasiado pesado, com mais de 700 páginas…

7M – E a Bíblia terá significado, nesse eventual novo livro…

Sim, há muitos aspetos interessantes. Se pensarmos no início do Evangelho [segundo São João] que começa com “No princípio era a palavra” e a importância do “logos” que tem muito a ver com a filosofia antiga…

É muito interessante ver como se vão encontrando e reinterpretando os conceitos de uma forma tão curiosa. Voltar a ler e a reler os clássicos é uma tendência fortíssima do Renascimento que não para de reinterpretar o presente a partir deles. Coisa que continuamos a fazer hoje. Saramago não faz outra coisa quando utiliza o mito da caverna para reinterpretar o mundo. Ele tinha, tal como Platão, essa vocação de utilizar mitos e alegorias para explicar a realidade. Era um forjador de mitos e alegorias e essa forma de pensar tem muito a ver com toda a tradição ocidental. Saramago pensa o futuro não a partir do costumbrismo e do realismo, mas sim a partir da metáfora, do mito. E é por isso que a sua literatura é tão potente e tão universal.

7M – Então não foi o facto dos seus pais se terem enfrentado com o nacional-catolicismo da Espanha franquista que a impediu de abordar mais profundamente a Bíblia…

Não, não, não… Os meus pais foram ambos pessoas muito comprometidas na luta contra a ditadura, mas nessa luta houve um contacto com pessoas religiosas mais progressistas, envolvidas num catolicismo social e que participaram ativamente nessa luta. O mundo das religiões tem também muitas facetas e muita complexidade. Não é verdade que estivesse todo apenas de um lado.

Os meus pais educaram-me numa cultura cristã, tenho muitas referências católicas e talvez por isso seja uma apaixonada por uma figura como Santo Agostinho e lhe dê tanto espaço no meu livro. O seu conceito do mundo é algo que procuro conhecer e aprofundar. É muito interessante ver como foi transformando o legado clássico que recebeu.

Do mesmo modo, o mundo medieval descrito por Umberto Eco interessa-me muitíssimo. Porque havia bibliotecas nos mosteiros e abadias? Não era necessário. Não precisavam. E, no entanto, foram os grandes refúgios dos livros. Os caminhos através dos quais os livros entraram nessas fortalezas medievais são muito curiosos e interessantes. Não havia razão para que ali fossem parar, mas foi ali que encontraram refúgio.

“Uma mensagem revolucionária que foi neutralizada”

7M – E hoje, que é a Bíblia para si?

À Bíblia acontece o mesmo que acontece aos clássicos: têm uma importância tão enorme na nossa cultura que olhamos para eles como livros cuja mensagem revolucionária estivesse de algum modo neutralizada. Olhamo-los como grandes autoridades, como mensagens aceites, totalmente assumidas, que se leem distraidamente, sem nos darmos conta de que há neles ideias profundamente renovadoras e arriscadas que na sua época foram autênticos terramotos e que continuam a sê-lo hoje.

A meu ver, a leitura dos Evangelhos é tremendamente inspiradora e tremendamente revolucionária. Mas não nos damos conta, porque os clássicos estão como que anestesiados, fazem parte de um ruído ambiente que nos impede de os ler compreendendo até ao fim as mensagens que nos transmitem. E são mensagens de rutura, espantosamente revolucionárias, transformadoras. É esse espanto que encontro nesses livros que me interessa reivindicar. Olhamos para eles como pessoas respeitáveis que viveram comodamente, sendo reconhecidas no seu tempo como grandes autoridades. Não foi assim. No seu tempo foram sujeitos a obstáculos, exílios, perseguições e não foram compreendidos.

Li com muito interesse o livro de Emmanuel Carrère, [O Reino, ed. Tinta da China, 432 pág.] que muito me influenciou ao escrever O Infinito Num Junco. É um relato maravilhoso sobre as personagens dos Evangelhos e uma reflexão sobre como contamos histórias, porque as contamos, quem são os que se encarregam de recolher a narrativa e dar-lhe a forma definitiva. Tudo questões que me interessam imenso.

7M – Há um livro da Bíblia que mais a toque?

O Antigo Testamento tem livros muito duros, muito violentos. Leio-os com espanto pelo contraste com o Novo Testamento. Gosto muito do Cântico dos Cânticos pela influência que teve na tradição literária, de Frei Luís de Leão a São João da Cruz, e toda a poesia que nos chega através das suas imagens.

Mas, na verdade, prefiro os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos porque me parecem textos profundamente renovadores e que, como os de Sócrates e de outros pensadores, são textos que transformaram o mundo. Esse poder transformador parece-me muito importante. O Sermão da Montanha é, para mim, um dos textos essenciais da humanidade. Não podes lê-lo sem estremeceres. É um texto poderosíssimo e muito valioso. (…)

“Os livros trazem a experiência, os ecrãs a conveniência”

7M – Encanta-a o facto de haver, hoje, tanta gente que possa ler e escrever. Admira os graffitis por eles serem expressão de pessoas que durante muito tempo não tinham a sua linguagem, nem conseguiam exprimir-se por escrito. Hoje, na Internet, todos se podem exprimir. As redes sociais são as novas paredes onde se podem inscrever os graffitis por escrever?

Até certo ponto sim, as redes sociais são um pouco como as portas das casas de banho públicas. Para mim é muito importante que ninguém fique excluído da escrita, da literatura e isso encaro-o como um triunfo. Não haver pessoas que, por causa do seu nascimento, a sua origem, a sua cor de pele, o seu género, não possam aproximar-se da leitura, da palavra escrita. Mesmo que isto não garanta que a utilizem bem, não significa que não seja, em si mesmo, um progresso. Hoje, vivemos num tempo em que alguém que ame o saber pode educar-se a si próprio, pode investigar, procurar e obter muito mais informação do que alguma vez tivemos à nossa disposição. Porém, todas as ferramentas sofrem da mesma ambiguidade: podem-se utilizar para o bem ou para o mal. Quanta mais liberdade temos, maior responsabilidade no seu uso. Todos os avanços engendram novos dilemas, maiores problemas, novas preocupações.

Creio que neste avanço em direção à maior complexidade do mundo, os livros são a ferramenta que melhor fala desta complexidade. Os ecrãs, as paredes em que toda a gente escreve a sua frase breve para que circule rapidamente, sem reflexão, sem pensamento, sem esse esforço de reflexão de toda uma vida que é a filosofia, vão-nos encaminhando para um mundo de slogans de consumo rápido e fugaz. Os livros, os antigos, os velhíssimos, os remotos livros são a forma de utilizar a palavra que melhor nos ajuda num mundo que se vai tornando cada vez mais complexo, porque eles próprios são muito mais complexos do que os novos meios. O livro tem outro tempo, outro ritmo, vai mais fundo no questionamento, debate, tenta antecipar problemas, dificuldades e esperanças. (…)

7M – Contudo, hoje não são os livros os repositórios desse conhecimento; são as máquinas, os sistemas informáticos, que descobrem e respondem inclusive a perguntas que não tínhamos colocado…

Creio que os livros continuam a ter uma credibilidade especial e única que não reconhecemos a outros meios. Os livros continuam a ser os lugares da síntese fidedigna do que descobrimos, do que sabemos. Têm autor e conhecemos os rostos das pessoas responsáveis por os terem escrito. Não temos de pôr os livros contra os ecrãs. São formas complementares de aproximação ao conhecimento. O que devemos procurar é que uns desativem os perigos dos outros. Defendo a convivência de ambos, mais do que a concorrência entre eles. Os livros trazem a experiência, os ecrãs a conveniência, são mais práticos e mais rápidos.

Maré Alta

“A leitura dos Evangelhos é tremendamente revolucionária”

Entrevista de Jorge Wemans e António Marujo | 18 Nov 21| in Sete Margens

(Apenas algumas passagens – a entrevista é longa – da autora de um dos mais belos e interessantes livros publicados ultimamente. Parece longa, mas o formato entrevista facilita)

Irene Vallejo, nascida em Saragoça em 1979, autora de O Infinito Num Junco (ed. Bertrand), esteve esta semana em Lisboa para participar na abertura das comemorações do centenário do nascimento de José Saramago e falar sobre o seu livro em entrevistas e debates. Em entrevista ao 7MARGENS falou também acerca da Bíblia, quase ausente do livro que apaixonou milhares de leitores em, por enquanto, mais de 30 países.

A leitura dos Evangelhos, diz, “é tremendamente inspiradora e tremendamente revolucionária”. Esses textos “transformaram o mundo” e o Sermão da Montanha é “um dos textos essenciais da humanidade”, que “não se consegue ler sem estremecer”…

7MARGENS – Depois de um livro tão fabuloso como O Infinito Num Junco ainda é possível voltar a escrever outro livro? Está a trabalhar num novo projeto?

IRENE VALLEJO – Por enquanto estou a adaptar-me a esta nova situação (risos)… Dou entrevistas, participo em feiras do livro, vídeos e debates, e viajo bastante, trabalhando com as editoras responsáveis pela tradução do meu livro em mais de 30 línguas. Tudo isto em diferentes países, diferentes línguas e culturas. E ainda mantenho a colaboração semanal com El País e com o [jornal mexicano] Milenio. É um trabalho muito exigente e um grande desafio em que me interessa aprender e assimilar tudo isto que é novo para mim. Desempenho um papel um pouco inesperado para mim, esta presença pública permanente… Não sei como, sem o ter pretendido, assumi um papel de defensora das Humanidades…, talvez pela ausência de outros porta-vozes.

Tenho muita vontade de escrever outro livro, mas agora não tenho a tranquilidade para pensar nisso. Sou de ritmos lentos, preciso de preparar muito bem a estrutura do que vou escrever, antes de o começar a fazer.

7M – Mas tem alguma ideia em vista?

Sim. Tenho duas ideias. Não sei por qual optarei. Debato-me entre uma e outra. Tomo notas, recolho algum material, mas preciso de mais calma, maior tranquilidade para pensar nisso…

7M – Vamos então ao que nos parece faltar neste O Infinito Num Junco: a Bíblia é um livro, melhor, uma biblioteca, cujas palavras ao longo dos séculos foram proclamadas em alta voz. Mas quase não fala dela. Porquê esta ausência?

É verdade que a menciono aqui e ali. Refiro a tradução dos Setenta, menciono Santo Agostinho, lembro a importância dos cristãos no desenvolvimento do formato códice e outras coisas mais. Mas sim, o facto é que havia uma terceira parte do meu livro que chegaria até à invenção da imprensa. A primeira parte é sobre a Grécia, a segunda sobre Roma, mas queria abordar todos aqueles séculos em que os livros foram manuscritos, séculos em que os livros viveram perigosamente. Quando chega a imprensa, os livros começam a ser facilmente multiplicados e torna-se mais fácil garantir que as obras sobrevivem. Mas enquanto só existiam poucas cópias de cada livro por ser preciso copiá-los palavra a palavra, letra a letra, era muito mais fácil destruírem-se todas as cópias de uma criação literária.

Nessa terceira parte do meu livro abordava essa passagem do mundo pagão ao mundo cristão, tratava de como sobreviveram os livros nas abadias e nos mosteiros medievais, falava da Vulgata como fenómeno de tradução, e muitos outros aspetos que nos caracterizam como “povo do livro”.

Mas o meu editor achou que o ensaio com todas essas três partes ia ficar demasiado volumoso. Teve receio que desanimasse potenciais leitores. E aconselhou-me a centrar-me no mundo antigo greco-latino. Se o livro fosse bem aceite eu poderia escrever um novo ensaio sobre o que neste está apenas esboçado. Quer o tempo medieval, quer o contributo oriental – escrevo sobre o Próximo Oriente, mas não sobre a China e o Japão, sobre a invenção do papel. Enfim, ficaram muitos aspetos de fora, mas recomendaram-me que as abordasse em novo ensaio. E, pronto!… tudo isso pode ser o gérmen de outro livro.

“Sou uma apaixonada por Santo Agostinho”

7M – Que temas podem aparecer?

Com a queda do mundo antigo surgem muitas questões interessantes: que rotas e caminhos segue o conhecimento, como vai encontrando lugares em que o protegem, o amparam… e também com muitos conflitos, muitos dilemas nascidos do enfrentamento do mundo cristão com outra cultura, outras religiões.

Há toda essa interrogação dos intelectuais cristãos – “Que fazemos? Assumimos ou não a cultura deste mundo pagão?…” – e a adoção de soluções intermédias, desde os que queriam fazer tábua rasa dessas culturas, até aos que queriam apropriar-se de identidades pagãs da Antiguidade para as cristianizar. O que se procurou fazer com Séneca é muito típico deste último esforço: quase se cristianizou a sua obra. E a Virgílio também, com a interpretação de que a sua Elegia antecipa o nascimento de Cristo. Fizeram-se muitas operações para assimilar a cultura existente e em simultâneo o cristianismo vai absorvendo o platonismo e passa por diversas etapas, formando uma mistura muito curiosa de elementos em princípio discordantes que vai fazendo o seu caminho e que finalmente cria uma cultura mestiça. Essa mestiçagem interessa-me muito.

7M – Então já há um ponto de partida para um novo livro…

Sim, há um ponto de partida para um novo livro. Por outro lado, também o mundo islâmico assume parte da tradição clássica e reaparece na Europa um pouco mais à frente… todas estas operações me parecem fascinantes, mas disseram-me: isto já é demasiado complexo, vai tornar o ensaio demasiado pesado, com mais de 700 páginas…

7M – E a Bíblia terá significado, nesse eventual novo livro…

Sim, há muitos aspetos interessantes. Se pensarmos no início do Evangelho [segundo São João] que começa com “No princípio era a palavra” e a importância do “logos” que tem muito a ver com a filosofia antiga…

É muito interessante ver como se vão encontrando e reinterpretando os conceitos de uma forma tão curiosa. Voltar a ler e a reler os clássicos é uma tendência fortíssima do Renascimento que não para de reinterpretar o presente a partir deles. Coisa que continuamos a fazer hoje. Saramago não faz outra coisa quando utiliza o mito da caverna para reinterpretar o mundo. Ele tinha, tal como Platão, essa vocação de utilizar mitos e alegorias para explicar a realidade. Era um forjador de mitos e alegorias e essa forma de pensar tem muito a ver com toda a tradição ocidental. Saramago pensa o futuro não a partir do costumbrismo e do realismo, mas sim a partir da metáfora, do mito. E é por isso que a sua literatura é tão potente e tão universal.

7M – Então não foi o facto dos seus pais se terem enfrentado com o nacional-catolicismo da Espanha franquista que a impediu de abordar mais profundamente a Bíblia…

Não, não, não… Os meus pais foram ambos pessoas muito comprometidas na luta contra a ditadura, mas nessa luta houve um contacto com pessoas religiosas mais progressistas, envolvidas num catolicismo social e que participaram ativamente nessa luta. O mundo das religiões tem também muitas facetas e muita complexidade. Não é verdade que estivesse todo apenas de um lado.

Os meus pais educaram-me numa cultura cristã, tenho muitas referências católicas e talvez por isso seja uma apaixonada por uma figura como Santo Agostinho e lhe dê tanto espaço no meu livro. O seu conceito do mundo é algo que procuro conhecer e aprofundar. É muito interessante ver como foi transformando o legado clássico que recebeu.

Do mesmo modo, o mundo medieval descrito por Umberto Eco interessa-me muitíssimo. Porque havia bibliotecas nos mosteiros e abadias? Não era necessário. Não precisavam. E, no entanto, foram os grandes refúgios dos livros. Os caminhos através dos quais os livros entraram nessas fortalezas medievais são muito curiosos e interessantes. Não havia razão para que ali fossem parar, mas foi ali que encontraram refúgio.

“Uma mensagem revolucionária que foi neutralizada”

7M – E hoje, que é a Bíblia para si?

À Bíblia acontece o mesmo que acontece aos clássicos: têm uma importância tão enorme na nossa cultura que olhamos para eles como livros cuja mensagem revolucionária estivesse de algum modo neutralizada. Olhamo-los como grandes autoridades, como mensagens aceites, totalmente assumidas, que se leem distraidamente, sem nos darmos conta de que há neles ideias profundamente renovadoras e arriscadas que na sua época foram autênticos terramotos e que continuam a sê-lo hoje.

A meu ver, a leitura dos Evangelhos é tremendamente inspiradora e tremendamente revolucionária. Mas não nos damos conta, porque os clássicos estão como que anestesiados, fazem parte de um ruído ambiente que nos impede de os ler compreendendo até ao fim as mensagens que nos transmitem. E são mensagens de rutura, espantosamente revolucionárias, transformadoras. É esse espanto que encontro nesses livros que me interessa reivindicar. Olhamos para eles como pessoas respeitáveis que viveram comodamente, sendo reconhecidas no seu tempo como grandes autoridades. Não foi assim. No seu tempo foram sujeitos a obstáculos, exílios, perseguições e não foram compreendidos.

Li com muito interesse o livro de Emmanuel Carrère, [O Reino, ed. Tinta da China, 432 pág.] que muito me influenciou ao escrever O Infinito Num Junco. É um relato maravilhoso sobre as personagens dos Evangelhos e uma reflexão sobre como contamos histórias, porque as contamos, quem são os que se encarregam de recolher a narrativa e dar-lhe a forma definitiva. Tudo questões que me interessam imenso.

7M – Há um livro da Bíblia que mais a toque?

O Antigo Testamento tem livros muito duros, muito violentos. Leio-os com espanto pelo contraste com o Novo Testamento. Gosto muito do Cântico dos Cânticos pela influência que teve na tradição literária, de Frei Luís de Leão a São João da Cruz, e toda a poesia que nos chega através das suas imagens.

Mas, na verdade, prefiro os Evangelhos e os Atos dos Apóstolos porque me parecem textos profundamente renovadores e que, como os de Sócrates e de outros pensadores, são textos que transformaram o mundo. Esse poder transformador parece-me muito importante. O Sermão da Montanha é, para mim, um dos textos essenciais da humanidade. Não podes lê-lo sem estremeceres. É um texto poderosíssimo e muito valioso. (…)

“Os livros trazem a experiência, os ecrãs a conveniência”

7M – Encanta-a o facto de haver, hoje, tanta gente que possa ler e escrever. Admira os graffitis por eles serem expressão de pessoas que durante muito tempo não tinham a sua linguagem, nem conseguiam exprimir-se por escrito. Hoje, na Internet, todos se podem exprimir. As redes sociais são as novas paredes onde se podem inscrever os graffitis por escrever?

Até certo ponto sim, as redes sociais são um pouco como as portas das casas de banho públicas. Para mim é muito importante que ninguém fique excluído da escrita, da literatura e isso encaro-o como um triunfo. Não haver pessoas que, por causa do seu nascimento, a sua origem, a sua cor de pele, o seu género, não possam aproximar-se da leitura, da palavra escrita. Mesmo que isto não garanta que a utilizem bem, não significa que não seja, em si mesmo, um progresso. Hoje, vivemos num tempo em que alguém que ame o saber pode educar-se a si próprio, pode investigar, procurar e obter muito mais informação do que alguma vez tivemos à nossa disposição. Porém, todas as ferramentas sofrem da mesma ambiguidade: podem-se utilizar para o bem ou para o mal. Quanta mais liberdade temos, maior responsabilidade no seu uso. Todos os avanços engendram novos dilemas, maiores problemas, novas preocupações.

Creio que neste avanço em direção à maior complexidade do mundo, os livros são a ferramenta que melhor fala desta complexidade. Os ecrãs, as paredes em que toda a gente escreve a sua frase breve para que circule rapidamente, sem reflexão, sem pensamento, sem esse esforço de reflexão de toda uma vida que é a filosofia, vão-nos encaminhando para um mundo de slogans de consumo rápido e fugaz. Os livros, os antigos, os velhíssimos, os remotos livros são a forma de utilizar a palavra que melhor nos ajuda num mundo que se vai tornando cada vez mais complexo, porque eles próprios são muito mais complexos do que os novos meios. O livro tem outro tempo, outro ritmo, vai mais fundo no questionamento, debate, tenta antecipar problemas, dificuldades e esperanças. (…)

7M – Contudo, hoje não são os livros os repositórios desse conhecimento; são as máquinas, os sistemas informáticos, que descobrem e respondem inclusive a perguntas que não tínhamos colocado…

Creio que os livros continuam a ter uma credibilidade especial e única que não reconhecemos a outros meios. Os livros continuam a ser os lugares da síntese fidedigna do que descobrimos, do que sabemos. Têm autor e conhecemos os rostos das pessoas responsáveis por os terem escrito. Não temos de pôr os livros contra os ecrãs. São formas complementares de aproximação ao conhecimento. O que devemos procurar é que uns desativem os perigos dos outros. Defendo a convivência de ambos, mais do que a concorrência entre eles. Os livros trazem a experiência, os ecrãs a conveniência, são mais práticos e mais rápidos.


Maré Alta

E o pobre sou eu?

P. Lourenço Eiró sj | in Ponto sj | 12 Novembro 2021

Trabalho numa ONGD para crianças e jovens, num bairro social. Ontem fui chamado à escola profissional onde alguns dos jovens que apoiamos estudam para falar com a Diretora. As dificuldades são muitas, desde os custos do transporte e da alimentação até à capacidade humana para o cumprimento das tarefas, a pontualidade e a assiduidade. Todos os meios – que as famílias destes jovens não têm -, são colocados ao seu dispor para que completem o 12.º ano e continuem os estudos. Mas tudo são dificuldades, já que tudo lhes falta. No mesmo dia, soube que uma rapariga da capital deseja entrar em Medicina e não consegue. A família coloca todos os meios à sua disposição para que possa seguir aquela que, está convencida, é a sua vocação. Incluindo o apoio de uma academia especializada e a possibilidade de ir para o estrangeiro.

No final do dia, doía-me o coração. Pensava nos tremendos contrastes de duas realidades tão assimétricas, apenas devido ao berço onde uns e outros nasceram. Como aos primeiros lhes falta tudo para garantirem uma escolarização básica; e como a segunda tem todos os meios ao seu alcance para prosseguir os estudos e construir uma carreira de sucesso.

Assinala-se no dia 14 de novembro o V Dia Mundial dos Pobres. O que será, afinal, ser pobre? Ultimamente, todos somos pobres, pois, como criaturas humanas, somos e sempre seremos carentes, necessitados, dependentes… mas a verdade é que o amor, as oportunidades, as riquezas e muitos outros bens que de Deus recebemos não são distribuídos por todos com a mesma justiça. Daí que a palavra “pobre” só tenha sentido em relação à palavra “rico”. E inferioriza quem é apelidado de tal, criando uma desigualdade entre pessoas concretas.

Na carta para o V Dia Mundial dos Pobres, o Papa Francisco afirma que “os pobres são revelação do próprio Deus, porque Jesus os preferiu como amigos e toda a obra de salvação começou com eles”. Na verdade, reconhecemos Deus nos “pobres”, na sua “tribulação e indigência”. As próprias bem-aventuranças, carta magna do anúncio do Reino de Deus, fala deles: “Felizes os pobres…”. O Papa tem-nos dito vezes sem conta e insiste: Os mais pobres e indigentes deste mundo revelam-nos os “traços do rosto do Pai”. Devemos olhar para eles, não só porque são “pobrezinhos”, mas porque têm muito a ensinar-nos sobre quem É Deus Pai e Jesus Cristo. Por isso, insiste o Papa, “A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas e a colocá-las no centro do caminho da Igreja. Somos chamados a descobrir Cristo neles” (Evangelium Gaudim, 198).

Os pobres clamam pela nossa atenção! Pelas desigualdades produzidas pela sociedade do lucro e pela aparente indiferença com que todos vivemos no nosso conforto e segurança, no nosso berço privilegiado. Clamam por maior igualdade e justiça; por solidariedade e partilha; clamam para que lhes devolvamos a dignidade à qual têm direito, como qualquer ser humano.

Olhar e reconhecer os pobres de hoje, que lutam pela sobrevivência, por uma vida menos precária, nas nossas cidades e bairros, implica entrar no combate desigual contra toda a indiferença. “Os pobres não são pessoas ‘externas’ à comunidade, mas irmãos e irmãs cujo sofrimento se partilha, para abrandar o seu mal e a marginalização, a fim de lhes devolver a dignidade perdida e garantida a inclusão social”. Trata-se de reconhecer em cada pessoa uma irmã e um irmão, alguns deles mais necessitados de atenção e auxílio. Reconhecer a sua pobreza requer a nossa compaixão, a qual nos permite sair ao seu encontro e agir em sua ajuda concreta. Muitos dos nossos gestos caritativos podem ser modos quase automáticos, até insignificantes, de ajuda fraterna, diante da hercúlea tarefa que supõe mudar as lógicas injustas do nosso mundo. “A esmola é ocasional, ao passo que a partilha é duradoura”.

A luta conta a pobreza começa no pobre que levantamos do chão, alimentamos, vestimos e acolhemos. Depois acompanhamos, capacitamos, fortalecemos, amamos… até ao fim da sua vida, da nossa vida. Essa luta trava-se num compromisso vitalício! De resto, como Deus faz connosco. E, para começar, precisamos de ganhar liberdade interior, pois “se não me libertar das riquezas, nunca conseguirei dar a vida por amor”. Requer uma profunda conversão interior, de mudança de estilo de vida, para que o nosso testemunho seja credível e transformador.

“Jesus fez-se pobre para nos enriquecer com a sua pobreza” (2Cor 8,9). A encarnação é o abaixamento de Deus à nossa humanidade, em nosso favor, para que o seu Filho desse a vida por nós. Jesus é o primeiro pobre de todos, dando-nos o exemplo de uma entrega total. Por isso os pobres foram sempre os seus preferidos, os seus melhores amigos.

Celebremos esta jornada do dia mundial dos pobres, respondendo, com verdade, à pergunta: “Que fiz, que faço, que farei, por Ti, Senhor?”… nos teus pobres! Que faço ou que farei pelos pobres? Desta resposta, de todas as nossas respostas, parte o firme propósito e compromisso conjunto pela intervenção nas mudanças estruturais e profundas que o nosso mundo necessita. Talvez um dia todos os jovens possam ter acesso aos meios necessários para terminar com êxito o 12.º ano. E talvez um dia todos possam seguir a sua vocação e profissão, sendo justamente remunerados pelo seu trabalho.


Maré Alta

O essencial, sem ilusões

Anselmo Borges | 30 Outubro 2021 | in DN (Retirado do FB do padre Amaro Gonçalo)

Há aquele conto persa sobre o jardineiro e a morte: "O jardineiro de um príncipe persa correu para o seu senhor, dizendo: "Senhor, acabo de ver a morte no pátio, e ameaçou-me. Empresta-me um cavalo, para poder fugir depressa para Ispaão; deste modo, a morte não me alcançará." O senhor satisfez o desejo do seu jardineiro, que imediatamente cavalgou para Ispaão. Pouco depois, também o príncipe encontrou a morte, e perguntou-lhe: "Porque é que ameaçaste o meu jardineiro?" A morte respondeu: "Eu não o ameacei. Apenas olhei para ele atónita, pois hoje à noite tenho de ir buscá-lo a Ispaão.""

Aí está um conto cru, que tem muitas versões, mas essencial. Passamos a vida a fugir da morte, ela, porém, está sempre lá. À nossa espera. Em qualquer parte. Não sabemos onde. Nem quando. Nem como. Mas é inútil tentar esquecê-la, pois ela não vai esquecer-se de nós.

E. Cioran, o filósofo da desesperança, escreveu: "Há meses, encontrei uma senhora e falámos de um conhecido comum, alguém que eu já não via há muito tempo. Ela disse que era melhor não voltar a vê-lo, pois ele estava muito infeliz. Não pensava noutra coisa senão na morte. Respondi-lhe: "Em que é que quer que pense?" Em última análise, não há outro assunto."

O pensamento da morte tem o condão de ao mesmo tempo nos libertar e nos paralisar. Perante a morte, ficamos neutralizados: tudo é vão e inútil. Ou fugimos para a frente: comamos e bebamos, pois amanhã morreremos. Ou então despertamos finalmente para a liberdade: a consciência da morte faz-nos radicalmente livres, e tornamo-nos nós.

A morte é implacável. Com ela, não há negociação possível. Mais tarde ou mais cedo, ela sai vencedora. Mas precisamente aqui reside o seu nó todo de enigma: ela é a evidência bruta que anula, e, por outro lado, ergue-se, irredutível, a pergunta: como é que uma consciência pode morrer? A minha consciência morta é a contradição. Por isso, através deste enigma, as culturas não são senão tentativas de abertura de caminhos de sentido, na busca de um Sentido último, final.

Talvez não seja mau reflectir sobre a crise das nossas sociedades científico-técnicas que tem o seu vértice no tabu da morte. Vivemos numa sociedade que nos arrasa com conhecimentos, mas que não nos ensina o essencial: a sabedoria de viver na consciência da mortalidade. Essa consciência talvez possa despertar-nos para o que é nuclear e fundamental: somos mortais; logo, somos irmãos. E é a morte que obriga a distinguir entre o que verdadeiramente vale e tudo o resto.

É um lugar-comum: o reconhecimento de que nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo, a morte se tornou tabu. Disso, pura e simplesmente, não se fala. Fazê-lo é quase obsceno, embora se admita que o mundo dos mortos invada o mundo dos vivos um ou dois dias por ano - 1 e 2 de Novembro, os dias dos Finados, amanhã e depois. As nossas sociedades são as primeiras na história a colocar o seu fundamento sobre a negação da morte.

De facto, como é que uma sociedade que gira à volta da organização socioeconómica, determinada pelo individualismo concorrencial feroz, onde os valores são ter, poder, prazer, êxito, parecer e aparecer, eficácia, lucro, acumulação de bens materiais, progresso, riqueza, pode ainda acompanhar afectivamente os doentes, os velhos, os moribundos, e suportar o supremo fracasso da morte? Uma sociedade sem Eternidade tem de ignorar a morte. Neste tipo de mundo, a morte é o não integrável, e o nosso dever é não pensar nela.

Mas não se julgue que se deixou de pensar na morte por ela já não constituir problema. É exactamente o contrário que se passa: de tal modo a morte é problema, o problema para o qual uma sociedade que se considera omnipotente não tem solução, que só resta a solução de ignorá-la, ocultá-la, reprimi-la. Aquilo que provoca dor infinda e para que não há solução é recalcado. Por isso, se a experiência de solidão acompanha sempre a morte, nas nossas sociedades essa solidão pode atingir o paroxismo do intolerável.

É certo que talvez nunca como hoje a morte foi objecto de estudos científicos, desde a medicina à sociologia, à psicologia e à história, que nos permitem compreender, por exemplo, que as atitudes face à morte variam segundo os tempos e as sociedades. Proliferam os colóquios e as conferências e os especialistas da morte. Mas não se aninha aí precisamente o perigo de uma estratégia para evitar o pensamento da minha morte? Quer dizer, essa é ainda uma forma paradoxal de confirmar o tabu: falar da morte em abstracto e academicamente pode ser um meio de iludir a minha própria morte.

Ora, é evidente que é necessário excluir todas as atitudes mórbidas face à morte. Até porque o medo da morte foi utilizado até pela Igreja como verdadeiro exercício de terrorismo sobre as consciências, para uso do poder. Mas é igualmente verdade que, quando uma sociedade nada tem a dizer sobre a morte, é porque, em última análise, nada tem a dizer sobre a existência autenticamente humana. Quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal decisivo de desumanização e alienação. A ocultação da morte anda vinculada ao profundo mal-estar provocado pelo vazio de uma existência sem sentido.

O pensamento da morte não pode servir para envenenar a vida. Pelo contrário. O saber da morte própria confronta-nos com os limites e o que se deve fazer no tempo que há. Sem ilusões.

Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia


Maré Alta

O próprio papa Francisco diz que este tempo sinodal é ‘para discutirmos e também discutirmos com o Espírito Santo, que é um modo de rezar’. Não tenhamos medo da discussão, portanto. Desde que feita com a ‘inteligência da fé’.

SACERDÓCIO FEMININO E PACIÊNCIA ECLESIAL

João Paiva | in Ponto SJ | 17 Outubro 2021

Em síntese, nesta reflexão, são duas, as setas críticas: a não abertura ao sacerdócio feminino e a opção de não abrir o diálogo interno sobre essa mesma circunstância.

Não conseguiria abordar o tema do acesso feminino ao sacerdócio católico romano como assunto único. É tudo muito complexo, sistémico… e ultrapassa-me. Já julgo conseguir explicitar alguns pontos de vista se, a par do tema (e sem tabus) associar o estar em Igreja ou, melhor escrevendo, ser em Igreja. Vamos ao que interessa…

1– Não compreendo – e entendo até não conseguir adivinhar compreender no futuro – este fechamento…

Os principais argumentos para eu não conseguir encontrar qualquer obstáculo plausível ao sacerdócio feminino residem em certa antropologia teológica. Neste jogo tensional entre a humanidade e Deus, só consigo vislumbrar uma redenção, uma revelação e uma ressurreição genuinamente universais. Deus é Pai por falta de palavras e conceitos melhores. Mas sabemos que é Mãe, também, e, em última análise, o vertimento amoroso divino não poderia ter peneiras de género. É claro que a realidade dos tempos em trânsito, a começar na força e superioridade anatómicas dos primeiros hominídeos machos, foi impondo uma assimetria, que ainda hoje combatemos. Mas é nos Evangelhos, sobretudo na forma como Jesus de Nazaré se abeira das mulheres (naquele tempo e naquele espaço, particularmente despromovidas) que baseio esta perceção de horizontalidade homem-mulher na proposta cristã, em todas as suas dimensões e, por isso mesmo, também na possibilidade de elas poderem animar e presidir à celebração da fé na eucaristia, bem como administrarem outros sacramentos e terem qualquer função, também estrutural e hierárquica, na Igreja Católica Romana.

Não é este o lugar para o escrutínio sistemático do ponto a que chegamos. Mas a teia argumentatória que abafa anda pelo facto de Jesus só ter tido discípulos mais chegados homens (o que é objetivamente discutível mas, mais relevante ainda, qualquer extrapolação histórica desta índole é ingénua). Ouve e lê-se, também, que para ‘cristificar’ (na eucaristia, por exemplo) teria que se ser homem, como Cristo… Mas um cristianismo profundo, me parece, reconhece o género masculino de Jesus como um “acidente antropológico”. Parece-me que há ainda um baseamento do sacerdócio excessivamente agregado ao sacerdócio milenar pré-cristão, o que não ajuda à emancipação que os nossos tempos demandam.

Há algumas pessoas que me acompanham, pelo menos em parte, no raciocínio interior, invocando, porém, que certa tradição não favorece caminhos de abertura. Eu julgo compreender o valor da tradição, a marca de novidade na continuidade com que se tece a Igreja e a própria proposta cristã. Mas tradição e fechamento, no meu entender, jogam mal. Se a tradição for para fechar e defender, superando a razão e os sinais dos tempos, não consigo acolher.

Tropeço também em argumentos de unidade católica, evidenciando a diferença entre as várias culturas e localidades onde a Igreja está implementada e onde o papel da mulher tem as mais variadas matizes. Compreendo essa diversidade, mas parece-me insuficiente para fechar o diálogo. Os embalos do Concílio Vaticano II (também ele, no meu entender, gérmen não explicito para outro papel feminino na Igreja…) fomentariam uma diversidade na unidade, capaz de dar aos Bispos, em leituras locais contextualizadas, ensaios de maior pendor feminino no seio da Igreja.

É bom clarificar que o facto de termos mulheres a poder presidir à eucaristia, por exemplo, traria mais oportunidades de muitos fiéis (e não é só na Amazónia…) terem acesso a esse sacramento tão fecundo de nos alimentarmos na Fé, para alimentarmos o mundo. Mas, se este artigo fosse um teorema, esta ampliação da oportunidade pastoral e sacramental seria só um corolário, em certo sentido, contingente, temporal e circunstancial. O(s) motivo(s) maior(s) é muito mais cristãmente essencial e amplo…

2- Assim como na ciência e religião…

O caminho que fiz até aqui, a este propósito, tem muito a ver com o diálogo ciência e religião. Parece distante, mas explico: sou um ignorante vindo do mundo das ciências. Talvez por ser químico (que é a ciência das misturas e é epistemologicamente uma disciplina que é muito quase-utilitarista de outras áreas do saber), li algumas coisas e falei com muita gente, principalmente do lado da teologia e da filosofia, para construir um edifício que me fosse coerente no que diz respeito à compatibilidade entre ciência e religião. Embora continuando (mais) ignorante, este exercício corrigiu-me em relação a alguns aspetos sobre a natureza da própria ciência, mas, mais importante ainda, devolveu-me como num bumerangue, resignificações religiosas. Baseei-me em gente ora mais, ora menos suspeita (Chardin, Rahner, Kung, Ratzinguer, Queiruga, Buber, Polkinghorne, Newman, Barbour, Vallina, etc). Nenhuma destas fontes me inspirou diretamente para uma fundamentação favorável ao sacerdócio feminino… mas (aqui está a nuance…) as bases que fui edificando para o exercício de tal compatibilidade entre ciência e religião, e que incluem a não ultrapassagem da razão pela fé, a não literalidade bíblica, o entendimento das Escrituras como livros de revelação e não de explicações, bem como a abertura do espírito e da mente para ler as evidências, entre outras, cairiam como castelos de cartas se fossem tecidas com argumentações congéneres, como as que escuto e leio para fundamentar o fechamento ao acesso sacerdotal das mulheres. A abertura que precisei aqui (ciência e religião) seria uma absoluto buraco negro, se eu usasse pressupostos da ordem dos que se me têm cruzado no contexto da problemática associada ao protagonismo feminino na Igreja Católica Romana… Dito ainda de outra forma: quando me é apresentado um argumento favorável ao fechamento das mulheres ao sacerdócio eu tendo quase sempre a poder elaborar que, se fosse ter tal tipo de condição em conta, no que diz respeito ao diálogo ciência-religião, rigidificaria a argumentação e acabaria num reduto onde não desejo estar: ciência e religião seriam incompatíveis.

3- Mas porque permaneces?

É sabido que, neste momento, na Igreja Católica Romana, o tema do acesso ao sacerdócio por mulheres é um não-tema, assumidamente encerrado para discussão. Na senda de João Paulo II, Bento XVI e agora Francisco (neste último caso, intuo, como preço de certa sinodalidade e não personalização do poder como serviço), o assunto está fechado… e nem sequer fechado para balanço… Tenho alguma repugnância intelectual pelos fechamentos intrínsecos. O terreno do exercício científico, que tem, no meu entender, sementes de judaico-cristianismo evidentes, habituou-me à abertura como forma de estar, ao estímulo crítico e à positiva provisoriedade das verdades científicas. Admito certos dogmas (certas boias) no que à fé diz respeito. “Deus é amor”, por exemplo, não é verdade que pretenda relativizar e destilar, mas tão só, em fé, acolher e viver. Só que “as mulheres não podem aceder ao sacerdócio” é de uma outra ordem e não merece, definitivamente, o selo de dogma inegociável, nem o estaticismo que a Igreja hierárquica lhe está a conferir… Em síntese, nesta reflexão, são duas, as setas críticas: a não abertura ao sacerdócio feminino e a opção de não abrir o diálogo interno sobre essa mesma circunstância.

Há pouco tempo, fui perguntado num grupo alargado de jovens sobre este assunto. Depois de exprimir o meu ponto de vista, alguém, percebendo o meu sentido crítico e até algum incómodo, perguntou-me porque permanecia na Igreja Católica, discordando deste (como de outros, acrescento eu) dinamismos ou bloqueios semelhantes. A crença vivida na comunhão, mais do que no poder e a prevalência da paz sobre a razão, como ouvi recentemente serem propósitos de alguém que celebrava a vida, inspiram-me à permanência…

Convém também clarificar que esta contenda tem um lado não essencial. Isto é, sem escamotear que os estado das coisas (no duplo sentido de fechamento antropológico e de fechamento dialogante) projeta, no meu entender, carências e incompletudes da Igreja, não é uma crucialidade do meu ser Cristão. Mais ainda, seria ingénuo pensar que, embora desejável, no que a mim diz respeito, mais abertura neste âmbito, resolveria as questões mais estruturais do cristianismo. Julgo que se eu fosse mulher, nada mudaria a respeito da colocação que acabo de expressar. Até porque tudo isto não se coloca a nível do ‘direito ao sacerdócio’, que é em si próprio uma antítese e uma enviesada porta de entrada. O que está em causa – que eu lamento como impossibilidade – seria um encontro para um serviço (nunca um direito). E todos os serviços se propõe e não impõe e muitas vezes é preciso esperar para que sejam acolhidos como uma possibilidade real. A essa espera me sujeito…

4- É sempre e só um ponto de vista, o (curto) meu…

Fica para outra abordagem um tema congénere no espaço público, o do acesso ao sacerdócio de homens casados. Aqui o tema é menos complexo e com facilidade dispensa a reflexão antropológica e teológica, conseguindo-se certa redução a um contexto de problema meramente disciplinar. Intuo que poderei morrer antes ainda da Igreja Católica Romana admitir no seu seio o sacerdócio de homens casados (não religiosos, o que é e será sempre um caso à parte). Mas não mulheres, muito menos mulheres casadas. Talvez não veja, pelo andar da carruagem, tal cenário vivo e implementado nestes anos mais em que poderei ter oportunidade de existir no planeta Terra. Admito e espero, contudo, ao menos, ver em crescendo a relevância da mulher na Igreja, incluindo, de forma óbvia e objetiva, nos seus centros decisórios de poder (de serviço pelo poder, melhor dizendo).

Importa-me ir refletindo o meu posicionamento em todo este dinamismo e os benefícios e prejuízos que o status quo sobre a matéria, neste momento específico da história da Igreja e do mundo, assinalam. Dou graças a Deus por poder expressar (-me), incluindo num meio de comunicação da Igreja católica (o Ponto SJ), de forma aberta e declarada. O que aqui escrevo, convicto mas ao mesmo tempo inseguro, é um imperativo de honestidade intelectual, que, nas minhas limitações, entendo radicado no Evangelho e nas portas universais que a Boa-Nova-de-todos-e-para-todos encerra. Mas é só um ponto de vista, é só a vista a partir de um certo ponto, o meu… Importa-me mais ‘o nosso’, que nem a força nem o poder imporão. Então faz-se caminho e eu aceito esse (lento) caminhar… A vida de fé é, em si mesma, uma espera paciente por um horizonte a que se aspira, que já se vislumbra, mas que ainda não se pode abarcar na totalidade. Se ser Igreja for um caminho comunitário de fé, como julgo ser, pede-me também esta paciência eclesial. No tempo que vivemos, posso até não me calar, e permaneço livre, alegre e pacientemente neste corpo de que quero tomar parte…


Maré Alta

Mulheres numa Igreja Sinodal

Em poucas palavras, sinodalidade significa passar do “Eu” ao “Nós”, redescobrindo a primazia do “nós” eclesial da comunidade, uma comunidade aberta e inclusiva que faz com que homens e mulheres caminhem juntos com Cristo no centro.

Sinodalidade e a inclusão de mulheres na tomada de decisão

e deliberação eclesial

Sinodalidade é uma das palavras da moda! Em diferentes países, muitas iniciativas e publicações defendem a implementação a distintos níveis de uma Igreja mais sinodal. Isto é uma boa notícia, já que o Papa Francisco promove a sinodalidade como um dos eixos principais do seu pontificado, dando corpo a uma nova forma de ser Igreja no século XXI. Como anunciado em março de 2020, o Papa Francisco escolheu a sinodalidade como o tema da próxima Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que terá lugar em outubro de 2022, cujo título é: “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. Isto significa que todos os batizados são chamados a ser promotores e agentes da sinodalidade, especialmente as mulheres que, com os jovens, são muitas vezes os primeiros a pedir uma Igreja mais sinodal.

Desta forma, a sinodalidade permite empoderar todo o Povo de Deus, guiado pelo Espírito, para que possa discernir conjuntamente como responder aos desafios missionários no mundo de hoje. Trata-se de um estilo de vida cristã e de uma prática marcados pela escuta e pelo discernimento. É uma espiritualidade que requer uma atitude de fé e confiança – em Deus e nos outros – de escuta mútua e de humildade, de diálogo e de liberdade para procurar a verdade. É uma forma de desenvolver uma verdadeira cultura do encontro ao serviço do bem comum, acolhendo e respeitando as diferenças, com a convicção de que o Espírito fala em cada pessoa e de que apenas podemos discernir os apelos do Espírito em conjunto nesta escuta mútua.

De facto, os dois últimos sínodos dos bispos deram particular importância ao tema das mulheres numa Igreja sinodal. Uma Igreja sinodal é, por definição, uma Igreja simultaneamente masculina e feminina. A Igreja sinodal é uma Igreja inclusiva que transcende os limites da hierarquia, cultura, sexo, bem como os limites de uma visão somente humana da realidade, porque a sinodalidade é o desafio de Deus a que todos na Igreja sejam protagonistas e discirnam juntos a voz do Espírito Santo.

Em poucas palavras, sinodalidade significa passar do “Eu” ao “Nós”, redescobrindo a primazia do “nós” eclesial da comunidade, uma comunidade aberta e inclusiva que faz com que homens e mulheres caminhem juntos com Cristo no centro. Sinodalidade.

Este artigo descreve uma Igreja sinodal e explica como esta inclui mulheres no processo da sinodalidade ao promover uma visão da Igreja que é relacional, inclusiva, dialógica, discernente, fecunda e pluricultural. Assim, a Igreja sinodal é uma renovada Igreja missionária e uma Igreja de participação e corresponsabilidade, que tenta viver o processo de tomada de decisão e deliberação além dos papéis sacramentais tradicionais, visto que a sua vida não é predeterminada, mas vivida e experimentada em todo os espaços eclesiais abertos ao mundo.

Compreender o significado de “sinodalidade”

O que é exatamente a sinodalidade? Que visão da Igreja está implícita? Que práticas nos pede? Muitas vezes, para a retratar de maneira simples, a sinodalidade é apresentada a partir da etimologia da palavra “sínodo”, cuja origem é o grego sun-odos, isto é, “caminhar juntos”, ou mais especificamente, “caminhar juntos” à escuta do Espírito. Mas sinodalidade, uma expressão antiga cujo equivalente latino é a palavra concilium (concílio, em português), indica uma assembleia de bispos, numa noção rica e pluriforme que não tem uma definição exata estabelecida, pois sinodalidade é um modus vivendi et operandi, como afirmou o Papa Francisco ao apresentar o tema do sínodo. Dito de outra forma, sinodalidade é um estilo, uma prática, uma forma de ser Igreja na história, à imagem da comunhão trinitária.

A sinodalidade faz parte da nossa tradição, sendo um dos traços característicos da Igreja primitiva, já que nos primeiros séculos, num contexto marcado por controvérsias e heresias, muitos sínodos e concílios locais se reuniram para permitir aos bispos reunidos discutir e discernir sobre o rumo a tomar. Tendo as suas raízes na Bíblia – o “concílio” de Jerusalém do capítulo 15 de Atos dos Apóstolos é visto como o modelo paradigmático dos subsequentes concílios – a sinodalidade, na sua reapropriação e visão modernas, é considerada e desenvolvida como um fruto do Vaticano II. De facto, a instituição do Sínodo dos Bispos em setembro de 1965 pelo Papa Paulo VI, na abertura da quarta e derradeira sessão do Concílio, tinha a pretensão de ser entendida como expressão da sinodalidade, e uma forma de continuar a experiência de colegialidade vivida e desejada pelos padres conciliares.

(Nota: Este texto de Nathalie Becquart continua na rubrica: Vejo um ramos de amendoeira)


Maré Alta

CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
PARA A ABERTURA DO SÍNODO SOBRE SINODALIDADE

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Domingo, 10 de outubro de 2021

Um homem rico foi ao encontro de Jesus, «quando [Este] Se punha a caminho» (Mc 10, 17). Os Evangelhos apresentam-nos muitas vezes Jesus «a caminho», fazendo-Se companheiro do homem no seu caminho e ouvindo os interrogativos que habitam e inquietam o seu coração. Assim se revela que Deus não habita em lugares asséticos, em lugares pacatos, distantes da realidade, mas caminha connosco e vem encontrar-nos onde estamos, nas estradas por vezes acidentadas da vida. E hoje, ao abrir este percurso sinodal, comecemos todos (Papa, bispos, sacerdotes, religiosas e religiosos, irmãs e irmãos leigos) por nos interrogar: nós, comunidade cristã, encarnamos o estilo de Deus, que caminha na história e partilha as vicissitudes da humanidade? Estamos prontos para a aventura do caminho ou, temerosos face ao desconhecido, preferimos refugiar-nos nas desculpas «não adianta» ou «sempre se fez assim»?

Fazer Sínodo significa caminhar pela mesma estrada, caminhar em conjunto. Fixemos Jesus, que na estrada primeiro encontra o homem rico, depois escuta as suas perguntas e, por fim, ajuda-o a discernir o que fazer para ter a vida eterna. Encontrar, escutar, discernir: três verbos do Sínodo, nos quais me quero deter.

Encontrar. O Evangelho começa, narrando um encontro. Um homem vai ao encontro de Jesus e ajoelha-se diante d’Ele, colocando-Lhe uma pergunta decisiva: «Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?» (Mc 10, 17). Uma questão tão importante exige atenção, tempo, disponibilidade para encontrar o outro e deixar-se interpelar pela sua inquietação. De facto, o Senhor não fica indiferente, nem Se mostra aborrecido ou incomodado; pelo contrário, detém-Se com ele. Está disponível para o encontro. Nada O deixa indiferente, tudo O apaixona. Fixar os rostos, cruzar os olhares, partilhar a história de cada um: tal é a proximidade de Jesus. Ele sabe que um encontro pode mudar a vida. E o Evangelho está constelado de encontros com Cristo que reanimam e curam. Jesus não tinha pressa, não olhava o relógio para terminar depressa o encontro. Estava sempre ao serviço da pessoa que encontrava, para a escutar.

Também nós, que iniciamos este caminho, somos chamados a tornar-nos peritos na arte do encontro; peritos, não na organização de eventos ou na proposta duma reflexão teórica sobre os problemas, mas, antes de mais nada, na reserva dum tempo para encontrar o Senhor e favorecer o encontro entre nós: um tempo para dar espaço à oração, à adoração – uma oração que tanto transcuramos: adorar, dar espaço à adoração –, àquilo que o Espírito quer dizer à Igreja; para fixar-se no rosto e na palavra do outro, encontrar-nos face a face, deixar-se tocar pelas perguntas das irmãs e dos irmãos, ajudar-nos a fim de que a diversidade de carismas, vocações e ministérios nos enriqueça. Como sabemos, cada encontro exige abertura, coragem, disponibilidade para se deixar interpelar pelo rosto e a história do outro. Enquanto às vezes preferimos refugiar-nos em relações formais ou usar máscaras de ocasião – o espírito clerical e de corte: são mais Senhor Abade que padre –, o encontro muda-nos e muitas vezes sugere-nos novos caminhos que não pensávamos percorrer. Hoje, depois do Angelus, receberei um bom grupo de pessoas sem eira nem beira; juntam-se simplesmente, porque há um grupo de pessoas que as vão escutar, unicamente ouvi-las. E, partindo da escuta, conseguiram começar a caminhar. A escuta. Com frequência é assim precisamente que Deus nos indica os caminhos a seguir, fazendo-nos sair dos nossos hábitos cansados. Muda tudo, quando somos capazes de encontros verdadeiros com Ele e entre nós... sem formalismos, nem fingimentos, nem maquilhagem.

Segundo verbo: escutar. Um verdadeiro encontro só pode nascer da escuta. De facto, Jesus coloca-Se à escuta da pergunta daquele homem e da sua inquietação religiosa e existencial. Não dá uma resposta de rotina, não oferece uma solução pré-fabricada, nem finge responder com amabilidade apenas para Se livrar dele e prosseguir o seu caminho. Simplesmente o escuta. Escuta-o todo o tempo que for preciso, sem pressa. E – a coisa mais importante – Jesus não tem medo de o escutar com o coração; não Se contenta de o fazer apenas com os ouvidos. Com efeito, a sua resposta não se limita a retorquir à pergunta, mas permite ao homem rico contar a sua história, falar livremente de si mesmo. Cristo lembra-lhe os mandamentos, e ele começa a falar da sua infância, a partilhar o seu percurso religioso, o modo como se esforçou por procurar a Deus. Quando ouvimos com o coração, o outro sente-se acolhido, não julgado, livre para contar a sua vivência e o próprio caminho espiritual.

Interroguemo-nos, com sinceridade, neste itinerário sinodal: Como estamos quanto à escuta? Como está «o ouvido» do nosso coração? Permitimos que as pessoas se expressem, caminhem na fé mesmo se têm percursos de vida difíceis, contribuam para a vida da comunidade sem ser estorvadas, rejeitadas ou julgadas? Fazer Sínodo é colocar-se no mesmo caminho do Verbo feito homem: é seguir as suas pisadas, escutando a sua Palavra juntamente com as palavras dos outros. É descobrir, maravilhados, que o Espírito Santo sopra de modo sempre surpreendente para sugerir percursos e linguagens novos. Aprender a ouvir-nos uns aos outros – bispos, padres, religiosos e leigos; todos, todos os batizados – é um exercício lento, talvez cansativo, evitando respostas artificiais e superficiais, respostas pronto-a-vestir… essas não! O Espírito pede para nos colocarmos à escuta das perguntas, preocupações, esperanças de cada Igreja, de cada povo e nação; e também à escuta do mundo, dos desafios e das mudanças que o mesmo nos coloca. Não insonorizemos o coração, não nos blindemos nas nossas certezas. Muitas vezes as certezas fecham-nos em nós mesmos. Escutemo-nos.

Por fim, discernir. O encontro e a escuta recíproca não são um fim em si mesmos, deixando as coisas como estão. Pelo contrário, quando entramos em diálogo, pomo-nos em questão, pomo-nos a caminho e, no fim, já não somos os mesmos de antes, mudamos. Assim no-lo mostra o Evangelho de hoje. Jesus intui que o homem à sua frente é bom, religioso e pratica os mandamentos, mas quer conduzi-lo para além da simples observância dos preceitos. No diálogo, ajuda-o a discernir. Propõe-lhe olhar dentro de si próprio, à luz do amor com que Ele mesmo – ao fixá-lo – o ama (cf. Mc 10, 21), e, nesta luz, discernir a que é que está verdadeiramente apegado o seu coração; para depois descobrir que o seu bem não passa por aumentar o número de atos religiosos, mas, ao invés, esvaziar-se de si mesmo: vender aquilo que preenche o seu coração, para dar espaço a Deus.

Trata-se duma indicação preciosa também para nós. O Sínodo é um caminho de discernimento espiritual, de discernimento eclesial, que se faz na adoração, na oração, em contacto com a Palavra de Deus. E a segunda Leitura de hoje diz-nos precisamente que a Palavra de Deus «é viva, eficaz e mais afiada que uma espada de dois gumes; penetra até à divisão da alma e do corpo, das articulações e das medulas, e discerne os sentimentos e intenções do coração» (Heb 4, 12). A Palavra abre-nos ao discernimento e ilumina-o. Guia o Sínodo, para que não seja uma «convenção» eclesial, um convénio de estudos ou um congresso político, para que não seja um parlamento, mas um evento de graça, um processo de cura conduzido pelo Espírito. Nestes dias, Jesus chama-nos – como fez com o homem rico do Evangelho – a esvaziar-nos, a libertar-nos daquilo que é mundano e também dos nossos fechamentos e dos nossos modelos pastorais repetitivos, a interrogar-nos sobre aquilo que Deus nos quer dizer neste tempo e sobre a direção para onde Ele nos quer conduzir.

Queridos irmãos e irmãs, bom caminho em conjunto! Sejamos peregrinos enamorados do Evangelho, abertos às surpresas do Espírito Santo. Não percamos as ocasiões de graça do encontro, da escuta recíproca, do discernimento. Com a alegria de saber que, enquanto procuramos o Senhor, é Ele quem primeiro vem ao nosso encontro com o seu amor.


Maré Alta

CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA COM OS PARTICIPANTES NA ASSEMBLEIA PLENÁRIA DO CONSELHO DAS CONFERÊNCIAS EPISCOPAIS DA EUROPA (C.C.E.E.)

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro

Quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Temos três verbos que, hoje, nos oferece a Palavra de Deus e que nos interpelam como cristãos e pastores na Europa: refletir, reconstruir, ver.

Refletir é a primeira coisa que o Senhor convida a fazer por meio do profeta Ageu: «Refleti, no vosso coração, sobre o caminho que tomastes». Di-lo duas vezes ao povo (Ag 1, 5.7). E sobre que aspetos do seu caminho devia refletir o povo de Deus? Ouçamos o que diz o Senhor: «É então tempo para vós habitardes em casas confortáveis, enquanto esta casa está em ruínas?» (1, 4). Regressado do exílio, o povo preocupara-se em arranjar as suas casas; agora contenta-se com viver cómodo e tranquilo em casa, enquanto o templo de Deus está em ruínas e ninguém o reconstrói. Este convite a refletir interpela-nos: de facto, também hoje na Europa nós, cristãos, somos tentados a acomodar-nos nas nossas estruturas, nas nossas casas e nas nossas igrejas, nas nossas seguranças proporcionadas pelas tradições, na satisfação por um certo consenso, enquanto em redor os templos se esvaziam e Jesus fica cada vez mais esquecido.

Reflitamos! Quantas pessoas deixaram de ter fome e sede de Deus! Não porque sejam más, mas porque falta quem lhes abra o apetite da fé e reacenda a sede que há no coração do homem: aquela «concriada e já perpétua sede» de que fala Dante (Paraíso, II, 19) e que a ditadura do consumismo – ditadura leve, mas sufocante – tenta extinguir. Muitos são levados a sentir apenas necessidades materiais, não a falta de Deus. E com certeza preocupamo-nos com isso, mas verdadeiramente quanto nos importamos? É fácil julgar quem não crê, é cómodo elencar os motivos da secularização, do relativismo e de tantos outros ismos, mas no fundo é estéril. A Palavra de Deus leva-nos a refletir sobre nós mesmos: sentimos amizade e compaixão por quem não teve a alegria de encontrar Jesus ou a perdeu? Estamos tranquilos porque no fundo não nos falta nada para viver, ou inquietos ao ver tantos irmãos e irmãs longe da alegria de Jesus?

E o Senhor, por meio do profeta Ageu, pede ao povo para refletir sobre outra coisa. Diz assim: «Comestes mas não vos saciastes; bebestes, mas não apagastes a vossa sede; vestistes-vos, mas não vos aquecestes» (1, 6). Enfim, o povo tinha tudo o que queria, e não era feliz. Que lhe faltava? No-lo sugere Jesus com palavras que parecem recalcar as de Ageu: «Tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, (…) estava nu e não me vestistes» (Mt 25, 42-43). A falta de caridade causa infelicidade, porque só o amor sacia o coração. Só o amor sacia o coração. Fechados no interesse pelas próprias coisas, os habitantes de Jerusalém perderam o sabor da gratuidade. Também este pode ser o nosso problema: concentrar-se sobre as várias posições da Igreja, os debates, as agendas e estratégias, e perder de vista o verdadeiro programa que é o do Evangelho: o zelo da caridade, o ardor da gratuidade. O caminho de saída dos problemas e fechamentos é sempre o do dom gratuito; não há outro. Reflitamos nisto.

E depois de ter refletido, temos o segundo passo: reconstruir. «Reedificai a [minha] casa»: pede Deus através do profeta (Ag 1, 8). E o povo reconstrói o templo. Cessa de contentar-se com um presente tranquilo, e trabalha para o futuro. E como havia gente que era contrária, diz-nos o Livro das Crónicas que trabalhavam com uma mão nas pedras, para construir, e a outra na espada, para defender este processo de reconstrução. Não foi fácil reconstruir o templo. Disto precisa a construção da casa comum europeia: deixar as conveniências do imediato para voltar à visão clarividente dos pais fundadores, uma visão – atrever-me-ia a dizer – profética e de conjunto, porque não procuravam os consensos do momento, mas sonhavam o futuro de todos. Assim foram construídas as paredes da casa europeia e só assim se poderão robustecer. O mesmo vale também para a Igreja, casa de Deus. Para torná-la bela e acolhedora, é necessário olhar juntos para o futuro, não restaurar o passado. Infelizmente está na moda aquele “restauracionismo” do passado que nos mata, que nos mata a todos. Sem dúvida, devemos partir dos alicerces, das raízes – isto sim, é verdade –, porque dali se reconstrói: a partir da tradição viva da Igreja, que nos alicerça sobre o essencial, ou seja, o anúncio feliz, a proximidade e o testemunho. Daqui se reconstrói: a partir dos alicerces da Igreja dos primórdios e de sempre, da adoração de Deus e do amor ao próximo, não a partir dos próprios gostos de cada um, nem dos pactos e negociações que se possam fazer agora – digamos – para defender a Igreja e defender a cristandade.

Amados Irmãos, quero agradecer-vos por este trabalho árduo de reconstrução, que realizais com a graça de Deus. Obrigado por estes primeiros 50 anos ao serviço da Igreja e da Europa. Encorajemo-nos, sem nunca ceder ao desânimo e à resignação: somos chamados pelo Senhor a uma obra esplêndida, a trabalhar para que a sua casa seja cada vez mais acolhedora, para que cada um possa entrar e viver nela, para que a Igreja tenha as portas abertas a todos e ninguém se sinta tentado a concentrar-se apenas em olhar e trocar as fechaduras. As pequenas coisas que nos deliciam… E somos tentados. Mas não! A mudança tem de vir doutra parte, vem das raízes. A reconstrução vem doutra parte.

O povo de Israel reconstruiu o templo com as suas próprias mãos. Os grandes reconstrutores da fé do continente fizeram o mesmo – pensemos nos Padroeiros. Puseram em jogo a sua pequenez, confiando em Deus. Penso nos Santos, como Martinho, Francisco, Domingos, Pio que hoje comemoramos; penso nos Patronos como Bento, Cirilo e Metódio, Brígida, Catarina de Sena, Teresa Benedita da Cruz. Começaram por si mesmos, por mudar a própria vida, acolhendo a graça de Deus. Não se preocuparam com os tempos sombrios, as adversidades e qualquer divisão, que sempre existiu. Não perderam tempo a criticar e culpabilizar. Viveram o Evangelho, sem se importar com a relevância e a política. Assim, com a força suave do amor de Deus, encarnaram o seu estilo de proximidade, de compaixão e de ternura – o estilo de Deus: proximidade, compaixão e ternura – e construíram mosteiros, melhoraram terras, deram alma a pessoas e países: nenhum programa “social” (entre aspas), só o Evangelho. E com o Evangelho progrediram.

Reedificai a minha casa. O verbo está conjugado no plural. Toda a reconstrução se realiza em conjunto, sob o signo da unidade, ou seja, com os outros. Pode haver diferentes visões, mas deve-se sempre guardar a unidade. Porque, se guardarmos a graça do todo, o Senhor edifica mesmo lá onde nós não conseguimos. A graça do conjunto. Esta é a nossa vocação: ser Igreja, formar um só Corpo entre nós. É a nossa vocação, como Pastores: reunir o rebanho, não o dispersar nem mesmo preservar em belos recintos fechados. Isto é matá-lo. Reconstruir significa fazer-se artesãos de comunhão, tecedores de unidade a todos os níveis: não por estratégia, mas pelo Evangelho.

Se edificarmos desta forma, daremos aos nossos irmãos e irmãs a oportunidade de ver: é o terceiro verbo. Aparece na conclusão do Evangelho de hoje, onde se diz que Herodes procurava «ver Jesus» (cf. Lc 9, 9). Hoje, como então, fala-se muito de Jesus. Então dizia-se que «João ressuscitara dos mortos, (...) Elias aparecera, (...) um dos profetas antigos ressuscitara» (Lc 9, 7-8). Todos eles mostravam apreço por Jesus, mas não compreendiam a sua novidade e encerravam-n’O em esquemas já vistos: João, Elias, os profetas... Jesus, porém, não pode ser classificado nos esquemas do «ouvi dizer» ou do «já visto?… Jesus sempre é novidade, sempre. O encontro com Jesus gera em ti maravilha, e se, no encontro com Jesus, não sentes esta maravilha, não encontraste Jesus

Muitos na Europa pensam que a fé seja algo já visto, que pertence ao passado. Porquê? Porque não viram Jesus em ação nas suas vidas. E muitas vezes não O viram, porque nós não O mostramos suficientemente com as nossas vidas. Pois Deus vê-Se nos rostos e nos gestos de homens e mulheres transformados pela sua presença. E se os cristãos, em vez de irradiarem a alegria contagiante do Evangelho, repropuseram esquemas religiosos gastos, intelectualistas e moralistas, as pessoas não veem o Bom Pastor. Não reconhecem Aquele que, apaixonado por cada uma das suas ovelhas, a chama pelo nome, procura-a e trá-la de volta colocando-a aos ombros. Não veem Aquele de Quem pregamos a incrível Paixão, precisamente porque Ele tem uma única paixão: o homem. Este amor divino, misericordioso e impressionante é a novidade perene do Evangelho. E pede-nos a nós, amados Irmãos, opções sábias e ousadas, feitas em nome daquela ternura louca com que Cristo nos salvou. Não nos pede para demonstrar, pede-nos para mostrar Deus, como fizeram os Santos: não por palavras, mas com a vida. Pede oração e pobreza, pede criatividade e gratuidade. Ajudemos a Europa de hoje, doente de cansaço (esta é a doença da Europa atual) a reencontrar o rosto sempre jovem de Jesus e da sua esposa. Não podemos fazer outra coisa senão dar-nos completamente a nós mesmos para que se veja esta beleza sem ocaso.


Maré Alta

(Vale a pena ler este artigo, provocador à sua maneira. De facto, eu também acho que temos de mudar muita coisa, mas a criatividade exige uma formação muito grande. É como no Jazz, só depois de saber muita música é que se é capaz de improvisar. Ou na escrita, só sabendo bem a gramática, é que se é capaz de escrever de maneira ‘original’)

João Paiva |24 Setembro 2021 | in Ponto SJ

AGUENTAR: um verbo tramado em Igreja…

Há dois vírus que a Igreja carrega ao longo do tempo, que serviram para aguentar, mas que, tão feliz quando dramaticamente, se estão a tornar insuportáveis: o medo e o controlo.

Tenho simpatia pelo verbo aguentar. A vida, a nossa vida e a vida de cada um de nós, é feita, não só mas também, de muitos “aguentamentos”. Aguentar é permanecer, é ficar quando o vento sopra. É tolerar a tempestade e, por ligação à rocha, manter-se em pé. Jesus de Nazaré, aguentou, e aguentou até à cruz.

MAS (trata-se de um grande mas…) estamos sujeitos a abusar deste verbo. Quando olho a Igreja que somos, neste tempo e neste espaço, pergunto-me se não estamos excessivamente focados (ou tapados?) no verbo aguentar. Este aguentar (para não perder, para não mexer, para deixar estar… a ver se aguenta…), pode implicar derrocadas, entre hoje e, sobretudo, amanhã. Perdas não só de abrigo, como de fundação. Existe uma expressão popular que aqui e ali assenta como uma luva nas atitudes que tendemos a ter face a certos desafios eclesiais: “atirar com a barriga para a frente”, esse deixar correr que adia a decisão corajosa.

A Igreja encontra-se numa encruzilhada muito original, que a crise pandémica agudizou ou exibiu em maior extensão e profundidade. Há neblina sobre o próprio devir eclesial. Apesar dos esforços evidentes e fecundos do Papa Francisco, colocando em andamento as inspirações do concilio Vaticano II, há resistências, principalmente internas, que minam a ação. Mesmo as pessoas que entendem estarmos num tempo novo e face a novos desafios, carregam a pressão dessa reatividade resistente, e impera o receio de arriscar e a falta de coragem, preferindo-se…aguentar. Há dois vírus que a Igreja carrega ao longo do tempo, que serviram para aguentar, mas que, tão feliz quando dramaticamente, se estão a tornar insuportáveis: o medo e o controlo.

Alinho abaixo alguns (apenas alguns) aspetos da nossa Igreja que, em muitos cenários e horizontes, me parecem estar a ser encarados com demasiado ‘aguentamento’. O elenco poderia ser mais vasto e é aqui apresentado telegraficamente, sendo que seria merecido, em momento ulterior, aprofundar cada um dos itens:

1. Uma catequese com modelos pedagógicos falidos

Os modelos catequéticos “curriculares”, mimetizando a escolaridade, com a tríade batismo/primeira(ou última?) comunhão/crisma terão mesmo de ser questionados. A aproximação mecânica das famílias a este modelo tem gerado infecundidades gritantes. Fazer o mesmo porque sempre se fez assim é radicalmente insuficiente.

2. Uma “concorrência” feroz para proporcionar encontros com odor de Evangelho, principalmente aos mais novos

Como uma quase fatalidade, é hoje dramaticamente desafiante oferecer alternativas a tantas possibilidades de encontros que se geram fora do espaço tradicional da Igreja. É certo que o lugar da Igreja é o mundo, mas as ofertas que este tempo coloca no horizonte, incluindo nas redes sociais, torna tudo muito mais complexo.

3. Um dinamismo celebrativo à espera de mais rasgo, beleza, silêncio e simplicidade

Há um espaço tensional nas celebrações católicas romanas. Uma rica tradição, que não se pode perder, é muitas vezes, vivida com defensividade, como se manter tudo na mesma fosse sinal de conservar. Há que reconciliar esse embalo milenar positivo com a renovação necessária, também na festa da missa. A simplificação litúrgica, em particular, potenciada com dinamismos mais horizontais e momentos de silêncio, menos centrados em quem preside, são caminhos menos percorridos.

4. Um clericalismo teimoso, de muitos clérigos e leigos

São muito persistentes os sinais de clericalismo, na consciência interna e na ação eclesial de muitos de nós. Um dos aspetos gritantes é a forma típica como se responde à falta de padres ou à situação (frequente, como sabemos) de padres desajustados a certa realidade paroquial/pastoral. O ‘tique’ mais típico é “partir padres ao meio”. Muitas vezes, nas (não) decisões, pondera-se mais o padre em si (onde vamos colocar este sacerdote?) do que a comunidade no seu todo. São radicalmente tímidas as iniciativas de promover a liderança laical de comunidades, com novos enquadramentos de garantia de unidade aos Bispos e ao Papa.

5. Uma sinodalidade duvidosa, onde a escuta se arrisca a ser um procedimento estéril

Não há forma de se ser Igreja, hoje, senão em chave sinodal. Promover uma escuta efetiva de todos e para todos, que tenha depois contra-feedback, reflexão desapegada, “amassamento” dos contributos no Espírito, caminhos e ação. De Roma, nos nossos tempos, aparecem, felizmente, gritos fortes de desejo sinodal. Alguns, mais longe dali, resistem a dar valor a este (único) estilo de ser Igreja.

6. Falta de iniciativas e experiências originais

Seria bom que os bispos usassem da liberdade de ensaiar e as comunidades, por sua vez, tivessem liberdade para essas mesmas iniciativas. Seriam processos, janelas, pequenas respostas, insights vertidos no tempo e no espaço… que depois, claro está, teriam a respetiva avaliação e eventual reformulação/replicação.

Disse no início desta reflexão que Jesus de Nazaré, aguentou, e aguentou até à cruz. No alinhamento do que as palavras foram tecendo, prefiro terminar assim: Jesus de Nazaré, que foi até à cruz, amou e ama, abriu e abre janelas de luz e de esperança. Mas encarnou para amar, não para aguentar. Aguentar é um meio (não o fim) do sonho de Deus maior: a liberdade do próprio amor. Para isto existimos. A Igreja existe para proporcionar este encontro de todos com a livre liberdade do amor. Para construir essa Igreja não podemos deixar de olhar com esperança a abundância que semeia em todo o lugar. Mas cabe-nos um trabalho e fazer render talentos de mudança criativa. Aguentar, definitivamente, é excessivamente defensivo e insuficiente!


Maré Alta

(Vale a pena ler este artigo, pensando nas festas da nossa paróquia de Esmoriz – Festa do Mar e Senhor das Febres – e nos desafios que nos colocam para não esquecermos a evangelização)

«Os Impérios do Espírito Santo» – A piedade popular ainda tem futuro?

P. Tiago Fonseca |8 Setembro 2021 | in Ponto SJ

Neste verão de 2021, ainda marcado por tantas limitações e planos de contingência, tive oportunidade de visitar a ilha Terceira com toda a família. Entre pais, irmãos, cunhados e sobrinhos éramos 31! Foi uma graça enorme poder descansar, rezar e passear pelas ruas e igrejas de Angra do Heroísmo, subir o Monte Brasil com vista para a cidade, fazer os trilhos a pé na Serreta ou na Rocha do Chambre, entrar no Algar do Carvão, ver os golfinhos ou tomar banho nas belíssimas zonas balneares da ilha.

Ao longo da semana, várias vezes me deparei com uns pequenos templos coloridos, espalhados por tantas povoações da ilha: os impérios do divino Espírito Santo. São mais de setenta impérios que servem de mote para este artigo sobre a importância da piedade popular no despertar da fé e no renovado empenho comunitário que a superação desta pandemia exige. Ao redor desses impérios decorrem as festas do Espírito Santo, sobretudo durante o tempo pascal, com uma marca religiosa e profana. Sendo a festa um sinal da memória grata e da fé do povo e sinal visível da alegria – dom do Espírito Santo –, será bom reconhecer estas oportunidades de evangelização, por vezes desvalorizadas em certos grupos dentro e fora da Igreja. A limitação e redução significativa das procissões e festas dos santos populares desde o início da pandemia torna-se também ocasião de reflexão sobre a importância desta forma de manifestação da fé: a piedade popular ainda terá futuro?

No seu primeiro ano de pontificado, o Papa Francisco escreveu em novembro de 2013 a exortação pós-sinodal “A Alegria do Evangelho”, na qual identificava já a crise do compromisso comunitário – agravada ainda mais pela pandemia, que trouxe mais solidão, pobreza e desigualdade – e os desafios que a Igreja enfrenta a evangelizar a cultura e a sociedade. Nesse contexto, o papa destacava a importância da piedade popular como testemunho da fé recebida, transmitida e encarnada na cultura, como um lugar teológico fundamental para a nova evangelização (cf. Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 122-126). Se é certo que a piedade popular não está isenta de erros teológicos e é criticada por às vezes constituir mera fachada – não havendo unidade entre o que se celebra e se manifesta com maior ou menor aparato exterior e o que se vive interiormente –, é certo também que ela pode ser expressão de uma medida que ainda não alcançámos e que convida à conversão pessoal e comunitária. Além disso, a piedade popular respeita a tradição e a história, que importa preservar como sinal identitário de um povo. Como escrevia G. K. Chesterton, «tradição significa dar o voto à mais obscura de todas as classes: os nossos antepassados. É a democracia dos mortos» (cf. G. K. Chesterton, Ortodoxia). Mais, a fé da Igreja, por assentar numa história e num facto de dois mil anos, não pode esquecer que somos herdeiros e seguidores das pegadas e do caminho de fé dos que já morreram. Porém, na fé da Igreja dever-se-á sempre conciliar o peso dessa tradição com a abertura à novidade permanente do Espírito que sopra onde quer, mas sem cair na altivez de achar que o antigo está ultrapassado.

Ora, toda esta reflexão vem a propósito dos impérios na ilha Terceira. É interessante a investigação sobre a origem histórica desta devoção ao divino Espírito Santo nos Açores. Segundo o artigo de Paula Noé (cf. Paula Noé, Os impérios do Espírito Santo na ilha Terceira), há quem a atribua ao papel da missionação franciscana nos Açores, ainda que outros historiadores sustentem que tal devoção se deve à autoridade da Ordem de Cristo, a quem foi confiada a jurisdição espiritual das ilhas dos Açores pelo Papa Calisto III, até à fundação da diocese do Funchal em 1514. Seja qual for a Ordem religiosa, quer a Ordem Franciscana, sobretudo na corrente dos “franciscanos espirituais”, quer a Ordem de Cristo – sucessora da Ordem do Templo, extinta por D. Dinis – foram marcadas pelo pensamento de Joaquim de Fiore, essencial para o florescimento da veneração ao divino Espírito Santo. Este abade cisterciense (1131-1202) defendia um ritmo progressivo e trinitário da história: à época mais severa do Pai, no Antigo Testamento, teria sucedido a era do Filho, no novo Testamento e na fundação da Igreja; porém, o pensamento milenarista de Joaquim de Fiore apontava a chegada a nova idade do Espírito Santo, na qual a estrutura hierárquica da Igreja seria superada por uma nova Igreja do Espírito, mais livre segundo o estilo das novas ordens mendicantes, num período de paz e reconciliação entre todos os povos. A este propósito, vale a pena ler a catequese do Papa Bento XVI de 10 de março de 2010. Embora estas ideias milenaristas, apocalípticas e anárquicas tenham sido rejeitadas pela Igreja e pelos próprios superiores da Ordem franciscana, como S. Boaventura, elas tiveram inegável influência no pensamento da época. É curioso ver como “Deus escreve direito por linhas tortas” e a partir desta heresia joaquimita se promoverá justamente uma maior devoção à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade.

(…)

Termino com uma nota mais pessoal. A partir da minha experiência como padre, muito marcada pelas festas em honra de Nossa Senhora da Nazaré aqui nas paróquias da Ericeira e da Carvoeira entre 2016 e 2018, constato como é visível a presença de tantas pessoas que, embora afastadas da prática dominical, conservam este traço de religiosidade e participam na Missa de festa ou nas procissões de piedade popular. Talvez essa seja a tal «chama que ainda fumega» e que não devemos apagar (cf. Mt 12,20). Estas manifestações da Igreja em saída foram ocasião de tantos encontros inesperados com Deus, decisões de baptismo, casamentos, crismas, confissões, conversas e conversões que levaram ao regresso à comunidade paroquial e à Missa dominical. Tudo isto me convence a responder à pergunta inicial: sim, a piedade popular ainda tem futuro! Nestes tempos que convidam a um renovado entusiasmo missionário diante dos exigentes desafios que enfrentamos, a piedade popular surge como uma oportunidade de evangelização e caridade. Importa conhecê-la e promovê-la entre as novas gerações, numa experiência de sinodalidade e de intergeracionalidade extraordinária. Peçamos ao divino Espírito Santo, Senhor que dá a vida, que reanime a Igreja neste tempo!


Maré Alta

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
A BUDAPESTE POR OCASIÃO DA SANTA MISSA CONCLUSIVA
DO 52° CONGRESSO EUCARÍSTICO INTERNACIONAL À ESLOVÁQUIA
(12-15 DE SETEMBRO DE 2021)

SANTA MISSA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Praça dos Heróis (Budapeste)
Domingo, 12 de setembro de 2021

Em Cesareia de Filipe, Jesus pergunta aos discípulos: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» (Mc 8, 29). Esta pergunta põe em xeque os discípulos e marca uma viragem no seu caminho atrás do Mestre. Conheciam bem Jesus, já não eram principiantes: conviviam familiarmente com Ele, foram testemunhas de muitos dos milagres realizados, ficavam maravilhados com o seu ensinamento, seguiam-No para onde quer que fosse. Contudo ainda não pensavam como Ele. Faltava uma passagem decisiva, ou seja, da admiração por Jesus à imitação de Jesus. Também hoje o Senhor, fixando o olhar em cada um de nós, nos interpela pessoalmente: «Mas Eu quem sou verdadeiramente para ti?». Quem sou para ti? Dirigida a cada um de nós, é uma pergunta que pede não apenas uma resposta exata do ponto de vista do Catecismo, mas uma resposta pessoal, uma resposta de vida.

Desta resposta, nasce a renovação do discipulado. Tal renovação realiza-se através das três passagens que fizeram os discípulos e que podemos realizar também nós: o anúncio de Jesus, o primeiro; o discernimento com Jesus, o segundo; e o caminho atrás de Jesus, o terceiro.

1. O anúncio de Jesus. À pergunta «e vós, quem dizeis que Eu sou?», respondeu Pedro como representante de todo o grupo: «Tu és o Messias». Em poucas palavras, Pedro disse tudo. A resposta está certa, mas surpreendentemente, depois de tal reconhecimento, Jesus ordena severamente que «não dissessem isto a ninguém» (8, 30). Perguntamo-nos: por que motivo uma proibição tão drástica? Por uma razão concreta: dizer que Jesus é o Messias, o Cristo, é exato mas incompleto. Existe sempre o risco de anunciar um falso messianismo: aquele segundo os homens e não segundo Deus. Por isso, a partir daquele momento, Jesus começa a revelar a sua identidade: a identidade pascal, aquela que encontramos na Eucaristia. Explica que a sua missão havia certamente de culminar na glória da ressurreição, mas passando pela humilhação da cruz; ou seja, desenrolar-se-ia segundo a sabedoria de Deus, «que – como diz São Paulo – não é deste mundo, nem dos chefes deste mundo» (1 Cor 2, 6). Jesus impõe silêncio sobre a sua identidade messiânica, mas não sobre a cruz que O espera. Pelo contrário – observa o evangelista – Jesus começa a ensinar «abertamente» (Mc 8, 32) que «o Filho do Homem tinha de sofrer muito e ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos-sacerdotes e pelos doutores da Lei, e ser morto e ressuscitar depois de três dias» (8, 31).

Perante este anúncio de Jesus, um anúncio surpreendente, também nós podemos sentir-nos apavorados. Gostaríamos, também nós, dum messias poderoso, em vez dum servo crucificado. Diante de nós está a Eucaristia, para nos recordar quem é Deus; não o faz com palavras, mas de modo concreto, mostrando-nos Deus como Pão partido, como Amor crucificado e doado. Podemos acrescentar muitas cerimónias, mas o Senhor permanece ali na simplicidade dum Pão que se deixa partir, distribuir e comer. Está ali: para nos salvar, faz-Se servo; para nos dar vida, morre. Faz-nos bem deixar-nos surpreender pelo anúncio de Jesus. E quem se abre a este anúncio de Jesus, abre-se à segunda passagem.

2. O discernimento com Jesus. Face ao anúncio do Senhor, a reação de Pedro é tipicamente humana: quando aparece a cruz, a perspetiva do sofrimento, o homem revolta-se. E Pedro, depois de ter confessado a realidade messiânica de Jesus, escandaliza-se com as palavras do Mestre e tenta dissuadi-Lo de prosseguir o seu caminho. A cruz nunca está na moda. Queridos irmãos e irmãs, a cruz nunca está na moda: ontem, como hoje. Mas cura por dentro. É diante do Crucificado que experimentamos uma benéfica luta interior, um áspero conflito entre «pensar segundo Deus» e «pensar segundo os homens». Dum lado, temos a lógica de Deus, que é a do amor humilde; o caminho de Deus evita qualquer imposição, ostentação, de qualquer triunfalismo, visa sempre o bem dos outros, indo até ao sacrifício de si mesmo. Do outro, temos o «pensar segundo os homens»: é a lógica do mundo, do mundanismo, presa às honras e privilégios, tendente ao prestígio e ao sucesso. O que conta aqui são a relevância e a força, aquilo que chama a atenção da maioria e sabe afirmar-se perante os outros.

Encandeado por esta perspetiva, Pedro chama Jesus à parte e começa a repreendê-Lo (cf. 8, 32). Antes confessara-O, agora reprende-O. Pode acontecer também connosco chamar o Senhor «à parte», colocá-Lo num canto do coração, continuando a considerar-nos pessoas religiosas e boas, e prosseguir pelo nosso caminho sem nos deixarmos conquistar pela lógica de Jesus. Mas há uma verdade: entretanto, Ele acompanha-nos, acompanha-nos nesta luta interior, porque deseja que nós, como os Apóstolos, escolhamos a sua parte. Há a parte de Deus, como há a parte do mundo… A diferença não está entre quem é religioso e quem não o é; a diferença crucial está entre o Deus verdadeiro e o deus que é o nosso eu. Que grande distância existe entre Aquele que reina silenciosamente na cruz e aquele falso deus que gostaríamos de ver reinar pela força e reduzir ao silêncio os nossos inimigos! Como é diverso Cristo, que Se nos propõe só com amor, comparado com os messias poderosos e vencedores, lisonjeados pelo mundo! Jesus sacode-nos, não se contenta com declarações de fé, pede-nos que purifiquemos a nossa religiosidade diante da sua cruz, diante da Eucaristia. Faz-nos bem permanecer em adoração diante da Eucaristia, para contemplarmos a fragilidade de Deus. Dediquemos tempo à adoração. É um modo de rezar demasiado esquecido. Dediquemos tempo à adoração. Deixemos que Jesus, Pão vivo, cure os nossos fechamentos e nos abra à partilha: nos cure da nossa rigidez e de nos fecharmos em nós mesmos, nos livre da escravidão paralisante da defesa da nossa imagem e nos inspire a segui-Lo para onde Ele nos quer conduzir. E não para onde quero eu. Assim chegamos à terceira passagem...

3. O caminho atrás de Jesus, e também o caminho com Jesus: «Vai para trás de Mim, satanás» (8, 33). Assim, com uma ordem enérgica e forte, Jesus faz Pedro reentrar em si. Mas o Senhor, quando manda uma coisa, na realidade está ali presente, pronto a dá-la. E Pedro acolhe a graça de «dar um passo atrás». O caminho cristão não é uma corrida ao sucesso, mas começa com um passo atrás – lembrai-vos disto: o caminho cristão começa com um passo atrás –, com um descentramento que liberta, com o retirar-se do centro da vida. Então Pedro reconhece que o centro não é «o seu Jesus», mas o verdadeiro Jesus. Voltará a cair, mas de perdão em perdão irá reconhecendo cada vez melhor o rosto de Deus. E passará duma admiração estéril por Cristo à imitação concreta de Cristo.

Que significa caminhar atrás de Jesus? É avançar na vida com a sua própria confiança, a de sermos filhos amados de Deus. É percorrer o mesmo caminho do Mestre, que veio para servir e não para ser servido (cf. Mc 10, 45). Caminhar atrás de Jesus é dirigir dia a dia os nossos passos ao encontro do irmão. A isto mesmo nos impele a Eucaristia: a sentir-nos um só Corpo, a fazer-nos em pedaços para os outros. Queridos irmãos e irmãs, deixemos que o encontro com Jesus na Eucaristia nos transforme, como transformou os grandes e corajosos Santos que honrais: penso em Santo Estêvão e Santa Isabel. À semelhança deles, não nos contentemos com pouco; não nos resignemos com uma fé que vive de ritos e repetições, abramo-nos à novidade escandalosa de Deus crucificado e ressuscitado, Pão partido para dar vida ao mundo. Viveremos na alegria, e seremos portadores de alegria.

Ponto de chegada dum percurso, oxalá este Congresso Eucarístico seja sobretudo um ponto de partida. Pois o caminho atrás de Jesus convida a olhar para a frente, a acolher a viragem da graça, a fazer reviver em nós cada dia aquela pergunta que o Senhor, como em Cesareia de Filipe, nos dirige a cada um de nós, seus discípulos: E vós, quem dizeis que Eu sou?


Maré Alta

Do Jornal Digital 7 Margens, transcrevemos esta notícia animadora. É preciso pôr-se a caminho’…

Documentos preparatórios do Sínodo são divulgados esta terça-feira

7Margens | 4 Set 21

O secretário-geral do Sínodo dos Bispos da Igreja Católica, cardeal Mario Grech, que esta sexta-feira, 3 de setembro, foi recebido pelo Papa Francisco, vai apresentar na próxima terça, dia 7, o Documento Preparatório e o Vademecum do Sínodo sobre a Sinodalidade.

Segundo a Sala de Imprensa da Santa Sé, trata-se de duas ferramentas desenvolvidas pelo Secretariado Geral do Sínodo dos Bispos para a animação da primeira fase do itinerário sinodal, que decorre a partir de outubro próximo, ao nível de cada diocese.

Supõe-se que estes documentos forneçam indicações e sugestões sobre o processo de escuta e discernimento, que as igrejas locais farão, após a abertura do fase inicial do Sínodo: dia 9 de outubro pelo Papa Francisco, em Roma, e no dia 17 seguinte, em ato a realizar nas dioceses, sob a presidência do respetivo prelado.

Recorde-se que este processo sinodal retoma e atualiza o espírito do Concílio Vaticano II, que decorreu nos anos sessenta do século passado (1962-1965). De resto, durante o período deste Sínodo, evocar-se-ão dois momentos-chave desse Concílio: a sua surpreendente convocação, no dia de Natal de 1961, pelo Papa João XXIII, e abertura solene da primeira sessão, menos de um ano depois, em 11 de outubro do ano seguinte.

América Latina, Reino Unido e Escócia já iniciaram trabalhos

O seminário internacional divulgado na imagem será um dos primeiros eventos pré-sinodais e terá lugar a partir da Venezuela.

Diversas conferências episcopais, dioceses, estruturas pastorais, faculdades de teologia e organizações de leigos começaram já a movimentar-se, para poderem preparar-se para este processo sinodal.

Na próxima semana, decorre a partir da Venezuela, um seminário internacional que será um dos primeiros eventos pré-sinodais. Começa na terça-feira e prolonga-se até sexta seguinte, em torno do tema “A renovação eclesial em perspetiva sinodal e ministerial”. O seminário é uma iniciativa do Instituto Nacional de Pastoral, da Conferência Episcopal e da Universidade Católica Andrés Bello, todos da Venezuela e do Boston College School of Thepology and Ministry, dos Estados Unidos, contando com o apoio da CLAR (Confederação Latinoamericana de Religiosos) e do CELAM (Conselho Episcopal da América Latina),.

No programa estão intervenções de Rafael Luciani, Pedro Trigo, Antósno Jose Almeida, Mario Grech, Carlo Maria Galli, Nathalie Becquart, entre muitos outros. O evento realiza-se virtualmente, diariamente entre as 18 e as 20, hora venezuelana, sendo a participação gratuita. O acesso pode fazer-se através do Facebook e do Youtube.

Passando ao Reino Unido, o jornal The Tablet organiza na próxima quinta-feira, 9, um debate moderado pelo vaticanista e correspondente em Roma daquele meio de comunicação, Christopher Lamb, em torno da pergunta: “Uma Igreja sinodal: o que é que isso quer dizer?”. Intervêm a holandesa Myriam Wijlens, consultora do secretariado do Sínodo em Roma e professora de direito canónico na Universidade de Erfurt (Alemanha), e Malcolm McMahon O.P., arcebispo de Liverpool e vice-presidente da Conferência Episcopal da Inglaterra e País de Gales, que recentemente supervisionou um processo sinodal de dois anos na sua arquidiocese, em que procurou pôr os católicos comuns no centro dos esforços de renovação.

O debate decorre entre as 9 e as 19 (hora de Londres) mas com esta nuance que não é de somenos: é preciso comprar bilhete para entrar (pela Internet).

Finalmente, também uma rede de leigos da Escócia está a realizar, desde agosto, uma série de palestras de acesso livre, algumas das quais com momentos de oração e trabalhos de grupo. Leva por título “Para uma igreja sinodal” e, ainda que se inscreva num processo daquela rede, surgido durante o primeiro confinamento, as sessões são abertas a todos os interessados, os quais, mediante a inscrição, recebem antecipadamente documentação para se prepararem.

O objetivo é que em cada uma das sessões se chegue a conclusões sobre o caminho a seguir, no contexto de cada participante.


Maré Alta

PAPA FRANCESCO

ANGELUS

Praça de São Pedro, domingo, 29 de agosto de 2021

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da Liturgia de hoje mostra alguns escribas e fariseus espantados com a atitude de Jesus, escandalizados porque os seus discípulos se alimentam sem antes realizar as tradicionais abluções rituais. Pensam consigo: «Este modo de agir é contrário à prática religiosa» (cf. Mc 7, 2-5).

Nós também podemos perguntar-nos: Por que é que Jesus e os seus discípulos negligenciam essas tradições? Basicamente, não são coisas ruins, mas bons hábitos rituais, simples lavagem antes de comer. Por que é que Jesus não dá atenção a isso? Porque é importante para ele trazer a fé de volta ao seu centro. No Evangelho vemos isso continuamente: trazendo de volta a fé ao centro. E para evitar um risco, que se aplica tanto a esses escribas quanto a nós: observar as formalidades externas colocando o coração da fé em segundo plano. Frequentemente, "colocamos maquiagem" em nossas almas. A formalidade externa e não o coração da fé: isso é um risco. É o risco de uma religiosidade da aparência: aparecer bem do lado de fora, negligenciando a purificação do coração. Sempre há a tentação de "reduzir a nossa relação com Deus" a alguma devoção externa, mas Jesus não se contenta com este culto. Jesus não quer exterioridade, quer uma fé que chegue ao coração.

De facto, imediatamente depois, Ele chama a multidão para dizer uma grande verdade: "Não há nada fora do homem que, entrando nele, possa torná-lo impuro" (v. 15). Em vez disso, é "de dentro, do coração" (v. 21) que as coisas ruins nascem. Essas palavras são revolucionárias, porque na mentalidade da época se pensava que certos alimentos ou contactos externos tornavam a pessoa impura. Jesus inverte a perspetiva: não causa dano o que vem de fora, mas o que vem de dentro.

Queridos irmãos e irmãs, isto também nos diz respeito. Muitas vezes pensamos que o mal vem principalmente de fora: do comportamento dos outros, daqueles que pensam mal de nós, da sociedade. Quantas vezes culpamos os outros, a sociedade, o mundo, por tudo o que nos acontece! É sempre culpa dos "outros": é culpa do povo, dos governantes, da má sorte, etc. Os problemas sempre parecem vir de fora. E gastamos tempo distribuindo culpas; mas gastar tempo culpando os outros é perda de tempo. Ficamos zangados, azedos e mantemos Deus fora do nosso coração. Como aquelas pessoas do Evangelho, que reclamam, se escandalizam, discutem e não acolhem Jesus. Não se pode ser verdadeiramente religioso na queixa: a queixa envenena, leva à raiva, ao ressentimento e à tristeza, aquela tristeza do coração que fecha as portas a Deus.

Peçamos hoje ao Senhor que nos livre de culpar os outros - como as crianças: “Não, não fui! É o outro, é o outro… ”-. Peçamos na oração a graça de não perder tempo contaminando o mundo com queixas, pois isso não é cristão. Em vez disso, Jesus convida-nos a olhar a vida e o mundo a partir do nosso coração. Se olharmos para dentro, encontraremos quase tudo que odiamos do lado de fora. E se pedirmos sinceramente a Deus que purifique os nossos corações, então começaremos a tornar o mundo mais limpo. Porque existe uma maneira infalível de superar o mal: começar a derrotá-lo dentro de nós. Os primeiros Padres da Igreja, os monges, quando lhes foi perguntado: “Qual é o caminho para a santidade? Como devo começar? ”. O primeiro passo, diziam, era acusar-se: acusar-se. A acusação de nós mesmos. Quantos de nós, durante o dia, numa hora do dia ou numa hora da semana, somos capazes de nos acusarmos a nós mesmos? "Sim, este fez-me isto, aquele outro... Aquele uma selvajaria...". Mas, e eu? Eu faço o mesmo, também o faço... É uma sabedoria: aprender a acusar-se. Tentai fazer isso, vai fazer-vos bem. Para mim, é bom, quando consigo fazê-lo, faz-me bem, far-nos-á bem a todos.

A Virgem Maria, que mudou a história com a pureza do seu coração, nos ajude a purificar o nosso, antes de tudo superando o vício de culpar os outros e queixar-se de tudo.

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Depois do Angelus

Queridos irmãos e irmãs,

Acompanho com grande preocupação a situação no Afeganistão e participo no sofrimento daqueles que choram pelas pessoas que perderam a vida nos atentados suicidas ocorridos na quinta-feira passada, e daqueles que procuram ajuda e protecção. Confio os defuntos à misericórdia de Deus Todo-Poderoso e agradeço a quantos trabalham para ajudar aquela população tão provada, especialmente mulheres e crianças. Peço a todos que continuem a ajudar os necessitados e rezem para que o diálogo e a solidariedade conduzam ao estabelecimento de uma convivência pacífica e fraterna e ofereçam esperança para o futuro do país. Em momentos históricos como este não podemos ficar indiferentes, a história da Igreja nos ensina isso. Como cristãos, essa situação nos compromete. É por isso que faço um apelo a todos que intensifiquem a oração e pratiquem o jejum. Oração e jejum, oração e penitência. Esta é a hora de fazer isso. Estou a falar a sério: intensificar a oração e praticar o jejum, pedindo ao Senhor misericórdia e perdão.

Estou perto da população do estado venezuelano de Mérida, atingido nos últimos dias por inundações e deslizamentos de terra. Rezo pelos falecidos e suas famílias e por aqueles que sofrem com esta calamidade.

Dirijo uma saudação cordial aos membros do Movimento Laudato Si’. Obrigado pelo vosso compromisso com a nossa Casa Comum, particularmente por ocasião do Dia Mundial de Oração pela Criação e o subsequente Tempo da Criação. O grito da Terra e o grito dos pobres tornam-se cada vez mais graves e alarmantes e requerem uma ação decisiva e urgente para fazer desta crise uma oportunidade.

Desejo a todos um feliz domingo. Por favor, não se esqueçam de orar por mim. Bom almoço e adeus!


Maré Alta

Deus, curador do desamor que nunca desiste de te tornar no melhor daquilo que podes ser

Jesus acabou de realizar o “sinal” a que dá maior solicitude, o pão compartilhado, e que ao mesmo tempo é o mais mal-entendido, o menos compreendido. As pessoas vão à procura dele, encontram-no e querem apoderar-se dele como garantia contra toda a fome futura (João 6, 24-35). Mas o Evangelho de Jesus não fornece pão, antes fermento manso e poderoso no coração da História, para a fazer fluir rumo ao Alto, rumo à vida indestrutível.

Diante deles, Jesus anuncia a sua pretensão, absoluta: como Eu saciei num dia a vossa fome, assim posso preencher as profundidades da vossa vida. E eles não querem segui-lo. Como eles, também eu, que sou criatura de terra, prefiro o pão, faz-me viver, sinto-o na boca, saboreio-o, engulo-o, é concreto e imediato. Deus e a eternidade são ideias fugazes, vagas, pouco mais que um fumo de palavras. E não os julgo, a esses de Cafarnaum, não me sinto superior: há tanta fome na Terra que, para muitos, Deus só pode ter a forma de um pão.

Começa então uma incompreensão de fundo, um diálogo em dois planos diferentes: qual é a obra de Deus? E Jesus responde, desenhando diante deles o rosto amigo de Deus: como em tempos vos deu o maná, também hoje Deus dá. Duas palavras simplicíssimas, e todavia chaves da revelação bíblica: alimentar a vida é a obra de Deus. Deus não pede, Deus dá. Não pretende, oferece. Não exige nada, dá tudo.

Mas que coisa, especificamente, dá o Deus de Jesus? Nada entre as coisas ou os bens de consumo: «Ele não pode dar menos que si mesmo. Mas dando-nos a si mesmo, dá-nos tudo» (Catarina de Sena). Estamos diante de um dos cumes do Evangelho, de um dos nomes mais belos do Senhor: Ele é, na vida, dador de vida. O dom de Deus é Deus que se dá. Um dos nomes mais belos de Jesus: «Eu sou o pão da vida».

Das suas mãos a vida flui, ilimitada e imparável. Pedro confirmá-lo-á um pouco mais à frente: «Senhor, a quem iremos? Só Tu tens palavras que fazem viver a vida». Que dão ao espírito, mente, coração, aos olhos e às mãos. A obra de Deus é uma quente corrente de amor que entra e faz florescer as raízes de cada ser humano. Para que se torne, como Ele, na vida dador de vida. Esta é a obra de Deus, acreditar naquele que Ele enviou.

No coração da fé está a tenaz e dulcíssima confiança de que a obra de Deus é Jesus: rosto alto e luminoso do humano, livre como ninguém, curador do desamor, que vai no teu encalço para que te tornes no melhor daquilo que podes ser. Nele não há qualquer aspeto ameaçador,