Eu Sou Porque Nós Somos

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO A PORTUGAL
POR OCASIÃO DA
XXXVII JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
[2 - 6 DE AGOSTO DE 2023]

CERIMÔNIA DE ACOLHIMENTO

DISCURSO DO SANTO PADRE

Parque Eduardo VII, Lisboa
Quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Queridos jovens, boa tarde!

Bem-vindos! Bem-vindos e obrigado por estardes aqui. Fico feliz por vos ver! E feliz fico também ao escutar o simpático barulho que fazeis, contagiando-me com a vossa alegria. É belo estarmos juntos em Lisboa: para aqui fostes chamados por mim, pelo Patriarca – a quem agradeço as palavras que me dirigiu –, pelos vossos Bispos, sacerdotes, catequistas, animadores. Agradeçamos a todos aqueles que vos chamaram e a quantos trabalharam para tornar possível este encontro: façamo-lo com uma grande salva de palmas! Mas foi sobretudo Jesus quem vos chamou; agradeçamos, pois, a Jesus com outra grande salva de palmas!

Vós não estais aqui por acaso. O Senhor chamou-vos, não só nestes dias, mas desde o início dos vossos dias. Chamou-nos a todos desde o início da vida. Chamou-vos pelos vossos nomes. Como ouvimos na Palavra de Deus, Ele chamou-nos pelo próprio nome. Chamados pelo nome: tentai imaginar estas três palavras escritas em letras grandes e, em seguida, pensai que estão escritas dentro de vós, nos vossos corações, como que formando o título da vossa vida, o sentido daquilo que sois. Tu foste chamado pelo teu nome: tu… além, tu… ali, tu… aqui, e também eu, todos nós fomos chamados pelo próprio nome. Não fomos chamados automaticamente, fomos chamados pelo nome. Pensemos nisto: Jesus chamou-me pelo meu nome. São palavras escritas no coração; pensemos, pois, que estão escritas dentro de cada um de nós, nos nossos corações, e formam uma espécie de título para a tua vida, o sentido do que és, o sentido daquilo que cada um é. Foste chamado pelo teu nome. Nenhum de nós é cristão por acaso, todos fomos chamados pelo nosso nome. Ao princípio da teia da vida, ainda antes dos talentos que possuímos, antes das sombras, das feridas que trazemos dentro de nós, recebemos um chamamento. Fomos chamados, porquê? Porque amados. Fomos chamados, porque somos amados. É belo! Aos olhos de Deus somos filhos preciosos, que Ele cada dia chama para abraçar, para encorajar; para fazer de cada um de nós uma obra-prima única, original. Cada um de nós é único e original, e não chegamos sequer a vislumbrar a beleza de tudo isto.

Queridos jovens, nesta Jornada Mundial da Juventude, ajudemo-nos mutuamente a reconhecer esta realidade; sejam estes dias ecos vibrantes da chamada amorosa de Deus, porque somos preciosos a seus olhos, apesar do que às vezes os nossos olhos veem; é que às vezes os nossos olhos estão enevoados pela negatividade e ofuscados por tantas distrações. Sejam dias em que o meu nome, o teu nome, através de irmãos e irmãs de muitas línguas, de muitas nações (vimos tantas bandeiras) que o pronunciam com amizade, ressoe como uma notícia única na história, porque único é o pulsar do coração de Deus por ti. Sejam dias para fixar no coração que somos amados como somos. Não como gostaríamos de ser, mas como somos agora. E este é o ponto de partida da JMJ, mas sobretudo o ponto de partida da vida. Jovens moços e moças, somos amados como somos, sem maquilhagem. Compreendeis isto?

E cada um de nós é chamado pelo nome. Não se trata de um simples modo de dizer, é Palavra de Deus (cf. Is 43, 1; 2 Tm 1, 9). Amigo, amiga, se Deus te chama pelo nome significa que, para Ele, nenhum de nós é um número; mas é um rosto, é uma cara, é um coração. Quero que cada um de vós note uma coisa: muitos, hoje, sabem o teu nome, mas não te chamam pelo nome. Com efeito, o teu nome é conhecido, aparece nas redes sociais, é processado por algoritmos que lhe associam gostos e preferências. Mas tudo isso não interpela a tua singularidade, mas a tua utilidade para pesquisas de mercado. Quantos lobos se escondem por trás de sorrisos de falsa bondade, dizendo que conhecem quem és, mas sem te querer bem, insinuando que creem em ti e prometendo que serás alguém, para depois te deixarem sozinho, quando já não lhes fores útil. E estas são as ilusões do mundo virtual e devemos estar atentos para não nos deixarmos enganar, porque muitas realidades que hoje nos atraem e prometem felicidade, mostram-se depois pelo que são: coisas vãs, bolas de sabão, coisas supérfluas, coisas inúteis e que deixam o vazio interior. Digo-vos uma coisa: Jesus não é assim, não é assim! Ele confia em ti, confia em cada um de vós, em cada um de nós, porque Jesus interessa-Se por cada um de nós; cada um de vós é importante para Ele. Assim é Jesus.

E é por isso que nós, sua Igreja, somos a comunidade dos que são chamados; não somos a comunidade dos melhores, não! Somos todos pecadores, mas somos chamados assim como somos. Pensemos um pouco nisto, em nosso coração: somos chamados como somos, com os problemas que temos, com as limitações que temos, com a nossa alegria transbordante, com a nossa vontade de sermos melhores, com a nossa vontade de vencer. Somos chamados como somos. Pensai nisto: Jesus chama-me como eu sou, não como eu gostaria de ser. Somos comunidade de irmãos e irmãs de Jesus, filhos e filhas do mesmo Pai.

Amigos, quero ser claro convosco, que sois alérgicos à falsidade e às palavras vazias: na Igreja há espaço para todos. Para todos. Na Igreja, ninguém é de sobra. Nenhum está a mais. Há espaço para todos. Assim como somos. Todos. Jesus di-lo claramente. Quando manda os apóstolos chamar para o banquete daquele senhor que o preparara, diz: «Ide e trazei todos», jovens e idosos, sãos, doentes, justos e pecadores. Todos, todos, todos! Na Igreja, há lugar para todos. «Padre, mas para mim que sou um desgraçado, que sou uma desgraçada, também há lugar?» Há espaço para todos! Todos juntos… Peço a cada um que, na própria língua, repita comigo: «Todos, todos, todos». Não se ouve; outra vez! «Todos, todos, todos». E esta é a Igreja, a Mãe de todos. Há lugar para todos. O Senhor não aponta o dedo, mas abre os braços. É curioso! O Senhor não sabe fazer isto [aponta com o dedo em riste], mas isto sim [faz o gesto de abraçar]. Abraça a todos. No-lo mostra Jesus na cruz, onde abriu completamente os braços para ser crucificado e morrer por nós.

Jesus nunca fecha a porta, nunca. Mas convida-te a entrar: «entra e vê!» Jesus recebe, Jesus acolhe. Nestes dias cada um de nós transmite a linguagem do amor de Jesus. Deus te ama, Deus te chama. Que belo é isto! Deus ama-me, Deus chama-me. Quer que eu esteja perto d’Ele.

Nesta tarde, vós também me fizestes perguntas, muitas perguntas. Nunca vos canseis de perguntar… Perguntar, é bom; aliás muitas vezes é melhor que dar respostas, porque quem pergunta permanece «inquieto» e a inquietude é o melhor remédio contra a rotina, que às vezes se torna uma espécie de normalidade que anestesia a alma. Cada um de nós traz dentro os próprios interrogativos. Levemos estas questões connosco e ponhamo-las no diálogo comum entre nós. Ponhamo-las quando rezamos diante de Deus. Com o transcorrer da vida, essas perguntas vão tendo resposta; só nos resta esperar. E uma coisa muito interessante: o amor de Deus surpreende-nos. Não está programado. O amor de Deus vem de surpresa. Surpreende sempre. Sempre nos mantém alerta e surpreende.

Queridos jovens moços e moças, convido-vos a pensar nesta coisa maravilhosa: Deus ama-nos! Deus ama-nos como somos, não como gostaríamos de ser ou como a sociedade queria que fôssemos. Como somos! Chama-nos com os defeitos que temos, com as limitações que temos e com a vontade que temos de avançar na vida. Deus chama-nos assim. Confiai, porque Deus é Pai e um Pai que nos quer bem, um Pai que nos ama. Isto nem sempre é muito fácil. Mas podemos contar com uma grande ajuda: a da Mãe do Senhor. Ela também é nossa Mãe. Maria é nossa Mãe.

E é tudo o que vos queria dizer. Não tenhais medo, tende coragem, continuai para diante, sabendo que, por «amortizador» das dificuldades, temos o amor que Deus nos tem. Deus ama-nos. Digamo-lo todos juntos: «Deus ama-nos». Mais alto, não consigo ouvir [repetem]. Aqui não se ouve [repetem] Obrigado. Adeus.


Eu Sou Porque Nós Somos

Rostos de acolhimento

Sónia Neves, Agência ECCLESIA29, Julho, 2023

Sempre gostei de acolher e ser acolhida. Talvez porque nas casas por onde passei a infância havia sempre acolhimento bom para quem quer que fosse… um olá a um vizinho, uma cebola que se dava, uns ovos em que se partilhava a generosidade das galinhas, uma maçã oferecida que fazia de mim a criança mais feliz…

Acolhimento é uma sensação muito cara para mim e também o vivi por estes dias. Numa reportagem senti o acolhimento de uma idosa desconhecida que, com toda a amabilidade, acedeu receber, preparou o quarto para “uma jornalista” e me presenteou com um pequeno almoço saboroso. Nas casas ao lado muitos jovens experimentavam um similar acolhimento nas famílias destinadas.

As famílias que disseram sim, as portas que se abriram e os braços que envolveram jovens na chegada.

“Comeram pouco ao pequeno almoço”; “Eu, como não percebo o que eles dizem, coloquei tudo na mesa e comeram o que quiseram”, eram os comentários numa manhã fria de julho, quando as famílias levavam, ao ponto de encontro, os jovens acolhidos para mais um dia de atividades. A preocupação com quem “já faz parte da família”, ainda que tivesse chegado há dois dias.

“Acolhemos o desafio de ajudar porque estes jovens podiam ser nossos netos”, outra frase de uma voluntária sexagenária que aceitou ir, uma manhã inteira, descascar batatas para o almoço de jovens que não conhece, que ali chegavam cansados e cheios de fome.

“Espero vê-los a chegar, sentarem-se e que sorriam ao almoçar, quer dizer que gostam e, para nós, é missão cumprida”, desejava outra voluntária que, em dia de folga, ajudava na limpeza da cozinha.

Rostos de acolhimento, cada um à sua maneira, mais disponíveis ou mais limitados no tempo, mas que não quiseram deixar de “dar uma mãozinha” e colaborar. É este o espírito que, a cada dia, se foi vivendo nesta semana em que as dioceses foram “invadidas” por jovens peregrinos de vários países e cada comunidade se uniu na ajuda.

Acolhimento foi a palavra de ordem mas, a meu ver, deve ser sempre palavra e ação do dia a dia de uma Igreja que se quer próxima.

Na minha maneira de ver continuarei a gostar de “acolher e ser acolhida”, mais com estes exemplos, seguirei o meu caminho para acolher e ser acolhida, na mais simples conversa, em qualquer momento e sítio onde possa voltar.

O acolhimento faz-nos felizes.


Eu Sou Porque Nós Somos

DIA MUNDIAL DOS AVÓS E DOS IDOSOS

SANTA MISSA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica São Pedro
Domingo, 23 de julho de 2023

Para nos falar do reino de Deus, Jesus usa parábolas. Conta histórias simples que atingem o coração de quem escuta; e esta linguagem, cheia de imagens, assemelha-se àquela que tantas vezes os avós utilizam com os netos, talvez sentando-os nos seus joelhos: assim lhes comunicam uma sabedoria importante para a vida. Pensando nos avós e nos idosos, raízes de que os mais jovens têm necessidade para se tornar adultos, quero reler as três narrações contidas no Evangelho de hoje a partir dum aspeto que têm em comum: crescer juntos.

Na primeira parábola, são o trigo e o joio que crescem juntos, no mesmo campo (cf. Mt 13, 24-30). Trata-se duma imagem que nos ajuda a fazer uma leitura realista: na história da humanidade, como na vida de cada pessoa, coexistem luzes e sombras, amor e egoísmo. Aliás, o bem e o mal encontram-se de tal modo entrelaçados que parecem inseparáveis. Esta abordagem realista ajuda-nos a olhar a história sem ideologias, nem otimismos estéreis ou pessimismos nocivos. Animado pela esperança de Deus, o cristão não é um pessimista, mas também não é um ingénuo que vive no mundo das fábulas, finge não ver o mal e diz que «tudo corre bem». Não, o cristão é realista: sabe que no mundo há trigo e joio e, ao olhar para dentro de si, reconhece que o mal não vem só «de fora», que não é sempre culpa dos outros, que não é preciso «inventar» inimigos a combater para evitar que se faça luz dentro de si mesmo. Dá-se conta de que o mal vem de dentro, na luta interior que todos travamos.

Mas a parábola põe-nos uma pergunta: Quando virmos o trigo e o joio conviverem no mundo, que devemos fazer? Como devemos comportar-nos? Na narração, os servos queriam arrancar o joio imediatamente (cf. 13, 28). É uma atitude bem-intencionada, mas impulsiva, até mesmo agressiva. Iludimo-nos de poder arrancar o mal com as nossas próprias forças, para repor a pureza. Uma tentação que nos assalta muitas vezes: uma «sociedade pura», uma «Igreja pura». Mas, para alcançar esta pureza, corre-se o risco de ser impacientes, intransigentes e até violentos com quem caiu no erro. E deste modo, junto com o joio, arranca-se também o bom grão e impede-se as pessoas de fazer um caminho, crescer, mudar. Em vez disso ouçamos o que Jesus diz: «Deixai um e outro crescer juntos, até à ceifa» (cf. Mt 13, 30). Como é belo este olhar de Deus, esta sua pedagogia misericordiosa, que nos convida a ter paciência com os outros, a acolher – em família, na Igreja e na sociedade – fragilidades, atrasos e limites: não para nos habituarmos resignadamente a eles, nem para os justificar, mas para aprendermos a intervir com respeito, continuando a cuidar do bom grão com mansidão e paciência. E nunca esqueçamos que a purificação do coração e a vitória definitiva sobre o mal são, essencialmente, obra de Deus. E nós, vencendo a tentação de separar o trigo do joio, somos chamados a compreender quais possam ser os melhores modos e momentos para agir.

Penso nos idosos e nos avós, que já fizeram uma longa porção de estrada na vida e, quando olham para trás, veem tantas coisas bonitas que conseguiram realizar, mas também derrotas, erros e coisas que – como se costuma dizer – «se pudessem voltar atrás, não as fariam». Hoje, porém, o Senhor vem ter connosco com uma palavra benigna, que convida a acolher o mistério da vida com serenidade e paciência, deixando a Ele o juízo e não vivendo de lamúrias e remorsos. Como se quisesse dizer-nos: «Olhai para o bom grão que brotou no caminho da vossa vida, fazei-o crescer mais, confiando tudo a Mim, que perdoo sempre: no fim, o bem será mais forte que o mal». Também para isto é um tempo abençoado a velhice: é a estação para reconciliar-se, para olhar com ternura a luz que supera as sombras, esperando com confiança que o bom grão semeado por Deus há de prevalecer sobre o joio, com o qual o demónio quis contaminar o nosso coração.

Vejamos agora a segunda parábola. O reino dos céus, diz Jesus, é a obra de Deus, que age silenciosamente nas tramas da história, parecendo uma ação pequena e invisível como um minúsculo grão de mostarda. Mas, quando este grão cresce, «torna-se a maior planta do horto e transforma-se numa árvore, a ponto de virem as aves do céu abrigar-se nos seus ramos» (Mt 13, 32). A nossa vida, irmãos e irmãs, também é assim: vimos ao mundo pequeninos, tornamo-nos adultos, depois idosos; no início somos uma pequena semente, depois alimentamo-nos de esperanças, realizamos projetos e sonhos, o mais belo dos quais é tornar-nos como aquela árvore, que não vive para si mesma, mas para dar sombra a quem a deseja e oferecer espaço a quem quer construir o ninho. Assim a crescer juntos, nesta parábola, são, no final de contas, a velha árvore e os pássaros.

Penso nos avós: como são belas estas árvores frondosas, sob as quais os filhos e os netos constroem os seus «ninhos», aprendem o clima de casa e experimentam a ternura dum abraço. Trata-se de crescer juntos: a árvore verdejante e os pequeninos que precisam do ninho, os avós com os filhos e os netos, os idosos com os mais jovens. Irmãos e irmãs, precisamos duma nova aliança entre jovens e idosos, para que a seiva de quem tem uma longa experiência de vida humedeça os rebentos de esperança de quem está a crescer. Neste fecundo intercâmbio, aprendemos a beleza da vida, construímos uma sociedade fraterna e, na Igreja, permitimos o encontro e o diálogo entre a tradição e as novidades do Espírito.

Finalmente a terceira parábola, na qual crescem juntos o fermento e a farinha (cf. Mt 13, 33). Esta mistura faz crescer toda a massa. Jesus usa precisamente o verbo «misturar», que sugere aquela arte que é a «mística de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço» e «sair de si mesmo para se unir aos outros» (Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 87). Isto vence os individualismos e os egoísmos e ajuda-nos a gerar um mundo mais humano e mais fraterno. Assim hoje a Palavra de Deus é um apelo a vigiar para que, nas nossas vidas e famílias, não marginalizemos os mais velhos. Estejamos atentos para que as nossas cidades superlotadas não se tornem «concentrados de solidão»; não aconteça que a política, chamada a atender às necessidades dos mais frágeis, se esqueça precisamente dos idosos, deixando que o mercado os relegue como «resíduos não rentáveis». Não suceda que, à força de correr a toda a velocidade atrás dos mitos da eficiência e da produção, nos tornemos incapazes de abrandar para acompanhar quem sente dificuldade em aguentar o passo. Por favor, misturemo-nos, cresçamos juntos.

Irmãos, irmãs, a Palavra de Deus convida-nos a não separar, a não nos fecharmos, a não pensarmos que se consegue fazer a vida sozinhos: ela convida a crescer juntos. Ouçamo-nos, conversemos, apoiemo-nos mutuamente. Não esqueçamos os avós e os idosos: graças às suas carícias, muitas vezes voltamos a levantar-nos, retomamos o caminho, sentimo-nos amados, fomos curados interiormente. Sacrificaram-se por nós e nós não podemos apagá-los da agenda das nossas prioridades. Irmãos e irmãs, cresçamos juntos, avancemos juntos. O Senhor abençoe o nosso caminho.


Eu Sou Porque Nós Somos

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 16 de julho de 2023

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje o Evangelho apresenta-nos a parábola do semeador (cf. Mt 13, 1-23). A imagem da “sementeira” é muito bonita, e Jesus utiliza-a para descrever o dom da sua Palavra. Imaginemos uma semente: é pequena, pouco visível, mas faz crescer plantas que dão fruto. A Palavra de Deus é assim; pensemos no Evangelho, um pequeno livro, simples e ao alcance de todos, que produz vida nova em quem o recebe. Assim, se a Palavra é a semente, nós somos o terreno: podemos recebê-la ou não. Mas Jesus, o “bom semeador”, não se cansa de a semear com generosidade. Ele conhece o nosso terreno, sabe que as pedras da nossa inconstância e os espinhos dos nossos vícios (cf. vv. 21-22) podem sufocar a Palavra, e contudo espera, espera sempre que possamos dar frutos abundantes (cf. v. 8).

Assim faz o Senhor, e assim também nós somos chamados a fazer: semear sem nos cansarmos. Mas como se pode fazer isto, semear continuamente, sem se cansar? Vejamos alguns exemplos.

Em primeiro lugar, os pais: semeiam a bondade e a fé nos filhos, e são chamados a fazê-lo sem desanimar se, às vezes, eles parecem não compreender ou não apreciar os seus ensinamentos, ou se a mentalidade do mundo “rema contra”. A boa semente permanece, é isto que conta, e no tempo oportuno criará raízes. Mas se, cedendo à desconfiança, desistirem de semear e deixarem os filhos à mercê das modas e dos telemóveis, sem lhes dedicar tempo, sem os educar, então o solo fértil ficará cheio de ervas daninhas. Pais, não vos canseis de semear nos filhos!

Então, olhemos para os jovens: também eles podem semear o Evangelho nos sulcos da vida quotidiana. Por exemplo, com a oração: é uma pequena semente que não se vê, mas com a qual se confia a Jesus tudo o que se vive, e assim Ele pode fazê-la amadurecer. Mas penso também no tempo a dedicar aos outros, aos mais necessitados: pode parecer perdido, mas é tempo santo, enquanto que as aparentes satisfações do consumismo e do hedonismo nos deixam de mãos vazias. E penso no estudo: é verdade, é cansativo e não satisfaz imediatamente, como quando se semeia, mas é essencial para construir um futuro melhor para todos.

Vimos os pais, vimos os jovens; agora vejamos os semeadores do Evangelho, muitos bons sacerdotes, religiosos e leigos comprometidos no anúncio, que vivem e pregam a Palavra de Deus, muitas vezes sem sucesso imediato. Nunca esqueçamos, quando anunciamos a Palavra, que até onde parece que nada acontece, na realidade o Espírito Santo age e o Reino de Deus já cresce, através e além dos nossos esforços. Por isso, queridos irmãos e irmãs, em frente com alegria! Recordemos as pessoas que lançaram a semente da Palavra de Deus na nossa vida – cada um de nós pense: “Como começou a minha fé?” – ela pode ter brotado anos depois de termos encontrado os seus exemplos, mas aconteceu precisamente por causa deles!

À luz de tudo isto, podemos perguntar-nos: semeio o bem? Preocupo-me em colher apenas para mim ou semeio também para os outros? Lanço algumas sementes do Evangelho na minha vida diária: no estudo, no trabalho, no tempo livre? Fico desanimado ou, como Jesus, continuo a semear, mesmo sem ver resultados imediatos? Maria, que hoje veneramos como a Bem-Aventurada Virgem do Monte Carmelo, nos ajude a ser semeadores generosos e jubilosos da Boa Nova.


Eu Sou Porque Nós Somos

OPINIÃO FÉ E CULTURA

Cultivemos o próximo, admiremos o simples

P. José Frazão Correia sj | 5 Julho 2023 | in Ponto SJ

Vivemos tempos incertos de hostilidade permanente, de “guerra híbrida”. A invasão da Ucrânia pela Rússia soma-se a muitos outros conflitos em curso e a outros tantos mais antigos que parecem não ter fim. Novas e sofisticadas ameaças de conflituosidade e de divisão pairam no horizonte geoestratégico. Polarizações, sectarismos, radicalizações medram no terreno da indistinção crescente entres teorias da conspiração e histórias verdadeiras, como se factos e opiniões, verdade e mentira valessem o mesmo. «As pessoas sempre tiveram opiniões diferentes. Agora, têm factos diferentes», podemos ler em O crepúsculo da democracia, de Anne Applebaum (Bertand, 2020). Afirma-se, “o apelo sedutor do autoritarismo”, enfraquece-se o ethos democrático.

Em Os engenheiros do caos (Gradiva, 2023), depois de analisar bastidores, atores, processos e técnicas de novos populismos, Giuliano da Empoli conclui que «a única hipótese de escapar à influência dos engenheiros do caos é afirmar uma visão motivadora do futuro e substituir o medo pelo desejo, o negativo pelo positivo». Se é certo, como afirma, que «produzir mensagens e narrativas positivas não é difícil por si», mas que verdadeiramente difícil «é garantir que elas contenham energia suficiente para captar a atenção e, depois, para mobilizar ativamente as pessoas a quem se dirigem», não será menos certo que restará sempre a cada indivíduo e a cada comunidade alguma margem de escolha do caminho a percorrer e do modo de o percorrer. A ira e o medo instigados por trolls e algoritmos não anularão por completo a liberdade. Não importa se as opções que se tomam sejam minoritárias. Sabemos também que o que é duradoiro se constrói lentamente.

O filósofo catalão Josep Maria Esquirol, no seu livro A resistência íntima (Edições 70, 2015), encoraja, precisamente, à resistência, como ato de força livre e criativa não violenta. «A resistência íntima expressa-se negativamente como um não ceder ante as forças e as ameaças desagregadoras […], quando o mais fácil – e, por isso, o mais natural – é acomodar-se às circunstâncias (se são agradáveis) ou render-se ao fatalismo (se o que se passa é doloroso) […]». Há, hoje, forças desagregadoras que condenam tanto à dispersão da exterioridade superficial quanto ao narcisismo da interioridade intimista: o primado da atualidade que é explorada até à náusea pelos ciclos noticiosos e partilhada compulsivamente pelas redes sociais, entre a adesão fanática, a rejeição violenta, o escândalo permanente, que exclui, à partida, a complexidade, os tempos longos, a paciência do amadurecimento e da decantação, para exigir tudo-sempre-pronto-imediatamente; ou a absolutização da racionalidade técnica, utilitarista, consumista e monocromática do “para que serve?” como chave-mestra de compreensão da realidade, de valoração das coisas, de gestão da vida. Resistindo a tais modelações de niilismo, que é doença do espírito, e ao vazio, à ausência de horizontes de sentido, à desistência, que são suas expressões, o “resistente” opta livremente pela “proximidade”, pela “quotidianidade”, pelo “cuidado de si” que, para ser verdadeiro, implicará sempre o “cuidado do outro”. A sua resistência não é, por isso, desistência ou fuga – «“quem vai para o deserto não é um desertor”». Recua, sim, em relação à corrente dominante e às modas do momento, à dispersão e ao narcisismo, ao excesso de palavras e à deterioração da linguagem, para recuperar proximidade e contacto com o real que está “perto da mão e do olhar”: proximidade de cada um a si mesmo (à memória, aos afetos, aos desejos, às limitações…), aos outros, aos espaços naturais, sociais e culturais onde habita, ao trabalho que faz. Opta em liberdade por um modo de vida que cultive a autenticidade a partir do que é mais quotidiano, elementar, nuclear: a autenticidade do que é humano, que para ser tal não precisa de superar a fragilidade e os limites; a autenticidade do lugar, das relações, dos ofícios; e, claro, a autenticidade da palavra. Esta forma de vida é como um regresso a casa. «Mais tarde ou mais cedo», afirma outro filósofo, Emanuele Coccia, em Filosofia della casa (Einaudi, 2021) «deveremos reentrar em casa, porque é sempre e apenas graças e dentro de uma casa que habitamos este planeta». Mais do que artefacto arquitetónico, a casa é lugar doméstico, caloroso e aconchegado, de descanso e de proteção, a partir do qual se olha cada coisa, se unem as partes, se conjugam as diferenças, se estabelece intimidade com o que rodeia. É lugar afetivo, existencialmente necessário para olhar a verdade da realidade e para dizer a realidade com verdade. Compreendemos, por isso, que a grave crise da habitação que atinge atualmente tantas pessoas e famílias, jovens muitas delas, é bem mais do que um problema socioeconómico.

Tem razão Esquirol. Precisaremos de recuperar esta proximidade, o tato que colha «o sabor das coisas e o calor da pele». Precisaremos de nos exercitarmos a olhar a realidade a partir desse lugar “tátil” de observação, de a ler, de a pensar e de a dizer a partir desse contacto afetivo, benevolente e bendizente – a filósofa Isabella Guanzini identifica nessa forma de “ternura” a revolução de um poder gentil (Ponte alle Grazie, 2017). Para dizer bem não basta explicar as coisas, informar-se e informar sobre elas, medi-las, contá-las. É preciso o contacto: ser tocado e tocar, por esta ordem. «O superficial também é profundo», recorda Esquirol.

Íntimo, para o filósofo, significa próximo.

Canta ao anjo o louvor do mundo, não no mundo indizível, que a

ele não te podes gabar do esplendor do que sentiste; no cosmos

em que ele sente mais sentido, não passas de um novato. Por isso

mostra-lhe a coisa simples que, formada de geração em gerações,

vive como coisa nossa, perto da mão e do olhar.

Diz-lhes as coisas. Ele ficará mais atónito; como tu ficaste

junto do cordoeiro de Roma ou do oleiro nas margens do Nilo.

A propósito do poema de Rainer Maria Rilke, em a nona das Elegias de Duíno, comenta Esquirol:

Esta é a chave: «Mostra-lhe o simples». […] Evitemos procurar sempre o extraordinário, admiremos o simples e o lhano e aprendamos a apreciá-lo porque, de certo ponto de vista, é o que há de mais sublime. Eis aí a lição. Temo-la ao alcance da mão e, talvez por isso, seja, paradoxalmente, uma das mais difíceis. […] Apropriarmo-nos (e não no sentido da possessão) da quotidianidade e da simplicidade da vida, de alguma forma, «salva-nos».

«Quão simples a vida é». Honestamente, saborear um pouco de pão molhado em azeite ou tomar um copo de vinho com amigos já bastaria para testemunhar a bondade da vida, para bendizer a sua graça e atravessar com mais esperança o seu custo, sem rendição nem alienação, sem dispersão nem desistência, porque, ainda nas palavras de Esquirol, «a finitude e a morte não se superam, enfrentam-se». Mas a vida, mesmo que apresente, por vezes, a fatura pesada do seu custo, dá-nos muito mais do que pão, azeite e vinho como lugares de bom gosto, de palavras benditas. Em tantos outros, mais modestos ou mais sofisticados, é-nos dada a graça de testemunhar a beleza do essencial, o sentido do elementar, a gratuidade do necessário. De facto, «apropriarmo-nos (e não no sentido da possessão) da quotidianidade e da simplicidade da vida, de alguma forma, “salva-nos”».

O verão em que entramos e as férias, que para muitos lhe estão associadas, poderão ser lugar propício para refazer proximidades, talvez pela perda voluntária de tempo como caminho mais longo para recuperar o sentido gratuito e partilhado do tempo. Assim de lugares, de relações, de trabalhos. Far-nos-á bem agradecer e cuidar destes bons lugares. Cultivemos o próximo, admiremos o simples.

*Adaptação de “Admiremos o simples”, editorial do nº de julho de 2023 da revista Brotéria


Eu Sou Porque Nós Somos

SANTA MISSA E BÊNÇÃO DOS PÁLIOS PARA OS NOVOS ARCEBISPOS METROPOLITANOS
NA SOLENIDADE DOS SANTOS APÓSTOLOS PEDRO E PAULO

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Quinta-feira, 29 de junho de 2023

Pedro e Paulo, dois Apóstolos enamorados do Senhor, duas colunas da fé da Igreja... E enquanto contemplamos a sua vida, o Evangelho de hoje coloca diante de nós a pergunta que Jesus dirige aos seus: «Vós, quem dizeis que Eu sou?» (Mt 16, 15). Esta é a pergunta fundamental, a mais importante: Quem é Jesus para mim? Quem é Jesus na minha vida? Vejamos como os dois Apóstolos responderam a esta pergunta.

A resposta de Pedro poder-se-ia resumir numa palavra: seguimento. Pedro vive os seus dias no seguimento do Senhor. Naquele dia, quando Jesus interpelou os discípulos em Cesareia de Filipe, Pedro respondeu com uma estupenda profissão de fé: «Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo» (Mt 16, 16). Uma resposta impecável, precisa, pontual! Poderíamos falar duma resposta «de catecismo» perfeita. Mas tal resposta é fruto dum caminho: só depois de ter vivido a fascinante aventura de seguir o Senhor, só depois de ter caminhado com Ele, seguindo os seus passos durante muito tempo, é que Pedro chegou àquela maturidade espiritual que, por graça, por pura graça, o leva a tão clara profissão de fé.

De facto, como narra o mesmo evangelista Mateus, tudo tinha começado naquele dia em que Jesus, passando ao longo do mar da Galileia, o chamou, juntamente com seu irmão André: «eles deixaram as redes imediatamente e seguiram-No» (Mt 4, 20). Pedro largou tudo, para ir atrás do Senhor. E o Evangelho sublinha: «imediatamente». Pedro não disse a Jesus que iria pensar nisso, não fez cálculos para ver se lhe convinha, não apresentou desculpas para adiar a decisão, mas deixou as redes e seguiu-O, sem pedir antecipadamente qualquer segurança. Haveria de descobrir tudo dia após dia, no seguimento de Jesus, caminhando atrás d’Ele. Não é por acaso que as últimas palavras – segundo os Evangelhos – que Jesus lhe dirige são: «Tu, segue-Me» (Jo 21, 22), isto é, o seguimento.

Assim Pedro diz-nos que, à pergunta «quem é Jesus para mim», não basta responder com uma fórmula doutrinal impecável nem mesmo com uma ideia que formamos duma vez por todas. Não. Mas é perseverando todos os dias no seguimento do Senhor que aprendemos a conhecê-Lo; é fazendo-nos seus discípulos e acolhendo a sua Palavra que nos tornamos seus amigos e experimentamos o amor d’Ele que nos transforma. Aquela anotação «imediatamente» vale também para nós: se há tantas coisas na vida que podemos adiar, o seguimento de Jesus não pode ser uma delas; nisto não se pode hesitar, nem apresentar desculpas. E atenção! Pois algumas desculpas aparecem disfarçadas de espiritualidade, como quando se diz «não sou digno», «não sou capaz», «que posso fazer eu?». Trata-se de artimanhas do diabo, que nos rouba a confiança na graça de Deus, fazendo-nos crer que tudo depende das nossas capacidades.

Devemos desprender-nos das nossas seguranças – seguranças terrenas –, imediatamente, e seguir Jesus todos os dias: tal é a lição que Pedro nos dá hoje, convidando-nos a ser uma Igreja-em-seguimento. Igreja-em-seguimento. Igreja que deseja ser discípula do Senhor e humilde serva do Evangelho. Só assim será capaz de dialogar com todos e tornar-se lugar de acompanhamento, proximidade, esperança para as mulheres e os homens do nosso tempo. Só assim, quem está mais longe e muitas vezes nos olha com desconfiança ou indiferença, poderá finalmente reconhecer que «a Igreja – como dizia o Papa Bento – é o lugar de encontro com o Filho de Deus vivo e, deste modo, constitui o lugar de encontro entre nós» (Homilia do II Domingo do Advento, 10/XII/2006).

Consideremos agora o Apóstolo dos gentios. Se a resposta de Pedro consistia no seguimento, a de Paulo é o anúncio, o anúncio do Evangelho. Também para ele, tudo começou por graça, por iniciativa do Senhor. No caminho de Damasco, enquanto se empenhava com orgulho na perseguição dos cristãos, entrincheirado nas suas convicções religiosas, veio ao seu encontro Jesus ressuscitado e cegou-o com a sua luz, ou melhor, graças àquela luz, Saulo deu-se conta de quanto era cego. Fechado no orgulho da sua rígida observância, descobre em Jesus a realização do mistério da salvação. E desde então, comparando-as com a sublimidade do conhecimento de Cristo, considera todas as suas seguranças humanas e religiosas como «esterco» (Flp 3, 8). Assim Paulo consagra a sua vida a percorrer terra e mar, cidades e aldeias, não se importando de padecer carências e perseguições, contanto que possa anunciar Jesus Cristo. Por outro lado, quase parece que ele, quanto mais anuncia o Evangelho, tanto mais conhece Jesus. O anúncio da Palavra aos outros permite-lhe, a ele também, penetrar nas profundezas do mistério de Deus; a ele, Paulo, que escreveu «ai de mim se eu não evangelizar» (1 Cor 9, 16); a ele que confessa, «para mim, viver é Cristo» (Flp 1, 21).

Portanto Paulo diz-nos que, à pergunta «quem é Jesus para mim», não se responde com uma religiosidade intimista, que nos deixa tranquilos sem fomentar em nós a inquietação de levar o Evangelho aos outros. O Apóstolo ensina que tanto mais crescemos na fé e no conhecimento do mistério de Cristo, quanto mais formos seus arautos e testemunhas. E isto acontece sempre: quando evangelizamos, ficamos evangelizados. É experiência de todos os dias: quando evangelizamos, ficamos evangelizados. A Palavra, que levamos aos outros, regressa a nós numa medida maior do que a usada para a oferecer (cf. Lc 6, 38). E também hoje a Igreja tem necessidade disto: de colocar o anúncio no centro, de ser uma Igreja que não se cansa de repetir, «para mim, viver é Cristo» e «ai de mim se eu não evangelizar». Uma Igreja que precisa de anunciar, como necessita de oxigénio para respirar, que não pode viver sem transmitir o abraço do amor de Deus e a alegria do Evangelho.

Irmãos e irmãs, festejamos Pedro e Paulo. Eles responderam à pergunta fundamental da vida – quem é Jesus para mim? – vivendo o seguimento de Jesus e anunciando o Evangelho. É bom crescer como Igreja do seguimento, como Igreja humilde que nunca dá por terminada a busca do Senhor, tornando-se simultaneamente uma Igreja aberta, que encontra a sua alegria, não nas coisas do mundo, mas no anúncio do Evangelho ao mundo a fim de semear no coração das pessoas a inquietação de Deus. Com humildade e alegria, há de levar o Senhor Jesus a todo o lado: à nossa cidade de Roma, às nossas famílias, às relações e vizinhanças, à sociedade civil, à Igreja, à política, ao mundo inteiro, especialmente onde se verifica pobreza, degradação e marginalização.

E, hoje, enquanto alguns dos nossos irmãos Arcebispos recebem o Pálio, sinal de comunhão com a Igreja de Roma, quero dizer-lhes: Sede apóstolos como Pedro e Paulo. Sede discípulos no seguimento e apóstolos no anúncio; juntamente com todo o Povo de Deus, levai por toda a parte a beleza do Evangelho. Por fim, quero dirigir a minha afetuosa saudação à Delegação do Patriarcado Ecuménico, enviada aqui pelo caríssimo irmão Sua Santidade Bartolomeu. Obrigado pela vossa presença. Obrigado! Caminhemos juntos, caminhemos juntos no seguimento e no anúncio da Palavra, crescendo na fraternidade. Que Pedro e Paulo nos acompanhem e intercedam por todos nós.


SOLENIDADE DOS SANTOS APÓSTOLOS PEDRO E PAULO

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Quinta-feira, 29 de Junho de 2023

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje, Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, no Evangelho Jesus diz a Simão, um dos Doze: «Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja» (Mt 16, 18). Pedro é um nome que tem vários significados: pode designar rocha, pedra ou simplesmente seixo. E, com efeito, se olharmos para a vida de Pedro, encontraremos um pouco destes três aspetos do seu nome.

Pedro é uma rocha: em muitos momentos é forte e firme, genuíno e generoso. Deixa tudo para seguir Jesus (cf. Lc 5, 11), reconhece-o como Cristo, Filho de Deus vivo (cf. Mt 16, 16), mergulha no mar para ir depressa ao encontro do Ressuscitado (cf. Jo 21, 7). Além disso, com franqueza e coragem, anuncia Jesus no Templo, antes e depois de ser preso e flagelado (cf. At 3, 12-26; 5, 25-42). A tradição fala-nos também da sua firmeza diante do martírio, que teve lugar precisamente aqui (cf. Clemente Romano, Carta aos Coríntios, V, 4).

No entanto, Pedro é também uma pedra: é uma rocha e inclusive uma pedra, adequada para oferecer apoio aos outros: uma pedra que, fundamentada em Cristo, serve de sustentáculo para os seus irmãos na edificação da Igreja (cf. 1 Pd 2, 4-8; Ef 2, 19-22). Também isto encontramos na sua vida: responde ao chamamento de Jesus com André, seu irmão, Tiago e João (cf. Mt 4, 18-22); confirma a disponibilidade dos Apóstolos a seguir o Senhor (cf. Jo 6, 68); cuida de quem sofre (cf. At 3, 6); promove e encoraja o anúncio comum do Evangelho (cf. At 15, 7-11). É “pedra”, é ponto de referência fiável para toda a comunidade.

Pedro é rocha, é pedra e também seixo: a sua pequenez sobressai com frequência. Às vezes não compreende o que Jesus faz (cf. Mc 8, 32-33; Jo 13, 6-9); perante a sua captura, deixa-se dominar pelo medo e nega-o, depois arrepende-se e chora amargamente (cf. Lc 22, 54-62), mas não tem a coragem de estar aos pés da cruz. Esconde-se com os outros no cenáculo, com medo de ser aprisionado (cf. Jo 20, 19). Em Antioquia, tem vergonha de estar com os pagãos convertidos, e Paulo exorta-o à coerência neste ponto (cf. Gl 2, 11-14); por último, segundo a tradição do Quo vadis, procura fugir diante do martírio, mas ao longo do caminho encontra Jesus e readquire a coragem de voltar atrás.

Em Pedro há tudo isto: a força da rocha, a fiabilidade da pedra e a pequenez de um simples seixo. Não é um super-homem: é um homem como nós, como cada um de nós, que na sua imperfeição diz “sim” a Jesus com generosidade. Mas precisamente assim, nele – como em Paulo e em todos os santos – revela-se que é Deus quem nos torna fortes mediante a sua graça, quem nos une através da sua caridade, quem nos perdoa com a sua misericórdia. E é com esta verdadeira humanidade que o Espírito forma a Igreja. Pedro e Paulo eram pessoas autênticas, e nós, hoje mais do que nunca, precisamos de pessoas autênticas.

Agora, olhemos para o nosso íntimo e façamos algumas perguntas a partir da rocha, da pedra e do seixo. A partir da rocha: há em nós ardor, zelo, paixão pelo Senhor e pelo Evangelho, ou é algo que se desintegra com facilidade? E depois, somos pedras, não de tropeço, mas de construção para a Igreja? Trabalhamos pela unidade, interessamo-nos pelos outros, especialmente pelos mais frágeis? Por último, pensando no seixo: estamos conscientes da nossa pequenez? E sobretudo: nas debilidades, confiamo-nos ao Senhor, que realiza grandes coisas com quem é humilde e sincero?

Que Maria, Rainha dos Apóstolos, nos ajude a imitar a força, a generosidade e a humildade dos Santos Pedro e Paulo.


Eu Sou Porque Nós Somos

MEETING DA FRATERNIDADE “NOT ALONE” (#NOTALONE)

DISCURSO DO SANTO PADRE FRANCISCO

Praça de São Pedro
Sábado, 10 de junho de 2023

Queridos irmãos e irmãs, boa tarde!

Embora não possa acolher-vos pessoalmente, quero dar-vos as boas-vindas e agradecer cordialmente por terdes vindo. É com alegria que me uno a vós para professar este desejo de fraternidade e paz em prol da vida do mundo. Um escritor colocou nos lábios de Francisco de Assis estas palavras: «O Senhor encontra-Se onde estão os teus irmãos» (E. Leclerc, A sabedoria dum pobre). Verdadeiramente o Céu que nos cobre convida-nos a caminhar juntos sobre a terra, a descobrir que somos irmãos e a acreditar na fraternidade como dinâmica fundamental do nosso peregrinar.

Na Encíclica Fratelli tutti, escrevi que a fraternidade «tem algo de positivo a oferecer à liberdade e à igualdade» (n. 103), porque quem vê um irmão, vê no outro um rosto, não um número: é sempre «alguém» que tem dignidade e merece respeito, não «algo» a ser usado, explorado ou descartado. No nosso mundo dilacerado pela violência e a guerra, não bastam meros retoques e ajustamentos; só uma grande aliança espiritual e social, que nasça dos corações e se mova ao redor da fraternidade, pode fazer voltar ao centro das relações a sacralidade e a inviolabilidade da dignidade humana.

Por isso, a fraternidade não tem necessidade de teorias, mas de gestos concretos e opções compartilhadas que a tornem cultura de paz. Assim, não devemos perguntar-nos que me podem dar a mim a sociedade e o mundo, mas que posso eu dar aos meus irmãos e irmãs. Ao regressar a casa, pensemos no gesto concreto de fraternidade que havemos de fazer: reconciliar-nos em família, com os amigos ou vizinhos, rezar por quem nos fez mal, identificar e socorrer quem passa necessidade, oferecer uma palavra de paz na escola, na universidade ou na vida social, ungir de proximidade alguém que se sinta só...

Sintamo-nos chamados a aplicar o bálsamo da ternura nas relações gangrenadas tanto entre as pessoas como entre os povos. Nunca nos cansemos de gritar «não à guerra», em nome de Deus ou em nome de todo o homem e mulher que aspiram à paz. Vêm-me à mente os versos de Giuseppe Ungaretti que, no coração da guerra, sentiu necessidade de falar dos irmãos precisamente como «palavra trémula na noite; folha acabada de nascer». A fraternidade é um bem frágil e precioso. Os irmãos são a âncora da verdade, no mar tempestuoso dos conflitos que semeiam mentira. Evocar os irmãos é lembrar a quem combate, e a todos nós, que o sentimento de fraternidade que nos une é mais forte que o ódio e a violência; mais, associa a todos na mesma dor. Aqui está o ponto donde partir sempre de novo: a consciência de se «sentir unido», centelha que pode reacender a luz para deter a noite dos conflitos.

Acreditar que o outro seja irmão, dizer «irmão» a outrem não é uma palavra vazia, mas a coisa mais concreta que cada um de nós pode fazer. Na realidade, significa emancipar-se da pobreza de se julgar no mundo como filhos únicos. Ao mesmo tempo significa optar por superar a lógica dos sócios, que permanecem juntos apenas por interesse, sabendo também ultrapassar os limites dos laços de sangue ou étnicos, que só reconhecem o semelhante e negam o diverso. Penso na parábola do Samaritano (cf. Lc 10, 25-37), que pára compassivo junto do judeu carecido de ajuda. As suas culturas eram inimigas, as suas histórias diversas, as suas regiões hostis uma à outra, mas, para aquele homem, a pessoa encontrada na estrada e a sua necessidade de ajuda estavam em primeiro lugar.

Quando os homens e as sociedades escolhem a fraternidade, muda também a política: a pessoa volta a prevalecer sobre o lucro, a casa onde todos moramos sobre o meio ambiente explorado em benefício próprio, o trabalho é pago com o justo salário, o acolhimento torna-se riqueza, a vida esperança, a justiça abre à reparação e a memória do mal feito é curada no encontro entre vítimas e malfeitores.

Queridos irmãos e irmãs, agradeço-vos por terdes organizado este encontro e terdes dado vida à «Declaração sobre a fraternidade humana», elaborada esta manhã pelos ilustres Prémios-Nobel presentes. Creio que a mesma nos ofereça «uma gramática da fraternidade» e seja um guia eficaz para a viver e testemunhar concretamente no dia a dia. Juntos, trabalhastes bem e muito vos agradeço! Façamos, daquilo que vivemos hoje, o primeiro passo de um caminho e possa iniciar um processo de fraternidade: as praças conectadas de várias cidades do mundo, que saúdo com gratidão e afeto, testemunham quer a riqueza da diversidade quer a possibilidade de ser irmãos mesmo quando não nos podemos encontrar fisicamente, como sucedeu comigo. Segui em frente!

Quero despedir-me deixando-vos uma imagem: a do abraço. Desta tarde que passamos juntos, espero que guardeis no coração e na memória o desejo de abraçar as mulheres e os homens de todo o mundo para, juntos, construirmos uma cultura de paz. Com efeito a paz precisa de fraternidade, e a fraternidade precisa de encontro. Que o abraço dado e recebido hoje, simbolizado pela Praça [de São Pedro] onde vos congregais, se torne compromisso de vida e profecia de esperança. E abraço-vos eu próprio enquanto vos renovo o meu agradecimento e de coração vos digo: estou convosco!


Eu Sou Porque Nós Somos

Acolher demais?

ESPECIAL SÍNODO DOS BISPOS SOBRE A SINODALIDADE

João Paiva | 31 Maio 2023 | in Ponto SJ

A Igreja Católica Romana encontra-se numa fase muito delicada, frágil, exposta, despida e estimulante.

Os mais otimistas, onde me incluo, conseguem entrever esperança e até alguma contínua tensão intrínseca, que há centenas de anos se vive no seio da Igreja. Há algumas novidades do nosso tempo, porém, que são muito específicas. Um dos dados mais relevantes, que teimamos em não encarar, é estarmos por conta própria, sem privilégios apriorísticos de tradição, de maioria, ou de apoio estatal específico. Todos estes aparentes benefícios, nos últimos anos, nos colocaram numa redoma razoavelmente fechada. Qualquer nostalgia desse outro tempo, aparentemente mais pacífico, mas quiçá menos autêntico, é possível e até legítima, mas infecunda. A nostalgia que nos (re) lançará será a saudade do futuro.

O futuro, por inspiração passada e presente, é o da radical amplitude e acolhimento. Não existe abertura ao transcendente sem ampliação, sem braços abertos, sem horizontes rasgados…

Alguns de nós, assustados com as brechas que a erosão do nosso tempo traz e empedernidos com as respetivas fraturas, recolocaram-se com medo. Medo do que aí vem… Alavancados no medo da liberdade espiritual, que só os espartilhos estancam, exercitamos antigas doutrinações. Argumenta-se que é para clarificar, para defender, para prevenir. A mim soa-me sempre a pedras para atirar ou para construir muros.

A minha inclinação para esta insistente abertura é o Evangelho. Recordo com fascínio e inspiração, precisamente, o acolhimento de Jesus de Nazaré: das mulheres adúlteras, dos cobradores de impostos, dos homens e mulheres cansados do trabalho, das gentes com sede, com fome, com nacos de busca, dos filhos que partem por outros caminhos, dos que têm ausência de vinho para saborear a vida, dos que caminham desalentados, dos que choram, dos que se alegram, dos que vivem e dos que morrem, de todos nós, tecidos da mesma carne frágil, mas vital. Os braços abertos são tais que vão até a uma cruz. Tudo em Jesus é abraço.

A doutrina ou a moral são estruturas importantes, mas para os cristãos deveriam estar no seu lugar: o segundo e não o primeiro. Porque primeiro é o abraço. Se alguém se abeira de mim e eu apresento doutrina ou moral, posso estar bem perto de certo terrorismo doutrinal ou terrorismo moral. Porque primeiro é sempre o abraço.

Alguns dizem, não sem razão, que os Evangelhos também são claros nas propostas de emenda (“vai e não tornes a pecar…”). Mas o lugar desse apontamento é sempre depois do amor desabrido, depois da hospitalidade rasgada, depois do acolhimento deveras incondicional. Permito-me uma leitura eclesial da história recente da Igreja com muito défice destas aberturas. É quase uma questão de quota: de tempo, de energia, de palavra, de comunicação, de ação, de preocupação, de comunicação. Gasta-se ainda muita quota de enfatizamento doutrinal, em relação à dita essência da primazia do abraço. Como se não estivesse escrito “não é o que diz Senhor, Senhor…”. Depois falta também a ousadia da criatividade, que muitas vezes tem mesmo de ser disruptiva, como disruptivo é o amor desconcertante de Jesus.

Estou consciente das rampas deslizantes que andam por aí. Mas o grito principal não é essa denúncia nem essa preocupação. Porque a lucidez que evita tais rampas só é forte se fundamentada na experiência de um radical acolhimento. Isto não é uma novidade. Santo Agostinho rezou a frase maior: quero que tu sejas. Permito-me redundar: quero que tu sejas como tu és. Só depois, sem medo, vem tudo o resto.

Fica a pergunta: pode a Igreja acolher demais? Quero crer que a resposta é “não”. Não existe tal coisa de “acolher demais”. Acolher não tem “mas”! A Igreja terá futuro e presente se se rasgar ampliadamente. A mística ousada, mas fecunda, é a da abertura radical. Só este amor amplo (nos) alimenta. Só assim seremos uma esponja porosa, como o amor de Deus…


Eu Sou Porque Nós Somos

OPINIÃO EDUCAÇÃO DOS FILHOS

O medo, os filhos e o fantástico

Inês Teotónio Pereira | 23 Maio 2023 | in Ponto SJ

Uma das qualidades que mais admiro nas crianças é a coragem. Uma criança passa a infância a sobreviver aos seus medos: medo do escuro, dos dragões, dos monstros debaixo da cama, de barulhos estranhos, das sombras do luar que entram pelas janelas, do corredor sem fim que a paralisa e impede de ir à casa de banho durante a noite. As crianças detestam a noite. Não querem que o dia acabe porque no silêncio da noite vivem uma aventura sem fim. Estão sempre alerta, como pequenos gamos no meio da floresta, desconfiadas com os barulhos, curiosas com o que se passa por detrás de um muros, na constante suspeita de que tudo é possível. E mesmo dormir não é um descanso: têm pavor de pesadelos, porque é precisamente à noite que a imaginação está ao rubro e o inconsciente toma conta da realidade. Ou pelo menos parece. Por outro lado, conforta-as adormecerem a imaginarem que vivem no meio dos hobbits, que os dinossauros falam, e que o fundo do mar está cheio de gente que não é gente, de monstros, e que todos respiram e falam sem engolir água.

Vem daqui, desta dimensão intelectual – tantas vezes desprezada por adultos que não cresceram – a valentia que lhes vai no sangue. O mundo dos nossos filhos é dominado por fantasias que se desenvolvem nos seus cérebros frenéticos a um ritmo muito superior e com mais valor que as competências gramaticais ou matemáticas. É um mundo ou mundos que vêm do nada, dando a ideia de que sempre estiveram ali. Requer alguma coragem viver num universo onde tudo voa, os animais falam, as florestas são encantadas – com tudo o que isso implica – , os elfos e os orgs as personagens principais, em que os gigantes destroem cidades, as árvores caminham ou os dragões são tão banais quanto os cavalos. Requer uma coragem que só as crianças têm. Aquilo que cada uma consegue imaginar que possa ser uma sombra refletida pela lua enquanto se enrosca nos seus cobertores, pode ser aterrorizador ao mesmo tempo que a embala.

Escreve CS Lewis: Seria ótimo que nenhuma criança, deitada na cama, ao ouvir ou a imaginar que ouviu um ruído, jamais sentisse medo. Mas, se o medo é inevitável, é melhor que a criança pense em gigantes e em dragões do que em meros ladrões. Desconfio que São Jorge, ou qualquer outro paladino armado, é um consolo bem maior do que a ideia de um polícia.”

Mas hoje confunde-se fantasia com fantástico. O fantástico das lendas e dos contos de fadas vem aliado com a ética e filosofia. Chesterton cita alguns exemplos no seu livro Ortodoxia, onde tem um capítulo dedicado à “Ética na terra dos elfos.” “Jack, o caçador de gigantes”, trata-se de “uma revolta humana contra o orgulho considerado como tal.” Cinderela: é um conto que versa sobre a exaltação dos mais humildes. O conto fantástico que melhor explica a essência do cristianismo, A Bela e o Monstro: “Uma coisa deve ser amada antes que seja digna de amor”. São todas estas histórias, lidas e ouvidas como foram escritas – sem censuras que ofendem o bom senso e o bom gosto e movidas pelo barulho dos tempos – que brincam na cabeça de uma criança. São contos sérios, graves e muitas vezes assustadores, que lhes despertam emoções e as ensinam a lidar com o resto das suas vidas. “Não me interessa, porém, nenhum dos estatutos da Terra dos Elfos isoladamente; interessa-me, apenas, o espírito da totalidade da sua lei, o qual aprendi antes mesmo de saber falar e que irei conservar quando não conseguir mais escrever. Interessa-me determinada maneira de encarar a vida, maneira essa que aprendi nos contos de fadas e que, desde então, foi serenamente corroborada pelos factos mais simples.”, conclui Chesterton.

Ainda sobre os contos de fadas, escreveu CS Lewis: “o país das fadas desperta numa criança um anseio por algo que ela não sabe o que é. Comove-a e perturba-a, enriquecendo toda a sua vida, dando-lhe a vaga sensação de alguma coisa que está para além de seu alcance, e, longe de tornar insípido ou vazio o mundo exterior, acrescenta-lhe uma nova dimensão de profundidade.”

Depois temos a fantasia. A fantasia, baseada em histórias consideradas realistas, pode ser mera armadilha. Como diz CS Lewis, são ficções baseadas em realidades, em que o sucesso, a beleza, a perfeição são o fim, o objetivo último, e ainda por cima realisticamente alcançável. São histórias que transmitem às crianças a ideia de que conseguiriam ser capazes de tudo, de que tudo é possível. No entanto, mais facilmente criam frustração, pois a história é apenas uma ficção com personagens com quem é possível se identificarem.

Ou seja: “A criança quando lê uma história realista, deseja o sucesso e fica infeliz quando termina o livro porque esse sucesso lhe escapa; a criança quando lê um conto de fadas, simplesmente deseja e sente-se feliz no próprio ato de desejar. A sua mente não esteve concentrada em si mesmo, como acontece frequentemente nas histórias mais realistas”.

E que fazemos nós neste mundo real onde vivemos? Ora, entre florestas encantadas e dragões que cospem fogo e a promessa de uma carreira de futebol à medida de Ronaldo ou a possibilidade de vencer o Ídolos ou a ambição da fama fugaz dos influencers, arrisca-se na realidade e abandona-se o fantástico dos dragões e das florestas. Seja por preceito ou por preconceito, por ignorância ou por falta de tempo. Mas abandona-se.

Com isto, as crianças estão a deixar de ter medo. Dormem de luz acesa ou na cama dos pais, não veem escuridão nem imaginam monstros ou fadas porque todos os dias lhes dizem que eles não existem. Pelo contrário, o que existe é a fantasia real. Neste nosso mundo quem tem medo são os crescidos. São aos pais que têm pavor das angústias dos filhos e os impedem de serem eles os corajosos a lutarem sombras à noite ou a salvarem Nárnia do inverno, de ultrapassarem obstáculos e de serem eles os heróis. Os pais, que têm medo das frustrações dos filhos baseadas nas suas ideias estapafúrdias de sucesso e de felicidade. São os pais, que têm pânico de verem os seus filhos crescerem porque sabem que há um dia, por mais tarde que ele venha, em que vão ter de os deixar enfrentar o mundo sozinhos. E as crianças de luz acesa, sem dúvidas e pequenas frustrações, crescem adultos e jovens medrosos.

Neste nosso mundo, quem tem medo são os mais crescidos. Medo de ir à luta e perder, medo de caírem e não saberem levantar-se, medo de experimentar, de arriscar, de viver. De serem os heróis comuns tal como foram moldados por e para Deus.

Falta-nos o fantástico que molda a valentia e disciplina o medo. Pois, tal como escreve Chesterton, “Os contos de fada não dizem às crianças que os dragões existem, as crianças já sabem que dragões existem. Os contos de fada dizem às crianças que os dragões podem ser mortos”.

Falta-nos voltar aos contos de fadas para deixarmos de ter medo e aprendermos como se matam dragões. São também eles que nos ajudam a criar filhos sem medo do mundo, do futuro e com a esperança que tantas vezes nos falha.


Eu Sou Porque Nós Somos

À quinta foi de vez. E agora?

ESPECIAL EUTANÁSIA

P. António Ary, sj | 19 Maio 2023 | in Ponto SJ

Depois de muitos avanços e recuos, dois vetos pelo Tribunal Constitucional e dois vetos políticos pelo Presidente da República, o diploma que consagra a “morte medicamente assistida” – habitualmente referido como “lei da eutanásia” – foi finalmente promulgado por Marcelo Rebelo de Sousa nesta terça-feira, 16 de maio. Ao que tudo aponta, é desta que a lei vai mesmo entrar em vigor, embora para que se torne efetiva, deve, todavia, ainda ser regulamentada, e criadas as estruturas previstas, o que pode ainda dar azo a algumas batalhas políticas e jurídicas.

Como Igreja, só podemos partilhar o sentimento de tristeza expresso pelo Papa Francisco no dia 13 de maio, aquando da confirmação do diploma pelo Parlamento. Tristes, não apenas porque os nossos sentimentos religiosos foram beliscados ou porque o Estado facilita uma prática contrária aos princípios e valores da nossa fé, mas porque este “passo” representa um retrocesso civilizacional, um passo atrás na humanização do nosso viver coletivo.

A aprovação da lei e a sua cada vez mais provável aplicação em nada nos demove de quanto até aqui foi defendido e que o Ponto SJ exprimiu no seu editorial de 2018. Ainda que se possa argumentar uma maior legitimidade política do Parlamento, pois hoje ninguém se pode dizer “surpreendido” ou “enganado” pelas posições e orientações dos vários partidos sobre a matéria, continua a faltar um debate sério na sociedade portuguesa acerca das problemáticas do final da vida, da doença (grave), da incapacidade. Permanecem muitas inconsistências nos conceitos e nas formulações (os avanços e recuos do texto parecem-me sinal disso) que fazem temer um progressivo alargamento das situações em que é admitido o recurso à “morte assistida”. Por fim, preocupa-nos a insistência num conceito de autonomia, de liberdade e de dignidade marcadamente individualistas, que, ultimamente, deixam a pessoa que sofre sozinha diante da escolha entre a vida e a morte.

O que está na lei?

O diploma aprovado admite a morte medicamente assistida «por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde» (art. 3º, n. 1). A concretização do pedido deve ocorrer, preferencialmente, por via de suicídio medicamente assistido (autoadministração de fármacos letais) e, apenas no caso de o doente estar impedido, realiza-se através de eutanásia (administração de fármacos letais pelo médico ou profissional de saúde).

A lei prevê um procedimento complexo e longo, que não pode durar menos de dois meses, conduzido por um “médico orientador” escolhido pelo doente e que compreende, além do parecer deste médico, também o do médico especialista na patologia que o doente sofre, o de um psiquiatra e o de uma “comissão de verificação e avaliação“ (nacional) composta por dois juristas, um médico, um enfermeiro e um especialista em bioética. A cada um dos passos, é pedido à pessoa que reitere formalmente o seu desejo de avançar para a morte assistida.

Abstraindo da questão de princípio em torno da inviolabilidade da vida humana e resistindo a entrar na questão da “burocratização” da morte (um tema sobre o qual valeria a pena refletir), todo este procedimento e, em geral, todas as “garantias” e “travões” colocados pela lei, oferecem pouca segurança no sentido de impedir a banalização da ajuda ao suicídio e até, no caso da eutanásia, do próprio ato de matar, por parte do Estado e dos seus agentes. Exemplo disso é a referência aos cuidados paliativos, que a lei prevê que sejam apresentados como alternativa sempre disponível: «Ao doente é sempre garantido, querendo, o acesso a cuidados paliativos» (art. 4º n. 6). Que valor terá esta proclamação se, reconhecidamente, as estruturas disponíveis não cobrem as necessidades existentes? Quem será responsabilizado pela inoperatividade desta “garantia” (na ausência da qual fica comprometida a própria ideia de “escolha livre” consagrada na lei)? Não se vê, pois, como os mecanismos previstos possam conter alargamentos, e até abusos na interpretação e na aplicação da normativa no sentido de alargar o recurso à morte assistida.

O que se segue?

Aprovada e promulgada a lei, o que resta fazer a quem se assume contrário à institucionalização da eutanásia e da assistência ao suicídio? Certamente, aqueles que nos definimos “defensores da vida”, não nos consideramos derrotados, nem tampouco − acredito eu − somos chamados a “rasgar as vestes” e a desistir do confronto democrático de ideias, optando por caminhos de radicalização. Entre estes extremos, não faltam possibilidades para trabalhar no sentido de promover uma “marcha-atrás” que leve à revogação da lei ou à sua não efetividade. Porém, esta via, que é responsabilidade, antes de mais, de quem exerce determinados poderes públicos, não pode ser a única, nem talvez a principal (até porque objetivamente as hipóteses do seu sucesso parecem poucas).

Isso não significa baixar os braços, mas levar a defesa da vida para outro patamar, já não o do confronto politico-legislativo, mas o do esclarecimento e da formação das consciências. Sem negar a força pedagógica que uma orientação legislativa sempre possui, é possível contrapor à “solução” da eutanásia ou do suicídio assistido um verdadeiro acompanhamento e cuidado às pessoas que sofrem e enfrentam a tentativa de desistir da vida. Para este esforço, não bastam proclamações de princípios, nem anátemas mais ou menos direcionados, mas são necessários atenção, proximidade, capacidade de escuta, tanto por parte do pessoal médico, como por parte de todos os atores direta ou potencialmente envolvidos (famílias, Igrejas, associações, etc.). Enquanto houver pessoas que “de forma séria, esclarecida e reiterada” pedem ajuda para morrer, não poderemos deixar de perguntar-nos: foi feito verdadeiramente tudo para que elas possam desejar caminhos alternativos? Como podemos fazer mais para, ao jeito de Jesus, encontrar caminhos alternativos de vida, escolhidos pela pessoa da mesma forma séria, esclarecida e livre?

Não se diga, porém, que está na hora de uma “privatização” da defesa da vida, pois, a (provável) entrada em vigor e aplicação da lei convoca-nos para uma ativa vigilância, tanto ao nível dos casos concretos, como das tendências e das políticas públicas. Assim, não podemos permitir que sejam silenciados ou acantonados quantos foram e continuam contrários a esta normativa, tanto nos sistemas de saúde, como na sociedade civil. Em particular, preme evitar que se constituam espaços, físicos e institucionais, “amigos” da morte assistida, onde, por afastamento imposto ou por autoexclusão, os defensores da vida não tenham presença, acabando por deixar sozinhos aqueles que mais sofrem. Como Igreja, queremos, antes de mais, estar, acompanhar, amar incondicionalmente, até ao fim.


Eu Sou Porque Nós Somos

Um dia 15 com a Família ao colo

15 Maio, 2023, in Ecclesia

D. Antonino Dias, bispo de Portalegre-Castelo Branco

O Dia Internacional da Família é celebrado, desde 1994, a 15 de maio. Esta data, escolhida pela Assembleia Geral das Nações Unidas, tem como objetivos, entre outros, destacar e chamar a atenção para a importância da família. De facto, é bom que todas as instâncias locais, nacionais, supranacionais e toda a sociedade civil se interessem cada vez mais pela família, pela sua verdade, pela sua solidez, pela sua estabilidade, pelos seus direitos, pela sua qualidade de vida com tudo o que isso implica. Tudo quanto se possa fazer – de bem -, pela família é sempre muito pouco, pouquíssimo em relação ao que ela merece e precisa. De promessas, blablá e de quem a agrida é que ela não precisa mesmo.

A família é o fundamento da vida das pessoas, ‘o protótipo de todo o ordenamento social’, a primeira e fundamental estrutura a favor da ‘ecologia humana’. É no seio da família que a pessoa recebe as primeiras e mais importantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado, o que quer dizer ‘ser pessoa’. É o primeiro espaço onde se fomenta a cultura do diálogo, do acolhimento, da tolerância, da partilha, do respeito mútuo, da afetividade, da atenção ao outro, do cuidar do diferente, da corresponsabilidade e da alegria do encontro, do saber ser e estar. É o primeiro espaço que também educa e fortalece para saber ultrapassar as dificuldades, as tensões e as contrariedades da vida, ou, quando isso é de todo impossível, devido à doença, ao sofrimento, à fragilidade humana e à própria morte, mesmo que custe, aí se aprende que a vida engloba tudo isso. Não é como desejaríamos que fosse, é o que é, “um caminho dinâmico de crescimento e realização” percorrido na humildade da sua realidade concreta, com realismo.

Sujeito titular de direitos próprios e originários, é a mais pequenina e a primeira sociedade humana, tem a sua legitimação na natureza humana, não no reconhecimento do Estado. É anterior à sociedade e ao Estado e não é para a sociedade nem para o Estado, o Estado e a sociedade é que são para a família (DSI214). Reconhecidas e responsabilizadas na sua integridade, as pessoas têm aí, na família, com os seus defeitos e as suas virtudes, a primeira e insubstituível escola de humanização, de sociabilidade, de cidadania. Nela se faz a experiência de comunhão e participação, inspirada e guiada pela lei da gratuidade. Aí se guardam, vivem, defendem e transmitem virtudes e valores (FC42). E a família, tanto mais contribuirá, de modo único e insubstituível, para o bem da sociedade e do Estado quanto mais a sociedade e o Estado a defenderem, apoiarem e promoverem. Sem famílias fortes e estáveis no compromisso, sem famílias saudáveis e felizes, os povos banalizam-se, degradam-se, destroem-se.

Sabemos que a evolução das relações familiares e da sua ordenação jurídica foram sempre influenciadas pelas transformações sociais, políticas, económicas, culturais e religiosas. A família vive no espaço e no tempo. Tem sido aí, apesar de todas as dificuldades que enfrenta, que ela tem mostrado a sua força e a sua grandeza. E quão grande foi o contributo do cristianismo para a concretização da dignidade da pessoa humana no contexto da família. Foi e continua a ser esse o projeto ou modelo de família que anunciamos e propomos, isto é, a família fundada no casamento entre um homem e uma mulher, monogâmico, aberto aos filhos, verdadeira comunidade de vida e de amor. Uma comunidade fundada no reconhecimento da igualdade e das diferenças entre homem e mulher, em verdadeira comunhão e colaboração ativa, sem relação de poder ou de domínio. Mais do que um contrato, a família é uma aliança.

Há outros modelos de família, sim, há, e não temos dificuldade em considerar os valores que, porventura, em alguns deles possam existir ou existam mesmo. Estes novos cenários familiares, porém, fruto de escolhas pessoais e muitas vezes provisórias, às quais, à falta de outra palavra se continua a chamar família, enfraquece a união matrimonial e enfraquece a família como instituição, chegando-se a afirmar que não é a família que está em crise, mas que em crise está sim o modelo de família estável e harmoniosa, de homem/mulher e filhos.

Alguns desses modelos nascem a pretexto dum pretenso conflito entre fé e progresso. Outros surgem em obediência a ideologias e em reação à família tradicional. Outros serão fruto dos modos de pensar e viver a liberdade, hoje, nesta sociedade líquida, do usa e deita fora. Outros emergem só porque sim, por afirmação light. Na base das leis de alguns países já está subjacente a ideia do alargamento do conceito de família a novas formas ou modelos. Olhando-os com olhos de ver, porém, alguns desses modelos não só contradizem o verdadeiro conceito de família, não só negam a identidade da família, mas até se opõem ao conceito de cultura e de progresso cultural. E fazem-nos valer como inevitável consequência do progresso cultural e social, logo apelidando de retrógrados, conservadores e contra as leis do progresso quem discorda, quem não se conforma nem se cala! O progresso autêntico não se desvincula da sua ligação com a natureza. Tem como objetivo o desenvolvimento dos seus próprios valores. Supera as contradições criadas pela sua dinâmica e desenvolvimento. Não entra por uma conceção relativista e contraditória da natureza, da vida e da pessoa, desumanizando e destruindo a identidade pessoal e social. O Concílio Vaticano II lembra-nos que “É próprio da pessoa humana não ter acesso a uma verdadeira e plena condição humana, senão pela cultura, isto é, cultivando os bens e os valores da natureza. Por isso, sempre que se trata da vida humana, a natureza e a cultura estão intimamente ligadas” (GS53).

A situação de numerosas famílias, ao perto e ao longe, é muito sofrida e quase só sujeita de deveres. Instituições e leis ignoram os seus direitos invioláveis, agridem-na com violência nos seus valores e nas suas exigências fundamentais. Vítima de injustiças, inação, atrasos e lentidão nas intervenções, a família, ‘património da humanidade’, em muitos lugares, geme e grita, mas em vão (cf. FC46).

Qualquer modelo social que se leve a sério e pretenda servir o bem comum não pode prescindir da centralidade da família e de agir com responsabilidade em prol da mesma. Melhor: poder pode, mas não irá longe nem pelos melhores caminhos. Acho mesmo que temos aqui uma exceção a confirmar a regra: neste caso, nem todos os caminhos levam a Roma!


Eu Sou Porque Nós Somos

[Moçambique, margem Sul]

Três diálogos necessários (e outros tantos) sobre pacientar e amarrar capulana

Sara Jona Laísse | 6 Mai 2023 | in 7 Margens

Pacientar é um neologismo muito utilizado em Moçambique. Não carece de explicação, porque a sua composição é esclarecedora. Este, em alguns meios que explicarei mais adiante, funciona em paridade com a expressão amarrar capulana. Esta última expressão, paradoxalmente ambígua, nuns contextos significa recato (para a mulher) ou seja, não atiçar “os apetites” dos homens para uma relação sexual. E tem-se educado a mulher moçambicana que amarre capulana. Mas, também, significa ter força, aguentar-se, ser corajosa, i.e., pacientar. E é este segundo sentido dessa expressão que me interessa abordar neste texto. À mulher moçambicana tem-se pedido que seja paciente e forte, tanto na sua vida enquanto ser biológico com esse género, como enquanto esposa. Ela deve aguentar com tudo! Tudo!

Todo esse introito vem a propósito da celebração do dia 7 de Abril, Dia da Mulher Moçambicana, criado em homenagem a Josina Machel (1945-1971), que se casou com Samora Machel, primeiro Presidente da República Popular de Moçambique. Segundo reza a história, morreu, acometida por doença, enquanto combatente da luta de libertação nacional. Sobre ela, a maioria de nós só conhece três factos: o de ter lutado pela independência de Moçambique, ter sido esposa de Samora Machel e ter tido um único filho. Este último aspecto (o de ser mãe), aliado ao se ter casado são muito valorizados na vida de uma mulher moçambicana. Tenho referido, citando Raul Altuna, que o casamento e a fertilidade são dos aspectos mais importantes na vida de um bantu.

Há dias, escrevi um texto no Facebook, questionando a razão pela qual, no âmbito das celebrações dessa efeméride, o Dia da Mulher Moçambicana, tem-se perguntado às mulheres “o que é ser mulher moçambicana”. De um modo geral, tem-se respondido que a mulher moçambicana é guerreira. É aquela que acorda cedo, para lutar pelos seus objectivos. Ou aquela que cuida da família. Ou ainda, aquela que amarra capulana. Este protótipo e estereótipo são, para mim, avassaladores.

Em resposta ao meu post, Gizelda Barreto, reforçou a minha inquietação dizendo, e cito:

“No meu tempo, ser mulher moçambicana é aquilo que diz o Hino [da mulher moçambicana]: é aquela que produz, que alimenta o combatente, aquela que ergue alto o farol da liberdade, aquela que diz ao mundo inteiro que a nossa luta é a mesma, é a mulher moçambicana emancipada, que destrói as forças da opressão. Mas isso é a mulher moçambicana de 60/70…Depois de 76 perdi o desenvolvimento do conceito. Depois dos anos 80, ajudamos a construir as forças de opressão”.

A resposta da Gizelda desencadeou este texto, porque acredito que andemos “a construir as forças de opressão”. Tenho, entretanto, muito respeito por todas as outras respostas que lá foram colocadas, como por exemplo as de Luísa Astrid e Edson Chichongue. A primeira disse, grosso modo, que a resposta dada pelas mulheres à pergunta em questão, advém da necessidade que elas têm de celebrar esse dia como o do alívio da sobrecarga que têm no seu dia-a-dia. O segundo referia que as massas actuam quase sempre do mesmo modo e que isso é explicado pela teoria hipodérmica. Aceito.

Voltando à Josina Machel, ao aludido hino, de cor, pela Gizelda Barreto: questiono se não haverá outras qualidades de Josina Machel que valeria a pena, nos dias que correm, enaltecer, para além da sugestão de que foi guerreira? Palpita-me, pelo Hino da Mulher, que ela lutou para “destruir as forças da opressão”. Porque razão é que não arranjamos um outro discurso que saia do registo de se ter que ser guerreira (embora, de facto, a mulher esteja sujeita a muitas jornadas para ser valorizada do mesmo modo que os homens), para estimular as pessoas à ideia de que as lutas podem ser feitas de outras maneira; como por exemplo, utilizar o poder da mulher com suavidade, como o disse, num programa de televisão – alusivo à referida efeméride, uma moçambicana, a Letícia N´zualo, que tem tatuado no seu corpo a frase: “Ser suave também é ter poder”? Julgo haver outras formas de disputa, para nos libertarmos da opressão ou para atingirmos a liberdade ou sermos menos sobrecarregadas pela vida.

Se as armas não conseguiram ainda libertar-nos, parece-me sensato partirmos para outros modelos. Não diria que sejam fáceis, mas são outros. Podem imprimir novas dinâmicas. A mecânica da opressão ou o acordar mais cedo que o homem e carregar os fardos da casa, não me parecem saudáveis. Quem sabe, educando o homem para participar desse acordar cedo em conjunto, resulte? Será utópico? Têm morrido muitas mulheres, vítimas de “carregar o lar/a casa” (a tal sobrecarga referida por Luísa Astride); ou a tal ideia de se ter de pacientar ou amarrar capulana. Afinal essa não deveria ser uma tarefa conjunta? Qual é a razão de uma ser guerreira e o outro só colher os frutos ou automaticamente ter direitos? Por que razão é que a maioria dos homens também não pacienta? Ou por que razão é que já nasceram com direitos adquiridos e as mulheres com deveres imutáveis?

Então, é no âmbito dessa peleja que me aparece a ideia de que um outro paradigma, que não deve ser novo, deverá ser e cuidar do diálogo. E essa ideia pode ser inspirada em Simone De Beauvoir, Gayatri Spivak e Carl Jung. Um parêntesis importante é o de que, nessa semana da mulher, decorreu numas das salas da Universidade Eduardo Mondlane, na Escola de Cultura e Arte (em Maputo), uma palestra sobre Beauvoir, ministrada por Guilherme Mussane, um docente dessa escola e isso trouxe-me a ideia de que haja quem esteja atento à importância de se discutir outros paradigmas ou outras formas de se “ser mulher”.

Beauvoir defende que género é uma categoria socialmente construída. Entenda-se género como a atribuição de papeis sociais em função do sexo, que segundo a autora é uma criação para oprimir a mulher (ela apresenta como exemplos disso o relegar-se a mulher ao trabalho doméstico e ao cuidado com os filhos). Recordo que Simone escreveu a obra O Segundo Sexo, em 1949, de onde essas ilações podem ser tiradas. Se esses papeis ou essa opressão são socialmente construídos, também podem ser socialmente “retrabalhadas”: Não diria destruídas, mas, ao menos, deixar-se a possibilidade de escolha de cada um seleccionar o que deseja, independentemente da prisão no sexo biológico.

A questão geral colocada por Spivak é se o subalterno pode ter voz. No seu texto “Pode o subalterno falar”?, publicado em 1985, critica a questão da violência epistémica que dá supremacia aos saberes do Ocidente, em detrimento dos do Terceiro Mundo. A escritora elabora, na sua análise, que há algumas ressalvas a serem estabelecidas. Se há alguém do Primeiro Mundo a falar pelo outro do Terceiro Mundo, fica algo mais por ser dito, uma vez que, seja em defesa ou não do inferiorizado, é importante que o visado fale por si. Para esta autora o “lugar de fala” é fundamental. Dizendo de modo simples, é mais fácil alguém explicar, pessoalmente, o modo como os sapatos lhe apertam os calos, do que alguém a explicar como é que seria se fosse com ele. Refira-se que o contexto tem a ver com factos e não com representação ficcional. Ou seja, a mulher moçambicana precisa de ter o seu “lugar de fala”.

Já Jung, na sua obra Os Arquétipos e o Inconsciente Colectivo, afirma, entre outras coisas, que este é constituído por formas de agir herdadas de ancestrais (são pensamentos e modos de agir partilhados colectivamente), que são diferentes do inconsciente pessoal; este último é um conjunto de ideias reprimidas ao longo da vida de um indivíduo. Esses pensamentos são exclusivos desse indivíduo e o modo como são arquivados na sua consciência dependem das suas experiências de vida. Manifestam-se de modos diferentes em cada indivíduo. Se pensarmos na ideia de deixar um mundo melhor para as mulheres, a mim parece que valeria a pena construir um inconsciente colectivo baseado na suavidade com que mulheres e homens podem construir um mundo melhor, sem opressão e sem seres subalternos; porque, dependendo de como a ideia de inferioridade for criada, nas mulheres, por exemplo, a sua superação é variável, em função de ultrapassar ou não o trauma causado. E em função do que já instituiu colectivamente. Por isso é que seria vantajoso um trabalho colectivo para suavizar o mundo.

A questão que se coloca é que desde há muitos anos está criada a ideia de que as mulheres devem ser guerreiras, devem fazer o dobro ou o triplo do que o homem faz, para terem o seu “lugar ao sol”. Poucas são as que têm possibilidade de partilhar a dor que sentem nesse papel de subalternas e a poucas é colocada a possibilidade ou a verdade de que se pode viver de um modo diferente, numa condição de igualdade; daí a ressonância de se ser guerreira, sem se reflectir que existem outras possibilidades de luta ou que poderia existir a possibilidade de ser dado à mulher um mundo de possibilidades adquiridas como as do homem, a de não terem de pacientar, nem terem de amarrar capulana.

Ou por outra, sobre a Josina Machel, às tantas, poder-nos-iam ser ensinadas outras qualidades suas; por exemplo, o que esteve por trás da ideia de se juntar ao Movimento de Libertação de Moçambique, acreditando que a par do homem tinha possibilidades de defender o país. Não tenho nada contra a celebração de seja qual for a efeméride, mas tenho, sim, contra o facto de se relegar apenas a essa efeméride a possibilidade de se usufruir, plenamente, da alegria por trás da data. E, consequentemente se enaltecer o lado do se ser “guerreira”. Além disso e, nos dias que correm, algumas mulheres têm até desvirtuado a alegria com que se celebrava a data, fazendo coisas que nem elas próprias em sã consciência aprovam. Tem havido alguns excessos na diversão de comemoração da data.

A par dos grandes slogans sobre o ser mulher moçambicana há outros excludentes: os de que ser mulher é ser mãe ou que ser mulher é ser-se boa esposa. O que é das mulheres que não concebem ou que não se casam? Serão menos mulheres ou serão menos moçambicanas? É que em algumas sociedades moçambicanas quase que nem se admite a ideia de se escolher não se ser mãe ou se escolher não se ser esposa. Li, para efeitos de escrita do presente texto, uma breve biografia de Simone de Beauvoir. É considerada uma grande intelectual no mundo. Teve uma filha adoptiva. Diz-se que teve um companheiro até ao fim da sua vida e não se casou por escolha própria. Viveram no chamado “relacionamento aberto”. Esta mulher questionou os papeis atribuídos ao género, assim como o casamento tradicional monogâmico e nem por isso foi menos mulher.

Sara Jona Laisse é docente da Universidade Católica de Moçambique e membro do Graal-Movimento Internacional de Mulheres Cristãs.


Eu Sou Porque Nós Somos

Uma Páscoa diferente

Joana Bacelar Virgy | 24 Abril 2023| in Ponto SJ

“Agradecemos o interesse demonstrado em trabalhar connosco mas, infelizmente, não será aceite por usar hijab. Obrigada pela sua compreensão.”

Uma das pessoas que mais marcou a minha vida for a Meryem, uma amiga que fiz quando decidi partir à descoberta da Tunísia. Abriu-me as portas de sua casa, partilhou comigo o seu quarto e levou-me a conhecer o seu país, entre mesquitas e óptima comida, histórias e uma alegria imensa, e ficou minha amiga para sempre.

Uma rapariga como eu, da mesma idade e cheia de curiosidade por este nosso mundo. Na altura, ambas estudávamos e trabalhávamos, tínhamos os nossos sonhos para o nosso futuro. Contudo, entendi o quão mais fácil era ver os meus realizados.

Debaixo do hijab desta minha amiga escondem-se sonhos, esconde-se uma personalidade forte, e escondem-se também desafios inimagináveis para mim, que vivo do outro lado do mediterrâneo. O sonho da sua família era casá-la com o seu primo que vive na Alemanha, mas esse não era o seu sonho, queria antes casar com alguém de quem gostasse e queria poder trabalhar. Preferia não ter de seguir o destino das suas amigas e da sua família. Parece algo normal para nós, não é? A sua luta diária, a sua vontade de conhecer estrangeiros e de viajar, mesmo com (muito) poucos recursos, e rodeada de amigos que não a percebem, é hoje uma inspiração para mim. Ainda que me possa fazer confusão os sonhos que a família possa ter para si, sei que o fazem por bem, por quererem o melhor para ela, e esta família ficará para sempre guardada no meu coração, por me terem recebido tão bem e terem tratado de mim como uma filha.

Passei uma Páscoa diferente, junto da Meryem e da sua família. Foi uma Páscoa especial. A Meryem decidiu levar-me até à igreja, onde nunca tinha entrado. Disse-lhe que seria sempre aqui bem-vinda e expliquei-lhe mais sobre o cristianismo – obviamente que as nossas religiões se tocam em diversos aspectos, pelo que foi muito interessante explorar essas questões e desmistificar outras. Foi tão especial estar acompanhada no “meu” lugar de culto que não esperava por mais uma surpresa. Mas, seguidamente, a Meryem convidou-me a ir consigo à mesquita. O momento não poderia ter sido mais especial.

Chegámos a Cairuão, à mais antiga mesquita do Norte de África, um dos locais mais sagrados dos muçulmanos, e onde entrámos ambas para rezar. Rezámos por mais amizades como estas, por menos muros, por mais pontes, pela compreensão, pela aceitação e pela paz.

A Meryem é assim daquelas forças da natureza que luta até ao fim, que tem valores e ideais bem definidos e que sonha com a paz no mundo. O seu sonho, para além de criar a sua própria família, é de trabalhar com refugiados na Turquia. Estudou a língua precisamente para poder embarcar nessa viagem, com o seu espírito de missão bem presente. Infelizmente, ainda que com 23 anos, precisa da autorização por escrito do pai para poder sair do país.

Agora que já conhecem um pouco melhor a minha querida amiga, volto à afirmação inicial. Quando recebi esta mensagem que me enviou, não quis acreditar. Que injustiça pensei. “E se fosse comigo? Se não me deixassem
trabalhar por ser cristã e andar com uma cruz aos pescoço no meu país, onde é essa a religião que predomina?”

E infelizmente não acontece apenas no mundo laboral com frequência, como me conta a Meryem. Infelizmente, acontece todos os dias na rua, pessoas que, como nós, sonham em poder viver num mundo pacífico, são confundidas com aqueles que se apropriaram do nome de uma religião, fazem-se passar por religiosos, e são uma minoria no mundo, ainda que, pelas notícias que nos chegam, pareçam ser a maioria.

E se fosse comigo, não poder passear na rua sem que tivessem medo de mim, sem que me vissem como uma terrorista, quando eu luto pela paz? Se alguém tivesse usado a minha religião de amor para fazer a guerra?

As recordações como ir à igreja e à mesquita rezar em conjunto, bem como abrir-me o Corão e explicar-me as passagens, ou comermos em família todos dos mesmos pratos com um pedaço de pão na mão, ou cozinharem e servirem chá a toda a hora, ou ajudarem-me com a língua e estar sempre acompanhada farão parte de uma das melhores experiências pascais de sempre.

No fim deste périplo, para além dos muitos presentes que me deu, aquele com mais significado foi um hijab verde seu, lindo – “é para quando fores a outros países muçulmanos”. Na verdade, irei utilizá-lo nessa ocasião, mas também hoje o uso na nossa Europa Ocidental, não como hijab, mas como echarpe, e essencialmente como símbolo de uma amizade que nasceu da união, compaixão e respeito. Juntas pedimos pela paz e justiça no nosso mundo.


Eu Sou Porque Nós Somos

A importância nem sempre é relevante – sobre a ressurreição

Alberto Teixeira | 15 Abr 2023 | in 7 Margens

Não sei grego nem latim e o conhecimento que tenho dessas línguas constam do despertar que recebi no secundário, para a sua importância na formação da língua portuguesa, na cultura e pensamento em Portugal.

Hoje li um texto sobre a palavra “ressurreição” em português e os equivalentes vocábulos gregos e latinos usados nos textos do Novo Testamento. O texto, escrito por Frederico Lourenço, cujas traduções da Sagrada Escritura têm sido muito celebradas, debruça-se sobre a importância da sintaxe desses vocábulos, mas também me parece passar em tangente um certo “dualismo” no discurso – segundo a qual existe uma separação entre a matéria e o espírito, quando se refere a Jesus como a “linha direita que marca a fronteira” entre o mal e o bem.

Sobre o “dualismo” e a sua afirmação no pensamento na antiguidade grega já foram escritas muitas páginas: o zoroastrismo mesopotâmico, o maniqueísmo, o arianismo, mais recentemente o islão, sem esquecer o movimento gnóstico transversal ao judaísmo e cristianismo.

Mas sobre a ressurreição, como elemento central e importante da fé cristã, não pode a sua relevância emergir da análise sintáctica, ainda que seja muito douta e irrepreensível; a semântica gravada nas pedras do tempo construiu um edifício complexo e diversificado sobre o que podemos entender por “ressurreição” e os tradutores não deixam de veicular o seu pensamento e influências nas suas obras.

A discussão sobre este assunto e outros não deixa de ser relevante e deve existir, para que, no caso dos cristãos, eles se revistam na Fé que professam; nem que seja para despertar as mentes de um certo torpor religioso.

Os cristãos cremos na total ressurreição da alma e do corpo, como vitória de Jesus Cristo sobre a morte e o pecado, conforme ensinado por Jesus e transmitido pelos evangelistas e por Paulo.

A ressurreição é central e tem raízes no judaísmo (os saduceus, principais perseguidores de Jesus, recusavam-na): “Assim diz o Senhor Deus a esses ossos: Eis que vou fazer entrar em vós o sopro da vida e vivereis” (Ezequiel 37:5). Esta é uma passagem de um texto muito pungente e dramático quando Ezequiel pregava; lida no Sábado intermédio da Páscoa Judaica, recorda a libertação do Povo de Deus e a sua Redenção.

Para o pensamento actual, a ressurreição do corpo é algo incrível, mas quando abordado segundo o olhar da fé em Deus, o renascimento torna-se mais milagroso que o nascimento.

A ideia de renascimento, porque nunca a experimentámos, pode parecer menos relevante que o maravilhoso processo de fertilização e desenvolvimento do intrincado sistema biológico, com um cérebro complexo, onde também residem as emoções. Podemos participar na criação da vida, mas não podemos participar na recriação de Deus; tanto mais que a recriação de Deus não integra a teoria biológica, ainda que esta esteja a atingir um desenvolvimento crescente, como demonstram as sucessivas experiências e realizações de biólogos, que são criaturas criadas à imagem e semelhança de Deus.

Cremos que a sabedoria dos homens está no plano de Deus e que a recriação de Deus é como a chuva que toca a quietude de inverno que fez cair folhas e apodrecer frutos, para fazer os botões brotarem, as flores eclodirem e as frutas coloridas irromperem; mas nem todas as plantas reviverão, como nem todos os seres humanos farão parte da comunidade dos justos que ressuscitarão.

A ressurreição emerge na confiança do ser humano em Deus e na sua Graça e recompensa em reavivar os que, estando mergulhados na escuridão da morte, querem a Luz da vida.

Cada cristão não pode estar separado da sociedade onde vive e, se pretende incorporar a comunidade dos justos, tem que se aproximar de Cristo. Cremos que o corpo e a alma são criações inequívocas de Deus, sem depreciar a sua existência física, porque esta não se opõe ao espírito e corpo e alma ressuscitarão, porque ambos são dons de Deus. A existência física participa activamente na existência espiritual unindo-se pelas virtudes que mantém, cada um de nós conscientes do valor do mundo e de toda a criação que nos rodeia e de que devemos cuidar.

Na conversão a Cristo ocorre um renascimento espiritual, que no baptismo se compara com a morte e ressurreição de Jesus; conversão do corpo que se abre ao Espírito de Deus e tem de se manifestar pelo testemunho de cada um entre todos.

A vitória de Jesus sobre a morte e o pecado é a nossa libertação e perspectivada redenção para a vida eterna e incorruptível.

A relevância da ideia que cada um tem da ressurreição é superior à importância da sua sintaxe.

Alberto Teixeira é cristão ortodoxo


Eu Sou Porque Nós Somos

PAPA FRANCISCO

AUDIÊNCIA GERAL

Praça São Pedro
Quarta-feira, 12 de abril de 2023

Catequeses. A paixão pela evangelização: o zelo apostólico do crente - 10. Testemunhas: São Paulo. 2

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Depois de ter visto, há duas semanas, o impulso pessoal de São Paulo pelo Evangelho, hoje podemos refletir mais profundamente sobre o zelo evangélico à medida que ele mesmo fala e o descreve nalgumas das suas cartas.

Em virtude da própria experiência, Paulo não ignora o perigo de um zelo distorcido, orientado numa direção errada; ele próprio caiu neste perigo antes da providencial queda no caminho de Damasco. Por vezes temos de lidar com um zelo mal orientado, obstinado na observância de normas puramente humanas e obsoletas para a comunidade cristã. «O zelo que alguns – escreve o Apóstolo – demonstram por vós não é bem-intencionado» (Gl 4, 17).

Não podemos ignorar a solicitude com que alguns se dedicam a ocupações erradas, inclusive na própria comunidade cristã; podemos gabar-nos de um falso impulso evangélico ao mesmo tempo que perseguimos a vanglória ou as próprias convicções ou um pouco de amor-próprio.

Por isso perguntemo-nos: quais são as caraterísticas do verdadeiro zelo evangélico segundo Paulo? Por isso, parece ser útil texto que ouvimos no início, uma lista de “armas” que o Apóstolo indica para a batalha espiritual. Entre elas está a prontidão para propagar o Evangelho, traduzida por alguns como “zelo” - esta pessoa é um zelante na realização destas ideias, destas coisas -, e indicada como “calçado”. Porquê? Como se relaciona o impulso pelo Evangelho com o que se põe em pé? Esta metáfora retoma um texto do profeta Isaías, que diz: «Que formosos são, sobre os montes, / os pés do mensageiro que anuncia a paz, / que traz a boa nova, e que apregoa a vitória! / que diz a Sião: o teu Deus é Rei» (52, 7).

Também aqui encontramos referência aos pés de um anunciador de boas notícias. Porquê? Porque aquele que vai anunciar se deve mover, deve caminhar! Mas notamos também que Paulo, naquele texto, fala do calçado como parte de uma armadura, segundo a analogia do equipamento de um soldado que vai para a batalha: no combate, era fundamental ter estabilidade de apoio, para evitar as armadilhas do terreno, pois com frequência o adversário disseminava o campo de batalha com armadilhas, e ter a força para correr e mover-se na direção certa. Portanto, o calçado é para correr e evitar todas estas coisas do adversário.

O zelo evangélico é o apoio em que se baseia o anúncio, e os anunciadores são um pouco como os pés do corpo de Cristo que é a Igreja. Não há proclamação sem movimento, sem “saída”, sem iniciativa. Isto significa que não há cristão se não estiver em movimento, não se é cristão se não se sair de si mesmo para se pôr a caminho e levar o anúncio. Não há anúncio sem movimento, sem caminho. Não se anuncia o Evangelho parado, fechado num escritório, na escrivaninha ou no computador, fazendo polémicas como “leões do teclado” e substituindo a criatividade da proclamação com o copia-e-cola de ideias tiradas aqui e ali. Anuncia-se o Evangelho movendo-se, caminhando, indo.

O termo utilizado por Paulo, para indicar o calçado de quantos levam o Evangelho, é uma palavra grega que denota prontidão, preparação, alacridade. É o oposto de desleixo, incompatível com o amor. De facto, noutros lugares Paulo diz: «Sede diligentes, sem fraqueza, fervorosos de espírito, dedicados ao serviço do Senhor» (Rm 12, 11). Esta atitude era a exigida no Livro do Êxodo para celebrar o sacrifício da libertação pascal: «Quando o comerdes, tereis os rins cingidos, as sandálias nos pés e o bordão na mão. Comê-lo-eis apressadamente pois é a Páscoa do Senhor. Passarei nesta noite» (12, 11-12a).

Um anunciador está pronto para ir, e sabe que o Senhor passará de uma forma surpreendente; deve, portanto, estar livre de esquemas e preparado para uma ação inesperada e nova: preparado para as surpresas. Aquele que proclama o Evangelho não pode estar fossilizado em jaulas de plausibilidade ou no “sempre se fez assim”, mas está pronto a seguir uma sabedoria que não é deste mundo, como diz Paulo falando de si: «A minha palavra e a minha pregação não consistiram em discursos persuasivos da sabedoria humana, mas na manifestação do Espírito e do poder divino, para que a vossa fé não se apoie na sabedoria dos homens, mas no poder de Deus» (1 Cor 2, 4-5).

Eis então, irmãos e irmãs: é importante ter esta prontidão para a novidade do Evangelho, esta atitude que é um impulso, uma tomada de iniciativa, um ir primeiro. É um não deixar escapar as oportunidades para promulgar o anúncio do Evangelho da paz, aquela paz que Cristo sabe dar mais e melhor do que o mundo. E por isso exorto-vos a serdes evangelizadores que se movem, sem temor, que vão em frente, para levar a beleza de Jesus, para levar a novidade de Jesus que muda tudo. “Sim, Padre, muda o calendário, porque agora contamos os anos antes de Jesus...”. – “Mas também, muda o coração: e estás disposto a deixar que Jesus mude o teu coração? Ou és um cristão tíbio, que não te moves? Pensa um pouco: és um entusiasta de Jesus, vais em frente? Pensa um pouco nisto...


Eu Sou Porque Nós Somos

MENSAGEM URBI ET ORBI
DO PAPA FRANCISCO

PÁSCOA 2023

Balcão central da Basílica Vaticana
Domingo, 9 de abril de 2023

Queridos irmãos e irmãs, Cristo ressuscitou!

Hoje proclamamos que Ele, o Senhor da nossa vida, é «a ressurreição e a vida» (Jo 11, 25) do mundo. É Páscoa, que significa «passagem», porque, em Jesus, realizou-se a passagem decisiva da humanidade, ou seja, a passagem da morte à vida, do pecado à graça, do medo à confiança, da desolação à comunhão. N’Ele, Senhor do tempo e da história, quero, com o coração repleto de alegria, dizer a todos: feliz Páscoa!

Seja ela para cada um de vós, queridos irmãos e irmãs, em particular para os doentes e os pobres, os idosos e quantos atravessam momentos de provação e dificuldade, uma passagem da tribulação à consolação. Não estamos sozinhos: Jesus, o Vivente, está connosco para sempre. Alegrem-se a Igreja e o mundo, porque hoje as nossas esperanças já não se quebram contra o muro da morte, mas o Senhor abriu-nos uma ponte para a vida. Sim, irmãos e irmãs! Na Páscoa, mudaram as sortes do mundo, e hoje (dia que coincide com a data mais provável da ressurreição de Cristo) podemos alegrar-nos de celebrar, por pura graça, o dia mais importante e belo da história.

Cristo ressuscitou, ressuscitou verdadeiramente: como se proclama nas Igrejas do Oriente. O termo verdadeiramente diz-nos que a esperança não é uma ilusão; é verdade! E que, a partir da Páscoa, o caminho da humanidade assinalado pela esperança é percorrido com passo mais rápido. Assim no-lo mostram, com o seu exemplo, as primeiras testemunhas da Ressurreição. Os Evangelhos narram aquela pressa boa com que, no dia de Páscoa, «as mulheres correram a dar a notícia aos discípulos» (Mt 28, 8). E ainda que Maria de Magdala, «correndo, foi ter com Simão Pedro» (Jo 20, 2); e em seguida João e o próprio Pedro «corriam os dois juntos» (20, 4) para chegar ao lugar onde Jesus estivera sepultado. E ao entardecer daquele dia de Páscoa, depois de terem encontrado o Ressuscitado no caminho para Emaús, os dois discípulos «voltaram imediatamente para Jerusalém» (Lc 24, 33) percorrendo a toda a pressa vários quilómetros em subida e na escuridão da noite, movidos pela alegria irrefreável da Páscoa que inflamava os seus corações (cf. 24, 32). A mesma alegria pela qual Pedro, ao ver Jesus ressuscitado nas margens do lago da Galileia, não pôde demorar-se no barco com os outros, mas lançou-se logo à água nadando velozmente ao encontro d’Ele (cf. Jo 21, 7). Em suma, na Páscoa, acelera-se o passo na caminhada que se torna uma corrida, porque a humanidade vê a meta do seu percurso, o sentido do seu destino, Jesus Cristo, e é chamada a apressar-se ao encontro d’Ele, esperança do mundo.

Apressemo-nos, também nós, a crescer num caminho de confiança recíproca: confiança entre as pessoas, entre os povos e as nações. Deixemo-nos surpreender pelo anúncio feliz da Páscoa, pela luz que ilumina as trevas e obscuridades em que demasiadas vezes se encontra envolvido o mundo.

Apressemo-nos a superar os conflitos e as divisões, e a abrir os nossos corações aos mais necessitados. Apressemo-nos a percorrer sendas de paz e fraternidade. Alegremo-nos com os sinais concretos de esperança que nos chegam de tantos países, a começar daqueles que oferecem assistência e hospitalidade a quantos fogem da guerra e da pobreza.

Entretanto, ao longo do caminho, há ainda muitas pedras de tropeço, que tornam árduo e fadigoso este apressarmo-nos para o Ressuscitado. Supliquemos-Lhe: Ajudai-nos a correr ao vosso encontro! Ajudai-nos a abrir os nossos corações!

Ajudai o amado povo ucraniano no caminho para a paz, e derramai a luz pascal sobre o povo russo. Confortai os feridos e quantos perderam os seus entes queridos por causa da guerra e fazei que os prisioneiros possam voltar sãos e salvos para as suas famílias. Abri os corações de toda a Comunidade Internacional para que se esforcem por fazer cessar esta guerra e todos os conflitos que ensanguentam o mundo, a começar pela Síria, que ainda espera a paz. Sustentai quantos foram atingidos pelo violento terremoto na Turquia e na própria Síria. Rezemos por aqueles que perderam familiares e amigos e ficaram sem casa: possam receber conforto de Deus e ajuda da família das nações.

Neste dia confiamo-Vos, Senhor, a cidade de Jerusalém, primeira testemunha da vossa Ressurreição. Expresso profunda preocupação com os ataques dos últimos dias que ameaçam o desejado clima de confiança e respeito mútuo, necessário para se retomar o diálogo entre israelenses e palestinos, de modo que a paz reine na Cidade Santa e em toda a região.

Ajudai, Senhor, o Líbano, ainda à procura de estabilidade e unidade, para que supere as divisões e todos os cidadãos trabalhem, juntos, pelo bem comum do país.

Não Vos esqueçais do querido povo da Tunísia, especialmente dos jovens e daqueles que sofrem por causa dos problemas sociais e económicos, a fim de não perder a esperança e colaborar na construção dum futuro de paz e fraternidade.

Olhai para o Haiti, que há vários anos está a sofrer uma grave crise sociopolítica e humanitária, e sustentai o empenho dos atores políticos e da Comunidade Internacional na busca duma solução definitiva para os inúmeros problemas que afligem aquela população tão atribulada.

Consolidai os processos de paz e reconciliação empreendidos na Etiópia e no Sudão do Sul e fazei cessar as violências na República Democrática do Congo.

Sustentai, Senhor, as comunidades cristãs que hoje celebram a Páscoa em circunstâncias particulares, como sucede na Nicarágua e na Eritreia, e lembrai-Vos de todos aqueles a quem é impedido professar, livre e publicamente, a sua fé. Dai conforto às vítimas do terrorismo internacional, especialmente no Burkina Faso, Mali, Moçambique e Nigéria.

Ajudai o Myanmar a percorrer caminhos de paz e iluminai os corações dos responsáveis para que o martirizado povo roynga encontre justiça.

Confortai os refugiados, os deportados, os prisioneiros políticos e os migrantes, especialmente os mais vulneráveis, bem como todos aqueles que sofrem com a fome, a pobreza e os efeitos nocivos do narcotráfico, do tráfico de pessoas e de toda a forma de escravidão. Inspirai, Senhor, os responsáveis das nações, para que nenhum homem ou mulher seja discriminado e espezinhado na sua dignidade; para que, no pleno respeito dos direitos humanos e da democracia, se curem estas chagas sociais, se procure sempre e só o bem comum dos cidadãos, se garanta a segurança e as condições necessárias para o diálogo e a convivência pacífica.

Irmãos, irmãs, voltemos também nós a encontrar o gosto do caminho, aceleremos o pulsar da esperança, saboreemos a beleza do Céu! Tiremos deste Dia as energias para continuar ao encontro do Bem que não desilude. E, se «o maior pecado – como escreveu um antigo Padre – é não acreditar nas energias da Ressurreição» (Santo Isaac de Nínive, Sermões ascéticos, I, 5), hoje acreditemos! «Sim, temos a certeza: verdadeiramente Cristo ressuscitou» (Sequência). Acreditamos em Vós, Senhor Jesus, acreditamos que convosco renasce a esperança, o caminho continua. Vós, Senhor da vida, encorajai os nossos caminhos e repeti, também a nós, como aos discípulos na noite de Páscoa: «A paz esteja convosco» (Jo 20, 19.21).


Eu Sou Porque Nós Somos

As lágrimas que regam o jardim da vida

Timóteo Cavaco | 2 Abr 2023 | in 7 Margens

A água é um dos compostos químicos mais importantes. Relativamente simples sob o ponto de vista estrutural, H2O é muitas vezes tratada como “a molécula mágica”, com tudo o que já dela se conhece mas também com o muito que sobre ela ainda há a saber. A água continua a ser um dos mais difíceis produtos de encontrar em estado puro na natureza; quase apetece dizer que, estando em todo o lado, não está em lado nenhum. Sendo essencial à existência da vida física, tem também animado ao longo da existência humana os mais diversos discursos no plano do simbólico, na literatura, na filosofia e noutros tantos campos do saber humano.

Chegados mais uma vez ao período do ano em que os cristãos centram o seu olhar na cruz do Gólgota, ouvimos extasiados um dos mais excruciantes brados de Jesus naquele momento de total despojamento: “Tenho sede!” (João 19:28). Resultado do macabro engenho humano, o método da crucifixão tinha esse imenso “mérito” de infligir a morte, com mais ou menos horas de tortura e dor, após drenar por completo qualquer fluido humano, pelo que a sede se manifestava como um dos seus mais severos padecimentos. Curiosamente, só o quarto relato do Evangelho narra esta exclamação, preferindo os outros evangelistas dizer apenas que a Jesus foi dada uma bebida avinagrada (Mateus 27:48; Marcos 15:36; Lucas 23:36) – talvez a posca que os valentes soldados romanos estavam bem acostumados a usar por todo o Império.

O Jesus que agora clamava “tenho sede” era o mesmo que antes tinha afirmado: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos” (Mateus 5:6), ou “… aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna” (João 4:14) e ainda “… quem crê em mim nunca terá sede (João 6:35). Ali estava o Jesus que se oferecia para dessedentar todo e qualquer outro, agora sujeito àquela bebida amarga e desprezível, tratado sem mordomias nem desvelo, como se de um transgressor se tratasse. Antecipando decerto este difícil passo, este era também o mesmo Jesus que apenas umas horas antes tinha clamado ao Pai: “… se queres, passa de mim este cálix, todavia não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lucas 22:42).

Este é o paradoxo que deslumbra. O mesmo Jesus que conheceu o que é chegar ao limite humano da sequidão é também a fonte divina da mais pura e fresca das águas. Mas a água que ele dá a beber é a das suas lágrimas vertidas na cruz – pelo que, para o cristão, chorar não pode ser sinal de desespero mas sim a expressão da mais pura gratidão a Jesus pelo seu sacrifício e a motivação para uma vida transformada. Como evoca uma antiga oração:

Ouvindo o som do divino discurso proclamando
“bem-aventurados os que choram agora
pois esses serão consolados”
muito desejamos chorar nossos pecados
mas os olhos de pedra
e a dureza de coração nos impedem
nem lacrimejar podemos

Por isso Senhor
tendo amolecido primeiro pela penitência
no nosso coração a fonte da sua dureza
derrama em seguida abundantemente
por dom da tua graça
torrentes de lágrimas em nossos olhos.

Ou como Victor Hugo (1802-1885) escreveria muitos séculos mais tarde em Les Contemplations:

Vós que chorais, vinde a Deus, porque ele chora.
Vós que sofreis, vinde a ele, porque ele cura.
Vós que tremeis, vinde a ele, porque ele sorri.
Vós que passais, vinde a ele, porque ele permanece.

A mensagem da cruz é deixarmo-nos confrontar e interpelar pelo exemplo de Jesus, mas em simultâneo ter a capacidade de ver e ir mais além. O que muitas vezes na vida parece ser o fim é apenas a oportunidade que faltava para um novo começo. O vocábulo grego tetélestai (tete,lestai), utilizado apenas por duas vezes em todo o Novo Testamento, é traduzido por “terminadas” (João 19:28) e por “consumado” (João 19:30). Não obstante, trata-se de uma forma verbal de teléo (tele,w) que remete para o que está mais além, para o objetivo, para a completude. A missão de Jesus não terminava ali na cruz, mas apontava para o que viria a acontecer uns dias depois. Do caos, da confusão, da desorientação, amiúde brota o propósito. Tal como Ambrósio (c. 340-397), um dos mais destacados doutores da Igreja, notou em relação ao relato da procura desenfreada pela criança perdida no Templo de Jerusalém (Lucas 2:41-52), “não é por acaso que, esquecido na carne pelos seus pais, ele certamente pleno da sabedoria e da graça de Deus é encontrado após três dias no Templo. É um sinal de que aquele que foi crido morto pela nossa fé, se ergueria de novo após três dias da sua triunfal paixão e surgiria no seu trono celestial com honra divina”. É por isso que o Jesus “terminado” na cruz só se consegue compreender através do Jesus “encontrado” no jardim após deixar o túmulo vazio.

Timóteo Cavaco é presidente da direção da Aliança Evangélica Portuguesa desde 2022, coordenador pedagógico no Seminário Teológico Baptista e investigador colaborador do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa.


Eu Sou Porque Nós Somos

Fazer «boa política» exige «ternura»

[A paz] é um tema que não pode faltar na formação sociopolítica, e infelizmente é também urgente por causa da situação atual. A guerra é o falhanço da política. Que isto seja sublinhado: a guerra é o falhanço da política. Alimenta-se do veneno que considera o outro como inimigo. A guerra faz-nos tocar com a mão a absurdidade da corrida aos armamentos e do seu uso para a resolução dos conflitos. Um perito dizia-me que se durante um ano não se produzissem armamentos, poder-se-ia eliminar a fome no mundo. Por isso é preciso uma política melhor, que pressupõe (…) a educação para a paz. Isto é responsabilidade de todos. Fazer a guerra, mas uma outra guerra, uma guerra interior, uma guerra sobre si próprio para trabalhar pela paz.

Hoje a política não goza de boa fama, sobretudo entre os jovens, porque veem os escândalos, tantas coisas que todos conhecemos. As causas são múltiplas, mas como não pensar na corrupção, na ineficácia, no distanciamento em relação à vida das pessoas? Precisamente por isto ainda há mais necessidade de boa política. E a diferença é feita pelas pessoas. Vemo-lo nas administrações locais: uma coisa é um autarca ou um assessor disponível, outra coisa é quem é inacessível; uma coisa é a política que escuta a realidade, que escuta os pobres, outra coisa é aquela que está fechada nos palácios, a política “destilada”.

Vem-me à mente o episódio bíblico do rei Acab e da vinha de Nabot. O rei quer apropriar-se da vinha de Nabot, para alargar o seu jardim; mas Nabot não quer e não pode vendê-la, porque aquela vinha é a herança dos seus pais. O rei enfurece-se e fica carrancudo, como uma criança mimada. Então a sua mulher, a rainha Jezabel – que é uma diabinha! – resolve o problema fazendo eliminar Nabot com uma acusação falsa. E assim Nabot é morto e o rei toma posse da sua vinha.

Acab representa a pior política, a de levar tudo à frente e dar-se espaço expulsando os outros, aquela que persegue não o bem comum, mas interesses particulares, e usa todos os meios para os satisfazer. Acab não é pai, é chefe, o seu governo é o domínio.

Santo Ambrósio escreveu um livrinho sobre esta história bíblica, intitulado “A vinha de Nabot”. A certo ponto, dirigindo-se aos poderosos, Ambrósio escreve: «Porque expulsais quem é comparticipante dos bens da natureza e reivindicais só para vós a posse dos bens naturais? A Terra foi criada em comunhão para todos, para ricos e para pobres. (…) A natureza não sabe o que são os ricos, ela que gera todos igualmente pobres. Quando nascemos não temos roupa, não vimos ao mundo carregados de ouro e de prata. Esta Terra põe-nos no mundo nus, precisados de alimento, de vestes e de beber. A natureza (…) cria-nos todos iguais e a todos igualmente encerra no ventre de um sepulcro».

Esta pequena mas preciosa obra de Santo Ambrósio será útil para a (…) formação. A política que exerce o poder como domínio, e não como serviço, não é capaz de cuidar, esmaga os pobres, explora a Terra e enfrenta os conflitos com a guerra, não sabe dialogar.

Como exemplo bíblico positivo podemos tomar a figura de José filho de Jacob. Recordemos que ele foi vendido como escravo pelos seus irmãos, que tinham inveja dele, e foi levado para o Egito. Ali, após algumas peripécias, foi libertado, entra ao serviço do faraó e torna-se uma espécie de vice-rei. José não se comporta como chefe, mas como pai: cuida do país; quando chega a carestia, organiza as reservas de trigo para o bem comum, tanto que o faraó diz ao povo: «Fazei aquilo que [José] vos disser» (Génesis 41, 55) – a mesma frase que Maria dirá aos servos nas bodas de Caná, referindo-se a Jesus.

José, que sofreu pessoalmente a injustiça, não procura o seu interesse mas o do povo, (…) faz-se artesão da paz, tece relações capazes de inovar a sociedade. Escrevia D. Lorenzo Milani: «O problema dos outros é igual ao meu. Sairmos deles todos juntos é a política. Sairmos deles sozinhos é a avareza». É assim, é simples.

Estes dois exemplos bíblicos, um negativo, o outro positivo, ajudam-nos a compreender que espiritualidade pode alimentar a política. Recolho apenas dois aspetos: a ternura e a fecundidade.

A ternura é o amor que se faz próximo e concreto. É o caminho que percorreram os homens e as mulheres mais corajosos e fortes. No seio da atividade política, os mais pequenos, os mais frágeis, os mais pobres devem enternecer-nos: têm o “direito” de arrebatar a nossa alma e o nosso coração.

A fecundidade é feita de partilha, de um olhar de longo alcance, de diálogo, de confiança, de compreensão, de escuta, de tempo despendido, de respostas prontas e não adiadas. Significa olhar para o futuro e investir nas gerações futuras; desencadear processos em vez de ocupar espaços. Esta é a regra de ouro: a tua atividade é para ocupares um espaço para ti? Não serve. Para o teu grupo? Não serve. Ocupar espaços não serve, desencadear processos serve. O tempo é superior ao espaço.

Gostaria de concluir propondo-vos as perguntas que cada bom político deve pôr-se: «Quanto amor coloquei no meu trabalho? Em que coisa fiz progredir o povo? Que marca deixei na vida da sociedade? Que ligames reais construi? Que forças positivas libertei? Quanta paz social semeei? O que produzi no lugar que me foi confiado?

Que a vossa preocupação não seja o consenso eleitoral nem o sucesso pessoal, mas envolver as pessoas, gerar empreendedorismo, fazer florescer sonhos, fazer sentir a beleza de pertencer a uma comunidade. A participação é o bálsamo nas feridas da democracia. Convido-vos a dar o vosso contributo, a participar e a convidar os vossos coetâneos a fazê-lo, sempre com o fim e o estilo do serviço. O político é um servidor: quando o político não é um servidor, é um mau político, não é um político.

Papa Francisco
Vaticano, 18.3.2023 | In L'Osservatore Romano | in SNPC | Trad.: Rui Jorge Martins | Publicado em 20.03.2023


Eu Sou Porque Nós Somos

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 19 de março de 2023

Prezados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje o Evangelho mostra-nos Jesus que restitui a vista a um homem cego de nascença (cf. Jo 9, 1-41). Mas este prodígio é mal recebido por várias pessoas e grupos. Vejamos nos pormenores.

Mas primeiro gostaria de vos dizer: hoje, pegai no Evangelho de João e lede este milagre de Jesus, é muito bonito o modo como João o narra. Capítulo 9, lê-se em dois minutos. Mostra o modo de proceder de Jesus e do coração humano: o coração humano bondoso, o coração humano tíbio, o coração humano medroso, o coração humano corajoso. Capítulo 9 do Evangelho de João. Lede-o hoje, far-vos-á muito bem! E como recebem as pessoas este sinal?

Em primeiro lugar, há os discípulos de Jesus, que diante do homem cego de nascença acabam no mexerico: interrogam-se se a culpa é dos pais ou dele (cf. v. 2). Procuram um culpado; e nós caímos muitas vezes nisto, que é muito cómodo: procurar um culpado, em vez de nos colocarmos interrogações desafiadoras na vida. E hoje, podemos questionar-nos: o que significa para nós a presença desta pessoa, que nos pede? Depois da cura, as reações aumentam. A primeira é a dos vizinhos, que são céticos: «Este homem sempre foi cego: não é possível que agora veja, não pode ser ele, é outro»: ceticismo (cf. vv. 8-9). Para eles isto é inaceitável, é melhor deixar tudo como era antes (cf. v. 16) e não se intrometer neste problema. Têm medo, temem as autoridades religiosas e não se pronunciam (cf. vv. 18-21). Em todas estas reações, emergem corações fechados perante o sinal de Jesus, por vários motivos: porque procuram um culpado, porque não sabem maravilhar-se, porque não querem mudar, porque são impedidos pelo medo. E hoje muitas situações são parecidas com esta. Diante de algo que é precisamente uma mensagem de testemunho de uma pessoa, é uma mensagem de Jesus, caímos nisto: procuramos outra explicação, não queremos mudar, procuramos uma saída mais elegante do que aceitar a verdade.

O único que reage bem é o cego: feliz por ver, ele testemunha do modo mais simples o que lhe aconteceu: «Eu era cego e agora vejo» (v. 25). Diz a verdade. Antes, era obrigado a pedir esmola para viver e sofria os preconceitos do povo: «É pobre e cego de nascença, deve sofrer, deve pagar pelos seus pecados ou pelos pecados dos seus antepassados». Agora, livre no corpo e no espírito, dá testemunho de Jesus: nada inventa, nada esconde. «Eu era cego e agora vejo». Não tem medo do que os outros dirão: já conheceu o gosto amargo da marginalização, durante a sua vida inteira; já sentiu em si a indiferença, o desprezo dos transeuntes, daqueles que o consideravam um descarte da sociedade, no máximo útil para o pietismo de algumas esmolas. Agora, curado, já não teme essas atitudes de desprezo, porque Jesus lhe deu plena dignidade. E isto é claro, como sempre acontece: quando Jesus no cura, restitui-nos a dignidade, a dignidade da cura de Jesus, plena dignidade, uma dignidade que vem do fundo do coração, que abrange a vida inteira; e Ele, no sábado, diante de todos, libertou-o e restituiu-lhe a vista, sem lhe pedir nada, nem sequer um agradecimento, e o homem dá testemunho disto. Esta é a dignidade de uma pessoa nobre, de uma pessoa que sabe que foi curada, e restabelece-se, renasce; o renascimento na vida, de que se falava hoje em “A Sua Immagine”: renascer!

Irmãos, irmãs, com todos estes personagens o Evangelho de hoje coloca-nos também a nós no meio da cena, de modo que nos perguntamos: que posição assumimos, o que teríamos dito em tal situação? E acima de tudo, o que fazemos hoje? Como o cego, sabemos ver o bem e estar gratos pelos dons que recebemos? Pergunto-me: como é a minha dignidade? Como é a tua dignidade? Somos testemunhas de Jesus, ou espalhamos críticas e suspeitas? Somos livres perante os preconceitos, ou associamo-nos aos que espalham negativismo e mexericos? Estamos felizes por dizer que Jesus nos ama, nos salva ou, como os pais do homem cego de nascença, nos deixamos aprisionar pelo medo do que pensarão as pessoas? Os tíbios de coração, que não aceitam a verdade e não têm a coragem de dizer: “Não, isto é assim”. E ainda, como enfrentamos as dificuldades e a indiferença dos outros? Como acolhemos as pessoas que têm muitos limites na vida? Quer sejam físicas, como este cego; ou sociais, como os mendigos que encontramos na rua? Vemos isto como uma maldição, ou como uma ocasião para nos aproximarmos deles com amor?

Irmãos e irmãs, hoje peçamos a graça de nos maravilharmos todos os dias pelos dons de Deus e de ver as várias circunstâncias da vida, até as mais difíceis de aceitar, como ocasiões para praticar o bem, como Jesus fez com o cego. Que Nossa Senhora nos ajude nisto, com São José, homem justo e fiel.


Depois do Angelus

Estimados irmãos e irmãs!

Ontem, no Equador, um tremor de terra causou mortes, feridos e enormes danos. Estou próximo do povo equatoriano e asseguro as minhas orações pelos mortos e por todos os que sofrem.

E hoje transmitimos os bons votos a todos os pais! Que encontrem em São José o modelo, o amparo e o conforto para viver bem a sua paternidade. E todos juntos, pelos pais, oremos ao Pai [Pai Nosso...].

Irmãos e irmãs, não nos esqueçamos de rezar pelo martirizado povo ucraniano, que continua a sofrer devido aos crimes de guerra.

Desejo bom domingo a todos. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Eu Sou Porque Nós Somos

JMJ à luz da juventude

ESPECIAL JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

P. Nelson Faria, sj | 2 Março 2023 | in Ponto SJ

Que grandes perguntas gostarias de ver respondidas na JMJ?

(Para a receção dos símbolos da JMJ Lisboa 2023 na Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional de Braga, pediu-se previamente aos alunos que descrevessem a juventude portuguesa atual e que apresentassem as suas dúvidas. Foi à luz desse trabalho prévio que surgiram estas palavras, partilhadas com todos na sessão de receção dos símbolos.)

Qual o sentido da vida?

Como é que a juventude é vista hoje em dia pela Igreja e como cativá-la?

Como é que vão garantir que não vão acontecer mais abusos sexuais?

Como é que os jovens podem mudar o mundo?

Como olha a Igreja para a pobreza e as alterações climáticas?

A fé é importante na vida dos jovens? Como pode a JMJ ajudar a manter e a aumentar a Fé?

Para quê tanto dinheiro público gasto num palco?

A juventude não precisa da Igreja. A Igreja não é uma instituição à qual se adere porque nos faz falta, ou um prestador de serviços do qual devemos ter uma subscrição. A Igreja é uma comunidade da qual fazemos parte porque a fé nos leva até ela.

O nosso Deus seria um deus cruel se colocasse como condição para a felicidade pertencermos à Igreja. Não é esse o nosso Deus. A Igreja é fundada por Jesus, com os seus discípulos, para viverem em comunidade a sua fé. E persiste no tempo porque é juntos que encontramos a felicidade, porque é partilhando caminho com outros que descobrimos quem somos, ao que somos chamados e qual é o sentido da nossa vida.

A Igreja é um fruto da fé, não é condição da fé. A Igreja é feita do encontro das nossas vidas com Deus e uns com os outros.

A ideia de Igreja como organização a manter foi o que nos conduziu ao encobrimento dos abusos. Os abusos são uma página negra da nossa história, da minha história como católico, jesuíta, sacerdote. Abandonámos quem sofre às nossas mãos para tentar salvar a Igreja. Deixámos de ser fermento e tornámo-nos um peso.

Contudo, a página que agora começamos a escrever juntos, em Igreja e como Igreja, é uma graça. É mais do que uma graça: é o Evangelho a cumprir-se!

Nós tendemos a esquecer o Evangelho. Não só na questão dos abusos, mas mesmo nesta recente polémica sobre o palco da JMJ. O que é esta polémica senão o resultado de uma Igreja que se esquece do Evangelho que deve apregoar? Terá de haver um palco. É uma missa de um milhão de pessoas e Fátima não é suficiente. Mas, como já vimos, não tem de ser aquele palco.

Porque temos tanto medo de assumir o Evangelho quando ele se mostra como o caminho fecundo? Porque tentamos esconder as nossas falhas, se o mundo se constrói quando cuidamos das feridas e assumimos as nossas culpas, algo tão central da nossa fé?

Esquecemos o Evangelho… e, surpreendentemente, ele volta em força com o atual escândalo. Em Lucas, podemos ouvir Jesus afirmar: “tudo o que disserem em segredo será proclamado sobre os terraços” (Lc 12,3). Não é isso que está a acontecer? Não é verdade que o que aconteceu atrás de portas fechadas, está agora à vista de todos? Porque duvidamos do Evangelho?

O momento atual deveria reforçar a nossa confiança no Evangelho, a nossa fé no caminho que Cristo nos mostra, a nossa necessidade de vivermos a fé em Igreja, e não para a Igreja. E é isto que o relatório da Comissão Independente para o Estudos dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja nos permite. E é isso que a implementação de uma cultura de cuidado e atenção ao vulnerável pode fazer nascer. É esta a nossa esperança: que o Senhor cubra o deserto criado pelos abusos de uma nova vida. Ele não pode apagar a terra estéril que criámos, não a pode suspender ou derrogar; mas pode, e deseja, torná-la fecunda.

Como fecunda será a JMJ Lisboa 2023 se a vivermos como tempo favorável para renovar e aprofundar uma das grandes paixões do Papa Francisco: a ecologia integral, a promoção de relações justas entre nós e com a realidade que nos circunda. Cuidar da casa comum implica colocar no centro das nossas decisões os pobres, os excluídos, os marginalizados, os descartados e a Mãe Terra. Cuidar dos nossos irmãos e do planeta deve ser uma só preocupação. E há aqui tantos passos por dar.

E para dar esses passos, precisamos de santos! Precisamos de quem esteja inconformado com a ordem do mundo, de quem rejeite a rivalidade e a violência e rasgue horizontes de perdão e de paz. Um santo é alguém que sabe que a compaixão pelo outro é o que torna possível o futuro. É pela vida que se dá, e não pela convicção que se impõe, que se pode mudar o mundo. É este o sentido maior das nossas vidas: dar vida dando a vida!

O que afasta a juventude, e muitas mais pessoas da Igreja, é a nossa inclinação para a autopreservação, algo tão natural como mortal, desde o aparentemente inócuo ‘sempre foi assim’ ao encobrimento para evitar escândalo. Há que voltar ao Evangelho, sempre! Há que arriscar o Evangelho, sem receios!

Qual é o caminho de Jesus? É o de rejeitar a autopreservação, dando a sua vida. É o caminho de quem está na Cruz e consola, de quem está na Cruz e perdoa. É isto que vivemos no Tríduo Pascal. E é para aprender a entrar amorosamente nos nossos limites e feridas, e permitir que deles brote nova vida, que temos a Quaresma.

Não são os jovens que precisam da Igreja. É a Igreja que precisa dos jovens.

Vocês têm uma ambição que falta aos corredores do Vaticano e aos Paços Episcopais, que falta às nossas sacristias e liturgias, que falta mesmo aos encontros de grupos de jovens, em que vivemos mais preocupados com as atividades que organizamos do que com escutar quem está, e construir, com eles, um futuro.

A JMJ existe porque a juventude quer mudar a Igreja, quer que ela seja algo diferente. Ela existe porque a juventude não desiste da Igreja, apesar da mesma Igreja, demasiadas vezes, a ignorar.

A JMJ não nasceu nos gabinetes. Nasceu da vontade dos jovens. Quando João Paulo II organizou o primeiro encontro diocesano de juventude estava a contar com 60 mil, e todos de Roma. Apareceram 250 mil e dos quatro cantos do mundo.

Os Papas souberam reconhecer este sinal do Espírito. Apostaram, com muita esperança, na JMJ como a grande oportunidade para que os jovens se encontrem, para que partilhem as suas esperanças e desânimos, para que sonhem juntos um novo mundo e, assim, contagiem toda a Igreja… e, através dela, todo o mundo, com as sementes de uma grande alegria, de uma nova alegria, que não depende de esforços isolados, mas sim de um grande sonho partilhado.

A juventude encontra-se numa encruzilhada. E, como vocês nos dizem no vosso autoretrato, ela é um corpo cheio de esperança, ativo, livre, rebelde, com um grande sentido de futuro, e, ao mesmo tempo, uma realidade onde habita um sentimento de deriva, de ausência de sentido e de pertença.

Como contornar isto? Não há que contornar, há que atravessar. É isso que Cristo nos mostra: a cruz, a dificuldade, não se deve evitar, deve-se atravessar, guiados pela fé. E somente podemos atravessar a situação atual se o fazemos juntos, encontrando-nos com outros, escutando, e arriscando caminhos até agora por imaginar.

Daniel Faria escreveu:

Como a paveia atrás do segador
vejo os pés descalços dos que correm
E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

Correi. Como o segador seguindo o segador
Numa ceifa terrestre. Digo:
Imaginai
Imaginai…

A grande crise dos nossos tempos não é política, nem financeira, nem social, nem económica. O grande desafio dos nossos tempos é o da imaginação. É o do sonho.

Há pressa no ar… a pressa de futuro. Aceitemos o convite do Papa Francisco e, com Maria, partamos, apressadamente, rumo ao futuro. E se quiserem aceitar uma sugestão, eis o ponto de partida: Lisboa, agosto de 2023.


Eu Sou Porque Nós Somos

Duas moedas e o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar

ESPECIAL UM ANO DE GUERRA NA UCRÂNIA

P. Gonçalo Castro Fonseca, sj | 23 Fevereiro 2023 | in Ponto SJ

O samaritano deu duas moedas ao estalajadeiro e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que de mais gastares eu to pagarei quando voltar. (Lucas 10: 35)

Há um ano a Ucrânia foi atacada e invadida pelo exército russo. Em março o Centro S. Cirilo (obra da Companhia de Jesus) abria as portas da Casa Paz no Porto, em colaboração com Religiosas Escravas da Santíssima Eucaristia e da Mãe de Deus, e no final de abril abria as portas da Casa Mar, conhecida como o Chalé Viana, em Esposende, em parceria com o governo da Província Portuguesa da Companhia de Jesus. O Chalé Viana, propriedade da Província Portuguesa da Companhia de Jesus, é a casa de apoio para atividades do Colégio das Caldinhas e no verão casa de descanso para os jesuítas portugueses.

Os dois meses de preparação e do início do acolhimento de migrantes e vítimas da guerra da Ucrânia foram marcados por respostas impulsivas e algumas imprudentes, mas também por decisões fruto de cuidadosos discernimentos. Na origem, a inquietação resultante dos acontecimentos que assistíamos incrédulos; também o movimento incansável da sociedade civil de manifestar uma solidariedade ímpar foi motivação para não ficarmos apenas como expectadores com desejos vãos de fazer alguma coisa. A marca distintiva das nossas ações e decisões foram o desassossego provocado por algo até então inconcebível nos nossos tempos e aqui ao lado, e a tamanha generosidade que transbordou em gestos únicos que montaram a Operação Acolher Ucrânia, nome dado projeto de acolhimento de cidadãos ucranianos, ao abrigo dos serviços de S. Cirilo.

Passados quase um ano desde que acolhemos a primeira família há um sentimento de cansaço, alguma frustração e muitíssimas lições aprendidas, mas acima de tudo há uma certeza de que fizemos e estamos a fazer a diferença na vida de cerca de 150 famílias que foram abrigadas na Casa Paz e na Casa Mar e também em algumas famílias do Porto que generosamente cederam do seu espaço para nos apoiar. Se é verdade que há um sentimento de gratidão por parte das famílias ucranianas também é verdade que há um enorme desconforto e incerteza, pelo que nem sempre se consegue sair de uma lógica do aqui-e-agora e passar para um plano de construção de futuro; olham a vida esperando que o tempo passe para poder regressar e então só aí recomeçar, no entretanto sobrevivem e nós fazemos o melhor que podemos para que essa sobrevivência seja protegida, confortada, mas também com horizonte. A comunicação profunda faz-se com a linguagem da caridade. O dia-a-dia constrói-se graças a dezenas de voluntários que também se vão deixando transformar ao se deixarem tocar pela crueza das vidas destroçadas destes que nos foram confiados.

Mantemos o sentido de responsabilidade do estalajadeiro que acolhe vidas e histórias feridas. Cuidamos e somos cuidados. Há muito que as duas moedas foram gastas nesse cuidar, mas mantemo-nos de portas e braços abertos confiantes que a generosidade e a confiança não cessaram e que “tudo o que de mais gastarmos nos será pago”.

O desejo de paz, porque a guerra nos bateu nas nossas vidas, intensifica-se neste aniversário e nestes tempos e o nosso compromisso solidifica-se quando outros se retiram. Assombra-nos a incerteza de quando e como será o fim, vale-nos a confiança que a providência não nos faltará e, sobretudo, que estamos a fazer real a vida eterna. E no fundo a parábola do bom samaritano – e do bom estalajadeiro – é a resposta à pergunta: “Que devo eu fazer para ter direito à vida eterna?”

Projeto Acolher Ucraniana – Centro S. Cirilo


Eu Sou Porque Nós Somos

OPINIÃO FRUSTRAÇÃO E FÉ

Há Alguém a olhar por mim

Maria Inês Gonçalves | 15 Fevereiro 2023 | in Ponto SJ

Durante as férias do Natal li um livro que a minha mãe me tinha sugerido, O Príncipe e a Lavadeira, do Padre Nuno Tovar de Lemos, sj. No meio de tantas frases sublinhadas e destacadas (porque, se há livro com muitas frases que nos fazem pensar, este é, sem dúvida, um deles e aproveito a ocasião para o recomendar vivamente), uma que chamou particularmente a minha atenção foi «Alegra-te de Lhe teres sabido falar dos teus desejos e sentimentos, mas pede-Lhe perdão se achaste que, no fim, era Ele quem deveria fazer a tua vontade». Era capaz de citar mais umas dezenas de frases bonitas deste livro, mas não quero dar spoilers!

Fiz uma pausa na leitura desse capítulo quando li esta frase. Remeteu-me para o que tinha vivido há dois anos. Em 2021 estava no décimo segundo ano. O curso que queria seguir na faculdade era engenharia biomédica mas para ter a média que precisava (com base nas notas mínimas de candidatura dos anos anteriores), precisava de ter uma nota muito alta no exame nacional de matemática. Tudo estava a correr como esperado, as notas ao longo desse ano tendiam a subir e a alcançar o que precisava para aumentar a média. Quando chegou a altura de começar a estudar para o exame, estava imparável: fazia noitadas a estudar com uma das minhas melhores amigas, que tinha o mesmo objetivo, e, durante o dia, continuávamos o estudo intensivo para ter a certeza de que estávamos preparadas para qualquer pergunta que nos aparecesse à frente no dia do exame.

Lembro-me de, mesmo sabendo que o exame não me tinha corrido tal e qual como tinha imaginado, estar à espera de uma nota não muito diferente da que tinha como objetivo. Grande foi o meu choque quando saíram as notas. O curso que queria tinha ido por água abaixo! Sabia, e todos à minha volta me diziam e consolavam, que nem tudo estava acabado. Tinha ainda a segunda fase de exames, ou podia até mudar de curso mais tarde, mas na altura a revolta tomou conta de mim… Afinal, tantos meses de esforço “para nada”.

Um dos primeiros pensamentos que me dominou naquele dia foi “Porque é que depois de estudar tanto, de rezar tanto a pedir força para continuar a estudar e que o exame corresse bem, de ter os meus pais e avós a rezar por mim naquela manhã de 13 de julho, Ele não me deu o que tanto queria?! Teria feito alguma coisa mal?”.

Na tarde em que vi a pauta com as notas ouvi do meu pai a célebre frase: «Deus escreve direito por linhas tortas». Olhando para trás, já de uma perspetiva diferente, percebo melhor o seu sentido. Foi todo um processo: no início, a revolta, a frustração… depois, escolher um curso que me permitisse fazer cadeiras que dessem equivalência para, no fim do primeiro ano, mudar para biomédica – as linhas tortas -; mais tarde, a descoberta daquilo que o curso de engenharia do ambiente, que acabei por escolher e no qual entrei, tinha reservado para mim. Afinal, não ter conseguido entrar em engenharia biomédica trouxe-me tanto! Conheci pessoas espetaculares, hoje grandes amigos, fiz trabalhos onde senti que, de facto, estava a trabalhar para um mundo melhor e percebi que talvez Ele tivesse escolhido este caminho para mim.

Se naquela altura a pergunta era “Porque é que, depois de tudo, Ele não me deu o que tanto queria?!”, após ter lido a frase do P. Nuno “(…) pede-Lhe perdão se achaste que, no fim, era Ele quem deveria fazer a tua vontade”, a minha perspetiva deu uma volta de cento e oitenta graus. Percebi que aquele primeiro pensamento era quase egoísta por achar que Ele tinha de me dar o que tinha pedido.

Muitas vezes pensamos que sabemos o que é melhor para nós. Num texto que li, São Charles de Foucauld dizia: «Com efeito, Ele vê mais longe que nós; e não quer apenas o nosso bem, quer o bem de todos». Levo este desafio para o resto da minha vida: ser capaz de, em tempos de adversidade ou revolta, ter a força de acreditar que Alguém olha por mim e está a ver para além do que os meus olhos são capazes de alcançar.


Eu Sou Porque Nós Somos

Coordenadas para um lugar bem situado

ESPECIAL PARÁBOLAS

P. José Frazão Correia sj | in Ponto SJ | 10 de Fevereiro de 2023

A Brotéria entrou em 2023 com o desejo de cultivar a atenção a bons lugares e de se implicar mais conscientemente na sua construção e no seu cuidado. No editorial do número de janeiro, intitulado “Eutopos”, o P. Francisco Mota SJ escrevia que, mais do que um sítio, o lugar «é a possibilidade de tornar real, concreta, tangível, a visão que se tem para o mundo». Se as boas intenções não chegassem a ganhar forma em lugares reconhecíveis e habitáveis e em modos justos de os habitar, seriam tão só utópicas, «intenções vagas, apenas sonhadas, sem forma». Dessas, como diz a sabedoria popular, “está o inferno cheio”. «Eternamente adiadas», acabariam por ser «motivo de frustração e destruição», diluindo-se em não-lugares de vazio e de abandono ou degenerando em maus lugares, distopias diabólicas que se organizam como estruturas de mal que fazem mal.

Explorando este filão, identificamos quatro parábolas para o desenho de um bom lugar, quatro coordenadas para reconhecer, edificar e cultivar lugares bem situados – valem tanto para o registo pessoal e existencial como para o comunitário, o político ou o eclesial; servem de referência para a escrita da própria biografia como para desenvolver um projeto educativo: a origem reconhecida como promessa e motivo de memória grata; o porvir que atrai como melhor que ainda está para vir e que empenha a liberdade; a altura como abertura ao transcendente que ressoa em apelos que convocam, provocam e pedem responsabilidade; o fundo da finitude e dos limites humanos a reconhecer e a confessar com humildade. Parábola evoca aqui o lugar geométrico, mas, sobretudo, as narrativas evangélicas breves que convocam e condensam as dimensões e as dinâmicas mais elementares da existência humana. O “bom” que qualifica o “lugar” dá-se e faz-se como qualidade humana do espaço de tensão que se abre entre as parábolas.

Representação gráfica das parábolas

A primeira parábola é a da origem e da memória. Somos filhos e filhas, dados à vida e depositários de uma herança: a estrutura física e psíquica de cada um, a família, a língua, o lugar de nascimento, a nacionalidade, a história. Constitui-nos uma passividade incontornável. Somo precedidos e predispostos. Antes de aprender a conjugar os verbos na voz ativa, somos conjugados na voz passiva. Somos amados (mal-amados, por vezes), gerados, dados à luz da vida e expostos à cultura, alimentados, ensinados, iniciados à história que nos precede. Nesta voz, poderemos arriscar dizer que tudo é graça. Mas se com o nascimento vem o cheque a levantar, sem nada se ter feito para o receber, já vem também a cobrança que obriga a fazer contas e a fazer-se à vida. Vêm créditos e vêm dívidas, possibilidades e condições. O corpo, os pais, a história de família, as vicissitudes do país, a história da humanidade. Tanto e tão pouco. A herança recebida é, contemporaneamente, promessa que abre e capacita e estigma que inibe e impede. Por isso, com a graça da vida vem também a tentação. Porque tudo é imposto. As promessas da vida inscrevem-se em premissas não escolhidas e não evitáveis. A liberdade fará, por isso, o seu caminho sobre uma corda bamba, oscilando, ora para o dom a reconhecer, ora para a imposição a lamentar. O que cada um recebeu, o que cada época herdou, é bastante para despertar gratidão e abrir possibilidades inéditas ou é demasiado pouco para que valha a pena empenhar-se em algo melhor? A parábola da origem é, por isso, parábola da memória que pode ser grata ou ressentida, que pode gerar confiança ou mover à regressão. Mas o seu direito está no reconhecimento e na promessa. São estes que bem dispõem e que habilitam a corresponder de forma responsável. A memória será, assim, tanto mais fecunda quanto mais cultivar a gratidão – a má memória gera desconfiança, ressentimento, paralisia, desistência, tudo venenos que infetam o corpo e o espírito e inibem a implicação num futuro promissor. Pelo contrário, reconciliar-se com o património herdado favorecerá a honestidade, a criatividade, a retidão de vida. Vale para uma pessoa, vale para uma instituição, vale para um país. Não se faz de conta de que o custo e o limite não existem ou de que não são difíceis de reconhecer e duros de suportar – tem-se bem presente que com a graça de ser dado à luz vem a imposição à vida – mas ergue-se em liberdade sobre as coisas que são como são, empenhando-se responsavelmente no bem possível. Eis, pois, que, quanto melhor “filho” ou “filha” se é, melhor “pai” ou melhor “mãe” se será do próprio futuro e do futuro partilhado. O cuidado honesto com a qualidade da memória será garantia de compromisso esperançoso, sem deixar de ser realista, com o que virá.

Em tensão com este polo, desenha-se a promessa do futuro confiado à liberdade. Não é sem motivo que, nas Escrituras Hebraicas, o povo de Israel seja o povo da promessa, precisamente, porque é povo de memória. O dom reconhecido alicerça a esperança e aviva o desejo, expande a imaginação e abre ao porvir. Assim se faz tarefa responsável. Sabemos que o que somos não vem apenas do que recebemos, mas do que temos diante de nós e nos espera a partir do futuro, em cuja construção nos implicamos. A forma que uma existência ou uma comunidade assumirão será também fruto da sua imaginação e do seu desejo, de como projetarem e se edificarem. Parafraseando Stella Morra, do artigo que publicámos também no passado número de janeiro, “Humanos sexuados: rosto, género e diferença”, o que somos não está apenas escrito nas nossas costas, mas está diante de nós e será fruto da escrita que resultar dos nossos próprios passos (para um cristão, chegar à forma de Cristo que nos espera do futuro não diz menos sobre a identidade do que ter sido criado à imagem e semelhança de Deus). Eis, pois, que sendo dados à luz e impostos à vida, cabe-nos amar, gerar, alimentar, ensinar, criar cultura, ser autor da história. O bom administrador não é aquele que guarda no bolso o que recebeu, com medo de o perder, mas aquele que o investe e se investe a si mesmo nos investimentos que faz – empenhar-se significa isso mesmo, pôr-se a si mesmo como penhor, como garantia da própria palavra ou ato. Não será fiel se apenas proteger e conservar o património herdado e, assim, se proteger do risco do incerto. Sê-lo-á se o cultivar e o recriar com outros, com liberdade e responsabilidade, ao seu modo, segundo as suas possibilidades.

A terceira parábola abre para o alto, para o que abre, o que faz respirar, o que eleva. Na teologia cristã aprende-se que a graça eleva. É gratia elevans. Entre herança e horizonte, levantamo-nos do chão e ficamos direitos sobre os próprios pés. Somos capazes de ver mais longe, de apreciar e de cantar, de nos maravilharmos e de rezar. Compreendemo-nos abertos, postos diante de algo maior do que nós, que nos transcende e implica a nossa liberdade. Se somos seres responsáveis por alguma coisa, não o somos menos diante de alguém ou de uma instância que nos convoca e nos provoca a dar uma resposta em primeira pessoa: a consciência, os outros, a lei, Deus. Compreendemo-nos expostos a uma palavra nos vem de fora, que ressoa e nos implica dentro, e que nos abre à relação. O logos implica-nos no diálogo: ora nos comove e nos declara amor, ora nos interpela sobre o lugar onde estamos e onde estamos em relação aos outros e à natureza, ora nos acusa de surdez, de indiferença e de irresponsabilidade. Somos homens e mulheres de palavra – escutada, dita, escrita –, destinatários de múltiplos apelos, claros ou sussurrados, uns que acariciam outros que ferem. Na realidade, é a palavra e são as relações justas que a palavra gera que nos dá lugar na vida. Por isso, é tão vital para qualquer pessoa ou comunidade exercitar-se na disciplina da escuta e na interpretação das ressonâncias, assim como o é ser escutado e ter voz. Mas claro, pode sempre cair-se no fechamento narcisista ou autossuficiente sobre si mesmo e na coisificação da realidade. Pode sempre cair-se na surdez e na mudez, na tentação de impedir a palavra ou de abusar dela, de se refugiar no monólogo e de se furtar ao diálogo, de se esquivar à escuta e de fugir à palavra franca.

Em direção ao mais baixo, no polo oposto, desenha-se a parábola do limite da própria finitude, do lado sombrio e doentio de cada um de nós e das nossas instituições, dos traumas e das regressões pessoais e coletivas. Pode acontecer que a luz não seja suportável, que pareça melhor suspender a vida que assumir o risco de viver, quando o custo da imposição à vida fala mais alto que a graça de ser dado há luz, quando a herança ou a biografia passada se tornam pesos insuportáveis em vez de serem oportunidade de recomeço. Há momentos em que o futuro parece lugar indesejável e tarefa impossível. E não é simples ser pessoa de palavra, sempre verdadeira, sempre justa, sempre responsável. Estar sempre à altura da vida, da palavra, nas relações pode ser demasiado custoso. E quem pode estar diante de Deus, o totalmente outro, sem ser atingido? Aí, a gruta, com as suas muitas formas, faz-se lugar de regressão. Não deixa de ser curioso, porém, que, por exemplo, na biografia de muitos santos, a gruta, a caverna, a escuridão, a noite se tenham tornado lugares de grande vitalidade, abismos que se revelaram pontos de elevação. Precisamente, nesses estádios profundos foram postos em contacto com correntes subterrâneas com grande pressão. S. Bento e S. Francisco de Assis, S. Inácio de Loyola, S. Teresinha de Lisieux e S. Teresa de Calcutá, entre outros e outras, tiveram os seus tempos de caverna e foi dessa profundidade sombria e dolorosa que se reergueram com uma vitalidade e criatividade que marcaram profundamente as suas biografias, os seus tempos e a história futura. Contrariamente ao expediente mais fácil da negação, da autojustificação ou do cancelamento, a honestidade do reconhecimento e o ato humilde da confissão – é-se o que se é e o que se poderá vir a ser – fazem desta parábola húmus de enorme fecundidade.

O bom lugar desenha-se no espaço que se gera entre as quatro parábolas que, mantendo-se em tensão, se implicam e se corrigem, sem se confundirem nem se separarem. A “heresia” que fere o lugar e a sua bondade está na perda da polaridade, pela amálgama que anula a tensão no indistinto (tudo é igual e vale o mesmo, ou seja, nada tem valor) ou pela polarização que exacerba a tensão (para que um polo se afirme, o outro tem de ser eliminado). A “heresia” está no “só”, na absolutização ou na cristalização de um dos polos: ou só passado ou só futuro, ou só conservação ou só novidade, ou só monólogo ou só diálogo, ou só transcendência ou só imanência, ou só leveza ou só custo… Quem só vive da herança recebida, gozando dos rendimentos, sem investir ou sem se implicar no investimento que faz, ou quem só vive da memória do passado, dos seus mitos e heróis, que tende a idealizar, saudosista do que, supostamente, foi grande e se perdeu, do “então é que era”, “peca” contra a graça e a missão do tempo presente e contra o dever de edificar o futuro ainda por vir. Quem vive só no sonho do futuro que virá ou só do fascínio acrítico pelas novidades da “nova estação” – o que interessa é estar na moda –, como se pudesse cortar as raízes que o ligam à herança recebida, à história que o trouxe aonde se encontra, às coisas correntes do presente, ou quem acha, de modo ingénuo, que necessariamente, “tudo vai ficar bem”, sem ter de se implicar ativamente nesse bem desejado, “peca” contra a herança recebida e o dever de memória e “peca” também contra a fidelidade às pessoas, às coisas e aos lugares de agora, pelos quais é responsável. Quem vive só elevado sobre a própria altura, tende a perder o pé e a cabeça, na presunção da própria autonomia, das próprias qualidades e razões. Cultivando tanto o monólogo acaba por se tornar insensível aos apelos que lhe chegam de outros e de Outro e por se fechar ao bem que se gera no diálogo. Pelo contrário, quem se fecha na caverna da própria solidão e se rende às cadeias dos seus medos e limites, termina no apoucamento de si e na desistência da vida. Não se eleva ao inédito de tão agarrado que está ao chão das suas feridas e impossibilidades.

Como referíamos antes, as quatro parábolas servem de coordenadas para a avaliação e projeção da vida de uma pessoa, mas também de um projeto educativo, de um grupo social ou de uma igreja. Que lugar tem a memória histórica e que relação se cultiva com a tradição e com a cultura herdada? Como se perspetiva o futuro, se cultiva a liberdade e se promovem o compromisso, a criação e a criatividade? Como se cultiva o que abre, o que eleva, o que transcende, o que apela à corresponsabilidade pelos outros, pela comunidade, pela natureza? Como se lida com o limite, a complexidade e a contraditoriedade da vida e das relações e se dá um lugar justo aos desacertos, às feridas, aos desencontros? Em síntese, como é que a nossa humanidade comum se reconhece e se cultiva na memória do recebido, no investimento no porvir, na abertura ao que transcende, na confissão da finitude?

O bom lugar será um espaço humano de reconhecimento e de possibilidades, honesto e esperançoso, que se abre e que permanece aberto na tensão das parábolas: entre a origem e o destino, eu e o outro e tantos outros, o corpo e o espírito, a alma e a pele, a verdade e a liberdade, a memória e o desejo, a possibilidade e o limite, o prazer e a rotina, o sentido e os sentidos, o absoluto e o parcial, o definitivo e o provisório, o mais alto e o mais baixo de si, dos outros e da história, o dentro e o fora de si, dos outros e da história…, sem confusão nem separação. Mais do que um sítio fixo, ainda menos rígido, o bom lugar é um espaço aberto por múltiplas dinâmicas e correlações, desenhado e salvaguardado pelo modo distintivo de ser habitado. Por isso, assume sempre uma pluralidade de formas, reconhecíveis e habitáveis.

[1] Veja-se Elmar Salmann, “L’esperienza di Dio come rivelazione indiretta”, em Pierangelo Sequeri, Sergio Ubbiali (ed.), Nominare Dio in vano? Orizzonti per la teologia filosofica (Milão: Glossa, 2009), 65-84; Elmar Salmann, Scienza e spiritualità. Affinità ellettive (Bolonha: EDB, 2009), 29-45.


Eu Sou Porque Nós Somos

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
À REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DO CONGO E SUDÃO DO SUL
(Peregrinação Ecumênica de Paz no Sudão do Sul)
[31 de janeiro - 5 de fevereiro de 2023]

ENCONTRO COM AS VÍTIMAS DO LESTE DO PAÍS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Nunciatura Apostólica de Kinshasa
Quarta-feira, 1° de fevereiro de 2023

Queridos irmãos e irmãs!

Obrigado! Obrigado pela coragem destes testemunhos. Perante a violência desumana que vistes com os vossos olhos e experimentastes na própria pele, fica-se chocado. Só nos resta chorar, sem palavras, permanecendo em silêncio. Bunia, Beni-Butembo, Goma, Masisi, Rutshuru, Bukavu, Uvira… são lugares que os meios de comunicação internacionais quase nunca mencionam: lá e noutros lugares, tantos irmãos e irmãs nossos, filhos da mesma humanidade, são reféns da arbitrariedade do mais forte, de quem tem na mão as armas mais potentes, armas que continuam a circular. O meu coração está hoje no Leste deste imenso país, que não terá paz enquanto esta não for alcançada lá, na sua parte oriental.

A vós, queridos habitantes do Leste, quero dizer: estou unido convosco. As vossas lágrimas são as minhas lágrimas, a vossa dor é a minha dor. A cada família enlutada ou desalojada por causa de aldeias incendiadas e outros crimes de guerra, aos sobreviventes das violências sexuais, a cada criança e adulto ferido, digo: estou convosco, quero trazer-vos a carícia de Deus. O seu olhar terno e compassivo pousa sobre vós. Enquanto os violentos vos tratam como objetos, o Pai que está nos Céus vê a vossa dignidade e diz a cada um de vós: «És precioso aos meus olhos, estimo-te e amo-te» (Is 43, 4). Irmãos e irmãs, a Igreja está e estará sempre da vossa parte. Deus ama-vos, não Se esqueceu de vós; oxalá se recordem de vós também os homens!

Em nome d’Ele e juntamente com as vítimas e quantos se empenham pela paz, a justiça e a fraternidade, condeno as violências das armas, os massacres, os estupros, a destruição e ocupação de aldeias, a pilhagem de campos e de gado que continuam a ser perpetrados na República Democrática do Congo; e também a exploração sangrenta e ilegal da riqueza deste país, bem como as tentativas de dividi-lo para o poder controlar. Enche de indignação saber que a insegurança, a violência e a guerra que tragicamente atingem tantas pessoas são, vergonhosamente, alimentadas não só por forças externas mas também de dentro, para daí tirarem proveito e vantagem. Volto-me para o Pai que está nos Céus e nos quer ver a todos como irmãos e irmãs na terra, humildemente inclino a cabeça e, com a tristeza no coração, peço-Lhe perdão pela violência do homem sobre o homem: Pai, tende piedade de nós! Consolai as vítimas e quantos sofrem. Convertei os corações de quem pratica tão cruéis atrocidades, que envergonham toda a humanidade. E abri os olhos àqueles que propositadamente os fecham ou passam ao largo para não ver estas abominações.

Trata-se de conflitos que obrigam milhões de pessoas a abandonar suas casas, provocam gravíssimas violações dos direitos humanos, desintegram o tecido socioeconómico, causam feridas difíceis de cicatrizar. São lutas de parte nas quais se entrelaçam dinâmicas étnicas, territoriais e de grupo; conflitos que têm a ver com a posse da terra, a ausência ou debilidade das instituições, ódios nos quais se infiltra, em nome dum falso deus, a blasfémia da violência. Mas é, sobretudo, a guerra desencadeada por uma insaciável ganância de matérias-primas e de dinheiro, que alimenta uma economia de guerra que exige instabilidade e corrupção. Que escândalo, que hipocrisia: as pessoas são estupradas e assassinadas, enquanto os negócios que provocam violências e mortes continuam a prosperar!

Dirijo um sentido apelo a todas as pessoas, a todas as entidades, internas e externas, que movem os cordelinhos da guerra na República Democrática do Congo, saqueando-a, flagelando-a e desestabilizando-a. Enriqueceis-vos mediante a exploração ilegal dos bens deste país e o sacrifício cruento de vítimas inocentes. Escutai o grito do seu sangue (cf. Gn 4, 10), prestai ouvidos à voz de Deus, que vos chama à conversão, e à voz da vossa consciência: fazei silenciar as armas, acabai com a guerra. Basta! Basta de se enriquecer na pele dos mais frágeis, basta de se enriquecer com recursos e dinheiro manchados de sangue!

Queridos irmãos e irmãs, e nós que podemos fazer? Donde começar? Como agir para promover a paz? Quero humildemente propor-vos que se recomece de dois «nãos» e dois «sins».

Antes de mais nada, não à violência, sempre e em todo o caso, sem «se» nem «mas». Não à violência! Amar o próprio povo não significa nutrir ódio contra os outros. Pelo contrário, amar o próprio país significa recusar a envolver-se com quantos incitam ao uso da força. É um trágico engano: o ódio e a violência nunca são aceitáveis, nunca são justificáveis, nunca são toleráveis… e, com maior força de razão, nunca o são para quem é cristão. O ódio só gera mais ódio, e violência outra violência. Então há que dizer um claro e forte «não» a quem os propaga em nome de Deus esta violência, este ódio. Queridos congoleses, não vos deixeis seduzir por pessoas ou grupos que incitam à violência em nome de Deus. Deus é Deus da paz, e não da guerra. Pregar o ódio é uma blasfémia e o ódio sempre corrói o coração do homem. De facto, quem vive de violência, nunca vive bem: pensa salvar a própria vida e, em vez disso, acaba engolido numa voragem de maldade que, levando-o a combater os irmãos e irmãs com quem cresceu e viveu durante anos, o mata por dentro.

Mas, para se dizer verdadeiramente «não» à violência, não basta evitar atos violentos; é preciso extirpar as raízes da violência: penso na ganância, na inveja e, sobretudo, no rancor. Ao mesmo tempo que me curvo respeitosamente diante dos sofrimentos suportados por tantos, quero pedir a todos que se comportem como nos sugeristes vós testemunhas corajosas, ou seja, que tenham a coragem de desarmar o coração. Peço-o a todos em nome de Jesus, que perdoou a quem Lhe trespassou com pregos os pulsos e os pés, prendendo-O a uma cruz: peço-vos para desarmar o coração. Isto não quer dizer deixar de se indignar perante o mal e não o denunciar… é forçoso fazê-lo! Tampouco significa impunidade e remissão das atrocidades, continuando para diante como se nada tivesse acontecido. O que nos é pedido, em nome da paz, em nome do Deus da paz, é desmilitarizar o coração: tirar o veneno, rejeitar o ódio, desativar a ganância, cancelar o ressentimento; dizer «não» a tudo isso parece fazer-nos débeis, mas na realidade torna-nos livres, porque dá paz. Sim, a paz nasce dos corações, dos corações libertos do rancor.

Há depois um segundo «não» que devemos dizer: não à resignação. A paz pede para se combater o desânimo, o desalento e a desconfiança que nos levam a crer que é melhor suspeitar de todos, é melhor viver separados e afastados do que dar as mãos e caminhar juntos. Mais uma vez, em nome de Deus, renovo o convite a quantos vivem na República Democrática do Congo para que não desistam, mas se empenhem por construir um futuro melhor. Um futuro de paz não vai cair do céu, mas poderá chegar se se eliminarem dos corações o fatalismo resignado e o medo de se envolver com os outros. Um futuro diferente virá se for de todos e não de um, se for para todos e não contra alguém. Um futuro novo virá se o outro, seja ele tutsi ou hutu, deixar de ser um adversário ou um inimigo, passando a ser um irmão e uma irmã em cujo coração (assim é preciso acreditar) existe, embora oculto, o mesmo desejo de paz. Também no Leste, a paz é possível! Acreditemos nisto e trabalhemos sem delegar para outro a mudança!

Não se pode construir o futuro, permanecendo fechados nos próprios interesses particulares, retraídos nos próprios grupos, etnias e clãs. Assim o ensina um provérbio suaíli: «jirani ni ndugu – o vizinho é um irmão»; por conseguinte, irmão, irmã, todos os teus vizinhos são teus irmãos, seja ele burúndio, ugandês ou ruandês. Somos todos irmãos, porque filhos do mesmo Pai: assim nos ensina a fé cristã, professada por grande parte da população. Então levante-se o olhar para o Céu e não se fique prisioneiro do medo: o mal que cada um sofreu precisa de ser convertido em bem para todos; o desalento que paralisa dê lugar a um renovado ardor, a uma luta indómita pela paz, a propósitos corajosos de fraternidade, à beleza de gritar juntos nunca mais… nunca mais violência, nunca mais rancor, nunca mais resignação!

E eis-nos, finalmente, aos dois «sins» pela paz. Em primeiro lugar, sim à reconciliação. Amigos, é maravilhoso aquilo que estais prestes a fazer. Quereis assumir o compromisso de vos perdoardes mutuamente e de repudiardes as guerras e os conflitos para solucionar as distâncias e as diferenças. E decidistes fazê-lo, daqui a pouco, rezando juntos, reunidos ao redor da árvore da Cruz, sob a qual, com grande coragem, desejais depor os sinais das violências que vistes e sofrestes: uniformes, catanas, martelos, machados, facas... Também a cruz era um instrumento de sofrimento e de morte, o mais terrível no tempo de Jesus, mas, atravessada pelo seu amor, tornou-se instrumento universal de reconciliação, árvore de vida.

Quero dizer-vos: sede também vós árvores de vida. Fazei como as árvores, que absorvem ar poluído e devolvem oxigénio. Ou, segundo um provérbio, «na vida faz como a palmeira que recebe pedras e devolve tâmaras». Esta é profecia cristã: responder ao mal com o bem, ao ódio com o amor, à divisão com a reconciliação. A fé traz consigo uma nova ideia de justiça, que não se contenta com punir, mas renuncia à vingança, quer reconciliar, impedir novos conflitos, extinguir o ódio, perdoar. E tudo isso é mais forte do que o mal. Sabeis porquê? Porque transforma a realidade a partir de dentro, em vez de a destruir de fora. Só assim se derrota o mal, como fez Jesus na árvore da cruz, assumindo-o e transformando-o com o seu amor. Assim a dor transformou-se em esperança. Amigos, só o perdão abre as portas ao amanhã, porque abre as portas a uma nova justiça que, sem esquecer, desintegra o círculo vicioso da vingança. Reconciliar-se é gerar o amanhã: é crer no futuro em vez de ficar ancorados no passado; é apostar na paz em vez de se resignar com a guerra; é escapar da prisão das próprias razões para se abrir aos outros e saborear, juntos, a liberdade.

Depois o último «sim», decisivo: sim à esperança. Se é possível representar a reconciliação como uma árvore, como uma palmeira que dá fruto, a esperança é a água que a torna mimosa. Esta esperança tem uma fonte, e esta fonte tem um nome, que quero proclamar aqui juntamente convosco: Jesus! Jesus: com Ele, o mal já não tem a última palavra sobre a vida; com Ele, que, dum túmulo – estação final do trajeto humano – fez o início duma nova história, abrem-se sempre novas possibilidades. Com Ele, cada túmulo pode transformar-se num berço, cada calvário num jardim pascal. Com Jesus, nasce e renasce a esperança: para quem sofreu o mal e até para quem o cometeu. Irmãos e irmãs do Leste do país, esta esperança é para vós; tendes direito a ela. Mas é um direito que também deve ser conquistado. Como? Semeando-a cada dia, com paciência. Volto à imagem da palmeira. Diz um provérbio: «Quando comes a tâmara, vês a palmeira, mas quem a plantou, há muito tempo que voltou à terra». Por outras palavras, para se obter os frutos esperados, é preciso trabalhar com o mesmo espírito dos plantadores de palmeiras, pensando nas gerações futuras e não nos resultados imediatos. Semear o bem faz-nos bem: liberta da lógica estreita do ganho pessoal e dá de prenda a cada dia o seu porquê; traz à vida o respiro da gratuidade e torna-nos mais semelhantes a Deus, semeador paciente que irradia esperança sem nunca Se cansar.

Hoje agradeço e abençoo a todos os semeadores de paz que trabalham no país: as pessoas e as instituições que se prodigalizam na ajuda e na luta pelas vítimas da violência, da exploração e das calamidades naturais, as mulheres e os homens que vêm aqui animados pelo desejo de promover a dignidade das pessoas. Alguns perderam a vida enquanto serviam a paz, como o Embaixador Luca Attanasio, o polícia Vittorio Iacovacci e o condutor Mustapha Milambo assassinados há dois anos no Leste do país. Eram semeadores de esperança; o seu sacrifício não será esquecido.

Irmãos, irmãs, filhos e filhas do Itúrio, do Kivu do Norte e do Sul, estou unido convosco, abraço-vos e abençoo a todos. Abençoo cada criança, adulto, idoso, cada pessoa ferida pela violência na República Democrática do Congo, em particular cada mulher e cada mãe. E rezo para que a mulher, toda a mulher seja respeitada, protegida e valorizada: cometer violência contra uma mulher e uma mãe é fazê-lo ao próprio Deus, que assumiu a condição humana de uma mulher, de uma mãe. Jesus, nosso irmão, Deus da reconciliação que plantou a árvore de vida que é a cruz no coração das trevas do pecado e do sofrimento, Jesus, Deus da esperança que acredita em vós, no vosso país e no vosso futuro, abençoe a todos vós e vos console; derrame a sua paz nos vossos corações, nas vossas famílias e em toda a República Democrática do Congo. Obrigado!


Eu Sou Porque Nós Somos

Venerável Madaleine Delbrêl (1904-1964)
missionária das pessoas da rua
O novo dia

In Evangelho Quotidiano, 22 de Janeiro de 2023

Somos os enviados de Deus ao mundo

Começa um novo dia.
Jesus em mim quer vivê-lo. Ele não Se fechou.
Ele caminhou entre os homens.
Comigo, Ele está entre os homens de hoje.
Vai encontrar-Se com cada um dos que entrarão em minha casa,
com cada um daqueles com quem me cruzar na rua,
com outros ricos, além dos do seu tempo, com outros pobres,
com outros sábios e outros ignorantes,
com outros pequenos e outros velhos,
com outros santos e outros pecadores,
com outros válidos e outros enfermos.
Todos serão aqueles que Ele veio procurar.
Cada um é aquele que Ele veio salvar. […]
Tudo será permitido no dia que começa,
tudo será permitido e pedirá que eu diga sim.
O mundo onde Ele me coloca para estar lá com Ele
não pode impedir-me de estar com Deus;
como uma criança que a mãe leva ao colo
continua junto dela
quando a mãe caminha entre a multidão.
Por onde passou, Jesus nunca deixou de ser enviado.
E nós não podemos agir como se não fôssemos,
a cada instante, os enviados de Deus ao mundo.
Ao longo deste dia que agora começa,
Jesus em nós nunca deixa de ser enviado
a toda a humanidade do nosso tempo, de todos os tempos,
da minha cidade e do mundo inteiro.
Através dos próximos irmãos que Ele nos convidará a servir, a amar, a salvar,
partirão ondas da sua caridade até aos confins do mundo,
chegando até ao fim dos tempos.


Eu Sou Porque Nós Somos

Uma Jornada onde as gerações se cruzem

Maria Rodrigues, Diocese de Santarém | Jan 17, 2023 , Ecclesia

Na preparação da Jornada Mundial da Juventude, deparamo-nos, certamente não com todas, mas com quase todos os problemas que existem dentro da Igreja Católica.

A semana passada, diziam-me: “o problema é o nome do evento, se tirássemos a palavra ‘juventude’, ficava tudo mais fácil”. Alegam os jovens que os velhos não os querem na Igreja e alegam os velhos que os jovens não querem estar na Igreja. Dizem-me que, por isso, é difícil mudar, experimentar novas formas de fazer as coisas. Respondo-lhes que será preciso resistir, mas também fazer e não só dizer que se quer fazer. Não se convencem por palavras os que sempre lá estiveram, sem que outros aparecessem.

A mim, parece-me haver falta de comunicação e de relação. Os desejos de uns são incompreendidos por outros, a história dos outros é incompreendida pelos primeiros. Queremos chegar, fazer e mudar. Mudar sempre para melhor, porque, para nós, jovens, tudo podia sempre ser melhor. Não compreendemos a resistência de quem sempre lá esteve, habituado a fazer de determinada forma, a dar o seu tempo para fazer o que outros nunca quiseram fazer.

Acredito na ideia de que a mudança pertencerá sempre à juventude. Dificilmente seria de outra maneira, se a própria essência de ser jovem é o entusiasmo da mudança, é a ânsia de nunca estar parado. Mas acredito muito pouco numa mudança que não tenha em conta o que já existe. De que nos vale ser protagonistas da mudança, se não tivermos em conta todos os outros que já lá estavam antes de chegarmos? De que nos adianta ganhar o mundo inteiro, se não ganharmos o céu? Por isso tudo, parece-me que tirar a ‘juventude’ ao nome da Jornada Mundial da Juventude, dificilmente resolveria algum problema. Exercício mais difícil, e também mais necessário, é o de estar na Igreja, valendo-se dos dons de cada um.

A Jornada Mundial da Juventude só se fará com a graça de Deus e o esforço e a vontade de todos. Desenganem-se quem viva na ilusão de que conseguirá lá chegar sozinho, só com o núcleo que reuniu e escolheu. A Jornada Mundial da Juventude já começou há muito tempo nas nossas paróquias – há mais de 3 anos, para os que estão desde o início. Atrevo-me até a dizer que a verdadeira Jornada será a que fizermos juntos, nas nossas paróquias, mais do que o encontro com jovens de todo o mundo e com o Papa. O que ficará será certamente os laços que construímos, as dinâmicas pastorais que implementámos e cuidámos, as pessoas com quem sonhámos e trabalhámos juntos. Seria redutor resumir todo este caminho à semana de 1 a 6 de agosto de 2023.

Por isso mesmo, o apelo que constantemente deixamos aos jovens é o de se valerem de todos os que estão nas suas comunidades. Deixemo-nos ser instrumentos de mudança e de trabalho de Deus, mas não impeçamos que os outros também o sejam. Uma comunidade unida, que se valha da experiência dos mais velhos e da vida dos mais novos, chegará sempre mais longe, chegará sempre a uma construção edificada sobre rocha.

Maria Rodrigues
Coordenadora do Departamento de Comunicação da Pastoral Juvenil da Diocese de Santarém


Eu Sou Porque Nós Somos

Bento XVI: filho da Igreja, não do tempo

ESPECIAL ANÁLISE DO PONTIFICADO DE BENTO XVI (1)

P. Andreas Lind, sj | 5 Janeiro 2023 | in Ponto SJ

Quando, em 2005, se tornou Bento XVI ao assumir a cátedra de Pedro, quem não pensou que ele viria a terminar a sua vida terrena no exercício desse múnus? Mas, na verdade, depois da sua renúncia em 2013, ainda recebeu a graça de habitar este mundo na qualidade de Papa emérito durante quase uma década. Desde o passado dia 31 de dezembro, muito se tem dito sobre Joseph Ratzinger. Certo, foi nesse fatídico dia que o vimos partir. E, por isso, é normal que se levante esse tom elogioso, próprio dos discursos laudatórios, que geralmente pulveriza os órgãos de comunicação social e as suas redes, nem que seja por breves dias que rapidamente se esquecem.

Hoje, quando o levamos a sepultar, resta-nos pouco mais que do rezar por ele, e com ele, ao Deus com quem agora se encontra, finalmente, face a face. Na verdade, era esse o seu desejo mais profundo, tal como teve ocasião de manifestar numa carta datada do início de 2022. Quem a ler, deparar-se-á com um homem a preparar a própria morte, qual evento decisivo que, por fé, acredita ser o derradeiro encontro com o “justo juiz” da sua vida. Sim, Joseph Ratzinger foi um homem ancorado em Deus, a sua rocha, o seu Senhor, o seu único Juiz. E, por isso, pouco lhe importavam os ataques pessoais, as calúnias, as difamações, como provavelmente pouco lhe digam agora as homenagens que hoje lhe fazemos – e que ele, sem dúvida, merece.

Quando lhe pediram para apresentar razões da sua fé católica, G. K. Chesterton referiu que não via outra forma de se libertar da penível escravidão de se ser apenas um filho do tempo. Quanto a Bento XVI, ele foi esse filho da Igreja que nunca se deixou escravizar pelas modas do tempo que passa. Talvez por isso nunca conseguiu, nem quis, ser uma star da cultura que monopoliza o universo das redes sociais. E, no entanto, mesmo mantendo-se fiel a uma doutrina que, para muitos, já cheirava a bofo, conseguiu conquistar paradoxalmente a estima de muitas pessoas, inclusive de quem o via como adversário, vindo a tornar-se num best-seller.

O homem que hoje recordamos como Bento XVI não precisava de ter chegado a Papa para ficar na História. É evidente que a herança dos seus 86 livros e 471 artigos marcaria sempre o futuro da Igreja independentemente da, assim chamada, “carreira eclesiástica”. A verdade, contudo, é que ele passou os últimos 45 anos da sua existência, aqui entre nós, assumindo cargos importantes no governo e no magistério da Igreja. No fundo, a sua vida acabou por ficar profundamente marcada pela “carreira eclesiástica” que ele seguiu por obediência e missão, em detrimento de um percurso académico que se adivinhava promissor. É-nos, por isso, impossível compreender a figura de Ratzinger sem nos referirmos a esse longo período romano, não fosse Bento XVI o primeiro Papa a ser eleito no século XXI e o primeiro Papa emérito que a Igreja jamais conheceu.

Ao fazer hoje a memória da sua pessoa, agradecendo a sua vida e o legado que nos deixa, gostaria de destacar cinco aspetos dos gestos e palavras que ele proferiu na qualidade de Sumo Pontífice.

(1) Liberdade em relação às ideologias vigentes – Quem se liberta do tempo liberta-se de posições marcadamente ideológicas. É evidente que, pela sua curiosidade intelectual, procurou acompanhar os desenvolvimentos científicos, filosóficos e teológicos do seu tempo. Mas fê-lo sempre sem nunca absolutizar nenhuma corrente ou posição, procurando integrar a fé genuína no contexto histórico que lhe era dado viver. No Testamento Espiritual, que recentemente nos deram a conhecer, afirma ter acompanhado até ao fim da sua vida, durante pelo menos 60 anos, “o caminho da Teologia, em especial das Ciências Bíblicas”, acrescentando ter visto “ruir teses que pareciam inabaláveis, demonstrando-se serem simples hipóteses: a geração liberal (Harnack, Jülicher etc.), a geração existencialista (Bultmann etc.), a geração marxista”. E acrescenta: “Vi e vejo como do emaranhado das hipóteses tenha emergido e emerja novamente a razoabilidade da fé. Jesus Cristo é realmente o caminho, a verdade e a vida”.

Compreendemos, assim, por que razão há quem o tome por liberal e progressista, enquanto jovem teólogo, e conservador ou reacionário desde que assumiu o cargo de Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (na altura Congregação para a Doutrina da Fé). No entanto, Ratzinger nunca mudou de posição em função das promoções ou funções eclesiásticas que lhe foram atribuindo, mas sempre a partir do desejo de se manter fiel ao Evangelho. Se, enquanto jovem teólogo, procurou caminhos distintos do neotomismo daquela era, após o Maio de 68 apercebeu-se dos perigos de uma visão maniqueísta que nos situava em rutura em relação ao passado. A transformação que o próprio Ratzinger assumiu não se fez de ruturas radicais, dado que ele foi amadurecendo as suas posições teológicas no constante regresso às fontes mais genuínas do cristianismo.

Manteve-se sempre próximo de Agostinho que, juntamente com Boaventura, escolheu estudar no sentido de se afastar de uma neoescolástica que dominava a teologia anterior ao Concílio. Como referiu Massimo Borghesi a este respeito, não se tratava tanto de querer fugir a uma doutrina que se considerava estar ultrapassada, mas sobretudo de abandonar uma forma a-histórica de a pensar, que parecia se ter cristalizado em fórmulas próprias à mundovivência do século XVI. E é também por isso que, mais do que um filho do seu tempo, ele sempre se manteve como um fiel filho da Igreja.

Foi essa procura pela autenticidade do Evangelho que lhe deu o equilíbrio e a ponderação das suas posições. A liberdade que Ratzinger demonstrava ter em relação às ideologias que se impunham em seu redor revela-se, também, na forma como ele interpretou o Vaticano II. A partir da “hermenêutica da reforma” e da “renovação na continuidade”, opôs-se explicitamente a uma “hermenêutica da descontinuidade e da rutura” que lhe parecia ser capaz de unificar dois pólos extremos que ainda ameaçam a Igreja hodierna. Com efeito, os liberais, de um lado, e os tradicionalistas, do outro, encontram-se numa leitura do Concílio em radical ruptura face à Tradição do passado. Enquanto uns olham para a era pré-conciliar como uma sucessão de trevas que devemos esquecer e ultrapassar, os outros idealizam uma Igreja que nunca existiu, cristalizando as práticas e formas de vida de um tempo que já passou. É neste contexto que Ratzinger não se limita a defender o Vaticano II. Mais do que isso: ele promove uma certa receção do Concílio, sem revoluções nem integrismos.

Os termos “reforma” e “renovação”, que Bento XVI adota, expressam essa Tradição viva, capaz de evoluir ao longo do tempo, enquanto percorre a História no constante regresso às fontes do cristianismo. A imunidade face ao pendor ideológico dos seus discursos manifesta-se nesse gesto de regresso às fontes da Tradição cristã, sem as quais facilmente ficamos reduzidos ao que o espírito do tempo quiser fazer de nós.

É por isso que o Concílio não se reduz ao aggiornamento, isto é, à adaptação do discurso ao mundo moderno. É o facto do Vaticano II ser também ressourcement que leva Ratzinger a abandonar a Concilium, para fundar com Hans Urs von Balthazar, a revista Communio no início dos anos setenta. A palavra “comunhão” traduz, na sua perspetiva, uma visão de Igreja que vive para além das lógicas partidárias. E esse é, para ele, um aspeto essencial do cristianismo.

(2) Harmonia entre fé e razão – Segundo Joseph Ratzinger, o cristianismo situa-se histórica e filosoficamente numa certa continuidade com a tradição grega de defesa do logos em detrimento do mythos. Quando os primeiros cristãos, inseridos na mundovivência helénica, se viram confrontados com a questão “qual é o vosso Deus?”, se Jupiter ou Hermes, eles responderam: “a nenhum dos deuses que vocês adoram, mas única e exclusivamente àquele Deus (…), àquele ser supremo do qual falam os filósofos” (Introdução ao Cristianismo, 2005, p. 99). Para Ratzinger, o cristianismo resulta, tal como a Europa, desse encontro harmonioso entre Jerusalém e Atenas.

Trata-se da “opção” da Igreja primitiva pelo logos; uma opção que não se traduz apenas no facto de a Igreja dever acompanhar os futuros progressos científicos. Mais do que isso: a própria investigação científica é legitimada pela fé de quem crê num Deus criador de um universo inteligível. Com efeito, na medida em que todos os seres foram criados a partir de um único logos, as árvores deixam de crescer em função do humor do seu espírito, assim como as chuvas deixam de cair por birra de uma vontade arbitrária. Por ter nele uma ordem inscrita, o mundo torna-se compreensível e, dentro de certos limites, previsível. Neste contexto, a obra de Bento XVI pode surpreender pelo facto de não se opor, tão radicalmente quanto o que seria esperado, ao Iluminismo.

Esta convergência entre filosofia e Revelação permite que a razão natural alargue os seus horizontes abrangendo âmbitos que vão para além das ciências exatas e empíricas. Nesse sentido, a harmonia entre fé e razão também se enquadra no combate que Ratzinger travou contra certas ideologias do seu tempo: o cientismo moderno, por um lado, para o qual só importa o que as ciências puras podem vir a conhecer, e os fundamentalismos religiosos, por outro, sempre prontos a impor as suas doutrinas através do exercício da violência. Na verdade, se Deus não pede nada que seja contrário ou incompatível com a razão natural, então a violência em nome de Deus é absurda ou blasfematória, tal como Bento XVI proferiu, muito antes de Francisco, na aula magna de Regensburg.

Compreendemos, assim, como a harmonia entre fé e razão se liga profundamente à “cultura de diálogo”, tão apregoada no atual pontificado de Francisco. De facto, na esteira do seu predecessor João Paulo II, Bento XVI aprofundou o ecumenismo entre as diversas igrejas e comunidades cristãs, da mesma forma que promoveu o diálogo inter-religioso. A opção pelo logos incute necessariamente a confiança no diálogo entre pessoas de diferentes culturas e credos. Se o exercício da razão converge para a Verdade, torna-se possível comunicar ideias e chegar a acordos através do diálogo entre pessoas de culturas distintas. Foi o que Bento XVI expressou claramente no Bundestag em 2011. O encontro de Assis e a celebração ecuménica no seu país natal, em 2011, bem como a visita à comunidade hebraica de Roma, em 2010, ou a viagem apostólica à Turquia, em 2006, são inteligíveis à luz desta doutrina da participação de todos no logos divino.

Como Wojtyła, Ratzinger pertence à geração que assistiu ao terror do nazismo e do comunismo soviético em solo europeu. A visão do cristianismo a partir dessa opção primordial da Igreja pelo logos também se alimenta do desejo por uma humanidade pacificada, na qual os diversos indivíduos chegam à Verdade pelo diálogo, e não pela violência. É nesse sentido que devemos interpretar os seus discursos contra um mundo onde se vive como se Deus não existisse. Seria redutor ver nesses textos o ressentimento de um velho do Restelo que perdeu a capacidade de habitar a nossa época. De facto, quando critica a “ditadura do relativismo”, Bento XVI deseja que a verdade não se imponha pela força. Ao chamar a atenção para o perigo de perdermos as referências, ele procura evitar que se estabeleça, entre nós, a lei do mais forte. No fundo, essa é a lei do relativismo, segundo o qual o sujeito humano, plenamente criador e senhor de si mesmo, não se deve sujeitar a nada nem a ninguém.

O problema de vivermos para além do bem e do mal reside no facto de, assim, nos tornarmos pessoas que dominam, não sem violência, a natureza, destruindo-a, quais super homens suficientemente fortes para imporem a sua vontade ao mundo e aos outros. Num mundo desses, não há lugar para a comunhão onde a vida desabrocha na relação harmoniosa com os outros e com o universo.

É por isso que os discursos contra a “ditadura do relativismo” e do mundo sem Deus não podem ser lidos sem se ter em conta a crítica que Bento XVI sempre dirigiu contra a lógica capitalista dos mercados desregulados. É também aí que ele antecipa muitos aspetos do atual magistério de Francisco, nomeadamente o que se refere ao cuidado pelos problemas ecológicos e ambientais.

(Continua na secção Maré Alta)


Eu Sou Porque Nós Somos

OPINIÃO NATAL

Antes do luxo e do lixo, terá havido Natal?

Teresa Martins | 29 Dezembro 2022 | in Ponto SJ

Atendendo ao canal através do qual partilho esta reflexão, sei bem que me aventuro por um tema delicado… Ainda assim, penso que vale a pena partilhar esta reflexão.

Já passou o Natal de 2022 e o meu sentimento neste momento é de alívio, de expectativa de regresso a alguma ‘normalidade’, a alguma calma que penso que, ao contrário do que seria expectável nesta quadra, naquilo que seria a sua essência, sinto que se vive cada vez menos.

Comecemos pelo fim… numa caminhada curta pelas ruas da cidade do Porto no dia 26 de dezembro de 2022, não me foi possível deixar de reparar nos contentores cheios de lixo, manifestos espojos das celebrações natalícias. Embora não se deva generalizar como reflexo do espírito natalício que tem dominado a forma como a sociedade tem vivido esta quadra, também não creio que se deva deixar de analisar a relação que aqui existirá inevitavelmente: contentores a abarrotar, com todo o tipo de lixo à volta, com muita comida espalhada pelo chão (porque entre outras situações, cães, gatos e aves que andam pela cidade abrem os sacos); ecopontos azuis completamente cheios e já com muito papel e cartão, provavelmente resultantes dos presentes da época, fora do contentor (uma vez que estamos num período de chuva, aquele papel em poucas horas se transformará numa papa difícil de recolher e de reciclar). O lixo é imenso, a falta de cuidado com os espaços comuns e com a via pública, também.

Antes de tudo isto tivemos as imensas luzes (como se não estivéssemos a viver um período desafiante do ponto de vista energético), o barulho incessante e permanente das músicas “natalícias” em todo o lado, os pais natais em todas as esquinas, os sons estridentes na rádio, na televisão e em todo o lugar, os milhares de campanhas de solidariedade que brotam como cogumelos. Às tantas nem sei se estas campanhas de solidariedade não perdem sentido e significado, tal é o exercício de se chamar ‘solidariedade’ àquilo que são, maioritariamente, campanhas de angariação de fundos. Tem-se vindo a deixar de falar em angariação de fundos, porque parece que não se pode falar de dinheiro quando de facto o que falta muitas vezes é mesmo dinheiro – bem investido, organizado em programas estruturais e estruturados de combate à pobreza e de apoio a pessoas e famílias em situação de maior vulnerabilidade. Esta abordagem seria decerto preferível a medidas remediativas e pontuais nesta quadra, que até podem ajudar algumas famílias a ter mais algumas coisas nesta altura – e não estou, de modo nenhum, a reduzir a importância, pelo menos simbólica, disto. No entanto, parecem-me um objetivo pouco interessante se efetivamente se pretende uma solidariedade mais próxima da essencialidade do Natal.

Em mim, todo este frenesim, toda esta intensidade desmesurada de sentimentos que se compram já embrulhados, todas estas conversas que vou ouvindo das prendas por comprar (nos transportes públicos, nas lojas, na rua, nos contextos de trabalho, nos telejornais, em quase todo o lado), geram tal anestesia que em alguns momentos acho que paro de pensar, tal é o meu desejo de deixar de sentir aquela pressão auditiva, visual e emocional permanente.

Ouvi a mensagem do Papa Francisco no dia de Natal e, como de costume, muito me revi nas suas palavras. O modo como na atualidade se vive intensa e ruidosamente esta quadra conduzem-me a um imaginário absolutamente contrário ao desejado “Natal de paz”, de serenidade, de celebração do nascimento de uma esperança renovada, tal é o foco na ornamentação da festa e no seu consumo subjacente, como sublinhou o Papa Francisco. O permanente foco nas prendas, na festa, na felicidade que até parece que se pode vender, comprar e oferecer, gera um perturbador cansaço, um desejo urgente que chegue a janeiro.

Não sei se é possível, num tempo como o que agora vivemos, as pessoas ficarem completamente imunes a este apelo ao consumo, a uma imagem estereotipada do que significa ‘estar em família’ e do que se institucionalizou – muito à conta do mercado – como sendo a Ceia e o Almoço de Natal e do que deve conter. Esse imaginário gera pressão e stress em boa parte das famílias, destacando-se as mulheres, que continuam a assumir desproporcionalmente as tarefas logísticas que garantem que a supostamente ‘tradicional’ festividade do Natal continue a existir, aumentando ainda mais a sua sobrecarga de trabalho nestes dias. Contudo, além da ansiedade e frenesim que algumas pessoas poderão normalizar e entender que não são um problema, toda esta pressão para se ser feliz e para corresponder a um determinado modo de ser, agir e consumir nesta quadra, acentua e evidencia sentimentos de solidão e de tristeza para muitas pessoas. Estas, por motivos diversos, poderão estar bem longe deste imaginário e precisariam nesta altura de tudo, menos desta pressão desmedida para a vivência daquela que é, a meu ver, a mais contraditória, incoerente e emocionalmente insustentável época do ano. Dito isto, partilho com quem me lê a minha esperança e desejo de uma vivência de paz, solidariedade e amor durante todo o ano de 2023, usufruindo e exercitando a possibilidade de sermos mais pessoas outra vez e menos consumidores natalícios.


Eu Sou Porque Nós Somos

SANTA MISSA NA NOITE DE NATAL

SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica Vaticana
Sábado, 24 de dezembro de 2022

Esta noite, que significado tem ainda para as nossas vidas? Transcorridos dois milénios desde o nascimento de Jesus, após tantos Natais comemorados no meio de ornamentações e prendas, depois de tanto consumismo que envolveu o mistério que celebramos, corremos um risco: o de sabermos muitas coisas sobre o Natal, mas esquecermos o seu significado. Como voltar a encontrar o significado do Natal? E sobretudo aonde ir procurá-lo? O Evangelho do nascimento de Jesus parece escrito precisamente para isto: tomar-nos pela mão e levar-nos lá onde Deus quer. Sigamos o Evangelho!

De facto, começa com uma situação parecida com a nossa: todos estavam preocupados e atarefados com um evento importante em desenvolvimento – o grande recenseamento – que exigia muitos preparativos. Neste sentido, o clima de então era semelhante ao que nos envolve, hoje, no Natal. Mas a narração do Evangelho distancia-se daquele cenário mundano. Deixa de lado rapidamente aquela imagem para enquadrar e insistir noutra realidade; detém-se num pequeno objeto, aparentemente insignificante, que menciona três vezes e para o qual convergem os protagonistas da narração: primeiro Maria, que recostou Jesus «numa manjedoura» (Lc 2, 7); depois os anjos, que anunciam aos pastores «um menino envolto em panos e deitado numa manjedoura» (2, 12); em seguida os pastores, que encontram «o menino deitado na manjedoura» (2, 16). A manjedoura! Para voltar a encontrar o sentido do Natal, é preciso fixar nela o olhar. E por que é tão importante a manjedoura? Porque é o sinal, não casual, com que Cristo entra em cena no mundo. É o manifesto com que Se apresenta, o modo como Deus nasce na história para fazer renascer a história. Que nos quer dizer então a manjedoura? Quer-nos dizer pelo menos três coisas: proximidade, pobreza e concretismo.

1. Proximidade. A manjedoura serve para deixar o alimento mais próximo da boca e assim consumi-lo mais depressa. Deste modo pode simbolizar um aspeto da humanidade: a voracidade em consumir. Pois, enquanto os animais no estábulo consomem alimento, os homens no mundo, esfomeados de poder e dinheiro, consomem mesmo os seus vizinhos, os seus irmãos. Tantas guerras! Em tantos lugares, ainda hoje, são espezinhadas a dignidade e a liberdade! E as principais vítimas da voracidade humana são sempre os frágeis, os vulneráveis. Também neste Natal, uma humanidade insaciável de dinheiro, insaciável de poder e insaciável de prazer não dá lugar – como sucedeu com Jesus (cf. 2, 7) – aos mais pequenos, a tantos nascituros, pobres, abandonados. Penso sobretudo nas crianças devoradas por guerras, pobreza e injustiça. Mas é precisamente lá que vem Jesus, menino na manjedoura do descarte e da rejeição. N’Ele, menino de Belém, está cada criança. E está o convite a olhar a vida, a política e a história com os olhos das crianças.

Na manjedoura incómoda da rejeição, acomoda-Se Deus: vem para ali, porque nela está o problema da humanidade, a indiferença gerada pela pressa devoradora de possuir e consumir. Cristo nasce lá e, naquela manjedoura, descobrimo-Lo próximo. Vem aonde se devora o alimento para Se fazer nosso alimento. Deus não é um pai que devora os seus filhos, mas o Pai que, em Jesus, nos faz seus filhos e nutre de ternura. Vem tocar-nos o coração, dizendo que a única força que muda o curso da história é o amor. Não permanece distante nem permanece poderoso, mas faz-Se próximo e humilde; Ele, que estava sentado no Céu, deixa-Se recostar numa manjedoura.

Irmão, irmã, nesta noite Deus aproxima-Se de ti, porque Se importa contigo. Da manjedoura, como alimento para a tua vida, diz-te: «Se te sentes consumido pelos acontecimentos, se o teu sentimento de culpa e a tua inadequação te devoram, se tens fome de justiça, Eu – o teu Deus – estou contigo. Sei aquilo que tu vives, experimentei-o naquela manjedoura. Conheço as tuas misérias e a tua história. Nasci para te dizer que estou, e sempre estarei, próximo de ti». A manjedoura do Natal, primeira mensagem dum Deus menino, diz-nos que Ele está connosco, ama-nos, procura-nos. Coragem! Não te deixes vencer pelo medo, a resignação, o desânimo. Deus nasce numa manjedoura para te fazer renascer precisamente lá onde pensavas ter tocado o fundo. Não há mal, não há pecado de que Jesus não queira e não possa salvar-te. Natal significa dizer que Deus está próximo: renasça a confiança!

2. Além de proximidade, a manjedoura de Belém fala-nos também de pobreza. Na realidade, à volta duma manjedoura, não há grande coisa: tojo, qualquer animal e pouco mais. As pessoas hospedavam-se no quentinho dos albergues, não no estábulo frio duma pensão; mas aqui nasceu Jesus, e a manjedoura lembra-nos que nada mais havia em redor senão quem Lhe queria bem: Maria, José e alguns pastores… todos, pobres, irmanados pelo afeto e a maravilha, não por riquezas e grandes possibilidades. E assim a pobre manjedoura faz emergir as verdadeiras riquezas da vida: não o dinheiro nem o poder, mas as relações e as pessoas.

E a primeira pessoa, a primeira riqueza é precisamente Jesus. Mas nós… queremos mesmo estar ao seu lado? Aproximamo-nos d’Ele, amamos a sua pobreza? Ou preferimos cingir-nos comodamente aos nossos interesses? Sobretudo visitamo-Lo onde Se encontra, isto é, nas pobres manjedouras do nosso mundo? É lá que Ele está presente. E nós somos chamados a ser uma Igreja que adora Jesus pobre, e serve Jesus nos pobres. Como disse um santo bispo: «A Igreja apoia e abençoa os esforços tendentes a transformar as estruturas de injustiça colocando apenas uma condição: que as transformações sociais, económicas e políticas redundem em autêntico benefício para os pobres» (O. A. Romero, Mensagem Pastoral para o Novo Ano, 01/I/1980). Certamente não é fácil deixar o tépido calor do mundanismo para abraçar a nua beleza da gruta de Belém, mas lembremo-nos de que, sem os pobres, verdadeiramente não é Natal. Sem eles, festeja-se o Natal, mas não o de Jesus... Irmãos, irmãs, no Natal Deus é pobre: renasça a caridade!

3. Chegamos assim ao último ponto: a manjedoura fala-nos de concretismo. De facto, um bebé numa manjedoura constitui uma cena chocante, até mesmo uma cena dura. Lembra-nos que Deus Se fez verdadeiramente carne. Por isso, a seu respeito, já não bastam teorias, belos pensamentos e devotos sentimentos. Jesus, que nasce pobre, viverá pobre e morrerá pobre, não fez muitos discursos sobre a pobreza, mas viveu-a, em toda a sua profundidade, por nós. Da manjedoura à cruz, o seu amor por nós foi palpável, concreto: do nascimento à morte, o filho do carpinteiro abraçou a aspereza da madeira, a aspereza da nossa existência. Não nos amou com palavras, não nos amou por divertimento!

Por conseguinte não Se contenta com aparências. Não quer apenas bons propósitos, Ele que Se fez carne. Ele que nasceu na manjedoura, procura uma fé concreta, feita de adoração e caridade, não de palavreado e exterioridade. Ele, que Se deixa colocar na manjedoura nu e, nu, O colocarão na cruz, pede-nos verdade, descendo à realidade nua e crua das coisas, abandonando ao pé da manjedoura desculpas, justificações e hipocrisias. Ele, que foi ternamente envolvido em panos por Maria, quer que nos revistamos de amor. Deus não quer aparência, mas concretismo. Não deixemos passar este Natal, irmãos e irmãs, sem fazer algo de bom. Uma vez que é a festa d’Ele, o seu aniversário, ofereçamos-Lhe prendas de que Ele gosta! No Natal, Deus é concreto: em seu nome, façamos renascer um pouco de esperança em quem a perdeu!

Jesus, contemplamo-Vos recostado na manjedoura. Vemo-Vos tão próximo, perto de nós para sempre… Obrigado, Senhor! Vemo-Vos pobre, ensinando-nos que a verdadeira riqueza não está nas coisas, mas nas pessoas, sobretudo nos pobres: desculpai, Senhor, se não Vos reconhecemos e servimos neles. Vemo-Vos concreto, porque concreto é o vosso amor por nós: Jesus, ajudai-nos a dar carne e vida à nossa fé. Ámen.


Eu Sou Porque Nós Somos

Cheio de pressa não vais a lado nenhum!

Out 29, 2022 | José Luís Nunes Martins | in Agência Ecclesia

O mundo quer-nos sempre a mexer. A fazer coisas. Acordamos cedo e a sentir que já estamos atrasados para quase tudo.

Não se deve confundir movimento com avanço. Há quem ande sempre à procura de algo, mas quer apenas impressionar os outros, não pretende produzir ou encontrar nada de concreto.

Enquanto tratamos das urgências, gastamos o nosso precioso e finito tempo, não sobrando nada para cuidarmos do que é importante. Muito trabalho não é o mesmo que bom trabalho.

Se o que queremos na vida é a paz que vem da felicidade, então o que importa não é a quantidade nem a velocidade, mas apenas a qualidade do que fazemos.

Não temos tempo para nada. Nem para pensar e repensar os nossos erros, nem para gozar o bem de que fomos capazes. Vivemos os nossos dias e noites como se estivéssemos a guiar a alta velocidade… sem tempo nem atenção, senão para evitar tragédias futuras. No entanto, a verdade é que nos sentimos a acelerar numa pista fechada, ou seja, por mais rápido que decidamos fazer esta corrida, jamais sairemos do mesmo circuito. Passando vezes sem conta pelos mesmos lugares e tempos… quando até a pé, e sem pressa, chegaríamos mais longe e conheceríamos a cada dia um lugar diferente.

As pessoas tendem a demorar todo o tempo que têm disponível para executar uma tarefa. Se têm uma hora, apressam-se e cumprem. Se têm três dias, são capazes de criar estranhos mecanismos que ocupam todo o tempo disponível para fazer o mesmo, ou talvez pior, do que se tivessem apenas uma hora. Como se estivéssemos mais do que viciados em trabalho, cheios de medo de ter paz.

Alguns de nós temos listas de tarefas a cumprir. Seria bom que nelas constassem também a nossa missão, os nossos objetivos e, porque não, o que devemos evitar fazer, para não nos perdemos.

O melhor mesmo seria ter tempo para descansar, pensar, meditar, rezar, passear, saborear, rir, brincar, pintar (ainda que sem jeito nenhum!), ouvir música, admirar aqueles que amamos, enfim, viver.

Se gastas a vida em coisas que não são viver… há algo de errado nas tuas prioridades. Andas perdido, por mais rápido que andes!

Não te distraias, não contes com futuros em que tudo te será propício. Ou tratas tu disso ou então… esses dias nunca chegarão. Entretanto, um instante basta para que esta vida passe… e acabe.


Eu Sou Porque Nós Somos

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
A SUA SANTIDADE BARTOLOMEU I
POR OCASIÃO DA FESTA DE SANTO ANDRÉ

Bartolomeu
Arcebispo de Constantinopla
Patriarca ecuménico

Por ocasião da comemoração litúrgica deste ano do Apóstolo André, o primeiro chamado, irmão de Pedro, tenho o prazer de ser representado mais uma vez no Fanar por uma delegação da Igreja de Roma nas celebrações do santo padroeiro da Igreja de Constantinopla e do Patriarcado Ecuménico. Pedi à delegação que transmitisse a Vossa Santidade a certeza do meu afeto fraterno e a minha sincera oração por Vossa Santidade e pela Igreja confiada aos seus cuidados. Dirijo igualmente cordiais saudações e bons votos aos membros do Santo Sínodo, ao clero e aos fiéis leigos que participam na Divina Liturgia na Igreja patriarcal de São Jorge.

O encontro da Igreja de Roma com a Igreja de Constantinopla por ocasião das suas respetivas festas patronais constitui uma expressão da profundidade dos laços que nos unem e um sinal visível da nossa acalentada esperança de uma comunhão cada vez mais profunda. A plena restauração da comunhão entre todos os crentes em Jesus Cristo é um compromisso irrevogável para cada cristão, pois a “unidade de todos” (Liturgia de São João Crisóstomo) é não apenas a vontade de Deus, mas uma prioridade urgente no mundo de hoje. Com efeito, o mundo de hoje tem grande necessidade de reconciliação, fraternidade e unidade. Então, a Igreja deve brilhar como «sinal e instrumento de união íntima com Deus e da unidade de todo o género humano» (Lumen gentium , 1).

Justamente, presta-se muita atenção às razões históricas e teológicas na origem das nossas divisões. Este estudo compartilhado deve prosseguir e desenvolver-se num espírito que não seja nem polémico nem apologético, mas caraterizado pelo diálogo autêntico e pela abertura recíproca. Devemos, outrossim, reconhecer que as divisões são o resultado de ações e atitudes deploráveis, que impedem a ação do Espírito Santo, que guia os fiéis para a unidade na legítima diversidade. Por isso, só o crescimento na santidade de vida pode levar à unidade genuína e duradoura. Portanto, somos chamados a trabalhar pelo restabelecimento da unidade entre os cristãos, não meramente através da assinatura de acordos, mas mediante a fidelidade à vontade do Pai e o discernimento das solicitações do Espírito. Podemos dar graças a Deus porque as nossas Igrejas não se resignam às experiências de divisão do passado e do presente mas, pelo contrário, através da oração e da caridade fraterna, procuram alcançar a plena comunhão que um dia nos há de permitir, segundo os tempos de Deus, reunir-nos à mesma mesa eucarística.

Na medida em que caminhamos rumo a esta meta, já existem muitos âmbitos em que a Igreja católica e o Patriarcado ecuménico trabalham juntos pelo bem comum da família humana, salvaguardando a criação, defendendo a dignidade de cada pessoa, combatendo as formas modernas de escravidão e promovendo a paz. Um dos âmbitos mais fecundos de tal cooperação é o diálogo inter-religioso. Aqui recordo com gratidão o nosso recente encontro no Reino do Bahrein, por ocasião do Fórum para o diálogo: Oriente e Ocidente pela coexistência humana. O diálogo e o encontro são a única senda viável para a superação dos conflitos e de todas as formas de violência. A este propósito, confio à misericórdia de Deus Todo-Poderoso quantos perderam a vida ou foram feridos pelo recente ataque na vossa cidade e rezo para que Ele converta o coração daqueles que promovem ou fomentam gestos tão perversos.

Invocando sobre Vossa Santidade os dons da serenidade e da alegria de Deus Todo-Poderoso, renovo a minha expressão de bons votos pela festa de Santo André, e troco com Vossa Santidade um abraço fraterno de paz no Senhor.

FRANCISCO


Eu Sou Porque Nós Somos

PAPA FRANCISCO

AUDIÊNCIA GERAL

Praça São Pedro
Quarta-feira, 9 de novembro de 2022

A Viagem Apostólica ao Bahrein

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Antes de falar sobre o que preparei, gostaria de chamar a atenção sobre estes dois jovens que vieram aqui. Eles não pediram licença, não disseram: “Ah, tenho medo”: vieram diretamente. Nós devemos ser assim com Deus: diretamente. Eles deram-nos o exemplo de como nos devemos comportar com Deus, com o Senhor: ir em frente! Ele espera-nos sempre. Fez-me bem ver a confiança destes dois meninos: foi um exemplo para todos nós. Assim devemos aproximar-nos sempre do Senhor: com liberdade. Obrigado.

Há três dias regressei da viagem ao Reino do Bahrein, que não conhecia, deveras: não sabia bem como fosse aquele reino. Desejo agradecer a todos aqueles que acompanharam esta visita com o apoio da oração e renovar a minha gratidão a Sua Majestade o Rei, às demais Autoridades, à Igreja local e à população pela calorosa hospitalidade. E gostaria também de agradecer aos organizadores das viagens: para realizar esta viagem houve um movimento de pessoas, a Secretaria de Estado trabalha muito para preparar os discursos, para preparar a logística, tudo, são tantos que se movem… depois os tradutores… e o Corpo da Gendarmaria, o Corpo da Guarda suíça, que são excecionais. É um trabalho enorme! A todos, a todos gostaria de vos agradecer publicamente por tudo o que fazeis a fim de que uma viagem do Papa corra bem. Obrigado.

É natural interrogar-se: por que quis o Papa visitar esse pequeno país de maioria islâmica? Há muitos países cristãos: por que não vais primeiro a um ou a outro? Gostaria de responder com três palavras: diálogo, encontro, caminho.

Diálogo: a ocasião da Viagem, há muito desejada, foi proporcionada pelo convite do Rei para um Fórum sobre o diálogo entre Oriente e Ocidente. Diálogo que serve para descobrir a riqueza de quantos pertencem a outros povos, outras tradições, outras crenças. O Bahrein, um arquipélago formado por muitas ilhas, ajudou-nos a compreender que não se deve viver isolando-se, mas aproximando-se. No Bahrein, que são ilhas, aproximaram-se, tocam-se. Exige isto a causa da paz, e o diálogo é “o oxigénio da paz”. Não vos esqueçais disto: o diálogo é o oxigénio da paz. Inclusive na paz doméstica. Se houver uma guerra ali, entre marido e mulher, depois com o diálogo vai-se em frente com a paz. Dialogar também em família: dialogar, pois com o diálogo conserva-se a paz. Há quase sessenta anos, o Concílio Vaticano II, falando sobre a construção do edifício da paz, declarou que «ela exige certamente que [os homens] dilatem o espírito mais além das fronteiras da própria nação, deponham o egoísmo nacional e a ambição de dominar sobre os outros países, e fomentem um grande respeito por toda a humanidade, que já avança tão laboriosamente para uma maior unidade» (Gaudium et spes, 82). No Bahrein, senti esta exigência e desejei que, no mundo inteiro, os responsáveis religiosos e civis saibam olhar além das próprias fronteiras, das suas comunidades, para cuidar de todo o conjunto. Somente assim podem ser enfrentados certos temas universais, por exemplo o esquecimento de Deus, a tragédia da fome, a tutela da criação, a paz. Juntos, pensa-se isto. Neste sentido, o Fórum de diálogo, intitulado “Oriente e Ocidente pela convivência humana”, exortou a escolher o caminho do encontro e a rejeitar o do conflito. Quanto precisamos disto! Quanta necessidade temos de nos encontrar! Penso na guerra louca – loucura! – de que a martirizada Ucrânia é vítima, e em muitos outros conflitos, que nunca serão resolvidos através da lógica infantil das armas, mas unicamente com a força suave do diálogo. Mas além da Ucrânia, que é martirizada, pensemos nas guerras que duram há anos, e pensemos na Síria – mais de 10 anos! – pensemos por exemplo na Síria, pensemos nas crianças do Iémen, pensemos no Myanmar: em todos os lugares! Agora, a mais próxima é a Ucrânia, para que servem as guerras? Destroem, destroem a humanidade, destroem tudo. Os conflitos não devem ser resolvidos através da guerra.

Mas não pode haver diálogo sem - segunda palavra - encontro. No Bahrein encontramo-nos e senti várias vezes o desejo de que haja mais encontros entre cristãos e muçulmanos, que se estreitem relações mais sólidas, que nos interessemos mais uns pelos outros. No Bahrein - como se usa no Oriente - as pessoas põem a mão no coração quando cumprimentam alguém. Também eu o fiz, a fim de criar espaço dentro de mim para quantos eu encontrava. Pois sem hospitalidade, o diálogo resta vazio, aparente, permanece uma questão de ideias, não de realidade. Entre os numerosos encontros, recordo aquele com o amado Irmão, Grão-Imã de Al-Azhar – querido irmão!; e aquele com os jovens da Escola do Sagrado Coração, estudantes que nos deram uma grande lição: estudam juntos, cristãos e muçulmanos. Quando se é jovem, adolescente, criança, é necessário conhecer-se, de tal modo que o encontro fraterno previna as divisões ideológicas. E neste ponto gostaria de agradecer à Escola do Sagrado Coração, agradecer à irmã Rosalyn que levou adiante tão bem esta escola, e os alunos participaram com os discursos, com as orações, a dança, o canto: recordo-os bem! Muito obrigado. Mas também os idosos ofereceram um testemunho de sabedoria fraterna: recordo o encontro com o Muslim Council of Elders, uma organização internacional fundada há poucos anos, que promove boas relações entre as comunidades islâmicas, no sinal do respeito, da moderação e da paz, opondo-se ao integralismo e à violência.

Assim, chegamos à terceira palavra: caminho. A viagem ao Bahrein não deve ser vista como um episódio isolado, faz parte de um percurso inaugurado por São João Paulo II, quando foi a Marrocos. Deste modo, a primeira visita de um Papa ao Bahrein representou um novo passo no caminho entre crentes cristãos e muçulmanos: não para nos confundirmos nem para diluir a fé, não: o diálogo não dilui; mas para construir alianças fraternas em nome do Pai Abraão, que foi peregrino na terra sob o olhar misericordioso do único Deus do Céu, Deus da Paz. Por isso, o lema da viagem era: “Paz na terra aos homens de boa vontade”. E por que digo que o diálogo não dilui? Porque para dialogar é necessário ter identidade própria, deve-se partir da própria identidade. Se tu não tiveres identidade, não podes dialogar, porque não entendes nem sequer o que és. Para que um diálogo seja bom, devemos sempre partir da própria identidade, estar cientes da própria identidade, e assim podemos dialogar.

Diálogo, encontro e caminho no Bahrein tiveram lugar inclusive entre os cristãos: por exemplo, o primeiro encontro de facto foi ecuménico, de oração pela paz, com o amado Patriarca e Irmão Bartolomeu, e com irmãos e irmãs de várias confissões e ritos. Realizou-se na Catedral, dedicada a Nossa Senhora da Arábia, cuja estrutura evoca uma tenda, aquela em que, segundo a Bíblia, Deus encontrou Moisés no deserto, ao longo do caminho. Os irmãos e irmãs na fé, que encontrei no Bahrein, vivem verdadeiramente “a caminho”: são na maioria trabalhadores imigrantes que, longe de casa, encontram as suas raízes no Povo de Deus e a sua família na grande família da Igreja. É maravilhoso ver os migrantes, filipinos, indianos e de outras partes, cristãos que se reúnem e se apoiam na fé. E vão em frente com alegria, na certeza de que a esperança de Deus não desilude (cf. Rm 5, 5). Encontrando-me com os Pastores, os consagrados, as consagradas, os agentes pastorais e, na missa festiva e comovedora celebrada no estádio, numerosos fiéis vindos até de outros países do Golfo, levei-lhes o afeto de toda a Igreja. Esta foi a viagem.

E hoje gostaria de vos transmitir a sua alegria genuína, simples e bela. Encontrando-nos e rezando juntos, sentimo-nos um só coração e uma só alma. Pensando no seu caminho, na sua experiência diária de diálogo, sintamo-nos todos chamados a dilatar os horizontes: por favor, corações dilatados, não corações fechados, duros. Abri os corações, pois somos todos irmãos, para que esta fraternidade humana progrida. Dilatar os horizontes, abrir, alargar os interesses e dedicar-nos ao conhecimento dos outros. Se tu te dedicares ao conhecimento dos outros, nunca serás ameaçado. Mas se tu tens medo dos outros, também serás uma ameaça para eles. O caminho da fraternidade e da paz, para ir em frente, tem necessidade de todos e de cada um. Dou a mão, mas se da outra parte não há outra mão, não serve. Nossa Senhora nos ajude neste caminho! Obrigado!


Eu Sou Porque Nós Somos

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 13 de novembro de 2022

Prezados irmãos e irmãs, bom dia, bom domingo!

O Evangelho de hoje leva-nos a Jerusalém, ao lugar mais sagrado: o templo. Ali, à volta de Jesus, algumas pessoas falam da magnificência daquele grandioso edifício, «guarnecido de belas pedras» (Lc 21, 5). Mas o Senhor diz: «Dias hão de vir em que, de tudo isto que estais a contemplar, não ficará pedra sobre pedra» (v. 6). Depois reforça a mensagem, explicando como na história quase tudo desmorona: haverá, diz ele, revoluções e guerras, terramotos e carestias, pestes e perseguições (cf. vv. 9-17). Como para dizer: não se deve confiar demasiado nas realidades terrenas: elas passam. São palavras sábias, mas podem causar-nos alguma amargura: já tantas coisas correm mal, por que faz o Senhor também discursos tão negativos? Na realidade, a sua intenção não é ser negativo, é outra, é dar-nos um ensinamento precioso, ou seja, a saída de toda esta precariedade. E qual é a saída? Como podemos sair desta realidade que vai passando e deixará de existir?

Ela está numa palavra que talvez nos surpreenda. Cristo revela-a na última frase do Evangelho, quando diz: «Pela vossa constância é que salvareis as vossas almas» (v. 19). Perseverança. O que significa? A palavra indica ser “muito severo”; mas severos em que sentido? Com nós próprios, não nos considerando à altura? Não. Com os outros, tornando-nos rígidos e inflexíveis? Nem sequer. Jesus pede-nos para sermos “severos”, inflexíveis, persistentes naquilo que lhe agrada, no que conta. Porque, o que realmente conta, muitas vezes não coincide com o que atrai o nosso interesse: muitas vezes, como aquelas pessoas no templo, damos prioridade às obras das nossas mãos, às nossas realizações, às nossas tradições religiosas e civis, aos nossos símbolos sagrados e sociais. Isto está bem, mas damos-lhes demasiada prioridade. Estas coisas são importantes, mas passam. Ao contrário, Jesus diz para nos concentrarmos no que permanece, para evitar que dediquemos a vida à construção de algo que mais tarde será destruído, como aquele templo, e nos esqueçamos de edificar o que não desmorona, de construir sobre a sua palavra, sobre o amor, sobre o bem. Ser perseverante, ser severo e decidido a construir sobre aquilo que não passa.

Eis então o que é a perseverança: construir o bem todos os dias. Perseverar é permanecer constantes no bem, sobretudo quando a realidade à nossa volta nos impele a fazer outra coisa. Façamos alguns exemplos: sei que rezar é importante, mas eu também, como todos, tenho sempre muito que fazer, e então adio: “Não, estou ocupado agora, não posso, faço-o mais tarde”. Ou vejo tantas pessoas astutas que se aproveitam das situações, que “driblam” as regras, e eu também deixo de as observar, de perseverar na justiça e na legalidade: “Mas se estes espertinhos fazem, faço eu também”. Cuidado com isso! E ainda: presto um serviço na Igreja, à comunidade, aos pobres, mas vejo que tantas pessoas no seu tempo livre só pensam em divertir-se, e depois apetece-me desistir e fazer o que elas fazem. Pois não vejo resultados ou fico aborrecido ou isso não me faz feliz.

Perseverar, ao contrário, é permanecer no bem. Perguntemo-nos: como está a minha perseverança? Sou constante ou vivo a fé, a retidão e a caridade de acordo com o momento: se me apetece, rezo, se me convém, sou justo, prestável e útil, enquanto que se estou insatisfeito, se ninguém me agradece, não faço mais? Em suma, a minha oração e serviço dependem das circunstâncias ou de um coração inabalável no Senhor? Se perseverarmos - lembra-nos Jesus - não temos nada a temer, até das vicissitudes tristes e difíceis da vida, nem sequer do mal que vemos à nossa volta, pois continuamos enraizados no bem. Dostoievski escreveu: «Não temas os pecados dos homens, ama o homem mesmo com o seu pecado, porque este reflexo do amor divino é o ápice do amor na terra» (Os Irmãos Karamazov, II, 6, 3g). A perseverança é o reflexo do amor de Deus no mundo, pois o amor de Deus é fiel, é perseverante, nunca muda.

Que Nossa Senhora, serva do Senhor perseverante na oração (cf. At 1, 12), fortaleça a nossa constância.


Depois do Angelus

Estimados irmãos e irmãs!

Amanhã celebra-se o primeiro aniversário do lançamento da Plataforma da Ação Laudato si’, que promove a conversão ecológica e estilos de vida coerentes com a mesma. Gostaria de agradecer a quantos aderiram a esta iniciativa: trata-se de cerca de seis mil participantes, incluindo indivíduos, famílias, associações, empresas, instituições religiosas, culturais e de saúde. É um excelente começo para um percurso de sete anos, destinado a responder ao grito da terra e ao grito dos pobres. Encorajo esta missão, que é crucial para o futuro da humanidade, a fomentar em todos um compromisso concreto pelo cuidado da criação.

Nesta perspetiva, gostaria de mencionar a Cimeira COP27 sobre o clima, que está a decorrer no Egito. Espero que se façam progressos, com coragem e determinação, na sequência do Acordo de Paris.

Permaneçamos sempre próximos dos nossos irmãos e irmãs da martirizada Ucrânia. Próximos com a oração e a solidariedade concreta. A paz é possível! Não nos resignemos à guerra.

Desejo a todos bom domingo. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Eu Sou Porque Nós Somos

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO REINO DO BAHREIN
por ocasião do "Bahrain Forum for Dialogue: East and West for Human Coexistence"
(3 - 6 DE NOVEMBRO DE 2022)

ENCONTRO COM OS JOVENS

DISCURSO DO SANTO PADRE

Escola do Sagrado Coração em Awali
Sábado, 5 de novembro de 2022

Queridos amigos, irmãos e irmãs, bom dia!

Agradeço por vos encontrardes aqui, vindos de tantas nações diferentes e com tanto entusiasmo! Quero agradecer à Irmã Rosalyn as palavras de boas-vindas que me dirigiu e o empenho com que dinamiza, juntamente com muitos outros, esta Escola do Sagrado Coração.

E fiquei contente por ter visto, no Reino do Bahrein, um país de encontro e diálogo entre diferentes culturas e credos. E agora tendo-vos diante dos olhos – vós, que não sois da mesma religião e não tendes medo de estar juntos –, penso que uma tal convivência das diferenças não seria possível sem vós; nem teria futuro! Na massa do mundo, vós sois o fermento bom destinado a levedá-la, superando tantas barreiras sociais e culturais e multiplicando rebentos de fraternidade e de novidade. Como se fôsseis inquietos viajantes abertos ao inédito, vós, jovens, não temeis confrontar-vos, dialogar, «fazer barulho» e misturar-vos com os outros, tornando-vos a base duma sociedade amiga e solidária. E isto, queridos amigos, é fundamental nos contextos complexos e plurais em que vivemos: derrubar determinadas barreiras a fim de se inaugurar um mundo que seja mais à medida do homem, mais fraterno, ainda que isso signifique enfrentar numerosos desafios. A propósito disto e tirando partido dos vossos testemunhos e perguntas, quero fazer-vos três convites simples, não tanto para vos ensinar qualquer coisa mas sobretudo para vos encorajar.

O primeiro convite: abraçar a cultura do cuidado. A irmã Rosalyn usou esta expressão: «cultura do cuidado». Cuidar significa desenvolver uma atitude interior de empatia, um olhar atento que nos leva para fora de nós mesmos, uma presença gentil que vence a indiferença e nos impele a interessar-nos pelos outros. Este é o ponto de viragem, o início da novidade, o antídoto contra um mundo fechado que, impregnado de individualismo, devora os seus filhos; contra um mundo enclausurado pela tristeza, que gera indiferença e solidão. Deixai que vos diga: Como faz mal faz o espírito de tristeza! Tanto mal! Com efeito, se não aprendermos a cuidar daquilo que está ao nosso redor – dos outros, da cidade, da sociedade, da criação –, acabamos por transcorrer a vida como quem corre, se afadiga, faz muitas coisas, mas, no final, permanece triste e pelo simples motivo que nunca saboreou profundamente a alegria da amizade e da gratuidade, nem deu ao mundo aquele toque único de beleza que só ele ou ela, e mais ninguém, poderia dar. Como cristão, penso em Jesus e vejo que a sua ação sempre esteve animada pelo cuidado. Cuidou as relações com quantos encontrava nas casas, nas cidades e pelo caminho: fixou as pessoas nos olhos, prestou atenção aos seus pedidos de ajuda, aproximou-se e tocou com a mão as suas feridas. Vós, fixais as pessoas nos olhos? Jesus entrou na história dizendo-nos que o Altíssimo cuida de nós; lembrando-nos que, estar da parte de Deus, significa cuidar de alguém e dalguma coisa, especialmente dos mais necessitados.

Amigos, como é bom tornar-se cultores do cuidado, artistas das relações! Mas isto, como tudo na vida, requer um treino constante. Então não vos esqueçais de cuidar primariamente de vós mesmos: não tanto do exterior, como sobretudo do interior, da vossa parte mais escondida e preciosa. Qual é? A vossa alma, o vosso coração! E como se faz para cuidar do coração? Tentai escutá-lo em silêncio, criar espaços para estar em contacto com a vossa interioridade, para sentir o dom que sois, para acolher a vossa existência e não a deixar fugir de mão. Não vos aconteça ser «turistas da vida», que a olham apenas de fora, superficialmente. Mas, no silêncio, seguindo o ritmo do vosso coração, falai com Deus. Falai-Lhe de vós mesmos e também daqueles que encontrais diariamente e que Ele vos dá como companheiros de viagem. Levai à sua presença os rostos, as situações felizes e dolorosas, porque não há oração sem relações, tal como não há alegria sem amor.

E, como sabeis, o amor não é uma telenovela nem um filme romântico: amar é ter a peito o outro, cuidar do outro, oferecer o próprio tempo e os próprios dons a quem deles precisa, arriscar para fazer da vida um dom que gera nova vida. Arriscar! Amigos, por favor, nunca vos esqueçais duma coisa: sois todos – sem exceção – um tesouro, um tesouro único e precioso. Por isso, não mantenhais a vida num cofre, pensando que é melhor poupar-se e que o momento de a gastar ainda não chegou! Muitos de vós estão aqui de passagem, por motivos laborais e, frequentemente, por um prazo limitado. Mas, se vivermos com a mentalidade do turista, não agarramos o momento presente e corremos o risco de deitar fora pedaços inteiros de vida. Ao contrário, como é bom deixar agora um bom rasto no caminho, cuidando da comunidade, dos companheiros de escola, dos colegas de trabalho, da criação... A propósito, far-nos-á bem questionar-nos: Que rasto estou a deixar agora, aqui onde vivo, no lugar onde a Providência me colocou?

Este é o primeiro convite: a cultura do cuidado. Se a abraçarmos, contribuímos para fazer crescer a semente da fraternidade. E aqui está o segundo convite que vos quero dirigir: semear fraternidade. Gostei do que disseste tu, Abdulla: «É preciso ser-se campeão não só nos campos de jogo, mas também na vida». Campeão fora do campo. É verdade! Sede campeões de fraternidade, fora do campo. Este é o desafio de hoje para vencer amanhã, o desafio das nossas sociedades cada vez mais globalizadas e multiculturais. Vede! Todos os instrumentos e a tecnologia que a modernidade nos oferece, não bastam para tornar o mundo pacífico e fraterno. Temo-lo diante dos olhos: de facto, os ventos de guerra não se aplacam com o progresso técnico. Com tristeza constatamos que, em muitas regiões, as tensões e as ameaças aumentam e, por vezes, deflagram nos conflitos. Frequentemente, porém, isto acontece porque não se trabalha o coração, porque se deixam ampliar as distâncias em relação aos outros e, assim, as diferenças étnicas, culturais, religiosas e outras tornam-se problemas e temores que isolam, em vez de ser oportunidades para crescer juntos. E, quando se mostram mais fortes do que a fraternidade que nos une, corre-se o risco do conflito.

A vós, jovens, que sois mais diretos e mais capazes de gerar contactos e amizades, superando os preconceitos e as barreiras ideológicas, quero dizer: sede semeadores de fraternidade e recolhereis futuro, porque o mundo só terá futuro na fraternidade! É um convite que encontro no coração da minha fé. Como diz a Bíblia, «aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E nós recebemos d’Ele este mandamento: quem ama a Deus, ame também o seu irmão» (1 Jo 4, 20-21). Sim! Jesus pede para nunca desligarmos o amor a Deus do amor ao próximo, fazendo-nos nós mesmos próximo de todos (cf. Lc 10, 29-37): de todos, e não só de quem nos é simpático. Viver como irmãos e irmãs é a vocação universal confiada a toda a criatura. E vós jovens – sobretudo vós –, face à tendência dominante de permanecer indiferentes e mostrar-se impaciente com os outros, até ao ponto de aprovar guerras e conflitos, sois chamados a «reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras» (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 6). As palavras não bastam; há necessidade de gestos concretos realizados no dia a dia.

Ponhamo-nos, aqui também, algumas perguntas: Estou aberto aos outros? Sou amigo ou amiga de qualquer pessoa que não faça parte do meu círculo de interesses, que tenha credo e costumes diferentes dos meus? Procuro o encontro, ou fico na minha? O caminho – assim no-lo disse Nevin, em poucas palavras – é «criar boas relações», com todos. Geralmente em vós, jovens, há um forte desejo de viajar, conhecer novas terras, ultrapassar os confins dos lugares habituais. Pois bem! Deixai que vos diga: sabei viajar também dentro de vós mesmos, alargar as fronteiras interiores, para que caiam os preconceitos sobre os outros, se restrinja o espaço da difidência, se desmoronem os recintos do medo, germine a amizade fraterna! Também aqui deixai-vos ajudar pela oração, que alarga o coração e, abrindo-nos ao encontro com Deus, ajuda-nos a ver, em quem encontramos, um irmão e uma irmã. A propósito, são belas estas palavras dum profeta: «Não foi o mesmo Deus que nos criou? Por que razão, pois, somos nós pérfidos uns para com os outros?» (Ml 2, 10). Sociedades como esta do Bahrein, com uma notável riqueza de credos, tradições e línguas diferentes, podem tornar-se «ginásios de fraternidade». Aqui estamos às portas do grande e multiforme continente asiático, que um teólogo definiu «um continente de línguas» (A. Pieris, Teologia na Ásia, Brescia 2006, 5): sabei harmonizá-las numa única língua, a língua do amor, como verdadeiros campeões de fraternidade!

Quero ainda fazer um terceiro convite, relacionado com o desafio de fazer opções na vida. Como bem sabeis pela experiência de cada dia, não existe uma vida sem desafios a enfrentar. E perante um desafio, como numa encruzilhada, sempre é preciso escolher, entrar em jogo, arriscar, decidir. Mas isto requer uma boa estratégia: não se pode improvisar, vivendo só por instinto ou circunscrito a cada instante! E como se faz para preparar-se, treinar a capacidade de escolher, a criatividade, a coragem, a tenacidade? Como aperfeiçoar o olhar interior, aprender a julgar as situações, a captar o essencial? Trata-se de crescer na arte de se orientar nas escolhas, de tomar as justas direções. Por isso, o terceiro convite é fazer opções na vida, opções certas.

Tudo isto me veio em mente, ao repassar as perguntas de Merina. São interrogativos que expressam precisamente a necessidade de compreender a direção que se deve tomar na vida. És uma jovem corajosa, pelo modo como disseste as coisas! E posso contar-vos a minha experiência: era um adolescente como vós, como todos, e a minha vida era a vida normal dum rapaz qualquer. Como sabemos, a adolescência é um caminho, uma fase de crescimento, um período em que assomamos à vida com os seus aspetos por vezes contraditórios, enfrentando pela primeira vez certos desafios. Pois bem! O meu conselho, qual é? Avançar sem medo, e nunca sozinhos! Duas coisas: avançar sem medo, e nunca sozinhos! Deus não vos deixa sozinhos, mas, para vos dar uma mão, espera que Lha peçais. Acompanha-nos e guia-nos, não com prodígios e milagres, mas falando delicadamente através dos nossos pensamentos e sentimentos e também por meio dos nossos professores, dos nossos amigos, dos nossos pais e de todas as pessoas que nos querem ajudar.

Por isso é preciso aprender a distinguir a sua voz, a voz de Deus que nos fala. E como aprendemos isto? Como nos dizias tu, Merina: através da oração silenciosa, do diálogo íntimo com Ele, guardando no coração aquilo que nos faz bem e dá paz. A paz é um sinal da presença de Deus. Esta luz de Deus ilumina o labirinto de pensamentos, emoções e sentimentos em que, muitas vezes, nos movemos. O Senhor deseja iluminar a vossa inteligência, os vossos pensamentos mais íntimos, as aspirações que trazeis no coração, os juízos que amadurecem dentro de vós. Quer-vos ajudar a distinguir o essencial daquilo que é supérfluo, aquilo que é bom daquilo que faz mal a vós e aos outros, aquilo que é justo daquilo que gera injustiça e desordem. A Deus, nada é alheio de quanto nos acontece, nada! Muitas vezes, porém, somos nós a alhear-nos d’Ele, não Lhe confiando as pessoas e as situações e fechando-nos no medo e na vergonha. Assim não! Alimentemos na oração a certeza consoladora de que o Senhor vela por nós, que não dorme, mas sempre nos vê e guarda.

Amigos, jovens, esta aventura das opções, não a devemos realizar sozinhos. Por isso deixai que vos diga uma última coisa: procurai sempre – antes das sugestões da Internet – bons conselheiros na vida, pessoas sábias e fiáveis que vos possam orientar, ajudar. Primeiro, isto! Penso nos pais e professores, mas também nos idosos, nos avós e num bom acompanhante espiritual. Cada um de nós precisa de ser acompanhado no caminho da vida! Repito o que vos disse: nunca sozinhos! Precisamos de ser acompanhados no caminho da vida.

Queridos jovens, precisamos de vós, da vossa criatividade, dos vossos sonhos e da vossa coragem, da vossa simpatia e dos vossos sorrisos, da vossa alegria contagiante e também daquele mínimo de turbulência que sabeis trazer a cada situação e que ajuda a sair do torpor de hábitos e esquemas repetitivos em que às vezes encaixilhamos a vida. Como Papa, quero dizer-vos: a Igreja está convosco e tem tanta necessidade de vós, de cada um de vós, para rejuvenescer, explorar novas sendas, experimentar novas linguagens, tornar-se mais jubilosa e hospitaleira. Nunca percais a coragem de sonhar e viver em medida grande! Fazei vossa a cultura do cuidado e espalhai-a; tornai-vos campeões de fraternidade; enfrentai os desafios da vida, deixando-vos orientar pela criatividade fiel de Deus e por bons conselheiros. E, em último lugar, recordai-vos de mim nas vossas orações. Eu farei o mesmo por vós, levando-vos no coração. Obrigado!

God be with you - Allah ma’akum – Deus esteja convosco!


Eu Sou Porque Nós Somos

Falta convicção para acabar com a pobreza

Januário Torgal Ferreira | 29 Out 2022 | in 7 Margens

Tinha razão o norte-americano, sem nome, que todas as sextas-feiras se postava diante da Casa Branca de bandeira em punho, revelando-se contra a guerra do Vietname. Contrariado por um jornalista, que lhe referiu que jamais conseguiria os seus intentos, limitou-se a responder: “Mas eu não estou aqui para mudar o mundo, venho a este lugar todas as semanas com uma intenção: a de que as pessoas não me roubem a convicção que alimento!”.

É essa também a certeza que me motiva a transmitir a todos com a mais sentida estima a luta pela transformação do nosso país, o qual, na hora que passa, alberga cerca de dois milhões e trezentas mil pessoas em risco de pobreza ou exclusão social, com o acrescento, já estudado, de que serão precisas 5 gerações para que a injustiça diminua/desapareça!

O meu propósito de os servir com a liberdade da palavra é o mesmo que há 20 anos pronunciei naquele rés-do-chão do Hotel Roma, em Lisboa, em sessão presidida pelo Sr. Prof. Urbano Tavares Rodrigues. Em oposição à tragédia da guerra do Iraque. Se todas as guerras são iníquas, a do Iraque foi uma das maiores mentiras orquestradas para assassinar uma multidão de pobres!

É também a certeza de um drama, nascido da experiência, diria até da materialidade da vida, do trabalho e dos trabalhadores, que me inspira a deitar ao papel alguns pensamentos sobre a situação da pobreza entre nós.

Estamos a viver tempos difíceis para a justiça e a racionalidade, para a solidariedade e para a fraternidade, a propósito de uma humanidade desfavorecida. Esta é uma hora de justiça e de coragem em ordem à opressão e ao sofrimento.

A pobreza não é vergonhosa, mas sim a injustiça que cria a pobreza, cabendo à força de cada um e dos que aceitaram servir esta sociedade como responsáveis políticos, a energia pública de libertar o pobre da injustiça de ser pobre. Vergonha devem ter os cidadãos e os decisores da causa comum desta chaga herdada e em agravamento constante! A tentação de olhar para os lugares cimeiros impede esta sociedade de olhar para baixo, para o seu rés-do-chão, sem as condições mínimas de habitabilidade e de decoro humano.

É muito fácil proclamar-se que a política deve estar próxima das pessoas e dos seus problemas. Mais fácil ainda é afirmar-se que fundamentalmente é fazer parte da solução, e nunca do problema. Mas as angústias de cada instante batem à porta do rés-do-chão sem que surja carteiro com a mensagem da libertação.

Ao sublinhar-se a primazia dos direitos de cada ser humano, reconhece-se a necessidade e as urgências que cicatrizam a sua dignidade. Se não reconhecermos que o minúsculo ser humano infantil tem um fim a cumprir e que é necessário darmos-lhe os respetivos meios, como podemos falar dos seus direitos? A luta pela liberdade torna-se uma exigência dura e permanente à medida que à minha volta, e à volta do grande mundo, me surgem os novos escravos desta civilização!

Como será possível pôr em marcha um projeto pessoal de estudo e realização humana, se os meios indiscutíveis em ordem à prática desse projeto, não só não aparecem como, de forma mais pavorosa, nos deixam a impressão de estarem a ser roubados (ou na língua hipócrita da cidadania, a ser desviados)?!

A escravidão da doença, da ausência de habitação condigna ou de emprego que se persegue; da impossibilidade de ser reconhecido num trabalho que fecha a porta a qualquer subida, o mesmo sucedendo ao seu irmão gémeo, que é o salário; a escravidão de um lote de pessoas, as quais são sempre as mesmas, a aguentar um vexame de não serem tratadas como protagonistas do bem-estar…

Relativamente à habitação, não devo silenciar a minha recusa diante de tantos dos meus cidadãos que foram rebocados do sítio onde nasceram e viveram, para serem depositados, como sólida pesagem, em terrenos destinados a trânsfugas.

Não terei razão… Mas, sendo culpado, não estive suficientemente desperto diante de fenómenos da “emigração” interna…

Apetecia-me citar Nietzsche quando sublinha: “Que é para ti a coisa mais humana? Poupar alguém à vergonha?”

Acrescento eu: “Não é só poupar à vergonha, é poupar à indignação e à revolta, que amesquinham um viver, roubando-lhe esperanças e honras, a que têm direito. Um escravo é um decepado! Aprisionaram-no ao privá-lo de um sentido do viver”. A expressão tão nossa, e lamentavelmente tão repetida, “não há direito”, significa que algo vai mal, que alguma coisa foi mal orquestrada, que o direito que devia chegar até nós, se perdeu pelo caminho… Não há direito!
Mas acrescentemos: “As revoluções ou simples mudanças da existência nascem deste digno bradar de alguém traído!”

Numa palavra: “Quero justiça! Não quero remendos! Quero a verdade! Não quero enganos! Quero camaradagem! Não quero assobios para o ar!”

Em Portugal existem alguns tipos significativos de relacionamento com esta matéria de pobreza.
– A primeira é da indiferença, ainda que, por vezes, se esconda no véu da hostilidade;
– A segunda é a triste mentalidade de “o meu pobre”
(o pobre que eu visito, o pobre de que eu preciso para lavar a consciência);
– A terceira, a única que respeito, é a luta contra a pobreza. Estar ao lado dos pobres, falar dos pobres, ouvir os pobres, apoiar os pobres. Só com um fito: libertá-los da pobreza! Lutar social e politicamente para que sejam os pobres, livres do que parece um “fado” ou uma má sina. “É o destino”, como alguns me dizem. Onde chegou a falta de liberdade, e, por isso da democracia, para que famílias por inteiro se julguem determinadas, isto é obrigatoriamente, a ser o que não são!

Todos teremos culpa. Todos temos de advogar e praticar cuidados e remédio!

Se há hoje pessoas que dos supermercados juntam (não sei se é delito fazê-lo em maré de fome) alguns alimentos, deveriam soar bem alto as sirenes da aflição! Como é possível?!

É-o, pelos vistos. Um poder ao serviço dos mais fracos mostra–se por obras. Deixo aqui o clamor de um cidadão a favor de uma cidadania onde os menos possibilitados tenham lugar!

O que fazer?

“A propósito da justiça. Veja-se, por exemplo, o que se está a passar no mundo das relações laborais. Trabalhadores que não são devidamente remunerados, a quem se exigem horários e ritmos de trabalho stressantes e incompatíveis com uma conciliação sadia da vida profissional com a vida familiar, abuso no recurso a empregos de precariedade e sem garantias mínimas, etc., etc.)”.

Libertar a pobreza é “em concreto”: Como será possível ter uma consulta, uma operação, um encontro com um médico que nos salve? Como será o dia de amanhã sem uma esperança e um apoio tão legítimo? Sou um utente do Serviço Nacional de Saúde, conheço os méritos e os obstáculos. Como deitar a mão a gente que padece e confia?

Termino. Não sei se as convicções bastam! Não sei se as minhas certezas da transformação do Mundo, serão, na prática, a defesa dos outros, tão abandonados. O mais importante são os outros. Se eu me calar, se nós nos calarmos, a ditadura da injustiça prosseguirá.

Não queria que fosse assim. Ajudem-me com a vossa perseverança a eu ter convicção de que me bater pelos outros mais injustiçados é o maior combate por um Futuro nobre e pacífico!

Porto, 22 de Outubro de 2022

Januário Torgal Ferreira é bispo emérito das Forças Armadas e de Segurança; o texto corresponde a uma intervenção escrita no debate promovido pelo Movimento Erradicar a Pobreza.


Eu Sou Porque Nós Somos

Estudo norte-americano revela

Padres sob pressão, sem confiança nos bispos e com medo de falsas acusações

Clara Raimundo | 20 Out 2022 | in 7 Margens

Um estudo que afirma ser fruto da maior sondagem realizada a padres católicos nos Estados Unidos da América (EUA) nos últimos 50 anos concluiu que, apesar dos níveis de bem-estar e realização pessoal serem relativamente altos entre a classe, há uma percentagem significativa de sacerdotes com sintomas de esgotamento, desconfiança em relação aos seus bispos, e que receiam ser falsamente acusados de má conduta.

Conduzido pelo The Catholic Project (um grupo de académicos da Universidade Católica da América) e apresentado aos jornalistas esta quarta-feira, 19 de outubro, o estudo teve por base as respostas de 3.516 padres a exercer o seu ministério em 191 dioceses nos EUA, dos quais 100 foram entrevistados em profundidade.

De acordo com as respostas obtidas, o grupo de investigadores concluiu que há “indícios de esgotamento entre os padres mais jovens, falta de confiança nas proteções existentes no âmbito dos processos de acusações de má conduta e uma correspondente falta de confiança nos bispos, que passaram a ser vistos menos como pais e irmãos do que como administradores”.

O relatório identificou elevados níveis de bem-estar entre os padres, sendo que 77% podem ser classificados como “florescentes”, tendo por base o Harvard Flourishing Index (um índice gerado pela Universidade de Harvard para medir o bem-estar e satisfação humanos). “A formação sacerdotal equipa os padres com práticas regulares para cultivar a proximidade com Deus e relacionamentos saudáveis nas suas comunidades. Tais práticas são contributos importantes para o bem-estar dos padres”, observa o relatório.

Mas esses níveis de bem-estar contrastam com a pressão que muitos revelaram sentir durante as entrevistas. “Encontrámos ampla evidência dos seus desafios e estresses. Alguns dos elementos estressores contribuem para o esgotamento no ministério sacerdotal”, afirma o documento.

De acordo com o estudo, 45% dos padres relataram pelo menos um sintoma de esgotamento relativo ao seu ministério, registando-se neste campo uma diferença significativa entre o número de padres diocesanos que o fez (50%) e o de padres pertencentes a uma congregação (33%).

“Não lhe telefonaria mais do que a um qualquer estranho na rua”

Quanto aos níveis de confiança nos superiores, “os padres diocesanos relatam níveis significativamente mais baixos de confiança nos seus bispos do que os padres religiosos nos seus superiores maiores”. Relativamente à confiança nos bispos dos EUA como um todo, é baixa entre os padres em geral, com “apenas 24% a expressar confiança na liderança e na tomada de decisões dos bispos”, destaca o relatório.

“Acho que a maioria dos padres não confia nos bispos… Eles conseguem parecer imperiosos, sabe… Agindo com arrogância, como se estivessem acima da lei…”, justificou um padre diocesano na sua entrevista.

Além dos padres, houve também 131 bispos que responderam ao inquérito, e o estudo identificou uma disparidade entre as percepções de ambos. Do lado dos bispos, 92% disseram que ajudariam “muito bem” um padre que estivesse a lidar com “lutas pessoais”, enquanto que apenas 36% dos padres afirmaram isso dos seus bispos.

O relatório indica ainda que a maioria dos padres se apoia mais nos seus paroquianos e amigos leigos quando precisa de ajuda do que nos seus bispos. “Eu, pessoalmente, não confio no meu bispo”, disse claramente outro padre entrevistado. Caso precisasse de ajuda “não lhe telefonaria mais do que a um qualquer estranho na rua”.

Política de “tolerância zero” demasiado dura

A temática dos abusos sexuais foi também abordada no estudo, sendo que 90% dos padres veem as suas dioceses como tendo uma forte cultura de segurança e proteção infantil, e quase 70% dos padres diocesanos encaram-na como uma demonstração positiva dos valores da Igreja, que consideram importante para a reconstrução da confiança na mesma.

Paralelamente, todavia, 40% dos padres vê a política de “tolerância zero” para as más condutas como demasiado dura, e muitos temem que uma alegação falsa de abusos sexual possa arruinar a sua reputação. Entre os padres pesquisados, a grande maioria – 82% – disse que teme regularmente falsas alegações. E, como disse um dos padres diocesanos aos investigadores, “viver com medo constante de uma acusação que ponha fim à vida definitivamente coloca uma nuvem sobre o sacerdócio”.


Eu Sou Porque Nós Somos

Novo livro de Tomáš Halík: O cristianismo a entrar na tarde da fé

Tomáš Halík | 14 Out 2022 | in 7 Margens

Entrar na tarde da fé. Ou seja, transformar a Igreja Católica num lugar que ateste “esta confiança num Deus que é maior do que todas as nossas ideias, definições e instituições”. Tal é a proposta do teólogo checo Tomáš Halík, no seu novo livro A Tarde do Cristianismo – O Tempo da Transformação (ed. Paulinas), que agora é editado em Portugal. No livro, Halík, um dos mais importantes nomes da teologia cristã contemporânea, usa o arco de um dia – manhã, meio-dia, tarde – para falar das mudanças do cristianismo ao longo dos seus dois mil anos e para propor quais devem ser as mudanças de hoje, em resposta às profundas mutações culturais e sociais que estamos a viver., propondo a ideia da Igreja como “uma comunidade de escuta e compreensão”.

Publicamos a seguir excertos do primeiro e do último capítulos. Os subtítulos são da responsabilidade do 7MARGENS.
(Primeira parte)

De mãos e cestas vazias

Estamos de mãos e cestas vazias, «trabalhámos a noite inteira e nada apanhámos», responderam uns exaustos e frustrados pescadores galileus a um pregador errante que estava na margem do novo dia.

Em grande parte do nosso mundo ocidental, muitos cristãos experimentam neste momento sentimentos muito semelhantes. Igrejas, mosteiros e seminários esvaziam-se e dezenas de milhares abandonam a Igreja. Sombras escuras de um passado recente privam as igrejas de credibilidade. Os cristãos estão divididos – e hoje as diferenças não se registam fundamentalmente entre as igrejas, mas no interior delas. A fé cristã já não enfrenta o ateísmo militante nem aquela dura perseguição suscetível de despertar e mobilizar os crentes, mas antes um perigo muito maior – a indiferença.

Curiosamente, o profeta de Nazaré escolheu um momento muito semelhante de fadiga e frustração para se dirigir pela primeira vez aos seus futuros discípulos. Pescadores desapontados, depois de uma noite em claro, não seriam propriamente o público mais recetivo ao seu anúncio acerca de um reino vindouro. No entanto, eles manifestaram aquilo que constitui a antecâmara e o portal da fé: a coragem de confiar. «Tenta de novo», disse a sua primeira pregação, «faz-te ao largo e lança as tuas redes!»

Também neste momento de cansaço e frustração, precisamos de tentar de novo o Cristianismo. Tentar de novo, contudo, não significa fazer a mesma coisa outra vez, incluindo a repetição de erros antigos. Significa fazer-se ao largo, esperar atentamente e estar pronto para agir.

Este livro trata das mudanças da fé nas vidas humanas e na história. Pergunto-me que transformações ocorrem já hoje e que possíveis formas futuras de Cristianismo germinam já sob muitas das presentes crises. Hoje, como em qualquer período de significativa alteração histórica, o lugar e o papel da fé na sociedade e as diversas formas da sua expressão na cultura estão em transformação. Diante de todas estas mudanças, devemos sempre questionar uma e outra vez a identidade da nossa fé. Em que é que ela consiste e em que é que se revela o seu carácter cristão? (…)

De acordo com uma antiga lenda checa, o construtor de uma das igrejas góticas de Praga ordenou que, após a conclusão da construção, os andaimes de madeira fossem incendiados. Quando o fogo começou e os andaimes caíram estrondosamente no chão, o construtor entrou em pânico e cometeu suicídio, pensando que era o seu edifício que colapsava. Parece-me que o pânico de muitos cristãos neste momento de mudança se deve a um semelhante erro de perceção. O que se está a desmoronar agora pode ser apenas o andaime de madeira; quando ele arder, as paredes da igreja ficarão por certo um pouco chamuscadas pelo fogo, mas o essencial, aquilo que há muito está escondido, lá permanece ainda para ser revelado.

Para que a Igreja seja realmente uma Igreja e não uma seita fechada, ela tem de empreender uma mudança radical na maneira como se vê, na sua compreensão do seu serviço a Deus e às pessoas neste mundo. Precisa de reinventar e desenvolver mais plenamente a sua catolicidade e a universalidade da sua missão, esforçar-se para ser verdadeiramente «tudo para todos». Repito: chegou a hora da autotranscendência do cristianismo.

Se a Igreja quer ir para além dos seus limites e servir a todos, então este ministério deve estar vinculado ao respeito pela alteridade e liberdade daqueles a quem se dirige. Deve libertar-se da intenção de comprimir todos nas suas fileiras e ganhar domínio sobre eles, para «colonizá-los». Deve confiar no poder de Deus, levando a sério o facto de o Espírito operar bem para lá dos limites visíveis da Igreja.

Até agora, a Igreja concentrou-se principalmente no cuidado pastoral dos seus fiéis e em missões destinadas a expandir as suas fileiras. Mas sob elas pulsa uma outra dimensão, desde os primórdios do Cristianismo: a diaconia, a caridade. É principalmente neste campo que os cristãos aprenderam a servir todas as pessoas na dor e na necessidade, cumprindo assim o apelo de Jesus ao amor universal e à misericórdia sem fronteiras ou intenções proselitistas. É aqui que os cristãos deram e continuam a dar testemunho através de atos sem palavras – através da solidariedade do amor e demonstrando um envolvimento próximo. Fiéis ao espírito do relato de Jesus acerca do Bom Samaritano, eles não perguntam «quem é o meu próximo?» (ou quem não é o meu próximo) como lhe perguntou o fariseu que «queria justificar-se», desejando justificar os limites estreitos da sua vontade de amar e ajudar. Eles sabem que devem «fazer-se próximos» – estar perto dos outros, especialmente dos necessitados. Esta proximidade terapêutica e solidariedade assumiu e continua a assumir muitas formas, e adquire também uma dimensão política.

Como já foi referido, a Igreja enquanto hospital deve cuidar também da saúde da sociedade, da prevenção e diagnóstico das doenças que atingem sociedades inteiras, bem como da terapia e reabilitação posteriores; deve lutar para superar os «pecados sociais» e as estruturas desviantes dentro dos sistemas sociais. Durante décadas, a doutrina social da Igreja apontou que o pecado não é apenas uma questão de indivíduos; estamos todos cada vez mais enredados numa rede intricada de relações económicas e políticas onde o mal muitas vezes assume uma aparência suprapessoal e anónima.


Eu Sou Porque Nós Somos

Santa Missa de canonização dos Beatos

João Batista Scalabrini - Artemide Zatti

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Praça São Pedro
Domingo, 9 de outubro de 2022

Ia Jesus a caminho, quando dez leprosos saíram ao seu encontro clamando: «Jesus, Mestre, tem misericórdia de nós» (Lc 17, 13). E os dez ficam curados, mas só um deles regressa para agradecer a Jesus: é um samaritano, uma espécie de herege para os judeus. No princípio, caminham juntos, mas em seguida destaca-se aquele samaritano, que regressa «glorificando a Deus em voz alta» (17, 15). Detenhamo-nos nestes dois aspetos que podemos deduzir do Evangelho de hoje: caminhar juntos e agradecer.

Antes de mais nada, caminhar juntos. No início da narração, não há qualquer distinção entre o samaritano e os outros nove. Fala-se simplesmente de dez leprosos, que fazem grupo entre si e, sem divisão, vão ao encontro de Jesus. Como sabemos, a lepra não era apenas uma úlcera física (ainda hoje devemos trabalhar por a debelar), mas também uma «doença social», porque naquele tempo, por medo do contágio, os leprosos deviam estar fora da comunidade (cf. Lv 13, 46). Por conseguinte não podiam entrar nos centros habitados, mas eram mantidos à distância, relegados para as margens da vida social e até religiosa, isolados. Caminhando juntos, estes leprosos clamam contra uma sociedade que os exclui. E note-se que o samaritano, apesar de ser considerado herético, «estrangeiro», faz grupo com os outros. Irmãos e irmãs, a doença e a fragilidade comuns fazem cair as barreiras e superar toda a exclusão.

Trata-se duma imagem significativa também para nós: se formos honestos connosco mesmos, havemos de nos lembrar que todos estamos doentes no coração, todos somos pecadores, todos necessitamos da misericórdia do Pai. Consequentemente deixaremos de nos dividir com base nos méritos, nas funções que desempenhamos ou em qualquer outro aspeto exterior da vida, e caem assim os muros interiores, caem os preconceitos, e por fim descobrimo-nos irmãos. Como nos recordou a primeira Leitura, o próprio sírio Naaman, apesar de ser rico e poderoso, para curar teve de fazer uma coisa simples: mergulhar no rio onde se banhavam todos os outros. Antes de mais nada, teve que tirar a sua armadura, as suas vestes (cf. 2 Rs 5). Como nos faz bem tirar as nossas armaduras exteriores, as nossas barreiras defensivas e tomar um bom banho de humildade, recordando-nos de que todos somos frágeis por dentro, todos necessitados de cura, todos somos irmãos! Lembremo-nos disto: a fé cristã sempre nos pede para caminhar junto com os outros, para nunca ser caminhantes solitários; sempre nos convida a sair de nós próprios rumo a Deus e aos irmãos, sem nunca nos fecharmos em nós mesmos; sempre nos pede para nos reconhecermos necessitados de cura e perdão, e partilharmos as fragilidades de quem vive ao nosso redor, sem nos sentirmos superiores.

Irmãos e irmãs, verifiquemos se, na nossa vida, nas nossas famílias, nos nossos lugares de trabalho e de convivência diária, somos capazes de caminhar juntamente com os outros, somos capazes de ouvir, superar a tentação de nos entrincheirarmos na nossa autorreferencialidade e pensarmos só nas nossas necessidades. Mas caminhar juntos – por outras palavras, ser «sinodais» – é também a vocação da Igreja. Interroguemo-nos até que ponto somos verdadeiramente comunidades abertas e inclusivas em relação a todos; se conseguimos trabalhar juntos, padres e leigos, ao serviço do Evangelho; se temos uma atitude acolhedora – feita não só de palavras, mas de gestos concretos – tanto para com os distantes como para com todos os que se aproximam de nós, sentindo-se inábeis por causa dos seus percursos de vida conturbada. Fazemo-los sentir parte da comunidade, ou excluímo-los? Tenho medo, quando vejo comunidades cristãs que dividem o mundo em bons e maus, em santos e pecadores: assim acaba-se por se sentir melhor que os outros e manter fora a muitos que Deus quer abraçar. Por favor, sempre havemos de incluir tanto na Igreja como na sociedade, ainda caraterizada por tantas desigualdades e marginalizações. Incluir todos. E hoje, dia em que Scalabrini se torna Santo, quero pensar nos migrantes. É escandalosa a exclusão dos migrantes! Mais, a exclusão dos migrantes é criminosa, fá-los morrer diante dos nossos olhos. E assim temos hoje o Mediterrâneo, que é o cemitério maior do mundo. A exclusão dos migrantes é repugnante, é pecaminosa, é criminosa. Não abrir as portas a quem precisa. «Não! Nós não os excluímos, mandamo-los embora»: para os campos de concentração, onde são explorados e vendidos como escravos. Irmãos e irmãs, hoje pensemos nos nossos migrantes, naqueles que morrem. E aqueles que conseguem entrar: recebemo-los como irmãos ou exploramo-los? Deixo apenas a pergunta…

O segundo aspeto é agradecer. No grupo dos dez leprosos, há apenas um que, ao ver-se curado, regressa para louvar a Deus e manifestar a sua gratidão a Jesus. Enquanto os outros nove ficam purificados mas prosseguem pelo seu caminho, esquecendo-se d’Aquele que os curou (esquecem a graça que Deus lhes dá), o samaritano faz do dom recebido o princípio dum novo caminho: regressa para junto de Quem o sarou, vai conhecer Jesus de perto, inicia uma relação com Ele. Assim, a sua atitude de gratidão não é um simples gesto de cortesia, mas o início dum percurso de gratidão: prostra-se aos pés de Cristo (cf. Lc 17, 16), isto é, faz um gesto de adoração, reconhecendo que Jesus é o Senhor e que é mais importante do que a cura recebida.

E esta, irmãos e irmãs, é uma grande lição também para nós, que todos os dias beneficiamos dos dons de Deus, mas frequentemente prosseguimos pela nossa estrada esquecendo-nos de cultivar uma relação viva, real com Ele. Trata-se duma grave doença espiritual: dar tudo como garantido, inclusive a fé, mesmo a nossa relação com Deus, a ponto de nos tornarmos cristãos que deixaram de saber maravilhar-se, já não sabem dizer «obrigado», não se mostram agradecidos, não sabem ver as maravilhas do Senhor. São «cristãos em água de rosas», como dizia uma senhora que conheci. E acaba-se, assim, por pensar que tudo o que recebemos diariamente seja óbvio e devido. Ao contrário, a gratidão, o saber dizer «obrigado» leva-nos a afirmar a presença de Deus-amor e também a reconhecer a importância dos outros, vencendo o descontentamento e a indiferença que nos embrutecem o coração. É fundamental saber agradecer. Devemos diariamente dar graças ao Senhor, sabermos em cada dia agradecer uns aos outros: em família, por aquelas pequenas coisas que às vezes recebemos sem nos interrogar sequer donde provêm; nos locais que frequentamos quotidianamente, pelos inúmeros serviços de que usufruímos e pelas pessoas que nos apoiam; nas nossas comunidades cristãs, pelo amor de Deus que experimentamos através da proximidade de irmãos e irmãs que muitas vezes em silêncio rezam, oferecem, sofrem, caminham connosco. Por favor, não esqueçamos esta palavra-chave: obrigado! Não nos esqueçamos de sentir necessidade e dizer «obrigado»!

Os dois Santos, canonizados hoje, lembram-nos a importância de caminhar juntos e saber agradecer. O Bispo Scalabrini, que fundou duas Congregações para o cuidado dos migrantes, uma masculina e outra feminina, afirmava que, no caminhar comum daqueles que emigram, é preciso não ver só problemas, mas também um desígnio da Providência: «Precisamente por causa da migração forçada pelas perseguições – disse ele –, a Igreja superou as fronteiras de Jerusalém e de Israel e tornou-se “católica”; graças às migrações de hoje, a Igreja será instrumento de paz e comunhão entre os povos» (A emigração dos trabalhadores italianos, Ferrara 1899). Neste momento, aqui na Europa, há uma migração, que nos faz sofrer tanto e nos impele a abrir o coração: a migração de ucranianos que fogem da guerra. Não esqueçamos hoje a martirizada Ucrânia! Scalabrini olhava mais além, olhava lá para diante, para um mundo e uma Igreja sem barreiras, sem estrangeiros. Por sua vez, o irmão salesiano Artemide Zatti, com a sua bicicleta, foi um exemplo vivo de gratidão: curado da tuberculose, dedicou toda a sua vida a favorecer os outros, a cuidar com amor e ternura dos doentes. Conta-se que o viram carregar aos ombros o corpo morto dum dos seus doentes. Cheio de gratidão por tudo o que havia recebido, quis dizer o seu «obrigado» ocupando-se das feridas dos outros. Dois exemplos!

Rezemos para que estes nossos santos irmãos nos ajudem a caminhar juntos, sem muros de divisão; e a cultivar esta nobreza de alma tão agradável a Deus que é a gratidão.


Eu Sou Porque Nós Somos

A felicidade do encontro

Set 28, 2022 | Ecclesia

Diana Salgado, Economia de Francisco – Portugal

As expetativas para o evento da Economia de Francisco eram enormes!

Finalmente poder conhecer, em presença, a família EoF, com jovens dos vários continentes do mundo, com quem temos vindo a trabalhar desde 2019;

A possibilidade de participarmos em conferências, com importantes referências na investigação / intervenção ativa em diversas áreas;

A vontade de dizer “obrigada!”, Papa Francisco, por mais este desafio que nos fizeste!

Mas Assis, o encontro da Economia de Francisco foi tão, tão mais que isto!

Foi conhecer e percorrer parte do caminho de São Francisco, sendo inspirados a despojar-nos, a prestarmos atenção aos que nos rodeiam, a cuidarmos uns dos outros e da nossa casa comum.

Foi conhecer testemunhos fortes e acutilantes de jovens, de todo o mundo, com experiências, conhecimentos, dificuldades e alegrias tão diversas.

Foi encontrar forma de fazer presentes os que, por diversos motivos, não puderam viajar até Assis!

Foi partilhar a vida, os sorrisos e abraços, pela alegria do encontro, mas também das lágrimas pela emoção incontrolável de nos sabermos em comunidade, dispostos a expor as nossas vulnerabilidades, as nossas dores de crescimento, as nossas dúvidas… Mas também disponíveis a acolher os sinais, a sentir a verdadeira fraternidade e a presença do amor de Cristo, que nos inspira a seguir, a construir em conjunto, a ser pontes.

A riqueza destes dias foi a partilha sincera, a alegria pela consciência da nossa diversidade, a felicidade sentida pelo reconhecimento de tantos que se entregaram por completo a este processo, pondo a sua mente, as suas mãos e o seu coração ao serviço de todos!

A EoF somos nós, cada um de nós, dispostos a abdicar do nosso ego, colocando-nos ao serviço de todos e da nossa casa comum.

It’s only in giving that we, together!, can flourish.

Mas o caminho não termina aqui. Este foi mais um passo na nossa jornada. Ontem reforçamos o nosso compromisso com o pacto firmado com o Papa Francisco, colocando-nos ao serviço para garantir “uma economia guiada pela ética da pessoa e aberta à transcendência, uma economia que crie riqueza para todos, que gere alegria e não apenas bem-estar, porque a felicidade não partilhada é muito pouco.”

O desafio não foi viver estes dias! O desafio continua na nossa escolha diária (e difícil!) de viver estes valores e princípios que defendemos, em sermos testemunho de palavra e de ação.

Obrigada, obrigada, obrigada. Que privilégio este de ser e fazer parte desta incrível comunidade. A EoF somos nós, tu também estás incluído!


Eu Sou Porque Nós Somos

Saúde mental dos padres

João Alves | 10 Jul 2022 | in 7 Margens

Sabemos já, do senso comum adquirido nesta pandemia, do valor que tem a saúde mental nos tempos que correm. Em todas as profissões encontramos desgastes próprios de quem teve que se reinventar, de mudar rotinas e, para além do aspeto profissional, a pressão sobre as famílias, as relações, as rotinas diárias e a tendência para algum desequilíbrio e desajuste na forma de lidar com as emoções, sentimentos e afetos. Sabemos, por isso, que a área da saúde mental é um dos âmbitos prioritários no tempo que vivemos, não só para refazer “estilhaços” de vida que a pandemia provocou, como para readquir novos ritmos de vida onde situações de tensão e conflito, interior e exterior, sejam mais fáceis de gerir.

Em relação aos padres, a imprensa dá destaque a tudo aquilo que é escândalo, seja de cariz sexual, condutas fraudulentas, abusos de poder, e tantos outros comportamentos não apropriados para a condição presbiteral ou do ministério exercido. O escândalo torna-se ainda maior quando a visão mais comum que se tem é a do padre como um homem religioso e de Deus ou da esfera do sagrado, do cuidado e amor aos outros, com uma missão carregada de idealismo e até, muitas vezes, vista com algum heroísmo. Nós, padres, também tantas vezes escondemos as nossas fragilidades, dando a imagem de um “super-padre”, porque aquele que cuida e que está ao serviço tem que ser mais forte que as suas próprias feridas. A verdade é que o ministério é fonte de santidade e de vida plena, mas é também a sua própria traição quando não se consegue, a dada altura, identificar as dinâmicas da própria fragilidade.

Este período de pandemia foi e tem sido difícil para muitos padres. Há dioceses, um pouco por todo o lado, que têm procurado fazer uma releitura da vida do presbitério e da força anímica dos seus presbíteros. Padres que viram agravada a sua circunstância de solidão, fruto de isolamentos forçados, vidas paroquiais ou comunitárias fechadas com a incapacidade de se reinventar na exigência de tempos novos, padres em vida comunitária num maior tempo de relação constante com confronto com as tensões próprias de quem não se escolheu, queixas de distanciamento dos colegas ou bispos na expectativa de uma fraternidade não acontecida, gestão de instituições sociais em situações tantas vezes difíceis e agressivas, etc.

Essas e outras realidades colocaram à vista feridas, fragilidades, imaturidades e inconsistências que todos temos, algumas mais à vista e outras mais camufladas ou até negadas. Contudo, o tempo presente traz novas exigências. Os jovens não são mais os mesmos, muitas pessoas deixaram de viver da mesma forma a comunidade e estas sofreram mutações, não só de pessoas, mas de dinamismos, estando – estou convencido – a viver uma mudança de época sociocultural. Urge agora uma atenção também renovada, claro que na ação pastoral e nos seus processos, mas também nos seus ministros. Estes vivem também a necessidade de recuperarem humana e espiritualmente de dificuldades que a pandemia veio provocar ou colocar em evidência.

Impressionou-me recentemente uma entrevista do padre Hans Zollner, sj, à revista Família Cristã quando diz, a propósito dos padres abusadores, que os abusos surgem 15, 20 anos depois da ordenação, “quando as pessoas estão mais cansadas, esgotadas, sozinhas e chegam a um ponto em que as suas necessidades espirituais e emocionais não são preenchidas. Alguns caem no alcoolismo, outros abusam sexualmente e emocionalmente de menores, de mulheres, para preencher esse vazio”. (Família Cristã nº7/8, p. 52, também com versão digital)

Este é hoje um imperativo na ação eclesial: reconhecer, cuidar, curar e prevenir muitas destas dificuldades e fragilidades que vivem muitos padres. Este é, ao mesmo tempo, um dos âmbitos ainda mais negligenciados, não havendo nenhuma diocese em Portugal que se digne ter um projeto de formação permanente dos presbíteros que cuide e acompanhe, na sua integralidade, ou mesmo, que possa ajudar a uma transição entre um período de formação em seminário e a vivência alegre e feliz do ministério. Não haverá renovação da Igreja em Portugal que possa acontecer se não se cuidar também desta realidade que hoje deve fazer converter mais as nossas dioceses para que possamos viver o ministério de uma forma mais humana e saudável.

João Alves é padre católico da diocese de Aveiro e pároco da paróquia da Vera-Cruz, na mesma cidade.


Eu Sou Porque Nós Somos

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
AO CAZAQUISTÃO
(13 - 15 DE SETEMBRO DE 2022)

ENCONTRO COM OS SACERDOTES, OS DIÁCONOS, OS CONSAGRADOS,
OS SEMINARISTAS E OS AGENTES DA PASTORAL

DISCURSO DO SANTO PADRE

Catedral Mãe de Deus do Perpétuo Socorro (Nur-Sultan)
Quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Amados irmãos bispos, sacerdotes e diáconos, caros consagrados e consagradas, seminaristas e agentes pastorais, bom dia!

Estou feliz por me encontrar aqui no vosso meio, saudar a Conferência Episcopal da Ásia Central e ver uma Igreja feita de muitos rostos, histórias e tradições diferentes, mas todos unidos por uma única fé em Cristo Jesus. D. Mumbiela Sierra, cujas palavras de saudação agradeço, disse: «Na maior parte, somos estrangeiros». É verdade, porque vindes de lugares e países diferentes, mas a beleza da Igreja está nisto: em sermos uma única família, na qual ninguém é estrangeiro. Repito: ninguém é estrangeiro na Igreja, somos um único Povo santo de Deus, rico de tantos povos! E a força do nosso povo sacerdotal e santo está precisamente em fazer da diversidade uma riqueza através da partilha daquilo que somos e temos; a nossa pequenez multiplica-se, se a partilharmos.

Afirma-o precisamente a passagem da Palavra de Deus escutada: o mistério de Deus – diz São Paulo – foi revelado a todos os povos; não só ao povo eleito ou a uma elite de pessoas religiosas, mas a todos. Todo o homem pode ter acesso a Deus, porque – como explica o Apóstolo – todos os povos «são admitidos à mesma herança, membros do mesmo corpo e participantes da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio do Evangelho» (Ef 3, 6).

Gostaria de sublinhar duas palavras usadas por Paulo: herança e promessa. Uma Igreja, por um lado, sempre herda uma história, é sempre filha dum primeiro anúncio do Evangelho, dum evento que a precede, doutros apóstolos e evangelizadores que a estabeleceram sobre a palavra viva de Jesus; por outro, é também a comunidade daqueles que viram cumprir-se em Jesus a promessa de Deus e, como filhos da ressurreição, vivem na esperança da sua realização futura. É verdade! Somos destinatários da glória prometida, que anima com a esperança o nosso caminho. Herança e promessa: a herança do passado é a nossa memória, a promessa do Evangelho é o futuro de Deus que vem ao nosso encontro. Gostaria de me deter nisto convosco: uma Igreja que caminha na história entre memória e futuro.

Em primeiro lugar, a memória. Se hoje neste vasto país, multicultural e multirreligioso, podemos ver comunidades cristãs vibrantes e um sentido religioso que permeia a vida da população, deve-se sobretudo à rica história que vos precedeu. Penso na difusão do cristianismo na Ásia central, que sucedeu já nos primeiros séculos, penso em tantos evangelizadores e missionários que se dedicaram a difundir a luz do Evangelho, fundando comunidades, santuários, mosteiros e lugares de culto. Existe, pois, uma herança cristã, ecuménica, que deve ser honrada e guardada, uma transmissão da fé que viu como protagonistas também muitas pessoas simples, tantos avôs e avós, pais e mães. No caminho espiritual e eclesial, não devemos perder a lembrança de quantos nos anunciaram a fé, porque fazer memória ajuda-nos a desenvolver o espírito de contemplação das maravilhas que Deus operou na história, mesmo no meio das fadigas da vida e das fragilidades pessoais e comunitárias.

Mas tenhamos cuidado! Não se trata de olhar para trás com nostalgia, ficando bloqueados nas coisas do passado e deixando-nos paralisar no imobilismo: esta é a tentação de retroceder. Quando se volta para fazer memória, o olhar cristão pretende abrir-nos à estupefação perante o mistério de Deus, enchendo o nosso coração de louvor e gratidão por tudo o que realizou o Senhor. Um coração agradecido, que transborda de louvor, não cultiva lamentos, mas acolhe como uma graça o hoje que vive. E quer pôr-se a caminho, ir para diante, comunicar Jesus, como as mulheres e os discípulos de Emaús no dia de Páscoa.

É esta memória viva de Jesus que nos enche de maravilha e nos faz tirar sobretudo do Memorial eucarístico a força de amor que nos impele. É o nosso tesouro. Por isso, sem memória, não há estupefação. Se perdemos a memória viva, então a fé, as devoções e as atividades pastorais correm o risco de esmorecer, sendo como fogos de palha que acendem imediatamente mas depressa se apagam. Quando perdemos a memória, esgota-se a alegria; e esmorece também a gratidão a Deus e aos irmãos, porque caímos na tentação de pensar que tudo depende de nós. O padre Ruslan lembrou-nos uma coisa boa: já é muito o ser padre, porque, na vida sacerdotal, apercebemo-nos de que não é obra nossa aquilo que acontece, mas dom de Deus. E a irmã Clara, ao falar da sua vocação, quis antes de tudo agradecer àqueles que lhe anunciaram o Evangelho. Obrigado por estes testemunhos, que nos convidam a fazer grata memória da herança recebida.

Se olharmos para esta herança, que vemos? Vemos que a fé não foi transmitida de geração em geração como um conjunto de coisas que se devem compreender e fazer, como um código fixo duma vez por todas. Não! A fé passou com a vida, com o testemunho que levou o fogo do Evangelho ao coração das situações para iluminar, purificar e difundir o calor consolante de Jesus, a alegria do seu amor que salva, a esperança da sua promessa. Assim, ao fazer memória, aprendemos que a fé cresce com o testemunho; o resto vem depois. Isto é um apelo para todos e quero reiterá-lo a todos, fiéis-leigos, bispos, sacerdotes, diáconos, consagrados e consagradas que trabalham de variados modos na vida pastoral das comunidades: não nos cansemos de testemunhar o coração da salvação, a novidade de Jesus, a novidade que é Jesus! A fé não é uma bela exposição de coisas do passado – isto seria um museu –, mas um evento sempre atual, o encontro com Cristo que acontece aqui e agora na vida. Por isso não se comunica apenas com a repetição das coisas de sempre, mas transmitindo a novidade do Evangelho. Assim a fé permanece viva e tem futuro; por isso gosto de dizer que a fé deve ser transmitida «em dialeto».

E vemos aparecer aqui a segunda palavra: futuro. A memória do passado não nos fecha em nós mesmos, mas abre-nos à promessa do Evangelho. Jesus garantiu-nos que estaria sempre connosco: por conseguinte não se trata duma promessa que aponta apenas para um futuro distante, mas somos chamados a acolher hoje a renovação que o Ressuscitado leva por diante na vida. Apesar das nossas fraquezas, Ele não Se cansa de estar connosco, construindo juntamente connosco o futuro da sua e nossa Igreja.

Com certeza, à vista de tantos desafios da fé – especialmente relativos à participação das jovens gerações –, bem como dos problemas e fadigas da vida e perante a leitura das estatísticas na vastidão dum país como este, poder-se-ia sentir «pequenos» e inadequados. Contudo, se adotarmos o olhar esperançoso de Jesus, faremos uma descoberta surpreendente: o Evangelho diz que ser pequeno, pobre em espírito, é uma bem-aventurança, a primeira bem-aventurança (cf. Mt 5, 3), porque a pequenez entrega-se, humildemente, ao poder de Deus e leva-nos a não apoiar a ação eclesial sobre as nossas capacidades. Isto é uma graça! Repito: há uma graça escondida no facto de se constituir uma pequena Igreja, um pequeno rebanho; em vez de exibir as nossas forças, os nossos números, as nossas estruturas e todas as outras formas de relevância humana, deixamo-nos guiar pelo Senhor e colocamo-nos, com humildade, ao lado das pessoas. Ricos de nada, pobres de tudo, caminhamos com simplicidade, próximo das irmãs e irmãos do nosso povo, levando às situações da vida a alegria do Evangelho. Como fermento na massa e como a menor das sementes lançadas à terra (cf. Mt 13, 31-33), vivemos os acontecimentos felizes e tristes da sociedade onde vivemos para a servir a partir de dentro.

Ser pequeno lembra-nos que não somos autossuficientes: que precisamos de Deus, mas também dos outros, de todos eles: das irmãs e irmãos doutras confissões, de quem professa um credo religioso diferente do nosso, de todos os homens e mulheres animados de boa vontade. Damo-nos conta, com espírito de humildade, de que só juntos, no diálogo e no acolhimento recíproco, se pode verdadeiramente realizar algo de bom para todos. É a tarefa peculiar da Igreja neste país: não um grupo que se arrasta nas coisas de sempre ou se fecha na própria concha porque se sente pequeno, mas uma comunidade aberta ao futuro de Deus, abrasada pelo fogo do Espírito: viva, esperançosa, disponível às novidades d’Ele e aos sinais dos tempos, animada pela lógica evangélica da semente que frutifica no amor humilde e fecundo. Deste modo, abre caminho não só para nós, mas realiza-se também para os outros, a promessa de vida e de bênção que Deus Pai derrama sobre nós por meio de Jesus.

E realiza-se sempre que vivemos a fraternidade entre nós, que cuidamos dos pobres e de quem está ferido na vida, sempre que testemunhamos a justiça e a verdade nas relações humanas e sociais, dizendo «não» à corrupção e à falsidade. Que as comunidades cristãs, em particular o Seminário, sejam «escolas de sinceridade»: não ambientes rígidos e formais, mas ginásios de treino para a verdade, a abertura e a partilha. E recordemo-nos de que, nas nossas comunidades, somos todos discípulos do Senhor: todos discípulos, todos essenciais, todos com igual dignidade. Não só os bispos, os sacerdotes e os consagrados, mas todos os batizados foram imersos na vida de Cristo e n'Ele – como nos recordava São Paulo – são chamados a receber a herança e acolher a promessa do Evangelho. Por isso deve-se dar espaço aos leigos: far-vos-á bem, para que as comunidades não se tornem rígidas nem se clericalizem. Uma Igreja sinodal, em caminho para o futuro do Espírito, é uma Igreja participativa, corresponsável. É uma Igreja capaz de sair ao encontro do mundo, porque treinada na comunhão. Surpreendeu-me que isto aparecesse em todos os testemunhos: não só o padre Ruslan e as irmãs, mas também Kirill, pai de família, lembraram-nos que na Igreja, em contacto com o Evangelho, aprendemos a passar do egoísmo ao amor incondicional. É a saída de si mesmo, de que todo o discípulo tem constante necessidade; precisa de alimentar o dom recebido no Batismo, que em todo o lado, nos nossos encontros eclesiais, nas famílias, no trabalho, na sociedade, nos impele a tornar-nos homens e mulheres de comunhão e de paz, que semeiam o bem onde quer que se encontrem. A abertura, a alegria e a partilha são os sinais da Igreja primitiva; mas são também os sinais da Igreja do futuro. Sonhemos e, com a graça de Deus, construamos uma Igreja mais habitada pela alegria do Ressuscitado, que rejeite medos e lamentos, que não se deixe endurecer por dogmatismos e moralismos.

Amados irmãos e irmãs, peçamos tudo isto às grandes testemunhas da fé deste país. Quero recordar em particular o Beato Bukowiński, sacerdote que gastou a sua existência a cuidar dos doentes, dos necessitados e dos marginalizados, pagando a fidelidade ao Evangelho na própria pele com a prisão e os trabalhos forçados. Disseram-me que, ainda antes da sua Beatificação, havia sempre flores frescas e uma vela acesa no seu túmulo. É a confirmação de que o povo de Deus sabe reconhecer onde existe a santidade, onde há um pastor apaixonado pelo Evangelho. Quero dizer de modo particular aos bispos e aos sacerdotes, mas também aos seminaristas, que a nossa missão não é ser administradores do sagrado ou polícias preocupados em fazer respeitar as normas religiosas, mas pastores próximos do povo, ícones vivos do coração compassivo de Cristo. Recordo também os Beatos mártires greco-católicos, o Bispo D. Budka, o padre Zaryczkyj e Gertrude Detzel, cujo processo de beatificação já começou. Eles, como nos disse a senhora Miroslava, trouxeram o amor de Cristo ao mundo. Vós sois a sua herança: sede promessa de novas santidades!

Estou unido a vós e vos encorajo: vivei com alegria esta herança e testemunhai-a com generosidade, para que quantos encontrardes, possam dar-se conta de que há uma promessa de esperança também para eles. Acompanho-vos com a oração e, agora, confiemo-nos de modo particular ao Coração de Maria Santíssima, que venerais de modo especial como Rainha da Paz. Li algures este admirável sinal materno, que aconteceu em tempos difíceis: enquanto muitas pessoas deportadas estavam condenadas a passar fome e frio, Ela, Mãe terna e carinhosa, escutou a prece que os seus filhos Lhe dirigiam. Num dos invernos mais rígidos, a neve derreteu-se rapidamente fazendo emergir um lago com muitos peixes, que saciaram tantas pessoas famintas. Que Nossa Senhora derreta o frio dos corações, infunda nas nossas comunidades um renovado calor fraterno e nos dê esperança e um novo entusiasmo pelo Evangelho! Com afeto, vos abençoo e agradeço. E peço-vos, por favor, que rezeis por mim.


Eu Sou Porque Nós Somos

Isabel II – 70 anos de serviço público

Padre Peter Stilwell, Patriarcado de Lisboa in ECCLESIA | Set 9, 2022

Foram sete décadas de dedicação ao bem comum das 56 nações da Commonwealth, a que presidia, mas sobretudo das 14 de que era chefe de estado. E o exemplo, por todos reconhecido, transpôs largamente essas fronteiras.

Subiu ao trono com 25 anos, e teve Winston Churchill a apoiá-la nos primeiros anos da sua aprendizagem de rainha. Pairava sobre
ambos, como a ameaça à monarquia, a abdicação de Eduardo VIII por motivos sentimentais. Jorge VI, pelo contrário, tinha-se revelado um exemplo de coragem, discrição e espírito de serviço; uma referência fundamental para o ânimo e unidade da nação nos anos difíceis da guerra. Coroada num ritual feito de referências bíblicas, Isabel assumiu o juramento e a unção desse dia como estruturantes da sua missão. Abdicou do interesse e opinião pessoal para promover a confiança no estado e a estabilidade das instituições públicas.

Falar de Isabel II na sua vida pública ou familiar, é falar, portanto, também da sua fé profunda. Como rainha de Inglaterra, e chefe temporal da Igreja Anglicana, visitou cinco dos sete papas em funções durante o seu reino, e fez questão de criar pontes com dirigentes de outras comunidades religiosas. Mas foi nas suas mensagens à nação que assistimos de forma crescente ao testemunho público da sua fé cristã. Fazia-o com naturalidade e elegância, sem imposição, prestando também nisso um serviço. Pois, se a rainha partilhava com simplicidade os valores que a motivavam, o público étnica e religiosamente plural a que se dirigia também o podia fazer, mas com a delicadeza e o respeito com que ela a todos tratava.

Faleceu na Festa da Natividade de Nossa Senhora. Que descanse em Paz!


Eu Sou Porque Nós Somos

“O que diz o Espírito às igrejas” – Acerca de uma carta aberta à Conferência Episcopal

Peter Stilwell | 4 Set 2022 in 7 Margens|

Uma “Carta Aberta Sobre o ‘Relatório de Portugal ao Sínodo 2021-2023’” (CA), a recolher assinaturas nas redes sociais! Aí está um desafio que promete incendiar os ânimos. Convenhamos que a primeira fase do processo sinodal decorreu de forma relativamente morna, entre nós.

Comecemos pelo essencial. Na homilia que proferiu no consistório de 27 de agosto, o Papa Francisco referiu-se, a certa altura, ao “pequeno fogo […] aceso pelo próprio Jesus, perto da praia, enquanto os discípulos estavam nos barcos e puxavam a rede cheia de peixes. E Simão Pedro chegou primeiro, nadando, cheio de alegria (cf. Jo 21, 7). O fogo do carvão é suave, escondido, mas dura muito tempo e é usado para cozinhar. E ali, na margem do lago, ele cria um ambiente familiar onde os discípulos desfrutam, maravilhados e emocionados, a intimidade com seu Senhor.”[1] A iniciativa foi de Jesus, Pedro aproximou-se primeiro, juntaram-se então os outros discípulos e trouxeram mais peixe para a refeição. Acrescente-se “a chama poderosa do Espírito de Deus, é o próprio Deus como ‘fogo devorador’ (Dt 4, 24; Hb 12, 29), Amor apaixonado que purifica, regenera e transfigura tudo”, e aí temos uma belíssima imagem do processo sinodal.

Seguem-se as minhas achas para esta fogueira fraterna:

1. A minha primeira reação à síntese apresentada pela CEP foi, como a dos signatários da CA, a vontade de puxar do teclado e propor alterações. Mas fui primeiro passar os olhos pela imprensa católica internacional, onde percebi que, segundo o cardeal Mario Grech, uma síntese geral dos relatórios recebidos circulará, no outono de 2022, para discussão ao nível das igrejas locais. Portanto, reações imediatas como a minha, ou a da CA, são para já extemporâneas.

2. Contudo, mesmo nessa nova fase de discussão local, não fará sentido reivindicar a exclusão de pareceres com que não concordamos. Os lineamenta que sairão desse longo trabalho para o sínodo dos bispos de outubro de 2023, deverão, a meu ver, refletir a pluralidade de opiniões dos mil e tal milhões de católicos espalhados pelo mundo. Só assim os bispos poderão desempenhar a sua vocação de construtores de pontes, procurar consensos, corrigir desvios sem “apagar a torcida que fumega”, fomentar a unidade de todos na fé dos apóstolos, e remendar a vasta rede de caridade que Deus lança sobre o mundo para a salvação de todos.

3. O mal-estar que eventualmente sentimos por a Conferência Episcopal (CEP) ter recolhido no “Relatório de Portugal ao Sínodo” expressões que não são nossas, ou que, na opinião dos signatários da CA, são mais do mundo que da tradição da Igreja, é uma consequência natural do inovador processo adotado. Se a CEP tivesse selecionado as respostas ao Vademécum, acolhendo-as de acordo com uma pressuposta reta doutrina, excluindo ou podando as diferenças, a enorme diversidade de formações, vivências e sensibilidades que observamos na Igreja em Portugal estaria a ser considerada uma ilusão de ótica; e a CEP estaria a dizer, na próxima fase continental e a Roma, que em Portugal os católicos pensam todos do mesmo modo. Note-se que, por essa via, os subscritores da CA – ou outros como eles – correriam o perigo de ver, nessa uniformização, afastadas as suas próprias perspetivas. A seleção – para não dizer censura – das respostas, como prática institucional, levaria a prazo as várias escolas e sensibilidades teológicas – que legitimamente existem entre nós, e desde sempre na tradição católica – a disputar o controlo desse processo. E aí, sim, abríamos o caminho na Igreja à disputa do poder próprio das democracias e autocracias do mundo.

4. Moralmente mais grave, no entanto, nessa hipotética “normalização” das respostas perante uma consulta sinodal, seria a apresentação de uma falsa narrativa pela autoridade episcopal. Tanto aqui como ao nível doutrinal se aplica a palavra-mandato do Senhor: “A verdade vos libertará” (Jo 8,31-32). No caso em apreço: a verdade de quem são e do que disseram os membros da comunidade. Se os enviados das autoridades, no tempo de Jesus, tivessem a noção deontológica de que deviam ajustar os seus relatórios à sensibilidade e doutrina de quem os enviou, os desafios lançados por João Batista e Jesus, os seus apelos à “mudança de mente”, teriam sido limados à partida, e não teria havido conversões, nem martírio, nem paixão; e todos estariam bem “como Deus com os anjos”.

5. Como eu, os autores da CA encontraram no Relatório algumas das suas bêtes noires favoritas e a tentação imediata é perder de vista o conjunto do processo sinodal. Trata-se, afinal, como o nome indica, de um “relatório” da consulta feita, não de um documento de doutrina. Pela natureza das coisas, portanto, praticamente ninguém se reverá em tudo. É bom lembrar, a esse respeito, que no séc. XIX perguntaram a Newman se era legítimo na Igreja Católica consultar os leigos sobre questões de doutrina. O então padre oratoriano, especialista em estudos patrísticos, publicou a sua resposta num célebre artigo (1859), lembrando que no século IV momentos houve em que a maioria dos bispos se mostrou favorável a formulações doutrinais sobre a natureza do Verbo posteriormente rejeitadas como heresia. Nessas alturas, observava Newman, a verdadeira tradição da fé dos apóstolos foi conservada não pela hierarquia, mas no sentir da fé do comum dos fiéis. Mas como identificar essa vivência pelos fiéis da fé dos apóstolos, sobretudo em tempos de controvérsia? Como descobri-la na vida e devoção de quem a encarna no quotidiano, mas provavelmente não a saberá formular senão em termos da sua cultura geral? Dada a importância nevrálgica da questão, Newman começa o artigo por analisar o uso que fazemos do verbo “consultar”. A palavra, afinal, não é unívoca. Consultar o papa, o colégio episcopal, ou as escolas teológicas sobre questões de doutrina tem hoje regras consensuais que o tempo foi decantando. Mas numa auscultação alargada dos fiéis sobre os conteúdos da fé, observa Newman, a palavra deve ser entendida de outra forma. Consulta-se os fiéis como quem consulta um relógio, e não como quem consulta um médico. Nesse sentido, o Relatório da CEP dá-nos conta do estado atual desse grande “relógio” que são os fiéis da Igreja Católica em Portugal. Para sabermos a “data, hora e minuto”, ou seja, o estado atual da encarnação do evangelho entre nós, haverá agora que distinguir o essencial do secundário, ler o que dizem os “ponteiros”, e interpretar a informação que nos fornecem. Por outras palavras, se não tolerarmos a imprecisão da linguagem e a contaminação do ambiente; se não contemplarmos o “abismo”, o “informe”, o “vazio” (Gn 1,3); se não soubermos detetar a nova criação que neles germina, como havemos de discernir por onde sopra o Espírito?

6. A título de exercício mental, se a “normalização” precipitada da vivência e linguagem dos fiéis tivesse sido aplicada noutras épocas, teriam, provavelmente, sido eliminadas com a espuma religiosa e cultural do tempo as propostas mais controversas, os desafios mais exigentes, as formulações mais audazes da vida cristã a que hoje devemos uma renovação evangélica da Igreja em momentos críticos da sua história. Onde estaríamos hoje se não tivesse havido, por parte de alguma autoridade da Igreja, a grandeza de alma e o discernimento para perceber, entre tantos outros, o carisma de um Antão do Egipto, de um Francisco de Assis, de um Inácio de Loyola, de uma Teresa de Ávila, de um João da Cruz, de um José Maria Escrivá, de um Joseph Cardijn ou de uma Teresa de Calcutá?

7. Em nome de uma determinada eclesiologia e leitura da história, que nos dariam pano para mangas noutro tipo de reflexão, os autores da CA relativizam a consulta alargada aos fiéis e destacam a responsabilidade da hierarquia na Igreja Católica, por ter sido ela mandatada pelo Senhor a assegurar em cada época a transmissão do Evangelho, a fidelidade à Tradição. Mas o Relatório da CEP não põe isso em causa. Pelo contrário: o processo foi lançado pelo próprio Papa, passou pelas conferências episcopais, bispos diocesanos e superiores religiosos e teve em vista, nesta fase, a auscultação dos fiéis. Os relatórios diocesanos, nacionais e continentais registam os procedimentos adotados e os pareceres recebidos. Uma crítica legítima de qualquer desses relatórios, portanto, teria de demonstrar que nele faltam elementos significativos dos pareceres recolhidos. Não faz sentido questioná-los por neles encontramos pareceres com que não concordamos. Em Outubro de 2023, lidos os relatórios, e seguramente ouvidos inúmeros pareceres de peritos e espontâneos, caberá, então sim, ao colégio episcopal presidido pelo Papa discernir o que “diz o Espírito às igrejas” (Ap 3,22).

Peter Stilwell é padre católico. Foi professor da Faculdade de Teologia e e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa e é ex-reitor da Universidade de São José, de Macau.

[1] Homilia no Consistório para a Criação de Novos Cardeais, 27.08.2022.


Eu Sou Porque Nós Somos

Vaticano

Diálogo “intenso”, clima “fraterno” e vontade de aprender marcam encontro dos cardeais com o Papa

In 7Margens | 29 Ago 2022

Do encontro à porta fechada entre o Papa e os cardeais de todo o mundo, a decorrer no Vaticano entre esta segunda e terça-feira (29 e 30 de agosto), pouco se sabe ainda. Convocada por Francisco com o objetivo de aprofundar aspetos da Praedicate Evangelium (a constituição apostólica em vigor desde 5 de junho passado), a reunião é a mais participada de sempre desde o início do pontificado e alguns cardeais deixaram já entrever que o diálogo tem sido “aberto e intenso”, num “clima fraterno”, em que todos manifestam vontade de aprender e aproveitar para conhecer-se melhor.

São 197 os cardeais, do total de 226 do colégio, que se deslocaram a Roma e aos quais foi dada nas últimas semanas uma agenda para indicar temas e perguntas sobre diferentes aspetos relacionados com a mais recente constituição. O primeiro dia de encontro foi marcado pelos debates em pequenos grupos e segue-se, na manhã desta terça-feira, a discussão plenária.

A primeira sessão da manhã de segunda-feira “ocorreu num clima muito fraterno”, disse ao Vatican News o cardeal Enrico Feroci, pároco de Santa Maria del Divino Amore, em Castel di Leva. Depois da oração inicial, Francisco abriu o encontro com algumas palavras, convidando todos a darem o seu contributo ao longo dos dois dias de reflexão. Os cardeais abordaram dois temas principais: o da comunhão e testemunho do amor recíproco entre os cristãos, e o da dificuldade por parte da sociedade atual em abrir-se à mensagem do Evangelho, bem como as formas de superar essas dificuldades.

O cardeal Marcello Semeraro, prefeito do Dicastério das Causas dos Santos, destacou por sua vez a grande adesão dos cardeais ao encontro, com um “diálogo aberto e intenso”, em especial na perspectiva missionária que traça a nova Constituição apostólica e a necessidade de foco no anúncio do maior mandamento, o da caridade.

Para o cardeal Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, na Amazônia, as diferenças já se fazem sentir. “Agora, já não se vem a Roma para dizer o que fizemos, agora vem-se para aprender, mas a Cúria também sabe aprender de uma maneira diferente. Percebe-se melhor quem está ao serviço do Santo Padre, ao serviço dos bispos, e esta é uma esperança de ser uma Igreja mais fraterna em que se ouve, onde se vive e assume a diversidade cultural”, sublinhou em declarações ao Vatican News.

As perguntas sobre as quais refletir são muitas, recorda o novo cardeal Arthur Roche, prefeito do Dicastério para o Culto Divino: a colaboração entre a Cúria e os episcopados, a presença dos leigos em papéis de responsabilidade, a “missionariedade” e a “conversão da Igreja”. Em particular, os dois últimos “são elementos muito importantes”, considera o cardeal inglês. “A Praedicate Evangelium não é apenas algo para a reforma da Cúria, é também para as relações entre todas as Conferências Episcopais e a Santa Sé. Missão e conversão envolvem todos num processo quase sinodal. Podemos dizer que somos uma Igreja em peregrinação”.

E o cardeal colombiano Jorge Enrique Jiménez Carvajal conclui: “O Consistório e o encontro com o Papa ajudam-nos a conhecer-nos um pouco, a sentirmo-nos mais conscientes e a prepararmo-nos para o futuro”.


Eu Sou Porque Nós Somos

“Nós, cristãos, não somos educados para ler a realidade. Só para os sacramentos. Por isso, as igrejas estão vazias”

ESPECIAL ENTREVISTA P. DOMINGOS MONTEIRO DA COSTA

Rita Carvalho e Rúben Marques| 11 Ago 2022 | in Ponto SJ

Aos 80 anos, o P. Domingos Monteiro da Costa, jesuíta há 63, celebrou 50 anos de sacerdócio. Pároco da Mexilhoeira Grande, no Algarve, há 47 anos, aí desenvolve um forte e intenso trabalho pastoral e social.

Estamos na aldeia de São José de Alcalar, na Paróquia da Mexilhoeira Grande, no Algarve, com o P. Domingos Monteiro da Costa, sj, que celebrou no dia 30 de julho 50 anos de sacerdócio. Como é que olha para a sua vida e como se sente?

Olho com muita gratidão. Foi o Senhor que me meteu neste caminho e eu fui aceitando. É mais fácil olhar agora retrospetivamente para aquilo que o Senhor foi pedindo através deste seu servo inútil, como diria São Paulo, do que na altura que tinha o caminho aberto, sem saber para onde ia, nem onde ia dar.

E sente-se animado, com genica?

Concerteza. Costumo pensar que trabalho mais atualmente, embora doutra maneira, do que no início, pois quando vim para a Mexilhoeira Grande não havia nada para fazer. O próprio bispo quando me pediu para vir para cá deu-me a entender que era para entreter o povo e fazer o que este desejasse: enterros, batismos, casamentos. Se calhar, por isso, só me pediu para ficar dois meses. Quando fui entregar a paróquia ao fim desses dois meses, perguntou-me se estava desanimado e eu disse: “Não, pelo contrário”. “Então, continue.”

Dois meses que foram muitos anos…

Sim, 47 anos. Dos meus 50 anos de padre, 47 foram dedicados a essa paróquia.

Recuando um pouco… o P. Domingos nasceu na freguesia de São Bartolomeu do Rego, concelho de Celorico de Basto, numa família humilde. Como descreveria a sua família, as suas origens e os primeiros anos de vida?

O meu pai foi imigrante, eu tinha 7 anos quando ele foi para Aveiro, dele tenho poucas recordações pois vinha raríssimas vezes a casa. Fui para o seminário com 13 anos. Enfim, não ajudou nada, pois não tínhamos muitas visitas. Tinha três irmãs, era o único rapaz, e connosco vivia também a minha avó paterna que ficou viúva muito cedo, e a minha mãe. Eram as duas analfabetas. A minha mãe muito revoltada, pois na família dela eram muitos irmãos e só os rapazes foram para a escola. De revolta e protesto – também eu na vida agi muito por protesto – disse que havia de mandar os filhos todos à escola. E mandou, numa altura em que a escola primária não era obrigatória.

Nem as mulheres iam à escola…

Sim. Também não havia muitas professoras, eram regentes. Era uma sala com 120 crianças, das quatro classes, pelo que quem ia para a primeira classe passava dois ou três anos, pois o interesse era levar as pessoas a exame na quarta classe.

O P. Domingos lançou recentemente um livro sobre a história da sua vida e missão. Uma das brincadeiras que refere em criança era fingir de padre, a imitar o senhor abade da sua paróquia. Era uma brincadeira comum a todas as crianças ou já um indício do que estava para vir?

Era uma brincadeira que as crianças do meu lugar faziam. Éramos uma família muito cristã, onde a minha avó ia todos os dias à missa e obrigava-me a ir também, às sete horas da manhã. Não havia as brincadeiras que há hoje, para jogarmos à bola era com uns trapos cosidos. Sabia lá eu o que era o futebol… Jogava à macaca com as minhas irmãs porque era o único rapaz. Mas como rapaz, achava que também devia promover algumas brincadeiras e lembrei-me de brincar à padre, usando roupas da minha mãe: fazia sermões e cortava a broa em rodelinhas para dar a comunhão. Mais tarde, quando comecei a saber ler, na terceira classe, como a minha mãe era costureira, vinham pessoas fazer provas de roupa lá a casa. Aos domingos à tarde eu lia uns livrinhos que havia sobre a vida dos santos (não havia sagrada escritura, na altura) ou as aparições de Fátima. Quando descobri que Nossa Senhora tinha aparecido aos pastorinhos, eu que também ia com uma ovelha, uma cabra e uma vaca para o monte, pensei: porque não brincar também aos Pastorinhos de Fátima? Éramos três, duas raparigas e um rapaz, éramos pastores, havia uma capela no sítio para onde íamos com o gado…

Identificava-se com os Pastorinhos?

Sim, eu fazia de Francisco, a minha irmã mais nova, que foi para freira, fazia de Lúcia e a mais nova de Jacinta. Exigia à minha mãe que elas fossem comigo para sermos os três e íamos rezar o terço para a porta da capela do Viso e deixávamos a bicharia pastar longe. Uma altura, a minha irmã Rosinda disse que não podíamos ir para o campo de milho, que não era nosso, porque a bicharia podia comer o milho. Eu disse: “Ó Rosinda, se Nossa Senhora pode aparecer aos pastorinhos, também pode guardar os bichos, vamos mas é rezar o terço!” Quando acabamos, os bichos tinham saltado para o campo de milho e andavam com umas barrigas enormes. A minha irmã disse: “Eu não te dizia?” E eu respondi: “Já que Nossa Senhora não guardou os animais, a partir de hoje não nos apanha mais a rezar o terço à porta da capela”. Fizemos greve. Zanguei-me com Nossa Senhora, mas ela, pelos vistos, não se zangou connosco.

A sua entrada para o seminário deu-se pela mão de um amigo lá da terra, o António, que estava a estudar e quando veio a casa lhe falou disso. Que idade tinha?

Tinha 12 anos, andava na quarta classe e era acólito. Havia vários seminaristas no seminário de Braga que eram os filhos dos lavradores, pois naquela altura não havia outra possibilidade de estudar senão no internato. Para os rapazes, era o seminário, não que quisessem ser padres. Quando eles vinham de férias, eu era marginalizado e deixava de ser acólito pois eles é que acolitavam. Mas eu não deixava de ir à missa. Um dia, tinha 10 anos, houve confesso e fui-me confessar a um padre da freguesia vizinha. Ele perguntou-me o que queria ser quando fosse grande e ficou muito contente: “Ah, muito bem, queres ser padre”. E eu respondi: “Mas eu não quero ser padre como você nem como o sr. Abade da minha terra!”. E ele respondeu: “Mas tu queres ser padre e não queres ser como nós?” E eu perguntei: “Mas não há padres diferentes?” E ele: “Não, se queres ser padre tens de ser como nós”. E eu respondi: “Então, não quero!”. Quando cheguei aos 12 anos, conheci esse rapaz com quem tinha brincado, o António do Dias, os pais dele eram os que nos lavravam os campos e nós íamos trabalhar para a família deles. Ele andava noutro seminário, mas que eu não sabia qual. Era muito devoto e quando vinha de férias convidava-me para ir à igreja com ele. Para além da missa de manhã, ia à igreja de manhã e à tarde, e convidava-me para ir rezar com ele, coisa que os outros seminaristas não faziam. Eu disse: “Não me arranjas para eu ir para o teu seminário?” Ele disse que sim, que ia falar com o reitor, e depois veio o inquérito e o formulário para preencher. Mas a minha mãe não sabia ler, foi através do padre da minha terra que o preenchi. Vinha lá a pergunta se eu sofria de alguma doença e a minha mãe, como era sincera, disse que eu tinha dores de barriga. A resposta parece que foi a seguinte – parece, pois eu nunca a li – os jesuítas queriam padres saudáveis e eu não podia entrar.

Foi a primeira deceção…

Sim, foi uma deceção enorme e passei um ano em casa. Havia alguns lavradores que me queriam para criado, e eu continuei como acólito na missa de todos dias. Na altura, providencialmente, a minha irmã foi trabalhar para o hospital de Felgueiras. Em dois meses, eu e a minha mãe só lhe fizemos uma visita, fomos a pé, três horas para cá, três horas para lá… E quem nos havia de receber? O capelão. Fez-me a mesma pergunta: “O que queres ser quando fores grande?” E eu respondi: “Quero ser padre, mas já não posso”. E ele: “Porquê?” Contei-lhe a história e ele disse: “Podes ir para padre, sim, as doenças curam-se”. A minha mãe explicou que dera aquela resposta porque mentir era pecado e conduzia ao inferno. E ele disse: “Vai para o inferno, o quê? Essa resposta impediu o seu filho de ir para o seminário!”. Saí dali numa correria louca para chegar a casa para escrever a carta. No outro dia fui ter com a professora da quarta classe, fomos a ditado, e eu, que não tinha livro nem caderno, tive 17 erros. Eu que habitualmente nunca tinha erros!! E disse: “Senhora Professora, amanhã vou dar zero erros”. E assim foi. Depois veio a resposta de Macieira de Cambra, do Sr. P. Abel Guerra, que foi a pessoa que mais me marcou, que dizia que passaria pela minha terra em agosto de 1953 para me examinar. Quando me examinou ainda procurei levar mais uns miúdos comigo, mas quando ele punha as perguntas, quem não sabia responder, não respondia, e eu levantava sempre o dedo. Respondi a tudo e ele disse: “Vais para o seminário!”. E eu disse: “Sr. Padre, venha ver a nossa casa, a nossa pobreza, os meus pais não podem pagar nada…” E ele: “Nem eu nem Deus queremos o teu dinheiro, eu próprio te arranjarei uma madrinha para te custear os estudos”. Abriu-se o céu diante de mim…

Mas depois não conseguiu entrar à primeira…

Não. Perguntou-me para onde eu queria ir porque havia a Escola Apostólica (de Macieira de Cambra) e a secção de Soutelo (Vila Verde, Braga) que ficava perto da minha terra. Na de Macieira de Cambra, distrito de Aveiro, estava o António do Dias, e eu disse que queria ir para aí, mas ele disse que em Soutelo ficava mais perto de casa, e quem não tinha dinheiro não ia a férias. Deve ter ficado convencido de que era isso o combinado e mandou-me para Soutelo. A 30 de setembro de 1953 a minha mãe leva-me a Soutelo e batemos com o nariz na porta. O irmão coadjutor recebeu-me com toda a alegria, despejou-me o saco da roupa, foi-me fazer a cama enquanto esperava pois o P. Reitor estava a almoçar. Quando este chegou com uma lista, perguntou: “Como é que o menino se chama? Não está na lista. E o número de roupa? Não está na lista. Quem é que o mandou para aqui? E onde está a carta do Sr. Abade?” Ele ficou com ela, respondi. “Então tem que ir embora”. O irmão ainda disse que já me tinha feito a cama. E ele: “Desfaça-a”. Ainda pediu para eu ficar uns dias e depois ir para lá, mas ele não deixou. Voltei outra vez para casa, fui falar com o Sr. Abade que me mostrou outra vez a carta, escreveu outra, e tive de esperar até meados de outubro. Voltei a encontrar esse padre na Filosofia, hei-de lembrar-me sempre dele. Via-o e pensava: foi este sujeito que me fez voltar para casa! Mas nunca lhe contei a história e ele nunca me reconheceu.

Mas o importante é que conseguiu chegar ao destino.

Sim, depois tive umas aulas extraordinárias, o meu conterrâneo deu-me umas explicações de latim e de matemática. Quando vieram as primeiras notas, fui o único do primeiro ano que fui ao quadro de honra.

E nessa altura já tinha alguma ideia do que era a Companhia de Jesus e ser jesuíta?

Nada. Eu queria era ser um seminarista diferente, manter-me pobre. Até pelo exemplo contrário que tinha: o Sr. Abade convidava os seminaristas para o pequeno almoço a seguir à missa e eu, que era acólico, nunca me convidou para nada. Incomodava-me também que quando dava a comunhão aos pobres, à minha família, irmãs, e avó, partia a hóstia e dava metade a cada um. Aos senhores lavradores dava a hóstia inteira. Eu cá para mim: “Não, eu quero ser um padre diferente, quando for padre farei exatamente o contrário”. Mas devo dizer que nunca parti a hóstia em metades.

Foi jesuíta mais ou menos por acaso?

Sim, sim. Quer dizer, para Deus não há acasos… Deus pôs-me no caminho as condições necessárias e suficientes e limites. Agora, a posteriori, depois de ter feito o caminho, é que me admiro como Deus combina tão bem as coisas. Isto são os milagres do dia a dia. Para mim, os milagres não são as grandes curas, são o dia a dia. Sem a gente prever nem combinar nada, acaba por chegar onde queria, muitas vezes por caminhos extraviados. Lá diz o povo: Deus não dorme; Deus escreve direito por linhas tortas; Deus sabe tirar o bem até do mal. Foi o que aconteceu comigo. O que parecia mal e liquidado volta a ser possível. Isto é que é o maravilhoso.

E isso aconteceu-lhe várias vezes na vida.

Muitas vezes! Há dias numa conversa com o diretor do jornal Folha do Domingo, da diocese do Algarve, ele admirava-se: “Como é que você consegue ler através do negativo para passar ao positivo?”. E eu respondi: “Isso é próprio dos profetas, pois os do Antigo Testamento conseguiam ler a realidade a partir de Deus, exatamente em circunstâncias de vazio total de Deus”. Se os cristãos não conseguem descobrir a ausência de Deus… porque Deus também se manifesta, creio eu, através da sua ausência. Hoje queixamo-nos de que o mundo está sem Deus, sem valores… Eu dou-me muito bem com o mundo pois posso dizer, como Jesus Cristo, “venci o mundo”. O meu pequeno mundo da Mexilhoeira Grande, claro. No princípio, fizeram-me as guerras todas para eu me ir embora.

Queria voltar ao tempo do Noviciado. Para o P. Domingos havia regras que não faziam sentido, certo?

Na Escola Apostólica não, aí foi a melhor parte da minha formação. Éramos adolescentes e éramos tratados como adultos. Mais tarde, quando chegámos ao Noviciado e Juniorado, foi uma volta de 180 graus. Havia coisas que não dava para compreender. Eu tive de aguentar, claro…

Já dava trabalho aos seus superiores?

Ai pois dava, com certeza. Era tímido, mas sofria, sabia que eram questões transitórias e estava sempre a sonhar com a fase que vinha a seguir, pois queria era avançar e chegar depressa a padre. Até por duas vezes procurei apressar ser padre, no Magistério queria ter só dois anos e tive três; na Filosofia fiz os exames em quatro anos em vez de três, para vir para Portugal mais cedo, mas o P. Fragata disse-me que não. Em Paris fiz os exames de três em dois anos, aí não consultei ninguém e se consultasse não tinha vindo.

Mas essas regras da altura que hoje, olhando para trás, não nos fazem sentido, como conversarem em latim…para o P. Domingos isso na altura já não fazia sentido…

Sim. Ou como levar o chapéu preto, à padre. Uma vez um colega meu deixou-o levar pelo vento e claro que foi “dizer a culpa”, que era ajoelhar-se no refeitório, durante a refeição, diante dos padres todos e dizer: “Reverendos padres e irmãos, em obediência à autoridade venho dizer a minha culpa…”

Foi nessa altura que começou o seu trabalho apostólico, a dar aulas de religião e moral, catequese e a visitar os presos?

Sim, o que me moveu sempre para ser padre era a ação pastoral direta, pregar, ensinar, celebrar missas, dar a comunhão. Cheguei a sonhar, ainda não andava sequer no seminário, que tinha a igreja cheia e andava a dar a comunhão às crianças.

Mas a vida no seminário não era voltada para a comunidade…

Não, isso foi o que me custou mais. Estive cinco anos em Macieira de Cambra e nunca fomos a uma missa na paróquia, em Soutelo a mesma coisa. Diziam-nos que era preciso sentir com a Igreja, Santo Inácio também dizia isso. Mas a Igreja, o Papa, estava lá longe, em Roma. Para mim, a Igreja sempre foi algo de próximo, era a paróquia. Por isso é que procurei sempre ligar-me e, quando havia possibilidade, dar aulas, catequese, visitar os presos.

Apesar de ter esse gosto pelo trabalho pastoral direto, também tinha uma grande paixão pela Filosofia. O sonho da Companhia para si era ser professor?

Bem, não fui bem eu que quis ser professor de Filosofia, foi o P. Júlio Fragata que viu em mim essa possibilidade. Aconselhou-nos a estudar alemão e deu-nos um curso, pois dizia que quem se dedicasse à filosofia tinha de saber alemão pois muitos dos livros dos filósofos da altura eram em alemão. Aconselhou-me a pedir uma bolsa de estudos à Embaixada alemã em Lisboa e consegui ir fazer um curso na Vestefália em 1968, que me abriu caminho para estudar Filosofia na Alemanha, que era a minha paixão.

Veio fazer o Magistério a Lisboa. Nunca cá tinha vindo, certo?

Nunca.

Não foram tempos fáceis, pois não?

Não, a minha irmã Teresa tinha adoecido. No dia 11 de junho em 1966, fez o exame de professora primária, a pedido meu junto de um conhecido. Disse-lhe que ela tinha uma doença gravíssima que duraria, quanto muito, um mês e se podia realizar o sonho de ser professora antes de morrer. Autorizaram. Fez o exame e no dia seguinte deu entrada no hospital condenada a um mês de vida. Acabou por viver um ano. Isso deu-me cabo da vida, entrei em muitas tentações do espírito mau: “Então, a tua irmã que podia fazer tanto bem às pessoas? E tu vais para padre numa igreja destas? Onde está Deus?” Fui ter com o meu orientador espiritual, o P. Agostinho Ferraz, que foi uma das pessoas que mais me marcou, muito humano, e ele só me fez duas perguntas que me iluminaram: “Sabes lá tu, Domingos, se não precisas da tua irmã Teresa mais no céu do que na terra para seres um bom padre? Sabes lá tu, Domingos, se a tua irmã continuasse viva seria tão feliz como se for para o céu? Deixa isso com Deus”. Aquilo reconfortou-me. Mas foi um momento muito duro. Como tínhamos brincado aos pastorinhos de Fátima e havia a causa de beatificação da Jacinta, lancei em Braga uma campanha de oração e pus aquelas crianças, 2500, de todas as escolas, a rezar pela minha irmã. Viveu ainda um ano, mas num martírio terrível. Escrevi no ano passado um livro sobre a minha família “Os Santos da nossa casa”, com testemunhos das pessoas, e as cartas dela em que contava a sua doença durante um ano…chorei muitas vezes. Tinha 21 anos. Ainda hoje é tomada como santa lá na sepultura dela. Enviei o livro que escrevi ao Papa que me respondeu, através de um bispo, uma coisa muito bonita. Apesar do livro ter sido enviado no dia 28 de maio de 2021, ele respondeu com data da sua morte e referiu o dia 5 como o dia da ida da Teresa para o céu. Quando recebi aquela carta disse: aqui está o dedo de Deus.

No magistério viveu tempos difíceis, mas que moldaram a sua maneira de ser. Como foi isso?

Foram tempos maus. Mas devo dizer que foram as dificuldades da vida que me amadureceram e ajudaram a ser a pessoa que sou. A primeira foi a pobreza na infância, depois as dificuldades do tempo da formação. No Magistério houve um jesuíta que foi convidado para fazer uns testes aos escolásticos e houve um colega meu, do ano adiante, a quem, em conversa com o Provincial, este disse que tinha de sair da Companhia de Jesus porque não tinha craveira intelectual. Era meu amigo, tinha dois tios irmãos na Companhia, estava como jesuíta há 15 anos. Fiquei de tal maneira indignado que pensei: “Isto é o que me vai acontecer, é a história dos filhos de galinha preta e de galinha branca. São os pobres que são convidados a sair”. Quando me abeirei desse padre e disse-lhe que isto era para mandar pessoas fora da Companhia, ele ficou surpreendido. E eu disse-lhe: “Mas agradecia que me fizesse os testes”, pois precisava que ele me pusesse preto no branco. Estava com um medo terrível que me pusessem fora, já tinha sido ameaçado disso na faculdade de Filosofia, quando me disseram para pensar na vocação, se não sabia obedecer. Disse-lhe: “Queria que me dissesse se eu tenho ou não craveira intelectual para ser jesuíta”. No final, ele disse: “Se você não tem, então não sei quem tem”. Agradeci e pensei: “a partir de agora, tenho como defender-me”.

A morte da sua irmã foi um momento difícil da sua vida, mas a sua ordenação diaconal e sacerdotal também foi marcada pela morte da sua mãe.

Sim, fui ordenado diácono em 1972. A minha mãe vivia no Campo Grande, nas Irmãs Concecionistas ao Serviço dos pobres e vinha todos os domingos almoçar comigo ao colégio. Eu era o único suporte da minha mãe, o marido já tinha morrido. Quando pus a hipótese de ir para a Teologia na Alemanha – queria sair daqui, fazer a teologia a sério, não queria ir para a Universidade Católica -, já era tarde. Mas quando tinha estado lá a fazer o curso de alemão, falei com o reitor e tinha a porta aberta. Disse ao P. Provincial: “Ele só está à espera de uma carta sua”. “Então, se é assim, eu escrevo”, respondeu. Tinha de convencer a minha mãe a autorizar-me a estudar no estrangeiro. Ela era uma pessoa que nos ensinou a todos a voar, era uma pessoa fantástica e não sabia ler e escrever, deu uma liberdade aos filhos… Disse-lhe: “Vai ficar triste porque não vai poder almoçar comigo ao sábado e domingo mas eu queria ser um padre diferente e gostaria de ir para o estrangeiro”. E ela disse: “Eu quero é que sejas um padre feliz, não te prendas a mim. Vai para onde tiveres de ir!” Que coisa espantosa…

Isso marcou-o muito?

Imenso. A minha maior tristeza foi que em 71 -, a última vez que estive com ela, no verão – fiz a viagem no dia 17, a minha irmã disse-me o estado dela e eu queria ficar junto dela. Teimou que ficava ela e a mãe morreu nessa noite. Tenho uma mágoa enorme de não ter estado com ela nessa última noite. Quando me ordenei padre, já ela tinha morrido.

Já não tinha praticamente família?

Não tinha ninguém. A minha missa nova, na minha terra, no Rego, foi sem família. Foi o povo da minha terra que se organizou para me preparar a missa. O almoço foi na família do jesuíta P. José Belarmino Araújo, que nos ofereceu o almoço.

(Continua na secção: Por Uma Igreja Sinodal)


Eu Sou Porque Nós Somos

“Finalmente encontrei um cristão de verdade!”

Isabel Ricardo Pereira | 6 Jul 2022 | in 7MARGENS

Certo dia, um missionário evangélico que ainda hoje trabalha entre muçulmanos, partilhava comigo e mais algumas pessoas algo que marcou profundamente a sua vida. Abreviando a história, ele contava que uma mulher muçulmana e uma outra cristã travaram conversa e a partir dali iniciou-se um caminho que culminou numa grande amizade. Gradualmente a confiança e a admiração entre as mulheres foi crescendo, e o amor sincero foi destruindo todas e quaisquer barreiras que se entrepunham entre ambas. Em determinado momento a mulher muçulmana ao telefone com a sua mãe e junto da sua nova amiga cristã, disse: “Mãe, finalmente encontrei um cristão de verdade”.

Que história esta que nos faz pensar sobre o tipo de cristianismo que vivemos e o tipo de cristãos que nós somos!

Infelizmente algumas palavras vão perdendo o seu real valor e original significado; como esta: “cristão”. Sobre isto mesmo, C. S. Lewis, no seu livro Cristianismo Puro e Simples, escreveu: “A palavra cristão terá sido despojada de qualquer propósito realmente útil a que pudesse ter servido. Deveríamos, portanto, ser fiéis ao sentido original, mais óbvio.”

Assim sendo, tendo em atenção a origem desta palavra que é empregue pela primeira vez em Antioquia (Atos dos Apóstolos, 11:26) para designar aqueles que viviam como Jesus Cristo, que O imitavam, que aceitavam a Sua doutrina, que O amavam, enfim, eram Seus discípulos, difere e muito de como agora se usa e se classifica alguém como cristão.

Deste modo e respeitando o real significado da palavra em causa, não se é cristão por hereditariedade. Muitas pessoas, só porque seus antepassados o eram, assumem que também o são; no entanto, as suas vidas não se coadunam com os ensinamentos de Jesus Cristo.

Não se é cristão porque se pratica a religião cristã, ou pela simples razão de ir à igreja, ou porque se pratica boas obras.

Não se é cristão porque se conhece bem a Bíblia, faz-se beneficência ou até se dá a vida em nome de Deus.

Tudo isto pode ser feito, e na verdade não é ser cristão. Parecer é uma coisa, ser é outra.

Ser cristão é algo intrínseco a nós mesmos e não uma mera modalidade religiosa que se decide adotar. Faz parte da nossa identidade e não é um anexo da nossa vida. Tem início no mais íntimo do nosso ser (espirito e alma) e reflete-se de forma natural no nosso corpo, na nossa conduta e no resultado das nossas ações. É como uma fonte de água que jorra de dentro para fora.

Afinal, o que é que aquela mulher muçulmana viu na mulher cristã para dizer o que disse? Poderei parecer simplicista, mas tenho o desejo de ser clara e profunda ao mesmo tempo; a mulher muçulmana viu Cristo na sua amiga, mesmo quando não falavam de religião e fé. Ela foi testemunha de um cristianismo vivo, natural e real. Nada era forçado, fingido ou por apenas tradição, simplesmente ela fez amizade com uma mulher que recebera impacto do evangelho de Jesus Cristo, seguia a Cristo e O amava com todo o seu ser.

Desengane-se quem pensar que há categorias no que se refere a cristãos; ou seja, não há cristãos de primeira nem tão pouco de segunda categoria. Ou se é ou não se é.

Então se alguém é cristão, onde está Cristo na sua vida?!

O que diria essa amiga muçulmana de cada pessoa que se afirma como tal?!

Perguntas que podem inquietar a nossa alma, mas que verdadeiramente nos ajudam a definir.

Isabel Ricardo Pereira é missionária evangélica; contacto: isabeljose@sapo.pt


Eu Sou Porque Nós Somos

PAPA FRANCiSCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 3 de julho de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

No Evangelho da Liturgia deste Domingo lemos que «designou o Senhor ainda setenta e dois outros discípulos e mandou-os, dois a dois, adiante de si, por todas as cidades e lugares para onde ele tinha de ir» (Lc 10, 1). Os discípulos foram enviados dois a dois, não singularmente. Ir em missão dois a dois, de um ponto de vista prático, parece ter mais desvantagens do que vantagens. Há o risco de que os dois não se entendam, que tenham um ritmo diferente, que um fique cansado ou doente pelo caminho, forçando também o outro a parar. Quando, ao contrário, se está sozinho parece que o caminho se torna mais rápido e sem impedimentos. Contudo, Jesus não pensa assim: não envia solitários antes dele, mas discípulos que vão dois a dois. Mas façamo-nos uma pergunta: qual é a razão desta escolha do Senhor?

A tarefa dos discípulos é ir pelas aldeias e preparar o povo para receber Jesus; e as instruções que Ele lhes dá não são tanto sobre o que devem dizer, mas sobre como devem ser: isto é, não sobre o “livreto” que devem recitar, não; sobre o testemunho de vida, o testemunho a ser dado mais do que sobre as palavras a dizer. De facto, define-os como operários: ou seja, são chamados a operar, a evangelizar através do seu comportamento. E a primeira ação concreta através da qual os discípulos realizam a sua missão é precisamente a de ir dois a dois. Os discípulos não são “batedores livres”, pregadores que não sabem ceder a palavra a outro. É antes de mais a própria vida dos discípulos que proclama o Evangelho: o seu saber estar juntos, o respeitar-se reciprocamente, o não querer demonstrar que se é mais capaz do que o outro, a referência concordante ao único Mestre.

Podem-se elaborar planos pastorais perfeitos, implementar projetos bem elaborados, organizar-se nos mínimos detalhes; podem-se convocar multidões e ter muitos meios; mas se não houver disponibilidade para a fraternidade, a missão evangélica não progride. Certa vez, um missionário relatou que tinha partido para África juntamente com um confrade. Após algum tempo, contudo, separou-se dele, ficando numa aldeia onde realizou com sucesso uma série de atividades de construção para o bem da comunidade. Tudo estava a funcionar bem. Mas um dia teve um abalo: percebeu que a sua vida era a de um bom empresário, sempre no meio de canteiros de construção e papelada! Mas ... e o “mas” permaneceu lá. Então, deixou a gestão a outros, aos leigos, e foi ter com o seu confrade. Compreendeu assim porque o Senhor tinha enviado os discípulos “dois a dois”: a missão evangelizadora não se baseia no ativismo pessoal, ou seja, no “fazer”, mas no testemunho do amor fraterno, inclusive através das dificuldades que a convivência implica.

Então podemos perguntar-nos: como levar a boa nova do Evangelho aos outros? Fazemo-lo com espírito e estilo fraternal, ou à maneira do mundo, com protagonismo, competitividade e eficiência? Perguntemo-nos se temos capacidade para colaborar, se sabemos como tomar decisões em conjunto, respeitando sinceramente os que nos rodeiam e tendo em conta o seu ponto de vista, se o fazemos em comunidade, não sozinhos. De facto, é sobretudo deste modo que a vida do discípulo permite que a do Mestre resplandeça, anunciando-o verdadeiramente aos outros.

Que a Virgem Maria, Mãe da Igreja, nos ensine a preparar o caminho para o Senhor com o testemunho da fraternidade.


Depois do Angelus

Prezados irmãos e irmãs!

(…)
Continuemos a rezar pela paz na Ucrânia e em todo o mundo. Apelo aos chefes das nações e organizações internacionais para que reajam à tendência a acentuar o conflito e a oposição. O mundo precisa de paz. Não uma paz baseada no equilíbrio de armas, no medo recíproco. Não, isso não está bem. Isto significa fazer voltar a história setenta anos atrás. A crise ucraniana deveria ter sido, mas - se se quiser - pode ainda tornar-se, um desafio para estadistas sábios, capazes de construir no diálogo um mundo melhor para as novas gerações. Com a ajuda de Deus, isto é sempre possível! Mas devemos passar de estratégias de poder político, económico e militar para um projeto de paz global: não a um mundo dividido entre potências em conflito; sim a um mundo unido entre povos e civilizações que se respeitam.
(…)

Desejo a todos vós bom domingo. Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista!


Eu Sou Porque Nós Somos

“Enough!”. O fã que se fartou das “tretas” de Nick Cave sobre Deus

Miguel Marujo | 26 Jun 2022 | in 7 Margens

A mensagem é curta e grossa: “For fuck’s sake, enough of the God and Jesus bullshit!” – a tradução pode ser suavizada, ou carregada nas tintas. Dada a ira do leitor de Nick Cave, o tom será mais o calão forte que a interjeição zangada. “Caramba! Chega desta treta de Deus e Jesus!”

O cantor, músico e compositor australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não responde logo a Jason, de Londres. À pergunta irada, Nick Cave junta outras questões, de Lorraine, de Berlim, na Alemanha: “Quais são os seus pensamentos sobre a liberdade de expressão? Acha que é um direito?” – e é por aí que ele vai na sua resposta, a dissertar sobre a liberdade de expressão…

Já aqui falámos sobre este site de conversa que Nick Cave criou e alimenta: em The Red Hand Files, o australiano responde a questões dos seus fãs e leitores, e estas vão das mais prosaicas sobre a música e os discos, até às que aprofundam questões complexas e filosóficas.

A 9 de junho, Sue, de Paris, França, perguntou-lhe: “Na tua opinião, o que é Deus?” – tema recorrente, já se sabe, na discografia e na correspondência de Nick Cave. A resposta do australiano é assertiva: “Deus é amor”, e explica que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. A explicação é demorada: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos da ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”

Talvez valha a pena recordar, neste ponto, que muito recentemente, em maio, Nick Cave perdeu mais um filho, Jethro, de 31 anos, depois de em 2015 ter morrido, com 15 anos, Arthur — e esta primeira morte marcou de forma indelével os trabalhos do músico nos últimos anos.

Com esta reflexão sobre Deus, Cave disserta sobre o bem e o mal, e no fundo está a revelar as inquietações de um pai que perdeu dois filhos. “Não há um problema do mal. Há apenas um problema do bem. Por que é que um mundo tantas vezes cruel insiste em ser belo, em ser bom? Por que é que é preciso uma devastação para o mundo revelar a sua verdadeira natureza espiritual? Não sei a resposta para isto, mas sei que existe um tipo de potencialidade para além do trauma. Suspeito que o trauma seja o fogo purificador através do qual realmente encontramos o bem do mundo.”

Na resposta aos seus fãs, Nick Cave confessa-se — com uma oração, descobrimos nós. “Todos os dias eu rezo para o silêncio. Eu rezo a todos eles. Todos eles que não estão aqui. Nesse vazio, eu despejo todo o meu desejo, desejo e necessidade, e com o tempo essa ausência torna-se potente, viva e ativada com uma promessa. Essa promessa que fica dentro do silêncio é beleza o suficiente. Esta promessa, neste momento, já é espanto suficiente. Esta promessa, agora mesmo, é Deus suficiente. Esta promessa, agora, é o máximo que podemos suportar.”

A liberdade de criar

Esta carta a Sue terá levado o londrino Jason a dizer que estava farto das “tretas” sobre Deus e Jesus. (Num jornal português, também por causa disto, um crítico de música desdenhou de um dos discos mais recentes de Nick.) E a resposta serve-se com diplomacia: Cave começa por falar da liberdade de expressão — e sendo ele autor, pode dizer-se que ele nos fala sobre a liberdade de criação.

Assumindo que os seres humanos são “criaturas subtis e caóticas, cheias de ambiguidades e contradições”, “total e necessariamente diferentes uns dos outros”, apesar de reduzidos a categorias “arbitrárias de identidade”, como são a raça, a religião ou o género, Nick Cave defende ainda a “amálgama” de que é feito cada indivíduo. “Cada um de nós é um amálgama de tudo o que amamos, perdemos e aprendemos, os nossos sucessos e fracassos pessoais, os nossos arrependimentos particulares e as nossas alegrias singulares – e parte dessa singularidade é o que pensamos de maneiras diferentes.”

Nick Cave defende que a liberdade de expressão “é uma conquista social ou cultural, algo que nós, como comunidade, podemos usar para animar, encorajar e liberar a alma do nosso mundo, desde que tenhamos a sorte de viver numa sociedade que permita tal coisa”. Trata-se de uma questão que ajuda a aferir da qualidade de uma democracia – das sociedades. “Poder falar livremente não é apenas um benefício para si mesmo, fazendo com que nos sintamos menos sozinhos, é também um barómetro da saúde da nossa sociedade, assim como a intolerância a ideias opostas indica uma fraqueza ou falta de confiança em seus próprios pensamentos e as ideias da nossa sociedade”, argumenta.

Percebe-se porque é que Cave começa por falar sobre a liberdade de expressão, contra “a intolerância a ideias opostas”. Para melhor dizer que falar de Deus e de Jesus, para ele, só é possível numa comunidade na qual se pode falar livremente. E o músico situa Jesus como alguém que viveu num tempo em que falar era arriscado: “Jesus percorria a terra expressando o que eram, na época, ideias consideradas perigosas e heréticas.” Por isso, argumenta, Jesus “foi seguido por um círculo nervoso de escribas e saduceus a resmungarem, cujo objetivo era apanhá-lo – expor não apenas as Suas ideias perigosas, mas desnudar e perseguir a sua singularidade”.

Sabemo-lo, “eles tiveram sucesso, e Cristo foi cancelado na Cruz”, descreve Nick, usando uma curiosa formulação adequada a estes tempos ditos de “cancelamentos”. As ideias de Jesus eram “impossíveis e perigosas – amar o inimigo, amar os pobres, perdoar os outros – [e] eram aterrorizantes, inconcebíveis e proibidas na Sua época, mas tornaram-se, com o tempo, as melhores ideias que sustentam a sociedade em que muitos de nós temos a sorte suficiente para viver hoje. Vale a pena lembrar isto.”

Este discurso, também político, é aquilo que permite a Cave voltar à questão da tolerância necessária para viver em comunidade. “Acho que devemos ter cuidado com as nossas suposições sobre quais as ideias que achamos certas e quais as ideias que achamos erradas, e o que fazemos com essas ideias, porque é a ideia aterrorizante – a ideia chocante, ofensiva e única – que exatamente pode salvar o mundo.”


Eu Sou Porque Nós Somos

À escuta de terceiros: participar, servir e ouvir o clamor da Terra

7Margens | 17 Jun 2022

Intencionalidade

Sem esquecer a “missão”, a nossa reflexão [bem como os contributos solicitados] centrou-se na “comunhão” e na “participação”, inspirada pelos pontos VIII. Autoridade e Participação e IX. Discernir e Decidir do Documento Preparatório do Sínodo dos Bispos de 2021-2023 e pelo desejo de contribuir para “examinar como são vividos na Igreja a responsabilidade e o poder e as estruturas mediante as quais são geridos” e elucidar as “formas participativas de exercer a responsabilidade no anúncio do Evangelho”.

O nosso processo reflexivo fez-se de “fora” para “dentro”, da polis para a ecclesia. Na certeza de que os católicos são cidadãos a quem será estranho impor na Igreja regras de participação contraditórias àquelas que regem a sua vida cívica em democracia. Aceitando os matizes e as diferenças próprios de uma e outra vivência, é também importante que a participação dos batizados nas decisões relativas às prioridades da vida comunitária recolha e valorize a experiência acumulada por estes na sua intervenção na polis. Aquilo que diz respeito à vida de todos, por todos tem de ser pensado, discernido e concretizado. É necessário consolidar espaços e dinâmicas onde esta corresponsabilidade possa ser exercida não simplesmente a modo de uma metodologia apropriada à vida das comunidades cristãs, que o é, mas sobretudo como maneira de ser Igreja e de ser também Igreja no mundo.

A sinodalidade não é na Igreja uma simples metodologia, mas um modo de ser. Neste sentido a Igreja é desafiada não só a praticar a sinodalidade, mas principalmente a ser sinodalmente. O caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio (cf. Discurso do Papa Francisco na Comemoração do cinquentenário da Instituição do sínodo dos Bispos, 17 out 2019).

Embora seja este o eixo central da nossa reflexão, ela nunca deixou de ter presente as duas referências societais implicadas no anúncio de Jesus Cristo hoje, tão bem ilustradas nos desafios do Papa Francisco sobre a Casa Comum [Laudato si’ ] e a paz, a amizade social, as margens e os descartados [Fratelli tutti]. De facto, a sinodalidade (e esta nossa reflexão) só ganha(m) sentido como modo de ser próprio para “nos colocarmos à escuta do clamor dos pobres e da terra”.

Os termos da participação

Sendo este Sínodo “um processo eclesial participativo e inclusivo” é desejável ter em conta que a participação é gradativa, tem quatro degraus e passa por: informar (sentido unívoco); escutar (sentido biunívoco); suscitar a colaboração/corresponsabilidade (implica a cocriação e o desenvolver do protagonismo de todos, pensado em termos de corresponsabilidade comum e não apenas em de termos participação, por delegação, na responsabilidade de alguns); aceitar a deliberação (implica todos os anteriores níveis e ainda a codecisão). Os quatro níveis podem coexistir num mesmo processo participativo, mas cada um vale por si. Importa, pois, refletir sobre qual será mais adequado para atingir os fins específicos em vista em cada processo participativo.

No entanto, todo o processo participativo deverá ter em conta que:

• comporta riscos. Por isso deve basear-se em regras de diálogo (instituídas ou informais) consensuais (sem elas o horizonte de confronto aumenta de modo significativo) e procedimentos claros. Contudo, a atenção dada às regras e procedimentos não deve ofuscar o horizonte substantivo da participação: O que queremos debater /decidir? Porque o queremos? Quem participa?
• processos mais participados nem sempre conduzem a melhores resultados. Certo é, porém, que quanto maior é a participação mais cresce a confiança na instituição e na decisão e mais qualificada será a participação em assuntos futuros;
• consenso e conflito não se apresentam sempre como opostos. A obsessão pelo consenso tende a nivelar por baixo, do mesmo modo que o diálogo não resolve todas as questões;
• a linguagem utilizada tem importância crucial: ela é a “porta” que, quando aberta e simples, permite a entrada de todos e que, quando fechada, hermética, codificada, funciona como “barreira à entrada” que impede essa mesma participação de todos;
• a estrutura hierárquica (caracterizada por permitir um nível baixo de participação), não se opõe à estrutura em rede (altos níveis de participação). Ambas podem /devem coexistir numa mesma instituição para gerir aspetos diferentes da sua vida e nela interagir de modo dinâmico;
• a diferenciação dos processos participativos (conforme as geografias e as culturas, os temas e as tradições particulares) é uma riqueza institucional muito importante e fonte de aprendizagem coletiva.
• a abertura de áreas de experimentação sobre modos de proceder/decidir em que a corresponsabilidade e a participação possam ser desenvolvidas implica a totalidade da instituição (incluindo aqueles que não participam nessas iniciativas) que deve acompanhar e acolher criticamente o balanço do caminho realizado.

A representatividade posta em causa…

A vida pós-moderna nas sociedades abastadas do Ocidente favorece a atomização social, a rarefação do sentimento de pertença e o reforço das hiperidentidades de grupo confrontacionais e excludentes, forjadas a partir das redes sociais (vida na sua bolha, onde muitas vezes se promove a desinformação e a radicalização, onde predominam algoritmos que procuram o sucesso e o lucro). A diversidade, associada à dificuldade de encontrar linguagens comuns, dificilmente pode ser integrada, sendo motivo de desagregação. Tal contexto tem-se revelado favorável à proliferação de cidadãos ressentidos contra o sistema demorrepublicano marcados pelo sentimento de não terem quem os representa na vida (e no espaço) pública(o). Tal processo, agravado pelo descaso ético de alguns responsáveis públicos [corrupção, eleitoralismo de curto prazo, procura de bodes expiatórios], instalou nas sociedades ocidentais a crise da representação, do representativismo, visível na perda de prestígio dos representantes eleitos.

… na comunidade católica

A tragédia dos abusos sexuais em contexto eclesial e o seu encobrimento por parte de alguma hierarquia, acompanhada por estilos de vida por vezes tão contrários ao Evangelho, vieram proporcionar o terreno propício a que também no interior da Igreja se exprima esta crise da representatividade, a que é necessário responder com um maior envolvimento de todos na escolha dos responsáveis e dirigentes, um novo tipo de formação dos seminaristas, uma renovada atenção à formação geral dos cristãos que não fique apenas centrada na formulação de doutrinas e normas morais, mas que se abra também às grandes questões que tocam a vida das pessoas e das sociedades e com novas formas e modos de participação que reforcem o sentimento de pertença à Igreja.

Tal reforço do sentimento de pertença poderá também ser alcançado pela aplicação do princípio da subsidiariedade – tantas vezes proposto pela Igreja para a boa gestão dos problemas do mundo – no interior da comunidade eclesial, fomentando a participação e a responsabilização local, a tomada de decisões pelas assembleias do nível geográfico mais próximo e o aprofundar da consciência da Igreja enquanto comunidade de comunidades.

Apesar dos estragos causados por décadas de agendas públicas exclusivamente centradas nos direitos do indivíduo sem qualquer relação com a comunidade nem com um qualquer sentido de futuro, de imaginário coletivo, seria benéfico desenvolver a reflexão sobre uma carta dos direitos, deveres e liberdades do batizado que sublinhe a responsabilidade de cada um pelo anúncio da fé em Jesus Cristo, pela renovação da comunidade eclesial, pelo cuidado da casa comum, pelo serviço da caridade e que garanta o seu espaço de liberdade próprio.

A crise do sentimento de pertença e da representatividade alastrou na Igreja também por causa do modo como esta afastou da sua mesa os casados recasados, as pessoas LGBT e manteve a mulher impedida de exercer o seu dever de servir a comunidade em todos os ministérios. Torna-se urgente aprofundar os passos dados para acolher toda essa multidão de excluídos pela Igreja, dando-lhes o protagonismo e a visibilidade que permita a todos esses grupos sentirem-se representados e parte da comunidade.

É necessário, nesse sentido, desenvolver uma eclesiologia que reabilite a Igreja ministerial em substituição da Igreja clerical, onde a palavra-chave seja diakonia em vez de poder; onde exercer o ministério faça parte e seja expressão do seguimento de Jesus (Ef 4,11); onde qualquer batizado, qualquer batizada, possa ser chamado(a) à ordenação ministerial para ensinar, santificar e governar na e pela Igreja; onde cada comunidade possa celebrar a Eucaristia em vez de se ver privada dessa possibilidade porque a tradição dos homens assim o determinou (restringindo o poder de presidir à celebração apenas aos homens solteiros).

De igual modo, a enorme atenção e importância dada pela Igreja à ação social não tem, contudo, descolado de um tom ainda muito assistencialista, nem permitido o desenvolvimento do protagonismo dos pobres e excluídos na vida das comunidades. Torna-se urgente promover a sua visibilidade e o seu protagonismo portas adentro, de tal modo que estes sintam a Igreja como “casa sua”, como comunidade em que, tal como todos os outros, podem ser “inteiros”, acolhidos no seu modo de ser, nas suas preocupações e gestos próprios, promovendo igualmente a partir daí a sua participação na polis. Importa, pois, criar processos concretos de “discriminação positiva” que permitam que todos os dons dos mais pobres sejam postos ao serviço das comunidades e que estas sejam efetivamente marcadas pela vida e pelo modo de ser dos que habitam as margens.

A questão da riqueza e das desigualdades inaceitáveis, que se têm acentuado quer dentro dos países quer a nível global, é motivo de escândalo. A Igreja, em geral, mas muitas vezes apenas timidamente, denuncia essas situações; assim, a par de denúncias claras como a da “economia que mata”, prevalecem muitas ambiguidades e quem olha de fora vê demasiadas vezes o bom relacionamento de responsáveis eclesiais com figuras de poder e detentores de riquezas exorbitantes. No mínimo, fica a impressão de que não há distanciamento e isenção para a denúncia clara do que está mal. Não faltam testemunhos verdadeiros de sinal contrário, é certo, mas há espaço para se exigir mais clareza e coerência com o Evangelho.

Quanto ao cuidado da casa comum: o sistema terrestre está à beira da catástrofe; há danos que já são irreversíveis; não é exagero afirmar, ainda que de modo simplista, que as próximas gerações pagarão bem mais caro que a nossa por piores condições de vida. Apesar de a encíclica Laudato si’, do Papa Francisco, ter servido de despertador para os menos atentos e ser referida de modo recorrente por muitos que versam o cuidado da casa comum, mesmo agnósticos, não consegue ainda hoje marcar a reflexão e ação de todas as instâncias eclesiais. A capilaridade da Igreja, como rede capaz de chegar a quase todo o lado, pode ser determinante na mudança de atitude que urge promover, em linha com a “escuta do clamor da Terra e do clamor dos pobres”.

A modo de conclusão

Mais do que viver numa época, na qual estamos a assistir a um enorme número de transformações e mudanças, vivemos no meio de um processo de mudança e transformação epocal. Como sempre nestes momentos, as tensões, as dúvidas e as incertezas podem paralisar-nos, impedindo-nos de ousar as mudanças necessárias. Podemos também sucumbir à tentação de nos agarrarmos àquilo que conhecemos e que noutros tempos parece ter funcionado, ou ainda ensaiarmos a chamada ‘fuga para a frente’, prescindindo da experiência e da sabedoria que o caminho já percorrido proporciona. O momento histórico que estamos a viver, no mundo, na sociedade, na Igreja, está a exigir dos cristãos e das suas comunidades a ousadia da profecia. Este é o tempo de escutar e discernir os sinais dos tempos. Peçamos ao Espírito Santo, antes de mais nada o dom da escuta: escuta de Deus, até ouvir com Ele o grito do povo; escuta do povo, até respirar nele a vontade de Deus que nos chama»” (cf. Episcopalis Communio, 6)

Juan Ambrósio. P. António Janela, Maria Julieta (rscm), Rita Veiga e Jorge Wemans

Maio de 2022

Este contributo é devedor da reflexão de João Ferrão, Miguel Poiares Maduro, Viriato Soromenho Marques e Teresa de Sousa a quem os subscritores agradecem pela disponibilidade em participar nos vários encontros havidos ao longo do mês de março.


Eu Sou Porque Nós Somos

Padres: da terra do nunca à terra de ninguém

Especial Sacerdócio

P. João Basto | 12 Junho 2022 | in Ponto SJ

A terra do nunca entrou no imaginário de um conjunto considerável de gerações: esse lugar de tempo suspenso, que nos deixa – também a nós – num imenso intervalo, onde permanecemos crianças. No entanto, temo que dessa terra sonhada, e hoje convertida em promessa publicitária e comunitária, possamos caminhar para que, no caso concreto daqueles que se entregam ao ministério presbiteral, para a dilatação de um outro território: a terra de ninguém, de que muitos clérigos se assumem habitantes, e a cujas paisagens se sentem entregues sem passaporte de volta. Explico-me! Mas antes dêmos um passo atrás.

0. A ambiguidade

Todas as afirmações teológicas, ou pelo menos grande parte delas, comportam dentro de si uma zona de ambiguidade. Por exemplo, quando dizemos que Deus é Pai, afirmamos, por um lado, a paternidade divina, mas, ao mesmo tempo, estamos a recusar a compreensão deste horizonte enquanto assunção despótica ou freudiana de poder ou micro-poder. E a verdade é que a história da Igreja é eloquente ao indicar que sempre que tal não aconteceu, sempre que este terreno paradoxal não foi salvaguardado, algo de muito errado estaria para acontecer. Dos tempos das primeiras disputas teológicas, aos debates acerca da aceitabilidade ou não da teoria conciliarista, não é difícil encontrarmos inúmeros exemplos.

Em todos estes momentos retomar o dogma trinitário, segundo o qual existe uma união sem confusão nem separação como base da relação entre as três pessoas da Santíssima trindade, foi sempre o balanço necessário. (Numa forma de expressão rápida e popular: nem tanto ao mar, nem tanto à terra).

O facto é que este equilíbrio não parece estar presente numa demasiado divulgada releitura abusiva da justa e necessária denúncia do clericalismo por parte do Papa Francisco, de tal modo que não é claro que uma certa cruzada contra o clericalismo não irá acabar por favorecer atitudes, estilos e modos de ser mais perigosos. A isso iremos mais tarde.

1. Impotência

Creio que não é ocasional o sucesso no meio eclesial do livro Senhor Bispo, o Pároco Fugiu ou a redescoberta do clássico Diário de um padre de aldeia, do escritor francês George Bernanos, pois aquele cenário inicial, inóspito e desabitado, é, não raras vezes, o lugar onde os ministros ordenados revêem as suas vidas. “A minha paróquia é uma paróquia como qualquer outra.” “O tédio consome-as [as paróquias] a olhos vistos, e nós sem nada podermos fazer”, confessa a voz diarística logo a abrir.

No entanto, ao sentimento de impotência e de esvaziamento galopante, de que os padres são as primeiras testemunhas, tem vindo a ser cada vez mais premente uma leitura quase punitiva do ministério ordenado: os padres colonizam a pastoral, são abusadores e pervertidos, são detratores do próprio Cristo. Fechados, complicados, impacientes e inacessíveis. Tem sido muitas vezes o tom da adjetivação recente que cai sobre o clero e que, sem medição de dados, acompanha a formação dos novos presbíteros que, sem darmos por isso, pode estar a redundar e a assumir mais a forma de uma praxis negativa, focando aquilo que não se pode fazer, em detrimento da prática da virtude, tão importante em autores como Aristóteles e Tomás de Aquino. Ao padre é exigido, por um lado, não seguir um sem par de modelos, e, por outro, ser cada vez mais e melhor. Mas entre esses dois espaços é que se tem vindo a erguer essa terra de ninguém.

[Pausa: quero, neste ponto deixar claro, a indubitável necessidade de denunciar, desmascarar, agir e criminalizar, se tal for o contexto, formas pervertidas de ser Igreja, mas o meu ponto, como já referi, é procurar ver de que uma forma de focar certos pontos, pode estar a criar um clima, não de resolução de conflitos, mas de agravamento sistemático]

2. A Terra de Ninguém

Mas, afinal, que terra é essa? E quem são os seus habitantes? Em realidade, essa terra de ninguém é o espaço entre a família que desaparece e as relações que não se constroem ou sedimentam. É o lugar que vai do centro distante da diocese à casa dos vizinhos que permanecem desconhecidos. É o terreno que, entre a necessidade de afeto e o medo que qualquer gesto sentimental seja mal interpretado, vai ficando vazio. É a terra daqueles que se sentem “atirados” e encurralados, sem retaguarda, numa comunidade em que são um alvo a abater. A terra daqueles que, mesmo vivendo em comunidade, nunca se sentiram tão sozinhos e desvalorizados. A terra daqueles cuja voz nunca conta, ora por serem mais velhos, ou demasiado novos. A terra daqueles que nunca se sentam na mesa dos adultos. A terra dos que nunca reclamam. A terra dos que, sem qualquer capricho, não se sentem identificados nem aceites na sua identidade mais profunda, ou sentem que têm que lutar continuamente contra esqueletos no armário ou fantasmas do passado. A terra, enfim, daqueles tantos que estão entre o homem de carreira e o funcionário, e que, diariamente, em silêncio e anonimato quase absoluto, vivem uma vida de fidelidade.

São estes, talvez para muitos surpreendentemente tantos, que vivem nesse lugar, porque a batalha por purificar os que restam despreveniu os flancos do pelotão, deixando-os sozinhos e expostos. O problema, como qualquer espectador amador de futebol compreenderá, é que fazer contínuos contra-ataques não balanceados e estruturados é e continuará a ser redundantemente perigoso. Se se quer ganhar o jogo não se pode “estacionar o autocarro” à frente da baliza, nem meter um conjunto de avançados “à mama”, como se diz na gíria, mas redimensionar a tática em todas as suas vertentes e fatores.

3. O que vale uma pergunta?

Num retiro que organizou em Ars com os sacerdotes da sua diocese, Carlos Maria Martini, começou as reflexões abordando as diversas tentativas de fugas que S. João Maria Vianey foi tentando levar por diante.

Quantos padres também não sentirão o seu ministério como vulgar e vazio? Quantos padres não sentirão que os inúmeros quilómetros que fazem para não abandonar nenhuma das suas comunidades são feitos em vão? Quantos padres não sentem que, tal como S. João Maria Vianey, não são suficientemente escutados?

Na verdade, talvez nos falte um olhar verdadeiramente preocupado e interessando para várias destas vidas, levadas em grande anonimato, e que vivem conscientes de estarem predestinados ao esquecimento, pois num tempo em que se denuncia a positividade tóxica:

• Será que é possível, no atual contexto, a promoção de uma visão da afetividade que não associe o celibato a uma maldição, cujas ressonâncias são vividas tantas vezes em segredo e solidão? Será que é possível, dentro da vida de um clérigo, um equilíbrio saudável, sempre em aberto e em redescoberta, com o corpo que cada um também é? Estamos dispostos a aceitar que, devido a histórias pessoais tão diversas e, não raras vezes, marcadas por grandes feridas afetivas e desenvolvimentos precoces, alguns momentos de infidelidade objetiva podem ajudar a uma fidelidade de fundo a longo curso? E que, em certa medida, se tornam evidentes e naturais numa integração da afetividade?

• Que imagem passamos, enquanto Igreja, da missão do padre quando ele é usando como pivô num imenso tabuleiro geopolítico, muitas vezes despersonalizado, sem rosto, nem identidade?

• Quando chegará o tempo em que o padre poderá demonstrar a sua natural necessidade de aceitação, gratificação e hetero-compreensão, sem que isso seja rotulado como debilidade e ligeireza?

• É o clericalismo o mais grave problema da Igreja, ou será este tópico uma saída rápida para não questionarmos realmente qual pode ser um estilo de vida presbiteral saudável e responsável? Ou, então, uma acusação que abre caminho à desresponsabilização?

• Como podemos ajudar, sem condenar, os padres que desesperados pelo excesso de trabalho não conseguem sair do ativismo em que se sentem envolvidos?

• Muitos dos chamados insucessos pastorais serão culpa dos pastores, do seu absentismo, da sua incapacidade, ou, serão resultado de uma exigência coletiva muito standarizada que não olha aos contextos em quem muitos deles trabalham? Noutra linha, será que eles se sentem legitimados se, depois de um discernimento, percebem que esse modelo não funciona, acabando por agir em conformidade?

• Estaremos nós suficientemente atentos aos novos movimentos demográficos, ao surgimento de novos hábitos laborais e à deslocação da perceção social, refocando o radar da nossa ação, ou preferimos manter uma solução que, a longo prazo, sabemos impossível de concretizar, que devora os nossos recursos e energias, confiantes, de modo idolátrico, na longevidade e plasticidade da Igreja, mobilizando, muitas vezes à imagem de bombistas suicidas, os mesmos soldados para o combate?

• Num tempo de sinodalidade, quem se atreverá a fazer uma caminhada sinodal com o clero, com as suas preocupações e angústias? Fala-se muito de clericalismo neste processo, mas que padres é que foram escutados?

• Será possível alguém realizar um serviço pastoral prolongado e fecundo num lugar cuja cosmovisão religiosa e social seja totalmente diferente daquela que vivenciou na sua formação inicial e familiar?

Quem já assistiu à série The Crown terá percebido que o pano de fundo não é, de todo, a história dos membros da família real britânica, mas, em realidade, as várias tentativas que cada um e cada uma faz para equilibrar o dever de serviço ao povo que lhe está “confiado” e a sua identidade pessoal profunda, sem que isso acabe por criar uma despersonalização ou destruição interior e exterior. Infelizmente muitas das personagens ou acabam por se comprometer com o sistema, ou se suicidam em direto. Poucos são os que sobrevivem, mesmo que ainda apareçam em público. E é a essa tensão e a esses riscos que é preciso prestar cada vez mais atenção.


Eu Sou Porque Nós Somos

Desempoeirar «salvação» e «sacrifício» – de Harry Potter ao Universo Marvel

O sentido profundo que as palavras «salvação» e «sacrifício» apontam abunda em narrativas contemporâneas de grande sucesso, seja em séries como "Squid Game" ou "Lost in Space", ou nas sagas "Harry Potter" ou "Avengers".

P. Nelson Faria, sj | 2 Junho 2022 | in Ponto SJ

O passar do tempo tende a cobrir as palavras com pó. É natural que isto suceda quando deixamos palavras intocadas sobre a mesa. Mas o pó também assenta sobre palavras manuseadas com resistência, palavras às quais impedimos um enriquecimento de significado por lhes vedarmos o acesso ao tempo presente. São «palavras noz», palavras que, à semelhança do fruto que lhes dá nome, se encontram poeirentas, palavras que urge não só desempoeirar, mas às quais é necessário partir a casca para que possamos saborear a semente no seu interior.

Duas dessas «palavras noz» são «salvação» e «sacrifício». Ambas caíram em desuso, por excesso de herança ou défice de imaginação. Salvação, num sentido proto-secular, pode-se definir como a busca do bem e da justiça para todos, de forma livre e amorosa. Esta busca está bem presente entre nós, ainda que por invocar como salvação. E se este desejo existe é porque não experimentamos o mundo na sua melhor versão, é porque o mundo precisa de intervenção.

O desejo de salvação, de liberdade, de acolhimento e promoção do outro pede disponibilidade. Pede uma oblação de vida ao que é bom e justo, de forma livre e amorosa. Pede um oferecimento de vida que torna obsoletos os nossos interesses e comodidades, isto é, uma disposição sacrificial, um «fazer sagrado».

Tendemos a crer que sacrifício é sinónimo de exigências espúrias e descabidas de divindades imaginárias, um resquício indesejado e desnecessário de mentalidades primitivas dependentes do mito, ou, no seu sentido secular, um sinónimo do que é difícil, do que é árduo, do que é perda. Mas no seu esplendor dador de sentido, o sacrifício aponta a realidade indesmentível e necessária de oblação total e completa pelo bem do outro, sem negociação, por desejo do bom, do verdadeiro, do belo.

Esta intuição, por muito que a queiramos matizar e aguar, persiste irreprimivelmente em nós. E por isso vem à tona. O sentido profundo que «salvação» e «sacrifício» apontam abunda em narrativas contemporâneas de grande sucesso, seja em séries como Squid Game ou Lost in Space, ou em blockbusters como Harry Potter e os Talismãs da Morte ou Avengers: Endgame.

À partida isto pode parecer-nos contraintuitivo, mas todas estão unidas pelo desejo de salvação, salvação que se faz possível através da disponibilidade para o sacrifício, para uma oblação. A imaginação continua a ser espicaçada pelo mistério inscrito nas palavras «salvação» e «sacrifício», e isto é um bom sinal.

As quatro narrativas mencionadas confrontam-nos com situações desesperançadas, em que a conformação com o status quo ou com as regras do jogo, ou a resignação diante da desproporcionada força do mal aparentam ser as únicas alternativas. Mas os protagonistas, mesmo quando hesitantes e duvidosos, determinam-se a persistir no caminho do bem, não deixando apagar em si o desejo do que é bom e justo. Eles arriscam perder as suas próprias vidas para alcançar um bem aparentemente inatingível. São histórias de esperança contra toda a esperança (Rm 4, 18), enraizadas num possuir agora o que ainda se espera, num apontar a um horizonte que ainda não se vê (Hb 11, 1). Há um plano superior, uma realidade que excede as expectativas lógicas, que os convoca.

Quando olhamos o mundo de Harry Potter, seja nos livros seja nos filmes, encontramo-nos com o malo malissimum Voldemort, um personagem que pretende derrotar a morte e assim viver para sempre, disposto a sacrificar todos no seu caminho, mas incapaz de compreender o sacrifício próprio. Harry Potter, para o derrotar, segue o trilho inaugurado pela sua mãe quando este era ainda bebé: o sacrifício por amor. A oblação gratuita e amorosa da sua mãe protegeu-o – salvou-o – da maldição, e este, ao oferecer a própria vida para derrotar o mal, alcança a «salvação» de todos.

De modo similar, ainda que simbolicamente mais pobre, o arco narrativo que dominou a passada década do Universo Cinemático Marvel está também marcado pelo desejo de salvação. Esta saga culmina nos dois últimos filmes de Avengers (Vingadores), a famosa coligação de super-heróis que finalmente defronta o seu arqui-inimigo Thanos. Este, angustiado pela sobrepopulação e exaustão de recursos que levaram à destruição do seu planeta, é movido pelo desejo de sustentabilidade do universo. Para Thanos, só através da extinção de metade dos habitantes do universo é possível alcançar um futuro harmonioso. Para ele, a salvação reside neste benevolente e justo – porque cego e indiscriminado – holocausto.

Thanos é tão imparcial como o nome grego que leva: morte. Ele representa a engenharia social movida por uma justiça cega. Ele é um ícone da boa vontade centralizada do Estado quando este idolatra a imparcialidade e ignora a misericórdia. Esta cegueira da justiça à bondade, ao valor e dignidade de cada uma das vidas que habitam o universo permite um universo sustentável, mas traumatizado. É um universo ferido. Os Avengers mobilizam-se então na defesa de uma realidade imperfeita, mas preservada dos horrores do genocídio.

Este enredo tem uma visão de salvação secular. É uma soteriologia sem grande transcendente. Mas, mais uma vez, para que o mal seja derrotado, regressa o leitmotiv do sacrifício. Um dos protagonistas, alguém que no início do arco narrativo é um egocêntrico e arrivista empresário, após um processo de lenta e gradual conversão, faz-se disponível para assumir o custo do gesto que permite restaurar a vida a todos: oferecer a sua própria vida. Sacrifica-se.

Em nenhum dos casos que avanço o sacrifício era exigido por uma força externa. Não estamos dentro do campo mitológico de divindades cruéis que demandam sacrifícios para que a sua ira seja apaziguada. Aquilo a que assistimos é ao vingar de uma consciência sempre presente, ainda que silenciada, e que nos acompanha desde a nossa gestação no útero, e que experimentamos ao longo da nossa vida: dar vida a outro exige que se ofereça a própria vida. Dar vida é dar «a» vida, é oferecer-se. Não como negócio numa balança invisível do destino, num deve e haver, mas numa oblação gratuita: fazer o bem implica assumir o custo desse bem. Falar de amor sem falar de sacrifício é mentir.

Nenhuma destas narrativas tem a riqueza da visão cristã da salvação. Mas Cristo e a sua salvação ecoam no seu interior, como ondas irreprimíveis de graça. Porque resistimos a introduzir os nossos irmãos nesta riqueza, perene e sempre atual, de palavras que apontam o mistério da nossa fé? Resgatemos as palavras «salvação» e «sacrifício» do pó insuflando-lhes espírito. Desempoeiremos estas «palavras noz», rompamos as suas cascas e comamos o fruto que se nos oferece no seu interior. E que esse fruto, ao cair em nós, seja semente que encontre terra boa, que cresça, que faça de cada um de nós uma árvore. E que, como árvores, tenhamos, como Daniel Faria nos insta, «a incomparável paciência de buscar o alto | a verde bondade de permanecer | e orientar os pássaros».

Artigo originalmente publicado na edição de abril da revista «Mensageiro» – órgão oficial da Rede Mundial de Oração do Papa – Portugal


Eu Sou Porque Nós Somos

A Paz está connosco

P. António Valério, sj | 22 Maio 2022 | in Ponto SJ

Com as portas fechadas, porque tinham medo. Os discípulos ainda sem terem conseguido recuperar da dor de perder o seu Mestre. E junto com o sentimento do medo e da perda, o sentimento da frustração. Porque os sonhos fracassaram, as promessas esperadas deram em nada. Fechadas num túmulo.

São estes os sentimentos dos discípulos reunidos no cenáculo, após a morte de Jesus. Como se o mundo desabasse, as coisas perdessem sentido, os pés deixassem de ter firmeza e o horizonte se fechasse num gigantesco ponto de interrogação. E agora? O que será de nós?

Tantas pessoas hoje, e talvez vários de nós que estamos a ler estas linhas, tenhamos experimentado, ou estejamos a experimentar vários destes sentimentos. Porque a dor nos bateu à porta, porque sentimos a partida e a ausência, porque aquilo que foi tão querido, acarinhado e desejado não foi conseguido ou nos foi tirado. Entre a pena e a revolta, entre o desânimo e a desorientação, assim são, às vezes, os caminhos da nossa vida. E isso custa, porque não é suposto isto acontecer. Tal como não é suposto que famílias inteiras fujam de uma guerra cruel, ou que se nasça num país, numa cidade ou num bairro onde a vida dá poucas oportunidades para ver e ir mais longe.

Apesar de terem visto e ouvido tantas coisas sobre o Reino dos Céus, da sua alegria e comunhão, dos milagres e das maravilhas que o constituem, e que este Reino está próximo, e já está no meio de nós, os discípulos parecem ter esquecido tudo de repente.

Porque a dor tem o poder de nos fazer esquecer aquilo que antes nos animava. De nos fechar e fazer baixar os braços. E ficamos tristes. A tristeza dos discípulos também os encerrou no túmulo da falta de esperança.

E aí, surge no meio deles, uma presença e uma voz: “A Paz esteja convosco”. Como se na escuridão desta noite brilhasse uma luz e as trevas começassem a perder densidade. Tal como no meio no caos e no abismo das águas se ouviu um dia a primeira palavra que Deus disse na história: “Que a luz se faça”. E ali tudo começa a nascer. O mundo como Deus o sonhou e o Reino como Jesus o instaurou.

Reparemos neste respeito e nesta docilidade. No meio das trevas e da dor, uma palavra que não invade, mas transforma desde dentro: “que a paz esteja em ti, que a luz te faça ver”. Tal como um semeador, o Ressuscitado planta na fragilidade do nosso coração e nos momentos mais duros da vida uma palavra que abre caminho, mesmo não resolvendo os problemas. Porque os problemas não se resolvem de um dia para o outro, começam a resolver-se quando a cabeça se levanta, os olhos contemplam a luz e os pés se poem a caminho. O milagre que vence a dor não é uma magia que a faz desaparecer; o milagre acontece quando o coração deixa que a Paz da Ressurreição conquiste o centro da vida e a faça nascer para o caminho que há a percorrer.

Porque a pedra foi removida e dentro do sepulcro ficaram apenas os restos que dão testemunho da dor. Importa o que está fora do túmulo, já em caminho, em anúncio. Podemos nós hoje estar já a fazer este caminho com Jesus? Sim, porque Ele já o começou a fazer connosco. Talvez, como os discípulos de Emaús, ainda não O tenhamos reconhecido. É uma questão de estarmos atentos aos sinais de que a Paz está verdadeiramente connosco.


Eu Sou Porque Nós Somos

Que amor pões no que fazes?

Ângela Roque | 15 Maio 2022 | in Ponto SJ

A reflexão que hoje partilho convosco parte de uma interrogação, e não é por acaso: as perguntas fazem parte do meu dia a dia. Seria bem capaz de escrever só com frases interrogativas, porque que me ajudam a pensar, a decidir, a escolher. Porque me ajudam a encontrar caminho.

No atual contexto de incerteza sobre o que nos espera no pós-pandemia, e com a ameaça real de uma nova guerra mundial, o Evangelho deste domingo recorda-nos o testamento espiritual que Cristo nos deixou: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros”. E que o façamos como Ele o fez por nós: “Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros”. Há lá desafio maior?

O amor que Cristo nos ensina, e a que nos convida, parece muitas vezes para além das nossas capacidades. Afinal, que amor pomos no que fazemos? Que amor pomos no que pensamos? Que amor alimentamos e permitimos que permaneça nos nossos corações, que nos leve a superar-nos em atenção, em ajuda concreta, em solidariedade?

Que amor conseguimos pôr em cada gesto quotidiano, em cada palavra, em cada minuto que dedicamos à escuta do outro? Que sensibilidade temos em relação à solidão e ao sofrimento discreto da alma, cuja dor é tão ou mais destruidora do que a física?

Como combatemos a indiferença? Somos capazes de sair de nós próprios, ou já só agimos por reação, e a conta gotas, aos estímulos que nos chegam pelas notícias ou pelas redes sociais, de conflitos mais ou menos distantes, ou de casos mais ou menos mediáticos? E conseguimos ver quem está mesmo ao nosso lado?

Que amor somos capazes de sentir quando vemos as imagens diárias de uma guerra, que nos interpela, porque nos parece mais próxima do que outras, mas que não deixaram de existir e se arrastam na mesma crueldade? Percebemos que é urgente, como nos diz o Papa, contribuirmos para criar uma “civilização do amor”?

Entre as imagens e testemunhos que nos chegam da Ucrânia estão muitos relatos de dor e sofrimento, muitos exemplos de amor ao próximo e também muitas interrogações. Afinal, onde está Deus no meio da guerra? Será possível amar o nosso semelhante, mesmo quando é inimigo? Só o amor de Deus no coração dos homens pode levar ao perdão recíproco.

Não há amor, não pode haver amor, em quem mata e destrói. Não há amor em quem ignora ou se acha superior ao seu semelhante, em quem despreza o pobre que lhe estende a mão, em quem nunca se deu aos outros ou nunca sentiu alegria pelo sucesso alheio. Como não há amor em quem impõe ideologias, ideais de vida, convicções.

Amar é o verbo principal da fraternidade a que somos chamados, mas não basta conjugá-lo em palavras. Amar o próximo como Deus nos amou exige disponibilidade, exige tempo e desprendimento, e exige entrega.

O Papa Francisco tem-nos lembrado tantas vezes da urgência em combater a indiferença. Mais recentemente tem insistido no apelo a que não aceitemos a “normalização” do mal. Sim, corremos esse risco, o de banalizar e aceitar como “normal” que haja guerra, fome e perseguições, mesmo quando tudo parece ainda “lá longe”.

Que amor pomos no que fazemos?

As interrogações ajudam a soletrar o verbo Amar e a dar significado à palavra Irmão. Eu, sempre com muitas interrogações, todos os dias peço que a luz do Espírito Santo ilumine o meu coração, o meu pensamento, a minha palavra, o meu caminho e a minha ação. Peço que o Amor de Deus me guie, nos guie, porque só o Amor faz a diferença.


Eu Sou Porque Nós Somos

Introdução à vida de oração

Inês Espada Vieira | 26 Mar 2022 | in 7 Margens

Muitos títulos de livros são assim bonitos e expressivos: Cartografia do Encontro. Eles são um rosto e ao mesmo tempo uma narrativa, fazem entrever a história que o livro guarda para no-la revelar no momento íntimo da leitura. Em Cartografia do Encontro (Paulus, 2022), de Nélio Pita, o leitor experimentado ouvirá ressonâncias de outros mapas, outros itinerários, cujo final não é uma linha de meta, mas um novelo de amor. Já lá iremos.

O subtítulo deste livro traz-nos a maior das interpelações: “Introdução à vida de oração”. Se é certo que se trata de um manual, uma espécie de livro de instruções para a oração, não é menos evidente o desafio: a vida de oração. Não se trata (apenas) de aprender a rezar ou de procurar rezar melhor, mas de trazer a oração para dentro do nosso quotidiano, deixar instalar o hábito, aceitar os rigores da regularidade, fazer da oração parte da nossa identidade vital: vida de oração.

Neste sentido, há duas virtudes que se destacam na obra: a generosidade de um manual de instruções, e a humildade de uma introdução. Há orientações úteis, e a certeza de que estamos quase sempre apenas no início do caminho.

Rezar é parte intrínseca do ser-se cristão. Temos dois mil anos de ensinamentos e experiência orante; o que nos traz de novo este livro? Diria que a novidade é uma cartografia que regressa ao princípio, propondo-nos começar de novo e re-situar a oração na nossa vida – em Portugal, na Europa, no século XXI. Este contexto local e contemporâneo é muito importante porque ajuda a relacionar as propostas do livro com a vida concreta de cada um de nós.

Ao mesmo tempo que nos fala para o presente, o livro de Nélio Pita traz-nos, do passado, exemplos de homens e mulheres com experiências singulares de oração e de ação: místicos ou “ativistas”, eles e elas mostram-nos como a história (e o presente, digamo-lo também) do cristianismo é feita com coragem, com imaginação, com compromisso.

Uma vida orante não é resultado de uma receita única, com passos bem definidos, que funciona para todos da mesma forma. Ela é fruto da dialética permanente entre o ser humano como indivíduo e como parte da comunidade espacial e temporal, da tensão entre a decisão singular e a intervenção do Espírito em cada um. Que respostas damos às perguntas ávidas que ouvimos ao nosso redor? Quem nos pergunta? O que ouvimos? Que vozes nos desestabilizam e quais nos pacificam? O que perguntamos?

Li este trabalho – dedicado, ponderado, rezado – antes da sua publicação. Tê-lo agora em mãos, com um mês de guerra na Ucrânia, dá a este livro, porventura não um outro sentido, mas sim uma outra visibilidade. O que fazer diante da barbárie?

Muitas pessoas não cristãs se mostram incrédulas e até chistosas quando sabem de iniciativas públicas de oração por uma causa. Entendo-as em parte. Diante das imagens de tanques, de ruínas ou de armas apontadas a um alvo humano, como não nos perguntarmos sobre o que vale uma vigília de Pai-Nossos e Avé-Marias numa das nossas paróquias?

A resposta já foi dada; vem nos livros e vem neste livro. Todavia, não nos serve nem consola, se não for incorporada (sim, trazida para o corpo) e realizada (sim, tornada real) na autenticidade da vida de cada um, sozinho ou em comunidade: a resposta é o encontro. O tal novelo de amor – de Deus, ao próximo, contigo, na nossa casa comum.

Nos dez tempos desta cartografia, encontramos uma proposta que pode ser lida para saber mais, mas também para saber melhor deste assunto. Com a certeza, porém, de que, como no título do texto de introdução, nunca deixamos de estar “à procura”.

Cartografia do Encontro: introdução à vida de oração,
de Nélio Pita
Paulus, 2002


Eu Sou Porque Nós Somos

PAPA FRANCISCO

REGINA CAELI

Praça São Pedro
Domingo, 8 de maio de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da Liturgia de hoje fala-nos do vínculo entre o Senhor e cada um de nós (cf. Jo 10, 27-30). Para o fazer, Jesus utiliza uma imagem terna, uma bela imagem, a do pastor que está com as ovelhas. E explica-a com três verbos: «As minhas ovelhas – diz Jesus – ouvem a minha voz, eu conheço-as, e elas seguem-me» (v. 27). Três verbos: ouvir, conhecer, seguir. Vejamos estes três verbos.

Em primeiro lugar, as ovelhas ouvem a voz do pastor. A iniciativa vem sempre do Senhor; tudo tem início na sua graça: é Ele que nos chama à comunhão com Ele. Mas esta comunhão acontece se nos abrirmos à escuta; se continuarmos surdos, ele não nos pode dar esta comunhão. Abrirmo-nos à escuta pois escutar significa disponibilidade, significa docilidade, significa tempo dedicado ao diálogo. Hoje estamos esmagados pelas palavras e pela pressa de ter sempre de dizer e fazer alguma coisa, de facto quantas vezes duas pessoas conversam e uma não espera que a outra termine o seu pensamento, corta-o a meio caminho, responde... Mas se não a deixamos falar, não há escuta. Este é um mal do nosso tempo. Hoje somos esmagados por palavras, pela pressa de ter sempre de dizer alguma coisa, temos medo do silêncio. Como é difícil ouvir! Ouvir até ao fim, deixar que o outro se exprima, ouvir-nos em família, na escola, no trabalho, e até na Igreja! Mas para o Senhor, antes de mais, é preciso ouvir. Ele é a Palavra do Pai e o cristão é filho da escuta, chamado a viver com a Palavra de Deus ao nosso alcance. Perguntemo-nos hoje se somos filhos da escuta, se encontramos tempo para a Palavra de Deus, se damos espaço e atenção aos irmãos e irmãs. Saber ouvir a outra pessoa expressar-se até ao fim, sem interromper o seu discurso. Quem ouve os outros também sabe ouvir o Senhor, e vice-versa. E experimenta algo muito bom, isto é, que o próprio Senhor nos ouve: ouve-nos quando rezamos, quando nos confidenciamos com Ele, quando o invocamos.

Ouvir Jesus torna-se assim a forma de descobrir que Ele nos conhece. Eis o segundo verbo, que diz respeito ao bom pastor: Ele conhece as suas ovelhas. Mas isto não significa apenas que sabe muitas coisas sobre nós: conhecer no sentido bíblico significa também amar. Significa que o Senhor, enquanto “nos lê dentro”, nos ama, não nos condena. Se o ouvirmos, descobrimos isto, que o Senhor nos ama. A maneira de descobrir o amor do Senhor é ouvi-lo. Então a relação com Ele já não será impessoal, fria ou aparente. Jesus procura uma amizade calorosa, uma confidência, uma intimidade. Ele quer doar-nos um novo e maravilhoso conhecimento: saber que somos sempre amados por Ele e, por conseguinte, nunca deixados sozinhos. Estando com o bom pastor, experimentamos o que diz o Salmo: «Mesmo quando eu andar por um vale de trevas e morte, não temerei perigo algum, pois tu estás comigo» (Sl 23, 4). Sobretudo nos sofrimentos, nas dificuldades, nas crises que são trevas: Ele sustenta-nos, vivendo-as connosco. E assim, precisamente em situações difíceis, podemos descobrir que somos conhecidos e amados pelo Senhor. Então perguntemo-nos: deixo-me conhecer pelo Senhor? Dou-lhe espaço na minha vida, confidencio-lhe o que vivo? E, depois das tantas vezes em que experimentei a sua proximidade, a sua compaixão, a sua ternura, que ideia tenho do Senhor? O Senhor está próximo, o Senhor é bom pastor.

Por fim, o terceiro verbo: as ovelhas que ouvem e se descobrem conhecidas seguem: ouvem, sentem-se conhecidas pelo Senhor e seguem o Senhor, que é o seu pastor. E quem segue Cristo, o que faz? Vai para onde Ele vai, na mesma estrada, na mesma direção. Vai em busca de quem se perdeu (cf. Lc 15, 4), interessa-se por aqueles que estão longe, preocupa-se com a situação de quantos sofrem, sabe chorar com aqueles que choram, estende a mão ao próximo, leva-o sobre os ombros. E eu? Deixo-me amar por Jesus e pelo deixar-me amar, ou começo a amá-lo e imitá-lo? Que a Santíssima Virgem nos ajude a ouvir Cristo, a conhecê-lo cada vez mais e a segui-lo no caminho do serviço. Ouvir, conhecê-lo e segui-lo.


Depois do Regina Caeli

Amados irmãos e irmãs!

(…)

Celebra-se hoje o Dia mundial de oração pelas vocações, com o tema «Chamados a edificar a família humana». Em todos os continentes, as comunidades cristãs invocam do Senhor o dom das vocações ao sacerdócio, à vida consagrada, à escolha missionária e ao matrimónio. Este é o dia em que todos nós, batizados, nos sentimos chamados a seguir Jesus, a dizer-lhe sim, a imitá-lo para descobrir a alegria de doar a vida, de servir o Evangelho com júbilo e entusiasmo. Neste contexto, gostaria de expressar os meus melhores votos aos novos sacerdotes da diocese de Roma, que foram ordenados esta manhã na Basílica de São João de Latrão.

Precisamente nesta hora, muitos fiéis reúnem-se em volta da venerada imagem de Maria no Santuário de Pompeia, para lhe dirigirem a Súplica que brotava do coração do Beato Bartolo Longo. Ajoelhado espiritualmente perante a Santíssima Virgem, confio-lhe o ardente desejo de paz de tantos povos que em várias partes do mundo sofrem a calamidade insensata da guerra. À Santíssima Virgem apresento em particular os sofrimentos e as lágrimas do povo ucraniano. Perante a loucura da guerra, continuemos, por favor, a rezar todos os dias o terço pela paz. E rezemos pelos líderes das nações, para que não percam “o instinto do povo”, que quer a paz e sabe que as armas nunca a trarão.

(…)

Hoje, em muitos países, celebramos o Dia da Mãe. Recordemos as nossas mães com afeto – um aplauso às mães – inclusive àquelas que já não estão connosco aqui na terra, mas vivem nos nossos corações. A todas as mães é a nossa oração, o nosso afeto, os nossos bons votos.

Bom domingo a todos vós! Por favor, não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista.


Eu Sou Porque Nós Somos

(Ainda que se refira ao Segundo Domingo de Páscoa, vale a pena ler)

VER PARA CRER! PROFISSÃO DE FÉ NA COMUNIDADE

Samuel Afonso, sj | 24 Abril 2022 | In Ponto SJ

Há expressões que usamos e das quais não fazemos ideia a origem. No Segundo domingo da Páscoa a Igreja apresenta-nos Tomé, um dos doze apóstolos e o autor do adágio que entrou no nosso quotidiano. Será interessante pensarmos em tantas coisas que nos levam a dizer como o apóstolo Ver para crer.

Falando com um outro jesuíta nestes dias ele dizia-me que a falta de fé de Tomé não se trata de uma falta de fé em Deus, mas uma falta de fé na comunidade. São João não nos diz porque é que Tomé estava ausente no dia de Páscoa, apenas nos informa. Os discípulos, que fazem a experiência pacificadora da ressurreição, não contêm a alegria de ver Jesus novamente no meio deles e contam tudo a Tomé, mas Tomé tem dificuldade em acreditar neles.

Temos vivido tempos conturbados, entre a pandemia e a guerra, as notícias tristes sucedem-se e de alguma maneira parecem hipotecar a nossa alegria neste tempo pascal. Mas a pedagogia de Jesus ressuscitado vem lembrar-nos que, mesmo no meio da confusão e do medo, a paz e a alegria conseguem superar até mesmo a morte. Sem perdermos uma certa dose de realismo no confronto com o nosso mundo, será importante dar o passo na fé da comunidade crente que nestes dias despe o roxo carregado da Quaresma e se abre ao branco da Páscoa. A fé daqueles que se sabem acompanhados e em caminho, a fé daqueles que querem receber a paz como um dom que o Cristo ressuscitado quer oferecer, e oferecer em superabundância. Das duas vezes que Jesus se junta ao grupo dos discípulos traz este desejo, de que a paz esteja com eles. Esta paz é uma espécie de marca registada de Jesus.

Aqueles de nós que somos batizados, que pertencemos à família de Deus, devíamos estar habituados a fazer fé da palavra da comunidade, a não duvidar. Porque temos tanta dificuldade em acreditar na palavra e no testemunho dos que estão perto de nós? Isso poderá dizer alguma coisa também de nós? A nossa palavra como cristãos é digna de fé?

Gostava muito que ao longo deste tempo pascal nos fossemos exercitando nas nossas famílias, nos nossos trabalhos, nos lugares que habitamos a um movimento de credibilidade. Gostava que aprendêssemos a acreditar, mesmo quando nos parece que vai contracorrente; a esperar numa esperança cristã que é realista, mesmo que o mundo à nossa volta insista em nos dizer que não faz sentido.

Quando uma semana depois Tomé está com os outros e vê Jesus, não precisa tocar as feridas para acreditar, para fazer a sua profissão de fé. Jesus restaura em Tomé a fé que ele tinha perdido na comunidade, ajuda-o a perceber que a comunidade tinha razão, que Jesus estava realmente vivo. A boa notícia é que Jesus continua vivo, continua a desafiar-nos a passar do medo à alegria.

Aquele que lê este texto pode perguntar-se porquê tanta insistência na alegria. A alegria é um fruto da ressurreição, e ainda que o mundo nos diga que não temos motivos para a alegria, devemos recordar-nos que, com a ressurreição, Cristo venceu o mundo, e como tal é o único capaz de nos transformar de modo a que o nosso olhar se converta, que convertamos o modo como olhamos a realidade.

Neste segundo domingo da Páscoa, que Tomé seja o nosso guia neste caminho rumo à verdadeira alegria pascal.


Eu Sou Porque Nós Somos

PAPA FRANCISCO

REGINA CAELI

Praça São Pedro
II Domingo de Páscoa - Domingo da Divina Misericórdia, 24 de abril de 2022

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje, último dia da Oitava de Páscoa, o Evangelho narra sobre a primeira e a segunda aparição do Senhor Ressuscitado aos discípulos. Jesus vem na Páscoa, enquanto os Apóstolos estão fechados no Cenáculo, por medo, mas como Tomé, um dos Doze, não está presente, regressa oito dias depois (cf. Jo 20, 19-29). Concentremo-nos nos dois protagonistas, Tomé e Jesus, olhando primeiro para o discípulo e depois para o Mestre. E entre eles surge um lindo diálogo.

O apóstolo Tomé, sobretudo. Ele representa todos nós, que não estávamos presentes no Cenáculo quando o Senhor apareceu e não tivemos outros sinais físicos nem aparições d'Ele. Também nós, como aquele discípulo, por vezes temos dificuldade: como podemos acreditar que Jesus ressuscitou, que nos acompanha e é Senhor da nossa vida sem o termos visto, sem o termos tocado? Como podemos acreditar nisto? Por que o Senhor não nos dá um sinal mais evidente da sua presença e do seu amor? Algum sinal que eu possa ver melhor... Bem, nós também somos como Tomé, com as mesmas dúvidas, o mesmo raciocínio.

Mas não devemos ter vergonha disto. Ao contar-nos a história de Tomé, de facto, o Evangelho diz-nos que o Senhor não procura cristãos perfeitos. O Senhor não procura cristãos perfeitos. Digo-vos: receio quando vejo alguns cristãos, alguma associação de cristãos que pensam que são perfeitos. O Senhor não procura cristãos perfeitos; o Senhor não procura cristãos que nunca duvidam e sempre ostentam uma fé segura. Quando um cristão é assim, há algo errado. Não, a aventura da fé, como para Tomé, é feita de luzes e sombras. Se não, que tipo de fé seria? Ela conhece tempos de consolação, ímpeto e entusiasmo, mas também de cansaço, desorientação, dúvida e escuridão. O Evangelho mostra-nos a “crise” de Tomé para nos dizer que não devemos temer as crises da vida e da fé. As crises não são um pecado, são um caminho, não devemos receá-las. Muitas vezes tornam-nos humildes, porque nos despojam da ideia de estarmos certos, de sermos melhores do que os outros. As crises ajudam-nos a reconhecer que estamos em necessidade: despertam a nossa necessidade de Deus e permitem-nos assim regressar ao Senhor, tocar as suas feridas, experimentar novamente o seu amor, como fizemos na primeira vez. Estimados irmãos e irmãs, é melhor ter uma fé imperfeita, mas humilde, sempre orientada para Jesus, do que uma fé forte, mas presunçosa, que nos torna orgulhosos e arrogantes. Ai destes, ai!

E perante a ausência e o caminho de Tomé, que muitas vezes também é nosso, qual é a atitude de Jesus? O Evangelho diz duas vezes que ele «veio» (vv. 19.26). Uma primeira vez, depois uma segunda vez, oito dias mais tarde. Jesus não desiste, não se cansa de nós, não tem medo das nossas crises, das nossas fraquezas. Ele volta sempre: quando as portas estão fechadas, ele volta; quando duvidamos, ele volta; quando, como Tomé, precisamos de o encontrar e tocá-lo mais de perto, ele volta. Jesus volta sempre, bate sempre à porta, e não volta com sinais poderosos que nos fariam sentir pequenos e inadequados, até envergonhados, mas com as suas feridas; ele volta mostrando-nos as suas chagas, sinais do seu amor que abraçou as nossas fragilidades.

Irmãos e irmãs, especialmente quando experimentamos cansaço ou momentos de crise, Jesus, o Ressuscitado, deseja regressar para estar connosco. Ele espera unicamente que o procuremos, que o invoquemos, até mesmo que protestemos, como Tomé, mostrando-lhe as nossas necessidades e a nossa incredulidade. Ele regressa sempre. Porquê? Porque é paciente e misericordioso. Ele vem para abrir os cenáculos dos nossos medos e das nossas incredulidades, pois quer sempre dar-nos outra oportunidade. Jesus é o Senhor das “outras oportunidades”: Ele dá-nos sempre mais uma, sempre. Pensemos então na última vez – lembremo-nos – quando, durante um momento difícil, ou um período de crise, nos fechamos em nós próprios, barricando-nos nos nossos problemas e deixando Jesus fora de casa. E prometemos, na próxima vez, no nosso cansaço, procurar Jesus, voltar para Ele, para o Seu perdão – Ele perdoa sempre, sempre! – voltemos para as feridas que nos curaram. Desta forma, tornar-nos-emos também capazes de compaixão, de nos aproximar das feridas dos outros sem rigidez nem preconceitos.

Que Nossa Senhora, Mãe de Misericórdia – gosto de pensar nela como Mãe da Misericórdia na segunda-feira depois do Domingo da Misericórdia – nos acompanhe no caminho da fé e do amor.


Depois do Regina caeli

Amados irmãos e irmãs

Hoje muitas Igrejas Orientais, católicas e ortodoxas, e também várias comunidades latinas, celebram a Páscoa de acordo com o calendário juliano. Celebrámo-la no domingo passado, de acordo com o calendário gregoriano. Ofereço-lhes os meus melhores votos: Cristo ressuscitou, ressuscitou verdadeiramente! Que ele preencha as boas expetativas dos corações com esperança. Que ele traga a paz, ultrajada pela barbaridade da guerra. Hoje faz dois meses desde o início desta guerra: em vez de parar, a guerra intensificou-se. É triste que nestes dias, que são os mais santos e solenes para todos os cristãos, se ouça mais o fragor mortal das armas do que o som dos sinos que anunciam a Ressurreição; e é triste que as armas estejam cada vez mais a tomar o lugar da palavra.

Renovo o meu apelo a uma trégua pascal, um sinal mínimo e tangível de um desejo de paz. Que o ataque pare, para socorrer o sofrimento da população exausta; devemos parar, em obediência às palavras do Senhor Ressuscitado, que no dia de Páscoa repete aos seus discípulos: «A paz esteja convosco!» (Lc 24, 36; Jo 20, 19.21). Peço a todos que aumenteis as vossas orações pela paz e que tenhais a coragem de dizer, de manifestar que a paz é possível. Os líderes políticos, por favor, ouçam a voz do povo, que quer a paz, e não um escalar do conflito.

A este respeito, saúdo e agradeço aos participantes na extraordinária Marcha Perúsia-Assis pela Paz e a Fraternidade, que hoje se realiza; assim como a quantos se uniram para dar vida a manifestações semelhantes noutras cidades italianas.
(…)
Feliz domingo a todos! E por favor não vos esqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até à vista.


Eu Sou Porque Nós Somos

SANTA MISSA CRISMAL

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro
Quinta-feira Santa, 14 de abril de 2022

(Nota: Ainda que esta homilia seja mais ‘dirigida’ aos sacerdotes, é importante para todos os baptizados, pois uns e outros ‘somos porque nós somos’, estamos chamados a ajudar-nos a ser uns aos outros)

Na leitura que ouvimos do profeta Isaías, o Senhor faz uma promessa cheia de esperança que nos diz intimamente respeito: «Vós sereis chamados “Sacerdotes do Senhor”, e nomeados “Ministros do nosso Deus”. (...) Dar-lhes-ei fielmente a sua recompensa e farei com eles uma aliança eterna» (Is 61, 6.8). Ser sacerdote é uma graça, queridos irmãos, uma graça muito grande, que não se destina primariamente a nós, mas aos fiéis [1]; e, para o nosso povo, é um grande dom que o Senhor escolha, dentre o seu rebanho, alguns que se ocupem das suas ovelhas, de forma exclusiva, como pais e pastores. É o próprio Senhor que dá a recompensa ao sacerdote: «dar-lhes-ei fielmente a sua recompensa (Is 61, 8). E sabemos que Ele é bom pagador, embora tenha as suas peculiaridades como a de pagar primeiro os últimos e, depois, os primeiros, segundo o seu estilo.

A leitura do livro do Apocalipse diz-nos qual é a recompensa do Senhor. É o seu Amor e o perdão incondicional dos nossos pecados com o preço do seu sangue derramado na Cruz: Aquele «que nos ama e nos purifica dos nossos pecados com o seu sangue, e fez de nós um reino, sacerdotes para Deus e seu Pai» (Ap 1, 5-6). Não há recompensa maior do que a amizade com Jesus (não o esqueçamos). Não há paz maior do que o seu perdão (isto, sabemo-lo nós todos). Não há preço mais elevado do que o seu precioso Sangue: não permitamos que seja aviltado com uma conduta indigna.

Queridos irmãos sacerdotes, se lermos tudo isto com o coração, veremos que se trata de convites do Senhor para Lhe sermos fiéis, fiéis à sua Aliança, para nos deixarmos amar, nos deixarmos perdoar; são convites não só para nosso próprio proveito, mas também para podermos assim servir, com uma consciência pura, o santo povo fiel de Deus. Este povo merece-o, e também tem necessidade. O Evangelho de Lucas conta que Jesus, depois de ter lido a passagem do profeta Isaías diante do seu povo, Se sentou; e acrescenta: todos «tinham os olhos fixos n’Ele» (Lc 4, 20). Também o Apocalipse nos fala hoje de olhos fixos em Jesus, da atração irresistível do Senhor crucificado e ressuscitado que nos leva a reconhecê-Lo e adorá-Lo: «Olhai; Ele vem no meio das nuvens! Todos os olhos O verão, até mesmo os que O trespassaram. Todas as nações da terra se lamentarão por causa d’Ele. Sim. Amen!» (Ap 1,7). A graça final, quando o Senhor ressuscitado voltar, será a graça de O reconhecermos de forma imediata: vê-Lo-emos trespassado, reconheceremos que é Ele e também quem somos nós: pecadores, e nada mais!

«Fixar os olhos em Jesus» é uma graça que devemos cultivar como sacerdotes. No fim do dia, é bom olhar para o Senhor e deixar que Ele contemple o nosso coração, juntamente com o coração das pessoas que encontramos. Não se trata de contabilizar os pecados, mas duma contemplação amorosa em que vemos o nosso dia com o olhar de Jesus repassando assim as graças do dia, os dons e tudo o que Ele fez por nós a fim de Lhe agradecermos. E mostramos-Lhe também as nossas tentações, para as identificarmos e rejeitarmos. Como vemos, trata-se de compreender aquilo que é agradável ao Senhor e o que Ele quer de nós, aqui e agora, na nossa história atual.

E talvez, se nos mantivermos sob o seu olhar cheio de bondade, haverá também da parte d’Ele um sinal para Lhe mostrarmos os nossos ídolos: aqueles ídolos que escondemos, como Raquel, sob as dobras do nosso manto (cf. Gn 31, 34-35). Deixar que o Senhor veja os nossos ídolos escondidos. Todos nós os temos, todos! E deixar que o Senhor veja os nossos ídolos escondidos torna-nos fortes face a eles e tira-lhes o poder.

O olhar do Senhor faz-nos ver que neles, na realidade, glorificamo-nos a nós mesmos [2], porque, naquele espaço tomado por nós como se fosse exclusivo, intromete-se o diabo, acrescentando um elemento tipicamente maligno: faz com que não só nos «comprazamos» nós próprios dando rédea solta a uma paixão ou cultivando outra, mas leva-nos também a substituir com eles, com esses ídolos escondidos, a presença das Pessoas divinas, a presença do Pai, do Filho e do Espírito, que moram dentro de nós. É algo que acontece efetivamente. Embora uma pessoa diga a si mesma que distingue perfeitamente o que é um ídolo e quem é Deus, na prática estamos tirando espaço à Trindade para o dar ao demónio, numa espécie de adoração indireta: a de quem o esconde, mas continuamente escuta as suas sugestões e consome os seus produtos, de tal forma que no final não sobra sequer um cantinho para Deus. É que o Senhor deixa fazer, afasta-Se lentamente. Além disso existem os demónios «educados» (de que já vos falei uma vez); acerca deles, disse Jesus que são piores do que o outro que Ele tinha já expulso. Estes são «educados», tocam a campainha, instalam-se e pouco a pouco apoderam-se da casa. Devemos estar atentos; são os nossos ídolos.

É que os ídolos têm qualquer coisa (um elemento) de pessoal. Quando não os desmascaramos, quando não deixamos que Jesus nos faça ver que, errando, neles estamos a procurar-nos a nós mesmos sem motivo, então deixamos um espaço onde se intromete o Maligno. Devemos recordar-nos que o demónio exige que façamos a sua vontade e o sirvamos… Mas nem sempre pede que o sirvamos e adoremos continuamente; sabe como levar-nos. É um grande diplomático; basta-lhe receber a adoração de vez em quando para lhe demonstrar que é o nosso verdadeiro senhor e que até se sente deus na nossa vida e no nosso coração.

Dito isto, gostaria, nesta Missa Crismal, de partilhar convosco três espaços de idolatria escondida nos quais o Maligno se serve dos seus ídolos para nos enfraquecer na nossa vocação de pastores e, pouco a pouco, separar-nos da presença benéfica e amorosa de Jesus, do Espírito e do Pai.

Um primeiro espaço de idolatria escondida abre-se onde há mundanidade espiritual, que é «uma proposta de vida, é uma cultura, uma cultura do efémero, uma cultura da aparência, uma cultura da maquilhagem» [3]. O seu critério é o triunfalismo, um triunfalismo sem Cruz. E Jesus reza para que o Pai nos defenda desta cultura da mundanidade. Esta tentação duma glória sem Cruz vai contra a pessoa do Senhor, vai contra Jesus que Se humilha na Encarnação e que, como sinal de contradição, é o único remédio contra todo o ídolo. Ser pobre com Cristo pobre e «porque Cristo escolheu a pobreza» é a lógica do Amor; e não outra. No texto evangélico de hoje, vemos como o Senhor Se apresenta na sua humilde sinagoga e na sua pequena aldeia – a de toda a vida – para proferir o mesmo Anúncio que fará no final da história, quando vier na sua Glória, rodeado pelos anjos. E os nossos olhos devem estar fixos em Cristo, na história de Jesus aqui e agora comigo, como estarão na parusia. A mundanidade de andar à procura da própria glória rouba-nos a presença de Jesus humilde e humilhado, Senhor próximo de todos, Cristo sofredor com todos os que sofrem, adorado pelo nosso povo que sabe quais são os seus verdadeiros amigos. Um sacerdote mundano não passa dm pagão clericalizado. Repito: um sacerdote mundano não passa dum pagão clericalizado.

Outro espaço de idolatria escondida cria raízes onde se dá a primazia ao pragmatismo dos números. Aqueles que possuem este ídolo escondido, reconhecem-se pelo seu amor às estatísticas, aquelas que podem apagar qualquer traço pessoal no debate e dar a proeminência às maiorias, que passam a ser, em última análise, o critério de discernimento. Está mal! Mas isto não pode ser a única maneira de proceder nem o único critério na Igreja de Cristo. As pessoas não se podem reduzir a números, e Deus dá o Espírito «sem medida» (Jo 3, 34). Na realidade, neste fascínio pelos números, é a nós mesmos que nos procuramos, comprazendo-nos no controlo que nos dá esta lógica, que não se interessa dos rostos, e não é a lógica do amor; ama os números. Uma caraterística dos grandes santos é que sabem retirar-se para deixar todo o espaço a Deus. Este retirar-se, este esquecer-se de si mesmo e querer ser esquecido por todos os outros é a caraterística do Espírito, o Qual carece de imagem; o Espírito não tem imagem própria, simplesmente porque todo Ele é Amor, que faz brilhar a imagem do Filho e, nesta, a do Pai. A substituição da sua Pessoa, que já de por si gosta de «não aparecer» (porque não tem imagem!), é aquilo que visa o ídolo dos números, que faz com que tudo «apareça», mas de modo abstrato e contabilizado, sem encarnação.

Um terceiro espaço de idolatria escondida, emparentado com o anterior, é aquele que se abre com o funcionalismo, um ambiente sedutor em que muitos, «mais do que pelo percurso, se entusiasmam com a tabela de marcha». A mentalidade funcionalista não tolera o mistério, aposta na eficácia. Pouco a pouco, este ídolo vai substituindo em nós a presença do Pai. O primeiro ídolo substitui a presença do Filho; o segundo ídolo, a do Espírito; e este, a presença do Pai. O nosso Pai é o Criador: não alguém que faz apenas «funcionar» as coisas, mas Alguém que «cria» como Pai, com ternura, ocupando-Se das suas criaturas e agindo para que o homem seja mais livre. O funcionalista não sabe alegrar-se com as graças que o Espírito derrama sobre o seu povo e das quais poderia também «alimentar-se» como trabalhador que recebe a sua recompensa; mas o sacerdote com mentalidade funcionalista tem o seu alimento que é o próprio «eu». No funcionalismo, deixamos de lado a adoração do Pai nas pequenas e grandes coisas da nossa vida e comprazemo-nos na eficácia dos nossos programas, como fez David, quando, tentado por Satanás, se obstinou em realizar o recenseamento (cf. 1 Cro 21, 1). Estão enamorados pelo plano de rota, pelo plano do caminho, não pelo caminho.

Nestes dois últimos espaços de idolatria escondida (pragmatismo dos números e funcionalismo) substituímos a esperança, que é o espaço do encontro com Deus, pela constatação empírica. Trata-se duma atitude de vanglória por parte do pastor, uma atitude que desintegra a união do seu povo com Deus e plasma um novo ídolo baseado em números e programas: o ídolo «o meu poder, o nosso poder» [4], o nosso programa, os nossos números, os nossos planos pastorais. Esconder estes ídolos (imitando a atitude de Raquel) e não os saber desmascarar na vida quotidiana prejudica a fidelidade da nossa aliança sacerdotal e resfria a nossa relação pessoal com o Senhor. Poderia alguém pensar: mas afinal o que é que quer este Bispo que hoje, em vez de falar de Jesus, nos fala dos ídolos?

Queridos irmãos, Jesus é o único caminho para não nos enganarmos no conhecimento do que sentimos e para onde nos leva o nosso coração; é o único caminho para um bom discernimento, confrontando-nos dia-a-dia com Jesus como se Ele estivesse também hoje sentado na nossa igreja paroquial e nos dissesse que hoje se cumpriu tudo o que acabamos de ouvir. Sendo sinal de contradição (nem sempre é sinónimo de algo cruento ou duro, pois a misericórdia é sinal de contradição como o é, e muito mais, a ternura), Jesus Cristo faz com que estes ídolos se manifestem, se veja a sua presença, as suas raízes e o seu funcionamento, a fim de que o Senhor os possa destruir. Esta é a proposta: dar espaço ao Senhor, para que Ele possa destruir os nossos ídolos escondidos. E devemos ter em mente e estar atento para que não renasça a cizânia destes ídolos que soubemos esconder nas dobras do nosso coração.

Gostaria de concluir pedindo a São José, pai castíssimo e sem ídolos escondidos, que nos liberte de toda a avidez de possuir, pois esta – a avidez de possuir – é o terreno fecundo onde crescem estes ídolos. E que nos alcance também a graça de não desistir na árdua tarefa de discernir estes ídolos que, com grande frequência, escondemos ou se escondem. E pedimos ainda a São José que, quando duvidarmos sobre como fazer melhor as coisas, interceda por nós a fim de que o Espírito nos ilumine o discernimento, como iluminou o dele quando esteve tentado a deixar Maria «em segredo» (lathra), para que, com nobreza de coração, saibamos subordinar à caridade o que aprendemos com a lei [5].


[1] Pois o sacerdócio ministerial está ao serviço do sacerdócio comum. O Senhor escolheu alguns para «exercer oficialmente o ofício sacerdotal em nome de Cristo a favor dos homens» (Conc. Ecum. Vat. II, Decr. Presbyterorum ordinis, 2; cf. Const. dogm. Lumen gentium, 10). «Com efeito, os ministros que têm o poder sagrado servem os seus irmãos» ( Lumen gentium, 18).
[2] Cf. Papa Francisco, Catequese, na Audiência Geral de 1 de agosto de 2018.
[3] Papa Francisco, Homilia na Missa em Santa Marta, 16 de maio de 2020.
[4] J. M. Bergoglio, Meditações para religiosos (Mensajero - Bilbau 2014), 145.
[5] Cf. Papa Francisco, Carta apost. Patris corde, n.º 4, nota 18.


Eu Sou Porque Nós Somos

Selo 4C & Peace

P. Carlos Carvalho sj | in Ponto SJ | 5 Abril 2022

Há um mês que as imagens horrendas da guerra enchem o nosso dia a dia de preocupação e de muita solidariedade, mostrando-nos o que julgávamos impossível acontecer no século XXI: um conflito armado na europa. Estamos habituados a ver a guerra nos quatros cantos do mundo, mas não em nossa casa, talvez, por isso, nos sintamos especialmente unidos ao povo ucraniano e façamos de tudo, apesar dos quilómetros que nos separam, para os ajudar, para os acolher e, inclusive, os integrar nas nossas escolas.

Há mais de dois anos que vivemos condicionados pela pandemia, com máscaras, medo, distanciamentos e sucessivos confinamentos, ansiosos por voltar ao presencial e à normalidade. De modo particular nas escolas, criamos bolhas entre os alunos, limitamos o seu acesso a determinados espaços e materiais, proibimos a partilha de objetos, evitamos o contacto físico e estruturamos um ensino online e misto. Apesar de todos os esforços dos professores e da grande criatividade pedagógica das escolas, muitas aprendizagens ficaram para trás, muitas brincadeiras ficaram perdidas, muitas dimensões da pessoa ficaram por desenvolver. Sabemos, por isso, que aumentou a exposição a ecrãs e o acesso, não monitorizado, às redes sociais; que se intensificou um sentido protecionista dos pais e que foi afetado o desenvolvimento humano das crianças e jovens.

Há uma semana, o mundo parou para ver a entrega dos óscares, tendo ficado apenas um momento insólito na retina: a bofetada que Will Smith deu a Chris Rock, em direto, por ter feito uma piada sobre a sua mulher, e os insultos que gritou do seu lugar. Foi tão violento, que muitos pensaram que era uma encenação e que não podia ser verdade.

Este é o nosso contexto. Podemos ignorar, ocultar ou desvalorizar. Mas todos temos a sensação, mais ou menos diária, que o cansaço leva ao desespero, que andamos com menos paciência uns para com os outros e que muitas vezes a nossa reação é violenta. Nas escolas, sentimos os alunos mais ansiosos, com menos capacidade de concentração e com muitos comportamentos desregulados. E com o aproximar do final do 2.º período, sente-se o cansaço acumulado, tanto de alunos como de professores, depois de um mês de janeiro e fevereiro muito condicionados pela pandemia e de um mês de março marcado pela guerra.

Como educador, após uma semana de Gestos pela Paz, que vivemos na escola onde trabalho, no Colégio das Caldinhas (cf. https://pontosj.pt/colegio-das-caldinhas-gestos-de-paz-pela-ucrania/), com tantas iniciativas a acontecer nas aulas e nos corredores, tenho-me perguntado como podemos educar os nossos alunos para a paz, numa Europa em guerra e cada vez mais militarizada, numa sociedade que começa a demonstrar índices de violência preocupantes e uma grande insensibilidade ao outro. Como poderemos, nesta nova ordem mundial, europeia e nacional, educar para uma cidadania responsável que implique o respeito pela diferença e a construção efetiva da paz? Como poderemos educar para uma excelência humana que permita reconhecer o outro como irmão?

Estando nós, neste ano inaciano, a celebrar os 500 anos da batalha de Pamplona e de uma ferida que revolucionou a vida de Santo Inácio de Loyola, pensei que tal como o governo criou o selo Clean & Safe, para distinguir as empresas que cumprem as recomendações da Direção-Geral da Saúde, evitando a contaminação dos espaços com o coronavírus, que poderíamos criar um selo 4C & Peace para certificar práticas educativas promotoras da paz, permitindo a cada educador uma verdadeira reflexão sobre a experiência.

Inspirado pelo documento A Excelência Humana (2015), do Secretariado para a Educação da Companhia de Jesus, estruturo este selo inovador em 4C´s: consciente, competente, compassivo e comprometido.

a) Educar pessoas conscientes. Para combater a híper estimulação da visão, provocada pela elevada exposição a ecrãs e visualização excessiva de vídeos, a educação, como processo de aprendizagem, deve cuidar o hábito da escuta, ajudando cada um a dialogar com o seu interior e a lidar com os seus sentimentos. A paz não se constrói evitando as feridas ou subestimando os problemas, mas com resiliência, coragem e determinação.

Alguns exercícios que podem ajudar a educar alunos conscientes: cultivar hábitos de leitura, promover atividades que eduquem para a interioridade, promover hábitos de avaliação do dia e da semana, sugerir exercícios de gratidão espontânea, ajudar os alunos a lidar com a frustração, promover uma orientação vocacional libertadora.

b) Educar pessoas competentes. Para combater a tirania da perfeição e da eficácia, a educação, como espaço de descoberta de si e das suas capacidades, deve ajudar cada um a aprender com os seus erros e a dialogar com o outro. A paz constrói-se ajudando os alunos a serem a melhor versão de si próprios, evitando a frustração de padrões exteriores impostos pela sociedade e capacitando para a resolução autónoma de problemas.

Alguns exercícios que podem ajudar a educar alunos competentes: não centrar o processo de avaliação exclusivamente na classificação, dar aos alunos a oportunidade de rever as suas ações e aprender com os seus erros, dar-lhes a oportunidade de conversarem sobre os seus fracassos, promover atividades de autoconhecimento, ajudar os alunos a refletir sobre os seus métodos de estudo e a rever objetivos, promover o trabalho colaborativo dentro da sala de aula, ajudar os alunos a relacionar os conteúdos com a vida concreta.

c) Educar pessoas compassivas. Para combater a excessiva competitividade e a indiferença, a educação deve ajudar cada um a ultrapassar os seus preconceitos, valorizando a diferença e apreendendo a perdoar. A paz constrói-se dando voz às vítimas, denunciando injustiças e movendo a caridade ao serviço.

Alguns exercícios que podem ajudar a educar alunos compassivos: promover assembleias de turma onde cada um possa escutar o outro, ensinar os alunos a dar feedback aos colegas, dar a conhecer aos alunos realidades de injustiça, pôr os alunos em contacto com alunos de outros países e continentes, promover o voluntariado, promover mentorias entre alunos mais velhos e alunos mais novos, promover o diálogo entre gerações.

d) Educar pessoas comprometidas. Para combater a lógica do descarte, a apatia da inatividade e o conformismo, a educação deve ajudar cada um a ser um cidadão global comprometido com a transformação do mundo. A paz constrói-se abrindo horizontes e construindo uma fraternidade universal, lutando contra as injustiças e contra todo o tipo de violência.

Alguns exercícios que podem ajudar a educar alunos comprometidos: convidar pessoas com histórias de vida inspiradoras para dar testemunho na escola, comprometer os alunos na resolução dos problemas da escola, criar grupos de reflexão sobre os grandes problemas do mundo (guerra, aquecimento global, crise energética), criar clubes de debates, criar redes de educação para a cidadania envolvendo as famílias e a sociedade civil, promover o compromisso político.

Sabemos que a paz não se constrói sem luta interior. Inácio, convalescente em Loyola, num tempo de grande crise e conflitos, decidiu deixar as armas, para se fazer peregrino, porque percebeu que as grandes batalhas se travam dentro de nós. Decidiu abandonar a sua espada, para poder livremente acompanhar os outros nas suas batalhas interiores e os ajudar a encontrar a paz. Podemos estar a viver as consequências da pandemia e uma guerra que parece não ter fim, todavia, não podemos render-nos à violência e educar como se o conflito não existisse. Por isso, que este selo nos ajude a acompanhar as lutas interiores de cada um, evitando as guerras do futuro.


Eu Sou Porque Nós Somos

Mas quem é o deus deste gajo?

Abr 1, 2022 | Moral da história | Pelo Padre José Júlio Rocha

Já lá vão quase três mil anos desde que o rei Salomão, filho de David, morreu. À sua morte, Israel dividiu-se em dois estados: o Reino de Judá ao sul, com capital em Jerusalém, e o Reino de Israel a norte, compreendendo o que, ao tempo de Jesus, era a Galileia e a Samaria. Jeroboão (um daqueles nomes bíblicos que não queremos dar aos nossos filhos) tomou a coroa do Reino de Israel e nele, segundo conta a Bíblia, espalhou a infidelidade a Deus e a injustiça entre o povo.

É nesse tempo e nesse reino que aparecem dois profetas. O profeta Amós veio do sul, do Reino de Judá, onde era um pobre pastor que cultivava sicómoros. O Senhor chamou-o para ir ao Reino do Norte profetizar contra as injustiças, crimes e infidelidades do rei e do povo. O outro era Amacias, profeta de Betel, que vivia sumptuosamente no palácio de Jeroboão e profetizava apenas aquilo que o rei queria ouvir. Os dois profetas encontram-se e Amacias manda Amós profetizar para a sua terra ao que este responde que está apenas a fazer o que Deus lhe mandou.

Amós é um dos protótipos bíblicos do verdadeiro profeta: fala em nome de Deus; vive uma vida de acordo com o que prega; está disposto a dar a vida por aquilo em que acredita; não tem medo de denunciar as injustiças dos poderosos. Amacias, pelo contrário, representa os falsos profetas: falam em nome dos reis e dos poderosos; vivem uma vida de abundância nas cortes e nos palácios; não há correspondência entre aquilo que pregam e o que vivem; não denunciam as injustiças dos poderosos porque são parte da própria estrutura injusta que os alimenta.

Este conceito de falsos profetas ainda hoje é uma tremenda realidade em todas as religiões, especialmente as monoteístas. O que menos falta é “profetas” vendidos a este mundo, que mal acreditam naquilo que anunciam, funcionários de Deus, para quem o bem-estar e as riquezas são bem mais importantes do que a missão que lhes foi confiada e que não cumprem. A tentação da profecia falsa está bem presente num mundo para o qual o bem-estar, as riquezas e o poder têm o significado de felicidade. Noutras palavras, é bem mais difícil ser verdadeiro profeta hoje do que nos tempos de Jeroboão.

De todos os altos representantes da fé, há um que, ultimamente, me vem atazanando o juízo e que, não sendo da minha confissão religiosa, não deixa de fazer parte da minha religião. Não é que, na Igreja Católica, não existam falsos profetas suficientes para encher uma enciclopédia, mas, neste caso, está a dar mesmo nas vistas.

Trata-se de Kirill I (Cirilo I), patriarca da Rússia, ou “das Rússias”, como ele gosta de se apelidar. Atualmente é um dos maiores aliados de Vladimir Putin e da sua sanha expansionista.

Kirill é uma figura polémica na Igreja Ortodoxa russa: foi acusado de pertencer ao KGB numa altura em que a Igreja era perseguida na União Soviética e, mais tarde, já nos anos 90, enriqueceu com a concessão, pelo governo à Igreja Ortodoxa russa, da exclusividade do negócio de tabaco estrangeiro. Há quem avalie a fortuna pessoal de Kirill em 4 mil milhões de euros. Bem que ele tem tentado esconder essa opulência, como no caso de uma fotografia que o representava a assinar, numa mesa, um documento, onde foi retirado do seu pulso, em “fotoshop”, o relógio. Mas esqueceram-se de o retirar do reflexo do tampo da mesa: era um “Breguet” de quase 40 mil euros. Gato escondido com o rabo de fora.

Pior do que tudo isso é a posição subserviente do patriarca em relação a Putin que, qual maquiavel elevado à quinta potência, não olha a meios nem a ditames morais para consolidar o poder. Putin não é desses “liderzinhos” ocidentais que governam amordaçados por essa coisa de direitos humanos ou estados democráticos de direito, pela separação entre estado e religião ou por coisas fatelas como o Bem Comum. Para Putin só importa a Rússia, a sua segurança e o seu histórico imperialismo: é um trunfo ter Kirill nas suas mãos sujas.

E o patriarca russo encontrou a mais extraordinária de todas as explicações para se colocar ao lado de Putin na invasão à Ucrânia: preservar a Ucrânia das “falsas liberdades do Ocidente”, da corrupção dos valores, verdadeira ameaça contra os dois países irmãos. O mote foi a convocação de uma marcha do “orgulho gay” na Ucrânia, que não se realizou. “Por fraqueza, estupidez, ignorância e falta de vontade, muitos caem no pecado” e, por isso, Kirill apela aos fiéis para ficarem do lado certo da história e “nunca serem tolerantes com quem viola as leis de Deus.”

Sejamos, pois, claros: para Kirill o grande crime da humanidade é o desregramento dos valores no Ocidente, sobretudo no que diz respeito à sexualidade, aquilo que – vá lá – é o tal mastodôntico elefante na loja de porcelanas da moralidade das religiões. Sobretudo, como vimos, a hedionda homossexualidade que corrompe as almas e as leva ao inferno.

Então é assim: para preservar a Ucrânia da homossexualidade, dos LGBT e de outros crimes quejandos, vale a pena agredir um país inocente, destruir a sua economia, arrasar as suas cidades, matar as suas crianças, expulsar os seus velhos e mulheres, bombardear hospitais, escolas, teatros e igrejas, espalhar a guerra, o sangue, a destruição e a morte.

Se tudo isto é para se manter nas boas graças de Putin, como mais um oligarca protegido, estamos diante de um magnífico falso profeta.

Se tudo isto é por convicção, Deus nos acuda!

*Este texto foi publicado esta sexta-feira, no Diário Insular, na coluna Rua do Palácio


Eu Sou Porque Nós Somos

Quaresma 2022 - O tempo favorável da escuta (II)

Num sentido espiritual, o discernimento é a arte de interpretar para onde nos conduzem os desejos do coração, sem nos deixarmos seduzir por aquilo que nos leva aonde não devemos ir. O discernimento envolve reflexão na tomada de decisões nas nossas vidas concretas para procurar encontrar a vontade de Deus.

2. O Caminho

Após as tentações no deserto, Jesus deu início à missão: anunciar o Evangelho do reino. Para tal, chamou um grupo com quem caminhar, começou a ensiná-los ao longo do caminho, mergulhou-os no mistério da Sua Paixão, Morte e Ressurreição. Um longo caminho, sem pressas e sem queimar etapas. Só perceberiam plenamente quando, após a ressurreição, receberam o Espírito Santo.

Mais que para um Sínodo dos Bispos em 2023, o Papa convocou todo o Povo de Deus para um caminho sinodal, esperando que, por graça de Deus, no final, todos tenhamos adquirido um estilo mais participativo e mais sinodal de ser e viver em Igreja. Um estilo que, só por si, seja já evangelização. Cabem todos neste caminho, até os não praticantes, indiferentes ou descrentes. Que bela esta Igreja que se abre, que vai ao encontro, que se faz próxima, que ganha a confiança de quem a olha com desconfiança, que não se preocupa com os números, mas com as pessoas.

Com este símbolo do caminho, à semelhança de Jesus, somos convidados a cuidar da renovação dos grupos a que pertencemos, a procurar momentos de escuta e enriquecer o discernimento comunitário. Não se imaginam os frutos que brotariam numa família onde os seus membros se perguntassem uns aos outros: “que exemplo de ser Igreja vos tenho dado e que exemplo me dão vocês a mim? Como é que eu tenho sabido viver e comunicar o Evangelho na família? Quem o faz melhor cá em casa e pode ajudar os outros? Como nos temos aberto a outras famílias para caminharmos juntos? Como temos participado ativamente nas dinâmicas pastorais da paróquia e na evangelização do mundo? Como temos caminhado com os mais pobres e frágeis? Que propostas temos para fazer a Igreja mais familiar, mais fraterna?”

Para melhor encarnar a sinodalidade, as famílias com as suas histórias de diálogo e discernimento, de tensões e acordos, são essenciais. Elas sabem o que custa estar juntos, amarem-se nas diferenças, ouvir-se e dizer tudo com clareza, sem medo, porque sabem que vão ser escutados com amor!

Isto pode ser replicado em cada grupo pastoral ou outro. Quem não se deixou ainda fascinar, pelo menos uma vez, pela possibilidade de uma paróquia viva, por uma liturgia participativa e bem animada, pelo ideal de família onde a conjugalidade fiel e fecunda é o sinal do amor de Deus, por uma catequese que envolva crianças e pais num único esforço educativo, por uma caridade testemunhada que chega aos últimos, pela possibilidade de uma justiça mais generalizada? Às vezes, talvez demasiadas, começámos! Depois, não vimos os resultados, que esperávamos serem automáticos e a curto prazo. E o desânimo chegou, como aos apóstolos: "Senhor, andámos à pesca a noite toda e não apanhámos nada!" Também este ano, Jesus repete: "Faz-te ao largo e lança as redes" (Lc 5, 1-1). Tudo isto, depende de mim, de ti, de nós! Depende de nos questionarmos juntos e de assumirmos as consequências de termos ousado a escuta… Porque Deus fala sempre. Se O deixarmos!

Fica a sugestão para uma penitência quaresmal coletiva: constituir ou participar num grupo de escuta sinodal, com as pessoas da família, mas também de grupo paroquial, de associação, escola ou outro, não para pedir opiniões, mas para fazer experiência da graça própria deste estilo sinodal. Qualquer local ou modo serve: em casa, num espaço de reuniões ou num ocasional encontro de amigos ou colegas, numa caminhada organizada ou num café, na igreja ou no mundo. Que ninguém fique de fora. A escuta não é para reivindicar, para acusar, para denunciar, mas para discernir caminhos novos para nós batizados, para as nossas comunidades eclesiais, para a Igreja e para o mundo. No final, ajudaria escrever a experiência feita e o que perceberam em conjunto. Quem sabe se não ganharão o gosto de continuar o caminho iniciado…

(Continua)


Eu Sou Porque Nós Somos

Quaresma 2022 - O tempo favorável da escuta (I)

Num sentido espiritual, o discernimento é a arte de interpretar para onde nos conduzem os desejos do coração, sem nos deixarmos seduzir por aquilo que nos leva aonde não devemos ir. O discernimento envolve reflexão na tomada de decisões nas nossas vidas concretas para procurar encontrar a vontade de Deus.

«Eu respondi-te no tempo da graça e socorri-te no dia da salvação” (Is 49, 7). É promessa do próprio Deus que, em cada tempo favorável, não nos faltará com as suas graças, aquelas que sabemos precisar, mas sobretudo as que só o Espírito Santo sabe e pode dar.

Inicia a Quaresma, esse tempo favorável de escuta: escuta atenta da Palavra de Deus que renova, escuta do amor misericordioso de Deus que salva e escuta dos irmãos de caminho que pedem o melhor de nós. São 40 dias favoráveis a um percurso espiritual com consequências concretas e visíveis nas práticas cristãs da oração, do jejum e da esmola.

Porém, esta Quaresma de 2022 é tempo duplamente favorável: decorre em pleno tempo de escuta sinodal na nossa diocese. É uma fase de preparação do Sínodo, rica e envolvente, em que tudo inicia na necessidade de uma escuta renovada de Deus e dos irmãos, que ilumine, incentive e dê esperança no futuro. Um tempo que apela à reciprocidade: escutar e ser escutado. É bom não o esquecer: o Sínodo é um capítulo da história da salvação que Deus opera na Igreja universal. Podemos sonhar juntos uma Igreja diversa: mais gerada que gerida, mais caminho que estacionamento, mais casa do Povo de Deus em saída que clube de praticantes. Escutar a todos faz bem à própria Igreja.

Servem-nos três símbolos expressivos para viver juntos a experiência sinodal em tempo de Quaresma: o deserto, o caminho e a cruz.

1. O deserto

Neste tempo favorável, a Liturgia do 1º domingo da Quaresma propõe-nos o relato das tentações de Jesus no deserto, convidando a olhar o lugar de Deus na própria vida e a qualidade da missão que nos anima. À tentação dos bens, do poder ou de uma missão triunfal, a Palavra ressoa forte: “nem só de pão vive o homem” ou “só a Deus adorarás”!

O Processo Sinodal é também um processo espiritual. Não é um exercício mecânico de recolha de dados ou uma série de reuniões e debates. A escuta sinodal tem em vista o discernimento que é palavra-chave em todo o processo e a razão de toda a escuta. Num sentido espiritual, o discernimento é a arte de interpretar para onde nos conduzem os desejos do coração, sem nos deixarmos seduzir por aquilo que nos leva aonde não devemos ir. O discernimento envolve reflexão na tomada de decisões nas nossas vidas concretas para procurar encontrar a vontade de Deus.

Então comecemos por nós, entremos no deserto e a “deixemo-nos discernir pelo Espírito de Deus”! Deserto é sinónimo de isolamento, de silêncio, de possibilidade de escuta de Deus e encontro com a verdade de nós próprios. Hoje há uma tremenda falta de silêncio e, quando não há ruído ou trabalho, muitas pessoas sentem-se incomodadas porque não sabem o que fazer. O deserto lembra esta oportunidade para nos deixarmos penetrar pelo Espírito de Deus, como indivíduos. O discernimento é, então, uma graça a acolher de Deus em relação ao que se é e se vive como discípulos de Jesus.

A pergunta universal para a escuta sinodal é: “anunciando o Evangelho, uma Igreja sinodal ‘caminha em conjunto’: como é que este ‘caminhar juntos’ se realiza hoje na nossa Igreja?”. Neste deserto, podemos escutar pessoalmente o “silêncio onde Deus fala” e interrogar-nos: “como me sinto na Igreja? Sinto-me plenamente dentro, participando da missão comum ou nem por isso? O que me entristece? Como olho para os outros que, porque batizados, devem caminhar comigo e eu com eles? Como evangelizo na minha família, trabalho, escola ou grupo da paróquia? Que posso mudar em mim para caminharmos mais em conjunto? Que propostas tenho para fazer a Igreja mais de todos?”

A fidelidade, para ser verdadeira, é posta à prova; o deserto é então símbolo de purificação, de libertação de tudo o que é ambíguo e desviante na experiência de Deus. Para este completo discernimento de nós próprios, reconheceremos as nossas situações de não-liberdade: indiferença, autossuficiência, egoísmo, orgulho, presunção, agressividade, etc. Queixamo-nos destas escravidões todos os dias e limitamo-nos, porventura, a acusar a decadência da sociedade e também a da Igreja.

Desta vez, vamos “desmascarar-nos” a nós próprios! Para nos lançarmos num caminho novo!

(Continua)

Eu Sou Porque Nós Somos

“Temos de valorizar a Paz”

Cindy Wooden | in Ponto sj | 3 Março 2022

O sacerdote Jesuíta Andriy Zelinskyy, coordenador dos capelães militares da Igreja Católica Ucraniana, entende que a sua missão é a de ajudar a preservar a humanidade dos soldados.

Nota: Este pequena entrevista foi originalmente publicada a 15 de fevereiro de 2022 (antes do começo da Guerra) pelo Catholic News service da Conferência Episcopal dos Estados Unidos –. A tradução apresentada foi feita com a permissão desse portal.

Para o sacerdote jesuíta Andriy Zelinskyy e para os soldados que ele acompanha na Ucrânia, a ameaça de uma guerra com a Rússia não é uma novidade; “a guerra começou há oito anos”, afirma.

O que é novo, disse ele, é que os Estados Unidos e a União Europeia estão a levar a ameaça a sério.

O P. Zelinskyy é coordenador dos capelães militares da Igreja Católica Ucraniana. Acompanhou a tempo inteiro as tropas na frente na Ucrânia Oriental de 2014 a 2018, antes de assumir o papel de coordenador.

Falando de Kyiv com o Catholic News Service, no dia 14 de fevereiro [antes do início da invasão russa] o P. Zelinskyy considera que enquanto as manchetes globais estão cheias de pavor sobre a mobilização russa de tropas e armamento na fronteira da Ucrânia, a maioria dos ucranianos estão apenas a tratar dos seus assuntos, e isso é ainda mais verdade para as tropas.

Uma novidade para o jesuíta é que em dezembro, o parlamento ucraniano aprovou uma lei estabelecendo uma estrutura de capelão militar no seio das forças armadas do país. Antes de 2016, afirma, todos os capelães eram voluntários; durante os últimos seis anos alguns deles foram funcionários civis, mas a partir de julho serão considerados membros das forças armadas.

Zelinskyy fez parte de um grupo de trabalho ecuménico e inter-religioso que pressionou para que a lei fosse aprovada, mas que se confrontava com uma “mentalidade pós-soviética” que via os capelães militares como desnecessários ou como uma violação da separação da igreja e do estado. Agora está envolvido no desenvolvimento de programas de formação para os capelães militares.

“Vejo o meu papel como ajudar a inclinar o céu para os soldados”, diz Zelinskyy

“Devemos ajudá-los a escolher o bem, procurar a verdade, promover a justiça e contemplar a beleza”, continua. “Tudo isto é essencial para preservar a sua humanidade”. Podemos resolver tantos problemas se conseguirmos preservar a nossa humanidade, especialmente no caos da guerra”.

E enquanto recorda que a sua memória mais viva da frente é de “dezenas de quilómetros de lama”, o jesuíta insiste que a beleza também pode ser encontrada ali.

O P. Zelinskyy recorda a história da mudança de um posto para outro perto de Donetsk, juntamente com um oficial, no Outono de 2018. “Mudávamo-nos muito cedo de manhã, porque normalmente não havia combates”. A zona era industrial, cheia de fábricas extintas e abandonadas. Entraram numa que estava cheia de milhares de buracos de balas e mísseis.”

“O sol estava apenas a nascer”, recorda, “era como estar num planetário e ver um céu estrelado”. “Era realmente lindo. Não é preciso inventar, só é preciso ver.”

É claro que preservar a humanidade na guerra também significa sentir dor.

Antes do início da guerra na Ucrânia Oriental, o P. Zelinskyy estava envolvido num programa de capelania que trabalhava com cadetes militares em Lviv, na Ucrânia Ocidental.

Quando a guerra começou, em 2014, aqueles jovens estavam na frente de batalha.

“Era muito difícil ver os amigos morrer”, disse ele. “Não eram apenas dois ou três. Eram muitos.”

“Não há nada pior do que a guerra”, disse ele. “Temos de valorizar a paz porque, se a perdermos, é muito difícil trazê-la de volta”.


Eu Sou Porque Nós Somos

Está escrito nas árvores: a lei da vida é dar

Porque reparas no cisco que está no olho do teu irmão? Notemos a precisão do verbo: porque «reparas», e não simplesmente “olhas”; porque observas e fixas o olhar sobre ciscos, ninharias, pequenas coisas erradas, perscrutas a sombra em vez da luz daquele olho? Com uma espécie de prazer maligno em procurar e evidenciar o ponto fraco do outro, a regozijares-te com os seus defeitos. Quase a justificar os teus.

Há um motivo: quem não quer bem a si próprio, só vê mal à sua volta; quem não está bem consigo, está mal também com os outros. Ao contrário, aquele que se reconciliou com o seu profundo, vê o outro com bênção. Com olhar abençoante. Deus olhou e viu que tudo era coisa muito boa (cf. Génesis 1, 31). O Deus bíblico é um Deus feliz, que não só vê o bem, como o emana, porque tem um coração de luz e o seu olho bom é uma lâmpada, onde pousa espalha luz (cf. Mateus 6,22). Um olho mau, ao invés, emana obscuridade, multiplica ciscos, espalha amor pela sombra. Ergue uma trave diante do Sol.

Não há árvore boa que produza maus frutos. A moral evangélica é uma ética da fecundidade, de frutos bons, de esterilidade vencida, e não de perfeição. Deus não procura árvores sem defeitos, com nenhum ramo quebrado pela tempestade, ou contorcido de cansaço, ou esburacado pelo pássaro ou pelo inseto. A árvore ultimada, que chegou à perfeição, não é aquela sem defeitos, mas a dobrada pelo peso de muitos frutos repletos de Sol e de sucos bons.

Assim, no último dia, esse dia da verdade de cada coração (cf. Mateus 25), o olhar do Senhor não se pousará sobre o mal, mas sobre o bem; não sobre mãos limpas ou não, sobre frutos carregados de espigas e pão, cachos, sorrisos, lágrimas enxugadas. A lei da vida é dar. Está escrito nas árvores: não crescem entre terra e céu durante dezenas de anos por si mesmas, simplesmente para se reproduzirem: ao carvalho e ao castanheiro bastaria uma bolota, um ouriço a cada trinta anos. Em vez disso, a cada outono oferecem o espetáculo de uma magnificência de frutos, um desperdício de sementes, um excesso de colheita, muito mais do que o necessário para apenas se reproduzirem. É vida ao serviço da vida, dos pássaros do céu, dos insetos esfomeados, dos filhos do homem, da mãe terra. As leis da realidade física e as do espírito coincidem.

Também a pessoa, para estar bem, deve dar, é a lei da vida: deve fazê-lo o filho, o marido, a mulher, a mamã com a sua criança, o ancião com as suas memórias. Cada ser humano bom extrai o bem do bom tesouro do seu coração. Todos nós temos um tesouro, é o coração: a cultivar como um Éden; a gastar como um pão; a proteger com desvelo porque é a fonte da vida (cf. Provérbios 4, 23). Por isso, não sejas avaro com o teu coração: dá-o.

Ermes Ronchi | In Avvenire | Trad.: Rui Jorge Martins | Publicado em 25.02.2022 | in SNPC


Eu Sou Porque Nós Somos

Nathalie Becquart, subsecretária do Sínodo

“Em vez de falar, o melhor é pôr em prática a sinodalidade”

In | 7Margens | 18 Fev 2022

O Sínodo sobre a sinodalidade é “um fruto e desdobramento” do Concílio Vaticano II e pode ser um caminho para a Igreja se for experimentado. As afirmações são de Nathalie Becquart, religiosa francesa que ocupa a posição de subsecretária na estrutura central da iniciativa, no Vaticano.

Em entrevista ao site suíço Cath.ch, publicada na última quarta-feira, 16, a responsável começa por manifestar a sua alegria pela criatividade com que o processo sinodal está a ser adaptado e implementado localmente, dado que são diferentes os contextos e as realidades eclesiais. Há países que têm uma experiência desenvolvida de processos sinodais e outros em que a própria palavra era desconhecida e em que há tudo para aprender.

No entanto, reconhece que há preocupações e resistências, aqui e ali, quer de padres quer de bispos, para pôr o Sínodo no terreno. “Alguns, explica ela, veem o Sínodo como uma ‘coisa mais a fazer”, quando já têm uma carga de trabalho pesada e outras prioridades. O desafio de “exercer o ministério de uma maneira nova, que “envolve mais corresponsabilidade”, é outra dificuldade, para a qual muitos padres não se sentem preparados.

“O desafio do Sínodo é, portanto, criar um diálogo mais forte entre sacerdotes e leigos. Enquanto não experimentarem eles próprios o processo sinodal e seus frutos” pode ser difícil compreendê-lo, observa Nathalie Becquart.

Em alguns casos, será mesmo necessário, no seu modo de ver, “ajudar os sacerdotes e alguns bispos a compreender que o processo sinodal não irá eliminar o seu papel, antes os levará a uma nova maneira de exercer a sua autoridade.

No caso dos bispos, em alguns países, a dinâmica das conferências episcopais faz com que uns prelados estimulem outros. Quando esse não é o caso, as coisas ficam muito dependentes de cada um. “ Naturalmente que, quando o bispo está entusiasmado [com o processo sinodal], este desenvolve-se mais facilmente”, diz aquela responsável. Casos de oposição existem, mas “são raros”.

Existe um caminho simples que a religiosa recomenda: “em vez de simplesmente se falar de sinodalidade, devemos experimentá-la. O que estamos a tentar fazer, na nossa forma de animar o processo, de dialogar com as Igrejas locais, é criar experiências”. Para ela “é isso que está em jogo: que nas paróquias, nos grupos, possamos oferecer uma experiência de escuta mútua e de escuta do Espírito Santo, enraizando-nos na oração”.

A subsecretária do Sínodo refere que o secretariado-geral, presidido pelo cardeal Mario Grech, tem procurado mobilizar todas as redes, por exemplo, incentivando as conferências episcopais e as Dioceses a trabalharem com a Caritas, a pastoral dos migrantes, as capelanias prisionais e hospitalares, ou mesmo a educação católica, que atinge os jovens afastados da Igreja. “O Sínodo deve encorajar a escuta dos mais pobres”, remata.


Eu Sou Porque Nós Somos

(Também ainda com a memória do Dia Mundial do Doente em fundo e como desafio a pensar)

A roseira que defende a vinha: ainda a eutanásia

Carlos Moreira Antunes | 23 Jan 22 | in Sete Margens

Há tempos, numa visita a uma adega nacional conhecida, em turismo, ouvi uma curiosa explicação da nossa guia que me relembrou imediatamente da vida de fé e das questões dos tempos modernos. Dizia-nos a guia que é hábito encontrar roseiras ao redor das vinhas como salvaguarda: quando os vitivinicultores encontravam algum tipo de doença nas roseiras, algum fungo, sabiam que era hora de proteger a vinha, de a tratar, porque a doença estava próxima.

Confesso que não ouvi muito mais da visita depois disso, ficando perdido por entre diversos pensamentos que me invadiram. Recordei-me daquela passagem do Evangelho em que Jesus diz: “Como se vê, sabeis interpretar o aspeto do céu; mas, quanto aos sinais dos tempos, não sois capazes de os interpretar! Esta geração má e adúltera exige um sinal. Mas sinal algum lhe será dado, a não ser o sinal de Jonas” (Mt 16:3-4).

A dado momento, relembrei-me do Concílio Vaticano II e da forma como devemos preparar a missão eclesial: “é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu carácter tantas vezes dramático (Constituição Gaudium et Spes, 4).

É inegável que vivemos numa sociedade que evolui mais rapidamente do que pensa (se é que pensa), deixando-se muitas vezes levar por imediatismos e paixões de momento. É muito complicado anunciar o Evangelho a quem não quer ouvir e apenas quer coisas novas. Há uma ânsia de novidade que faz procurar o diferente, apenas por ser diferente, independente da sua bondade e dos caminhos que podem abrir. O Papa Francisco referiu-se a este aspeto na Laudato Si (que o ativismo panfletário reduziu a um texto sobre meras questões ambientais, em vez de compreender a proposta de uma ecologia integral que começa na própria dignidade humana) ao relembrar a expressão espanhola rapidación.

O debate sobre a eutanásia é a marca do fungo que atacou a roseira perto da vinha: não se quer proteger ninguém, nem dignificar a pessoa, antes alcançar o que se pensa ser um avanço civilizacional. A morte medicamente assistida (expressão triste, porquanto o que está em causa é a morte medicamente substituída ou infligida) é apenas o instrumento para alguns deixarem o seu nome na história. É por isso que o debate racional sobre a eutanásia é impossível: na maioria das vezes não se sai da exploração sentimental da dor alheia e da invocação de nomes concretos para chantagear os demais. Aliás, a pergunta repetida a propósito da eutanásia é sintoma dessa sobranceria ideológica: permitir aos outros que sofrem, que possam pôr fim ao seu sofrimento com dignidade. Dito assim, é quase impossível não dizer que sim… quem sou eu para obrigar alguém a sofrer.

Todavia, o problema está, exatamente, na questão de partida: o que está em causa não é o sofrimento do outro, até porque eu não sou ninguém para decidir sobre se o outro pode ou não querer morrer. A questão da eutanásia é, antes de mais, uma questão pessoal: eu quero, ao chegar a uma circunstância de doença incurável e irreversível, de sofrimento extremo, ter a hipótese de pedir a morte através de um processo médico? Eu quero correr o risco de a minha vontade ser mal interpretada, influenciada, dirigida, no sentido de vir a pedir a morte, em função do estado em que me encontrar? Não seria de esperar que, na atualidade, pudéssemos sonhar (para utilizar uma expressão muito querida nos dias de hoje) com as utopias das soluções difíceis, em buscar todas as opções humanas, espirituais, científicas, sociais e/ou económicas, para potenciar a defesa da vida, em todos os seus estados e conjunturas? Não estamos a instituir a ideia de que a vida só merece ser protegida quando útil ao coletivo, sendo indigna nos casos em que nos exige maior atenção e cuidado? Não preferiria esgotar todas as hipóteses de ter uma vida acompanhada humana e medicamente, antes, sequer, de pensar pedir a morte?

A posição da Igreja é conhecida e pública: “Assim, uma acção ou uma omissão que, de per si ou na intenção, cause a morte com o fim de suprimir o sofrimento, constitui um assassínio gravemente contrário à dignidade da pessoa humana e ao respeito do Deus vivo, seu Criador. O erro de juízo, em que se pode ter caído de boa fé, não muda a natureza do acto homicida, o qual deve sempre ser condenado e posto de parte (Catecismo da Igreja Católica, § 2277).

Sem prejuízo, considerando a reflexão antecedente, chegará hoje enunciar os princípios morais respeitantes à eutanásia e constantes do Catecismo? Que nos dizem os sinais dos tempos? Talvez seja altura de reconhecer a doença que afeta já as roseiras e começar a tratar da vinha, defendê-la e reforçá-la. Não bastará afirmar e debater! A Igreja enquanto realidade também humana, é chamada, assim me parece, a colocar-se à frente da defesa da vida em atos: mostrar ao mundo como o fim de vida natural pode ser digno e como as pessoas não precisam de ser abatidas como animais para pôr fim a situações incómodas.

Assim, podemos ou não investir mais na investigação científica e espiritual para melhorar as condições de vida das pessoas mais fragilizadas, dando-lhes todas as possibilidades de se sentirem membros da sociedade que os quer e os respeita? São conhecidos os exemplos de grupos, comunidades, iniciativas eclesiais que estão ao lado dos que mais sofrem? Estão estudados os impactos dessas metodologias de acompanhamento ao longo do processo de morte no próprio desejo de morrer dos seus destinatários? Podemos dizer, enquanto sociedade, que já fizemos tudo para dar todas as condições aos que mais sofrem no sentido de quererem viver até ao fim do seu tempo natural?

Sabemos que o Estado não investe nas soluções de acompanhamento das pessoas em fim de vida, mas a Igreja está a fazê-lo? Através das instituições académicas, científicas e caritativas pertencentes à Igreja? Defender a vida é uma caminhada, que não pode ter data marcada, que se fará mais com atos do que com palavras. Este debate é importante demais para ficar para depois: ao prepararmos as eleições próximas, devemos exigir aos partidos uma posição clara sobre a matéria e um debate público sério. Os portugueses têm que se pronunciar, expressamente, sobre o que querem em matéria de fim de vida: a economia não pode vir à frente da vida.

Carlos Moreira Antunes é catequista no Patriarcado de Lisboa e jurista.


Eu Sou Porque Nós Somos

Um Sínodo para todos

Clara Lito | 5 Fev 22 | in Sete Margens

Ultimamente, na minha comunidade, o Sínodo da Igreja Católica sobre a sinodalidade tem sido tema recorrente das nossas conversas. Cada uma de nós (somos cinco) vai vivendo esse caminho de maneiras diferentes, nos grupos que acompanha, na paróquia e nas conversas com outros. A partir da (ainda) pequena experiência que temos, vão surgindo diferentes formas de encarar este caminho sinodal. Para alguns é uma oportunidade de viver e de fazer Igreja, uma oportunidade de participação e de construção da Igreja com que tantos sonham. Outros vivem-no com desconfiança e muitas perguntas: será que o que dissermos vai ser tido em conta? Afinal serão os bispos e o Papa quem tomarão todas as decisões. Também há aqueles que preferem respostas mais “intelectuais” e menos baseadas na sua própria experiência. E, finalmente, há outros que se mantêm indiferentes e que nem se questionam sobre a importância da transformação da Igreja.

Pessoalmente, percebo todas estas reações, sei que é um processo longo este que estamos a começar e que nem sempre será fácil de viver. Também tenho perguntas sobre como vai evoluir, sobre os resultados que terá, sobre onde nos vai conduzir. Mas acredito que o que vivemos agora – porque já estamos em sínodo – seja um passo de abertura ao Espírito que nos quer desinstalar e transformar.

Ajudou-me muito ouvir Nathalie Becquart, a primeira mulher que terá direito de voto no sínodo, numa intervenção no forum do Centre Sèvres, a universidade dos jesuítas em Paris.

Depois de a ouvir, se tinha esperança neste sínodo, com mais esperança fiquei…

Neste tempo em que nos vemos confrontados com tantos desafios a nível da sociedade (e da Igreja!), a sinodalidade aparece como oportunidade de escuta e de diálogo que pode levar a nossa Igreja a uma maior encarnação na realidade em que vivemos. Uma encarnação que vai pedir de todos muita abertura e muita escuta. Sim, é disto que se trata, dizia-nos Nathalie Becquart, de nos ouvirmos uns aos outros, de partilharmos, de deixarmo-nos tocar pelo que outros pensam, mesmo que seja diferente da nossa perspetiva. Não se trata de discutir ou de debater, trata-se de falar a partir do que cada um vive e ouvir a partir do coração de cada um.

Depois, sim, haverá os votos, haverá as decisões… haverá, talvez, uma exortação apostólica do Papa, mas o mais importante será o que todos puderam dizer, o percurso feito.

Agradeço muito esta intuição do Papa Francisco, fruto de muitos passos anteriores, agradeço esta visão de Igreja Sinodal, que, nas palavras de Nathalie Becquart, é uma Igreja Povo de Deus, que se vive como Povo de Deus no meio dos povos da Terra.

Todos somos convocados para este Sínodo que já está em caminho! Peço ao Senhor que nos dê o Seu Espírito, que nos faça caminhar juntos e que todos tenham voz neste sonho de tantos. Peço que todos se sintam implicados, todos… sem excluir ninguém, para que o Evangelho continue a ser realmente a boa notícia que faz viver cada homem e cada mulher de hoje.

Clara Lito é religiosa da Congregação das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, neste momento a trabalhar em Paris; a seguir pode ver-se o vídeo, em francês, com o debate referido no texto.


Eu Sou Porque Nós Somos

Vida Consagrada: Quando a vocação nasce na prática desportiva

Irmã Rita Ornelas destaca importância de manter «sede constante» de superação

Lisboa, 31 Jan 2022 (Ecclesia)

A irmã Rita Ornelas queria ser professora de Educação Física, desde a sua infância, mas acabou por encontrar no desporto a sua vocação religiosa.

“No desporto, nunca estamos satisfeitos porque quando se ganha uma prova pensa-se logo na prova seguinte”, disse à Agência ECCLESIA a religiosa das Servas de Nossa Senhora de Fátima.

Nascida na Ilha Terceira (Açores), a irmã Rita Ornelas é licenciada em Deporto, pela Faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa, e praticou natação durante muitos anos.

“Há uma sede constante na vida do desportista” e “na vida de uma vocação deixamos que Deus tenha o primeiro lugar”, realça.

Em entrevista emitida hoje no Programa ECCLESIA (RTP2), por ocasião do Dia da Vida Consagrada, que se celebra anualmente a 2 de fevereiro, a irmã Rita Ornelas testemunhou o seu percurso vocacional até à entrada na Congregação das Servas de Nossa Senhora de Fátima.

“A procura da vocação é sempre uma descoberta que nos aponta para o infinito e para o mistério”, disse.

Integrante de uma comunidade religiosa, a irmã Rita Ornelas continua a gostar de “desportos individuais e coletivos”, até porque praticou natação, andebol, ténis, futebol e basquetebol.

“A dimensão de espírito de equipa, do trabalho em rede e de solidariedade são aspetos do desporto que são valores cristãos”, precisou.

Foi quando começou a trabalhar num ginásio que surgiu, “de forma forte, a questão vocacional”, referiu a irmã Rita Ornelas

“Percebi, claramente, que tinha de sair do ginásio e ir para o convento”, relatou.

Mesmo a trabalhar num ginásio, a jovem Rita Ornelas vivia uma “vida paroquial muito ativa, num grupo de jovens, num projeto de voluntariado missionário e uma vida de oração cada vez mais intensa”.

A entrevistada sublinhou que a Igreja Católica tem dado “grandes passos” na relação com o desporto, lembrando que o Papa Pio X, em 1904, permitiu que houvesse um evento de desporto no Vaticano.

“O desporto aponta-nos para o paraíso, para uma comunhão com Deus”, indicou, destacando o Papa São João Paulo II como o “grande impulsionador” da reflexão neste campo.

“O desporto é a ginástica do corpo e da alma”, acrescentou.

A irmã Rita Ornelas integra o Serviço da Juventude do Patriarcado de Lisboa e ajuda os jovens a encontrarem a sua própria vocação.

Tendo no horizonte a Jornada Mundial da Juventude que vai decorrer na capital portuguesa, de 1 a 6 de agosto de 2023, a religiosa realça que a vivência deste processo de caminho “é muito bonito, concretamente nas realidades paroquiais”.

PR/LFS/OC

Vida Consagrada:

Vaticano convida Institutos a contribuir para uma «Igreja sinodal»

26.º Dia Mundial assinala-se a 2 de fevereiro

Cidade do Vaticano, 31 jan 2022 (Ecclesia)

A Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica (Santa Sé) desafiou os membros destas
instituições a contribuir para uma “Igreja sinodal”, respondendo ao projeto lançado pelo Papa.

“É uma ocasião de encontro marcada pela fidelidade de Deus, que se manifesta na alegre perseverança de tantos homens e mulheres, consagradas e consagrados em institutos religiosos, monásticos, contemplativos, nos institutos seculares e ‘novos institutos’, membros do ordo virginum, eremitas, membros de sociedades de vida apostólica de todos os tempos”, escrevem o cardeal João Braz de Aviz e D. José Rodríguez Carballo, respetivamente prefeito e secretário do organismo.

A mensagem foi divulgada pela Santa Sé por ocasião do 26.º Dia Mundial da Vida Consagrada, que se assinala esta quarta-feira, ligando a celebração ao processo sinodal 2021-2023, que o Papa Francisco lançou no último mês de outubro.

Os responsáveis pela Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica desafiam todos a “fazer sua parte, a participar”, entrando no “dinamismo da escuta recíproca, conduzido em todos os níveis de Igreja”.

“É um caminho que interpela cada comunidade vocacional no seu ser expressão visível de uma comunhão de amor, reflexo da relação trinitária, da sua bondade e da sua beleza, capaz de suscitar novas energias para nos confrontarmos concretamente com o momento atual”, pode ler-se.

Quem são as irmãs, os irmãos que escutamos e, sobretudo, por que os escutamos? Uma pergunta que, repetimos, todos somos chamados a fazer-nos, porque não podemos chamar-nos comunidade vocacional e muito menos comunidade de vida se falta a participação de alguém”.

Na Igreja Católica, a Vida Consagrada é constituída por homens e mulheres que se comprometeram, pública e oficialmente, a viver (individualmente ou em comunidade) os votos de pobreza, castidade e obediência para toda a vida; hoje inclui leigos, sacerdotes, religiosas e religiosos.

O cardeal João Braz de Aviz e D. José Rodríguez Carballo destacam que a sinodalidade começa dentro de cada um, propondo “uma mudança de mentalidade, uma conversão pessoal, na comunidade ou fraternidade, em casa, no trabalho”.

O Papa vai assinalar o Dia Mundial da Vida Consagrada com uma Missa, esta quarta-feira, pelas 17h30 de Roma (menos uma em Lisboa), na Basílica de São Pedro.

Em Portugal, a Igreja Católica vive desde 26 de janeiro a ‘Semana do Consagrado’, promovida pela CIRP, convidando a “ultrapassar fronteiras, diferenças e línguas, acolhendo todos como irmãos e irmãs, independentemente da cultura, fé ou religião”.

De 26 de fevereiro a 1 de março vai decorrer a XXVII Semana de Estudos sobre a Vida Consagrada, em Fátima (Centro Pastoral Paulo VI).

OC


Eu Sou Porque Nós Somos

A Bíblia: Quando ler é escutar

Domingo da Palavra de Deus

Toda a nossa ação deveria ser um reflexo desta escuta atenta da Palavra, toda a nossa ação deveria brotar de um coração que se deixa inundar da Palavra e que se torna transparência daquilo que escutou.

P. Duarte Rosado, sj | in Ponto SJ | 23 Janeiro 2022

Neste breve texto tenho a ousadia de escrever alguma coisa sobre a Bíblia. Digo ousadia porque diante desta colecção de livros a que chamamos Bíblia sinto-me pequeno, como uma criança que se senta na sua carteira no primeiro dia de aulas, e incompetente, como alguém que se senta para fazer um exame sem ter estudado.

Para começar temos que dar dois passos introdutórios, ambos contidos numa pequena frase da constituição dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II que diz: “Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira humana” (DV12). O primeiro passo é, então, deixarmo-nos surpreender por um Deus que fala, que quer falar, que tem alguma coisa a dizer e que o diz por meio de linguagem humana. O segundo passo é reconhecermo-nos escutadores desta Palavra proferida por Deus. De facto, ao ser humano cabe o escutar, não o ver: nós somos fundamentalmente escutadores. Dados estes dois “pequenos” passos podemos prosseguir.

Não subestimemos a palavra e o seu valor. Ela esconde em si muito mais do que à partida poderá parecer porque nenhuma palavra é neutra. Ao revelar o mundo por meio da palavra, o homem não apenas revela mas revela-se, descobre-se, dá-se a conhecer a si mesmo e toma consciência de si próprio. Mas, para que se torne num «eu», precisa de um «tu», alguém que lhe esteja defronte, que tome a palavra e lhe diga “tu existes”. Todos nós buscamos este «tu», este «rosto», e vivemos nesta peregrinação em direcção a ele: a viagem da palavra é um cobrir a distância que nos separa do «tu», que procura este encontro. A palavra não deixa indiferente quem a escuta, tem uma força que move, que abre esperanças, que é apelo e que, por isto, para ser verdadeira, deve ser responsável. E se faz esta peregrinação com verdade, então chega ao seu cumprimento: torna-se instrumento de comunhão. De facto, a palavra só é autêntica no diálogo e ao falarmos de diálogo não podemos nunca referir-nos a posse, a captura, a conquista – a palavra verdadeira não quer tomar posse de nada – referimo-nos sim a uma procura da verdade no outro, como uma estrada que se percorre juntos. A dimensão mais profunda da palavra não é de posse mas de pertença.

Mas porquê este grande pórtico sobre a palavra humana? Porque seja no Antigo Testamento, na sua Palavra divina, seja no Novo Testamento, na Palavra divina feita carne, encontramos a revelação, o apelo e a comunhão que encontramos na palavra humana – “…falou por meio dos homens e à maneira humana.” É evidente que as repercussões na leitura da Bíblia que brotam deste modo de encarar a Palavra são enormes:

Em primeiro lugar, percebemos que ler a Bíblia supõe sempre um diálogo e, deste modo, a Bíblia é-nos próxima porque fala a cada um, porque existe uma afinidade e todos sentimos esta afinidade, mas, ao mesmo tempo, é-nos distante, porque estamos defronte ao outro e o encontro supõe que o outro seja outro de mim. Assim, ao mesmo tempo que deixamos que a Bíblia nos fale e nos seja próxima, devemos reconhecer e respeitar a distância que se impõe entre nós e o Outro. E, por isso, não podemos fazer um uso arbitrário da Palavra tendo em vista apenas os nossos próprios objectivos. Não é legítimo, portanto, interpretá-la como sentimos ou como queremos. Quando abrimos a Bíblia temos Alguém diante de nós e, por isso, temos de o reconhecer como Outro, não manipulável, que não serve os nossos objectivos, nem simplesmente compactua com aquilo que queremos ouvir.

Mas é verdade também que uma escuta adequada da Bíblia requer um esforço de interpretação porque esta distância não se situa somente entre aquele que escuta e Aquele que fala, situa-se também nos muitos anos que nos separam do texto escrito. E assim como não é legítimo interpretar a palavra apenas segundo a nossa intuição ou sentimento, também não podemos simplesmente transportá-la directamente para os dias de hoje sem respeitar esta segunda distância. Conhecer a história do texto, as suas fontes, os eventos narrados, o contexto cultural em que foi escrito, é imprescindível para compreender toda a profundidade do que é proclamado. A Igreja, fiel depositária desta Palavra, ao longo da sua história e da sua experiência de fé, fez e faz este esforço de interpretação que, em última instância, nos reúne em comunidade à volta da mesma Palavra e do mesmo Espírito. A Igreja, fiel transmissora desta Palavra, tem como missão fundamental, sem a qual não seria Igreja, anunciar esta Palavra a todo o mundo.

Por fim, a Bíblia exige uma leitura pragmática, ou seja, a Palavra pronunciada procura uma mudança ou uma ação. Por exemplo, quando digo “mãe” não estou apenas a proferir uma palavra, estou a dizer que quero que a minha mãe seja, de facto, mãe. Quando a Bíblia diz que Deus é verdadeiro quer significar que Deus se compromete, que Deus entra na verdade do homem, que Deus é verdadeiro quando se implica. A verdade bíblica não é uma verdade neutra mas uma verdade em diálogo: Deus é verdadeiro porque o homem se pode confiar, porque pode fundar a sua vida em Deus, porque sabe que n’Ele não há engano nem mentira. Dizer “Ámen” é dizer isto mesmo, é assentarmos os nossos alicerces sobre uma rocha firme que não vacila independentemente da força da tempestade. Assim, a leitura da Bíblia compromete-nos porque o seu fim não é dar-nos uma série de conteúdos mas tornar-nos comprometidos num projecto, numa verdade que exige um compromisso. Por isso, há um sentido ético na Bíblia, uma força pragmática que nos impele a uma conversão porque oferece uma compreensão do homem e da sua existência: diz-nos como devemos viver diante de Deus. A verdade da mensagem bíblica repousa, assim, na verdade da existência.

Termino fazendo um apelo à escuta. O importante é escutar este Deus que nos fala, que nos interpela, que tem algo a dizer-nos. Toda a nossa ação deveria ser um reflexo desta escuta atenta da Palavra, toda a nossa ação deveria brotar de um coração que se deixa inundar da Palavra e que se torna transparência daquilo que escutou, que se deixa sobretudo invadir e transformar pela Palavra-feita-carne, Jesus Cristo.

Texto originalmente publicado no site essejota.net da pastoral juvenil dos jesuítas. Este site já não está disponível.


Eu Sou Porque Nós Somos

Ecumenismo:

Papa convida a celebrar Semana de Oração pela Unidade dos cristãos

Jan 16, 2022 – in Ecclesia

Francisco sublinha meta de «plena unidade» entre várias confissões e tradições

Cidade do Vaticano, 16 jan 2022 (Ecclesia) – O Papa convidou hoje à celebração da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, que se assinala de 18 a 25 de janeiro, apontando à meta da “plena unidade”.

“Este ano, é-nos proposto refletir na experiência dos Magos, que vieram do Oriente a Belém para honrar o Rei Messias”, referiu Francisco, desde a janela do apartamento pontifício, no Vaticano, após a recitação da oração do ângelus.

“Também nós, cristãos, na diversidade das nossas confissões e tradições, somos peregrinos em caminho, rumo à plena unidade. Aproximamo-nos mais da meta quanto mais fixo tivermos o nosso olhar em Jesus, nosso único Senhor”, acrescentou.

Francisco convidou os católicos a oferecer “cansaços e sofrimentos” pela causa da unidade dos cristãos.

O Papa vai encerrar a semana de oração, como é tradição, com a celebração das Vésperas na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, em Roma, com a presença de representantes de várias Igrejas e comunidades cristãs.

O Departamento das Celebrações Litúrgicas do Vaticano anunciou que a celebração está marcada para as 17h30 (menos uma em Lisboa) de 25 de janeiro, solenidade da conversão do apóstolo São Paulo.

O tema proposto para 2022 é ‘Vimos a sua estrela no Oriente e viemos prestar-lhe homenagem’, uma proposta Conselho das Igrejas do Médio Oriente, sediado em Beirute, no Líbano.

A semana de oração envolve as Igrejas e denominações cristãs de todo o mundo.

“A pandemia global da Covid-19, a permanente crise económica e o fracasso das estruturas políticas, económicas e sociais na proteção aos mais fracos e vulneráveis destacaram a necessidade global de uma luz que brilhe na escuridão”, refere a proposta de reflexão, publicada online pela Santa Sé.

“Mais do que nunca, nestes tempos difíceis, precisamos de uma luz que brilhe na escuridão e essa luz, proclamam os cristãos, foi manifestada em Jesus Cristo”, assinala o Conselho das Igrejas do Médio Oriente, lembrando que nesta região do mundo os direitos humanos são habitualmente pisados por “injustos interesses políticos e económicos”, para além de enfrentarem a crise de saúde internacional e ainda viverem as “consequências humanas e materiais” da explosão no Porto de Beirute, a 4 de agosto de 2020.

“Os cristãos são chamados a ser para o mundo um sinal de Deus, trazendo essa unidade que Ele deseja. Vindo de diferentes culturas, raças e línguas, os cristãos partilham em comum a busca por Cristo e o desejo de adorá-lo”, desenvolvem os autores da proposta de reflexão para 2022.

O ‘oitavário pela unidade da Igreja’, hoje com outra denominação, começou a ser celebrado em 1908, por iniciativa do norte-americano Paul Wattson, presbítero anglicano que mais tarde se converteu ao catolicismo.

O ecumenismo é o conjunto de iniciativas e atividades tendentes a favorecer o regresso à unidade dos cristãos, quebrada no passado por cismas e ruturas.

As principais divisões entre as Igrejas cristãs ocorreram no século V, depois dos Concílios de Éfeso e de Calcedónia (Igreja copta, do Egito, entre outras); no século XI com a cisão entre o Ocidente e o Oriente (Igrejas Ortodoxas); no século XVI, com a Reforma Protestante e, posteriormente, a separação da Igreja de Inglaterra (Anglicana).


Eu Sou Porque Nós Somos

FESTA DO BATISMO DO SENHOR

PAPA FRANCESCO

ANGELUS

Praça de São Pedro
Domingo, 9 de janeiro de 2022

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

O Evangelho da Liturgia de hoje mostra-nos a cena com que começa a vida pública de Jesus: Ele, que é o Filho de Deus e o Messias, vai às margens do rio Jordão e faz-Se baptizar por João Baptista. Depois de cerca de trinta anos a viver no escondimento, Jesus não apareceu com nenhum milagre ou sentando-Se na cadeira para ensinar. Ele põe-Se na fila com as pessoas que iam receber o baptismo de João. O hino litúrgico de hoje diz que o povo ia fazer-se baptizar com a alma e os pés descalços. Boa atitude, com a alma nua e os pés nus. E Jesus compartilha a nossa condição de pecadores, ele desce até nós: desce ao rio como na história ferida da humanidade, mergulha nas nossas águas para as curar, mergulha connosco, no meio de nós. Não sobe acima de nós, mas desce na nossa direção, com a alma nua, com os pés descalços, como as pessoas. Ele não vai sozinho, nem com um grupo de eleitos privilegiados, não, ele vai com o povo. Pertence a esse povo e vai com o povo para ser batizado, com esse povo humilde.

Detenhamo-nos num ponto importante: no momento em que Jesus recebe o baptismo, o texto diz que «estava em oração» ( Lc 3, 21). Faz-nos bem contemplar isto: Jesus ora. Mas como? Ele, que é o Senhor, o Filho de Deus, ora como nós? Sim, Jesus - os Evangelhos repetem-no muitas vezes - passa muito tempo em oração: no início de cada dia, muitas vezes à noite, antes de tomar decisões importantes... A sua oração é um diálogo, uma relação com o Pai. Assim, no Evangelho de hoje podemos ver os «dois movimentos» da vida de Jesus: por um lado desce na nossa direção, nas águas do Jordão; por outro lado, ele levanta o olhar e o coração enquanto ora ao Pai.

É uma grande lição para nós: estamos todos imersos nos problemas da vida e em muitas situações intrincadas, chamados a enfrentar momentos difíceis e escolhas que nos puxam para baixo. Mas, se não quisermos ser esmagados, precisamos de levantar tudo. E isso é precisamente o que a oração faz, que não é uma fuga, a oração não é um rito mágico ou uma repetição de cantilenas aprendidas de cor. Não. Rezar é a forma de deixar Deus agir em nós, de captar o que Ele quer nos comunicar mesmo nas situações mais difíceis, de orar para ter força para seguir em frente. Muitas pessoas sentem que não podem mais, oram: "Senhor, dá-me forças para seguir em frente". Nós também fizemos isso muitas vezes. A oração ajuda-nos porque nos une a Deus, nos abre ao encontro com Ele. Sim, a oração é a chave que abre o coração ao Senhor. É dialogar com Deus, é escutar a sua palavra, é adorar: estar em silêncio encomendando-Lhe o que vivemos. E às vezes também é gritar com Ele, como Job, outras vezes é desabafar com Ele. Gritar como Job; Ele é Pai, Ele compreende-nos bem. Ele nunca se cansa de nós. E Jesus reza.

A oração - para usar uma bela imagem do Evangelho de hoje - "abre o céu" (cf. v. 21). A oração abre o céu: dá oxigênio à vida, dá fôlego mesmo no meio das dificuldades e faz-nos ver as coisas mais amplamente. Acima de tudo, permite-nos ter a mesma experiência de Jesus no Jordão: faz-nos sentir filhos amados pelo Pai. Também a nós, quando oramos, o Pai diz, como a Jesus no Evangelho: "Tu és o meu filho, Tu és o amado" (cf. v. 22). Este nosso ser filhos começou no dia do Baptismo, que nos imergiu em Cristo e, como membros do povo de Deus, nos fez filhos amados do Pai. Não esqueçamos a data do nosso Baptismo! Se eu perguntasse agora a cada um de vós: qual é a data do teu Batismo? Talvez alguns não se lembrem. Mas isso é uma coisa linda: recordar a data do Batismo, porque é o nosso renascimento, o momento em que fomos tornados filhos de Deus com Jesus. Quando voltarem para casa - se não souberem – perguntem à mãe, à tia ou aos avós: "Quando fui batizado ou batizado?", e aprender o dia dessa festa para a celebrar, para agradecer ao Senhor.

E hoje, neste momento, perguntemo-nos: como vai a minha oração? Oro por hábito, oro com relutância, apenas recitando fórmulas, ou a minha oração é um encontro com Deus? Eu, pecador, sempre dentro do povo de Deus, nunca isolado? Cultivo a intimidade com Deus, dialogo com Ele, escuto a sua Palavra? Entre as muitas coisas que fazemos durante o dia, não descuidemos a oração: dediquemos-lhe tempo, usemos pequenas invocações para repetirmos com frequência, leiamos o Evangelho todos os dias.

E agora nos dirigimos a Nossa Senhora, a Virgem orante, que fez da sua vida um hino de louvor a Deus.


Eu Sou Porque Nós Somos

FESTA DA SANTA FAMÍLIA DE NAZARÉ

PAPA FRANCISCO

ANGELUS

Praça São Pedro
Domingo, 26 de dezembro de 2021

Prezados irmãos e irmãs, bom dia!

Hoje celebramos a Sagrada Família de Nazaré. Deus escolheu uma família humilde e simples para vir entre nós. Contemplemos a beleza deste mistério, ressaltando também dois aspetos concretos para as nossas famílias.

O primeiro: a família é a história da qual provimos. Cada um de nós tem a própria história, ninguém nasceu por magia, com a varinha mágica; cada um de nós tem uma história e a família é a história de onde provimos. O Evangelho da liturgia de hoje recorda-nos que também Jesus é filho de uma história familiar. Vemo-lo ir a Jerusalém com Maria e José para a Páscoa; depois, faz preocupar a mãe e o pai, que não o encontram; quando o encontram, volta para casa com eles (cf. Lc 2, 41-52). É bonito ver Jesus inserido nas vicissitudes dos afetos familiares, que nasce e cresce no abraço e nas preocupações dos seus. Isto é importante também para nós: provimos de uma história tecida com vínculos de amor e a pessoa que hoje somos não nasce tanto dos bens materiais que desfrutamos, quanto do amor que recebemos, do amor no seio da família. Talvez não nasçamos numa família extraordinária e sem problemas, mas é a nossa história – cada um deve pensar: é a minha história - são as nossas raízes: se as cortarmos, a vida torna-se árida! Deus não nos criou para ser líderes solitários, mas para caminhar juntos. Agradeçamos-lhe e rezemos pelas nossas famílias. Deus pensa em nós e quer que estejamos juntos: gratos, unidos, capazes de preservar as raízes. E devemos pensar sobre isto, sobre a nossa história.

O segundo aspeto: aprende-se a ser família todos os dias. No Evangelho vemos que até na Sagrada Família nem tudo corre bem: há problemas inesperados, angústias, sofrimentos. Não existe a Sagrada Família dos santinhos. Maria e José perdem Jesus, procuram-no ansiosamente, e encontram-no depois de três dias. E quando, sentado entre os mestres no Templo, responde que deve cuidar das coisas do seu Pai, não o compreendem. Precisam de tempo para aprender a conhecer o seu filho. Assim também para nós: todos os dias, em família, é preciso aprender a ouvir-se e a compreender-se, a caminhar juntos, a enfrentar conflitos e dificuldades. É o desafio diário, que se vence com a atitude certa, com pequenas atenções, com gestos simples, cuidando dos detalhes das nossas relações. E também isto nos ajuda muito a falar em família, falar à mesa, o diálogo entre os pais e os filhos, o diálogo entre os irmãos ajuda-nos a viver esta raiz familiar que vem dos avós. O diálogo com os avós!

E como se faz isto? Olhemos para Maria, que no Evangelho de hoje diz a Jesus: «O teu pai e eu estávamos à tua procura» (v. 48). O teu pai e eu, não diz eu e o teu pai: antes do eu, há o tu! Aprendamos isto: antes do eu há o tu. Na minha língua há um adjetivo para as pessoas que primeiro dizem eu e depois tu: “eu, mim, comigo, para mim e em meu benefício”. Para certas pessoas é assim, primeiro eu, depois tu. Não, na Sagrada Família, primeiro o tu e depois o eu. Para preservar a harmonia na família, devemos combater a ditadura do eu, quando o eu se incha. É perigoso quando, em vez de nos ouvirmos, culpamo-nos uns aos outros pelos erros; quando, em vez de termos gestos de cuidado pelos outros, nos fixamos nas nossas necessidades; quando, em vez de dialogar, nos isolamos com o telemóvel - é triste ver uma família almoçar, cada qual com o seu telemóvel, sem falar uns com os outros, cada um a falar com o seu telemóvel; quando nos acusamos uns aos outros, repetindo sempre as mesmas frases, encenando uma comédia que já vimos, onde cada um quer ter razão e, no final, instaura-se um silêncio frio. Aquele silêncio frio e agudo, depois de uma discussão familiar, que é terrível, deveras terrível! Repito um conselho: à noite, no final de tudo, é bom fazer as pazes, sempre. Nunca ir dormir sem ter feito as pazes, caso contrário no dia seguinte haverá uma “guerra fria”! E isto é perigoso, porque começará uma história de repreensões, uma história de ressentimentos. Quantas vezes, infelizmente, dentro de casa nascem e crescem conflitos de silêncios demasiado longos e de egoísmos descuidados! Às vezes chega-se até a violências físicas e morais. Isto dilacera a harmonia e mata a família. Passemos do eu para o tu. O que deve ser mais importante na família, é o tu. E todos os dias, por favor, rezai um pouco juntos, se puderdes fazer o esforço, para pedir a Deus o dom da paz na família. E comprometamo-nos todos - pais, filhos, Igreja, sociedade civil - a apoiar, defender e preservar a família, que é o nosso tesouro!

Que a Virgem Maria, esposa de José e mãe de Jesus, ampare as nossas famílias.


Eu Sou Porque Nós Somos

No limiar da vinda de Cristo

O Apóstolo Paulo, nas duas cartas aos Tessalonicenses, adverte-nos para uma realidade constante, que é a vinda do Senhor. Há duas situações na comunidade de Tessalónica que geraram em Paulo alguma preocupação: enquanto a sua pregação é rejeitada na sinagoga dos judeus, muitos operários, considerados pagãos e não tendo uma raiz hebraica, convertem-se à pregação do Apóstolo dos Gentios (cf. 1Ts 4, 11ss e 2Ts 3, 6-12). Quanto a estas situações, sabemos que os judeus, causavam tensões e conflitos envolvendo os cristãos, forçando as autoridades públicas a uma ingerência ao seu favor. No que diz respeito aos pagãos, as duas Cartas de Paulo aos Tessalonicenses denotam uma forte e viva espera do Senhor que, não obstante, não estava isenta de infortúnio, de inquietações e até mesmo de impaciências.

Em 1Ts 1, 9-10, Paulo adensa a essência da identidade cristã ao redor do tema da espera do Senhor, determinando-a sob o prisma de quatro indicações:

1. Converter-se a Deus

A conversão a Deus supõe uma mudança radical e total a Deus, não se trata de mudar de direção ou procurar melhorar algum aspeto da vida, mas constitui-se num êxodo primeiro para Deus e depois para outros.

2. Afastar-se dos ídolos

A identidade cristã pressupõe confiar única e exclusivamente em Deus, libertando-se de todas aquelas realidades que, ilusoriamente, tomam o lugar de Deus. Só Deus é Deus e acreditar nesta força omnipotente, pressupõe o abandono de todas as falsas religiões que deixam Deus na penumbra da existência humana.

3. Servir o Deus verdadeiro

Em S. Paulo, o verbo e a ação de servir adquire outro matiz, ou seja, servir significa tornar-se escravo. Ora, ser escravo, na linguagem paulina, corresponde em reconhecer a Deus como o único Senhor digno de toda honra, glória e louvor.

4. Esperar a nova vinda de Jesus

Esperar Jesus significa estar vigilante, pois não sabemos nem o dia e nem a hora em que virá o Filho de Deus. A vinda esperada de Jesus traz a libertação, por isso, o Filho de Deus vem para libertar e não julgar ou condenar o mundo. A ira de Deus acontece quando o homem se abandona ao próprio egoísmo e a injustiça face aos irmãos.

Em 1Ts 2, 19, encontramos pela primeira vez a designação parusia que, embora etimologicamente assuma o mesmo significado de vinda, no sentido religioso assumiu-se um sentido mais solene e esplendoroso, tal como a vinda gloriosa de Cristo. Apesar de Paulo falar de Cristo Ressuscitado sem, contudo, falar da iminência do seu regresso, faz alusão à última vinda gloriosa de Cristo. Numa outra passagem mais à frente, em 1Ts 3, 13 o encontro com Cristo glorioso constituirá o tema mais lato da esperança cristã: «Queira ele confirmar vossos corações numa santidade irrepreensível, aos olhos de Deus, nosso Pai, por ocasião da Vinda de nosso Senhor Jesus com todos os santos». Dessa forma, segundo a monja carmelitana, Emanuela Ghini, «a parusia radica-se no Cristo, fundamento da Igreja, única fonte da sua fé e da sua esperança. A parusia é um aspeto daquela fé no Cristo Ressuscitado, que deu origem à primeira comunidade».

Estaremos para sempre com o Senhor

Em 1Ts 4, 13-18, não é difícil percebermos que os Tessalonicenses traziam grandes inquietações acerca do destino dos mortos, quando não teriam podido estar presentes na liturgia da parusia. Talvez os tessalonicenses julgassem que os seus mortos tivessem sido excluídos da parusia. O que nos interessa aqui é a resposta de Paulo que se movimenta numa linguagem e numa conceção que são frutos do seu tempo, mas que precisamos identificá-los e situá-los no seu devido contexto.

Ora, poderíamos dizer que encontramos na resposta de Paulo, não raras vezes, características e peculiaridades comuns com a literatura apocalíptica, ou seja, a voz do arcanjo, a descida de Cristo dos céus, entre outros. Este género de literatura sinaliza o cenário exato daquilo que virá a acontecer no fim dos tempos. Paulo pretende trazer a lembrança do amor de Deus pela humanidade, o Seu desígnio salvífico. Neste tipo de linguagem está embrenhado a escatologia paulina, onde os mortos assistirão ao cortejo triunfal de Cristo, uma vez que a ressurreição dos mortos manifesta já uma primeira ação deste triunfo.

Colocando-se na mentalidade do seu tempo, Paulo procura responder os bulícios dos Tessalonicenses sem, contudo, esgotar o ardor da sua pregação. Por isso, para além dessa linguagem, Paulo recorre a um tema de suma importância para a fé daquela comunidade: a esperança, sendo Cristo o fundamento da nossa esperança. Segundo o teólogo e biblista italiano, Giuseppe Barbaglio, «Paulo explora as imagens tradicionais que representavam o acontecimento final, servindo-se de suas terminologias proféticas e apocalípticas. Também recolhe os lugares comuns da escatologia proto cristã junto a influências do mundo grego. Mas tudo isso só possui um valor funcional: dar corpo à certeza da fé que é assegurada aos crentes pela graça ante um futuro salvífico, é estar sempre com o Senhor, participando do reino glorioso de Deus».

O Apóstolo coloca Cristo com a garantia da esperança, uma vez que a nossa ressurreição brota da própria ressurreição de Cristo. Cristo é portador de uma esperança que vivifica o género humano. Pela ressurreição do Senhor, o Homem é introduzido na vida eterna com o Pai. Por Cristo, somos co-herdeiros, somos triunfadores, onde «a vida é mais forte do que morte», num paraíso, onde a esperança desponta como aurora, onde outrora habitava as trevas da morte.

Como um ladrão

Em 1Ts 5, 1-11 o Apóstolo Paulo adverte que o Dia do Senhor virá como um ladrão noturno. Assim sendo, Paulo convida-nos a viver num estado permanente de vigilância, sem nos esmorecer, de modo que este Dia não nos surpreenda como um ladrão. Associado a estes acontecimentos, o Apóstolo exorta-nos, no v. 23, a vivermos na santidade de Deus, para que todo o nosso ser esteja íntegro e irreprochável para a segunda vinda do Messias. Segundo Barbaglio, «a exortação paulina centra-se radicalmente na trama da história salvífica a partir de três tempos: o passado, quando os Tessalonicenses foram chamados por Deus a crer e a santificarem-se, sendo destinados à salvação; o presente, como filhos da luz aos quais são exigidas ações consequentes; e o futuro, salvos na parusia de Cristo mediante a qual devem apresentarem-se irrepreensíveis».

Com estas advertências, não é difícil perceber que estamos diante de um Mistério que está iminente para acontecer, mas não podemos calcular nem o dia e nem a hora. A única recomendação que se dá é viver este estado incessante de diligência e cautela. O próprio Jesus, antes da Ascensão, responde aos discípulos: «Estando, pois, reunidos, eles assim o interrogaram: “Senhor, é agora o tempo em que irás restaurar a realeza em Israel?” E ele respondeu-lhes: “Não compete a vós conhecer os tempos e os momentos que o Pai fixou com sua própria autoridade”» (At 1, 6-7).

A vigilância que nos pede S. Paulo indica-nos o modo próprio de viver e ser cristão. Preconiza-nos a viver temperantes, sóbrios, revestidos com as couraças da fé, da esperança e da caridade, qual vigia esperando a aurora. Não se pode acalentar ou distrair com o sucesso, o dinheiro, a boa fama, o carreirismo, porque a vinda do Senhor é certa e o julgamento deste mundo está próximo. Isso não quer dizer que o cristão deve viver atemorizado ou amedrontado, porque Cristo já derramou o seu sangue por nós, já nos comunicou o seu Espírito que fortalece as sonolências da nossa vida. A recomendação de S. Paulo é, antes, para vivermos sempre na luz de Cristo, longe das trevas da noite que nos consomem e nos tornam incapazes de procurar as coisas justas e retas. É na luz de Cristo que veremos a luz e seremos capazes de edificar a nossa vida na rocha firme que é a Palavra de Deus.

A vinda do Senhor e a nossa reunião com Ele

Em 2Ts 2, 1-13 encontramos uma perícope, de não fácil interpretação, devido à sua linguagem apocalítica, mas que consiste numa passagem de fundamental importância para compreender a temática que aqui estamos a refletir.

Nos v. 1-5, Paulo retifica a ansiedade da espera dos Tessalonicenses, ou seja, a parusia não está iminente. Adverte, pois para o aparecimento da apostasia e do homem ímpio. O homem da impiedade ainda não está revelado; já age, mas alguém o retém (v. 6-8). Assim sendo, o Apóstolo convida os Tessalonicenses a não se deixarem lograr pelas falsas interpretações acerca da vinda do Senhor.

A partir das duas Cartas de Paulo, é evidente a admonição na primeira, da vinda eminente do Senhor em atitude de vigilância e, na segunda, uma espécie de tardança desta mesma vinda, através do apaziguamento da impaciência da comunidade de Tessalónica. O único dado que Paulo dá como garantido é que a vinda do Senhor acontecerá de uma forma adventícia e inesperada. A parusia implica o estado permanente de vigilância, mas é necessário atribuir uma justa compreensão da escatologia e uma esclarecida atitude entre espera e a impaciência. Paulo demonstra convicção no que concerne à luz que os acontecimentos escatológicos lançam sobre o tempo da Igreja. Dessa forma, os cristãos são convidados a assumirem atitudes concretas durante o tempo de espera, uma vez que nestes acontecimentos escatológicos estão presentes elementos que estruturam a educação para viver o tempo de expectativa. Daí que a exortação de Paulo perspetiva o futuro, sempre com os pés alicerçados no presente.

Para compreender a parusia, o Apóstolo convida a comunidade a ganhar consciência do “mistério da iniquidade” que já está em ação, mas ainda não atingiu o ápice da sua manifestação. No v. 3, Paulo adverte que «deve vir primeiro a apostasia, e aparecer o homem ímpio, o filho da perdição, que se levanta contra tudo que chama Deus…». Ora, a apostasia aparece como tudo aquilo que é contrário ao caminho de Deus. Trata-se de uma rebelião consciente, da recusa da verdade, no consentimento da mentira e da injustiça (Cf. 2Ts 2, 10-12). O homem iníquo que nos apresenta Paulo é a realização-limite do pecado, a malvadez sem máscara e plenamente consciente. Existe aqui um paradoxo: enquanto em Cristo confrontamo-nos com um Deus que se fez homem, no homem iníquo confrontamo-nos com um homem que quer fazer-se Deus. Se por um lado encontramos o amor, a humildade, o serviço, por outro encontramos o egoísmo, a soberba e domínio. Posto isto, todo o pecado caracteriza como a encarnação dessa impiedade. Mas nem todo o pecado tem o peso da impiedade do homem iníquo. No v. 7, o Apóstolo diz: «Pois o mistério da impiedade já age, só é necessário que seja afastado aquele que ainda o retém». O que dizer do impedimento desta manifestação? Não sabemos! Seja como for, vamos sempre confrontar-nos com uma obscuridade, uma complexidade que é de difícil interpretação.

Existe aqui uma drástica impugnação entre Deus e o mal, mesmo que a piedade e impiedade, o ódio e o amor apareçam, por vezes, amalgamados. No decorrer da história, constataremos sempre a sagacidade entre o bem e o mal onde, ocasionalmente o mal aparecerá com toda a sua pujança. Mas é exatamente no momento em que se mostrar robusto e perspicaz é que o mal demonstrará o seu falhanço, a sua ruína. O quadro apocalítico que Paulo perfilha, ensina que a história se desenvolve de modo a fazer resplandecer a graça de Deus. O Reino de Deus não é obra do impulso humano, mas desponta justamente naquele momento em que o mal aparece como triunfante. O que interessa na pregação de Paulo é que a nossa história é resgatada e assumida por Cristo. Não se trata de uma conquista humana ou da insubstituibilidade de Deus, mas é pura graça, clemência e mercê do Senhor da Vida e da História. O Apóstolo quer nos testemunhar que Deus carrega na palma das Suas Mãos a história da humanidade e, que inclusive, o próprio mal está subordinado à Sua onipotência. Por conseguinte, afirma Paulo em 2Ts 2, 8: «Então aparecerá o ímpio, aquele que o Senhor destruirá com o sopro da sua boca, e o suprimirá pela manifestação da sua Vinda».

Concluído este cenário apocalítico que é, concomitantemente, assustador e dulcificador, Paulo em 2 Ts 2, 13 retoma à oração: «Nós, porém, sempre agradecemos a Deus por vós, irmãos queridos do Senhor, porque Deus vos escolheu desde o princípio para serdes salvos mediante a santificação do Espírito e a fé na verdade». A oração de Paulo, após a descrição realística dos acontecimentos, transmite uma consoladora certeza que pede uma apurada robustez do espírito, de uma fé ardente e generosa, mantendo os ensinamentos «que vos ensinamos oralmente ou por escrito» (2 Ts 2, 15). É nesta rocha inquebrantável que Paulo nos exorta a ancorar a nossa vida para a vinda do Senhor Jesus. Finalmente, o Apóstolo conclui a sua admoestação com uma eterna consolação e boa esperança na e pela graça de Deus. Esta é a única certeza que levamos durante o tempo de espera (cf. 2 Ts 2, 16). É a esta esperança que nos devemos abandonar sem reservas, porque tudo o resto, na visão do Apóstolo Paulo, é completamente secundário.

Após percorrermos o caminho que Paulo faz com a Comunidade de Tessalónica, podemos concluir que ninguém conhece o tempo e a hora da vinda do Senhor, porém, sabe-se com segurança que a sua vinda será de forma imprevista. Se isto é verdade, é então preciso viver despertos e vigilantes. Esta advertência não é só de Paulo, mas de toda a tradição cristã: «Não vos pertence a vós saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou em seu poder» (At 1,6-7).

A vigilância significa a recusa de indagar-se sobre o como e sobre o quando. O futuro não está nas nossas mãos. Mas a vigilância também significa o estar despertos: o como e o quando não está nas nossas mãos, mas a vinda do Senhor é um facto certo que requer prontidão a atenção aos sinais dos tempos. A vinda do Senhor pode acontecer exatamente enquanto dizemos «paz e segurança». Pode tratar-se de juízos de valor desatentos, sem fundamento. Quer se trate da paz, quer se trate da segurança, elas estão sempre em risco: não se pode adormecer. Por isso, para Paulo, estar vigilantes significa também ser temperantes, sóbrios, e sobretudo, estarmos revestidos com as armas da fé, da esperança e da caridade. Vigilantes, mas não pessimistas ou cheios de medo. O julgamento é certo, mas existe também a certeza de que Cristo morreu por nós: e isto é consolador.

O cristão não deve viver apenas uma vida noturna, a qual é sinal de uma sonolência e de uma inconsciência que conduzem a uma vida vazia. Poderia haver aqui também alusão aos banquetes noturnos que eram moda entre os pagãos. O assunto é de profunda atualidade!

A conclusão é esta: que o cristão deve viver na luz, não nas trevas; estar vigilante e não adormecido, viver e procurar as coisas verdadeiras, justas e luminosas, não as coisas sonolentas e tenebrosas. O cristão deve viver uma vida luminosa, não uma vida noturna!

P. Me. Alexsander Baccarini Pinto

Publicado em 17.12.2021 in SNPC


Eu Sou Porque Nós Somos

P. Francisco Campos, sj | 8 Dezembro 2021 | in Ponto SJ

A transferência milionária

A transferência de que falo é milionária porque de facto não vai (só) ao bolso de quem a paga. Vai à vida de quem a paga. É uma transferência única, num único movimento misterioso, com efeitos colaterais perenes, enormes e extensos.

Não estamos a falar de futebol. As transferências milionárias futebolísticas não têm qualquer valor comparadas com esta. Podem encher os olhos e até as carteiras de alguns, mas duram pouco. São transferências exuberantes, noticiadas, apontadas como feitos extraordinários, mas de facto, são muito pouco significativas.

A transferência de que falo é milionária porque de facto não vai (só) ao bolso de quem a paga. Vai à vida de quem a paga. É uma transferência única, num único movimento misterioso, com efeitos colaterais perenes, enormes e extensos.

Vamos por partes.

Porque há tanta gente que resiste a uma adesão a Jesus Cristo? Julgo ter a ver com os efeitos colaterais desta transferência. Jesus traz-nos uma proposta de felicidade baseada em critérios reconhecidos e valorizados por todos. Diz e faz o bem num único movimento, traz a paz, faz a festa, cura quem o rodeia, salva os perdidos, os oprimidos, os abandonados. Apresenta um caminho de verdade, e de vida, que corresponde aos anseios mais profundos de qualquer ser humano. Então qual é o problema? Se é o que todos buscamos, porque há tanta reticência, mesmo dos que o conhecem e tentam seguir? Muito simples. A proposta é boa. É, aliás, a melhor do mundo. Mas é difícil e, começando numa manjedoura, acaba numa cruz. E isso custa e tem efeitos secundários também nas nossas vidas.

Pressupostos da transferência mais cara da história

A moral cristã que nos é apresentada e foi sendo depurada ao longo dos séculos parte de uma premissa muito concreta: “afasta-te do mal, e aproxima-te do bem”. Uma vida cristã bem vivida parece que tem de ser gozada nesta condição primeira de análise do que é o bem e o mal e da consequente e permanente opção de aproximação ao bem. Mas esta conceção traz-nos vários problemas:

a) Antes de mais, facilmente cria uma visão do mundo dualista, que coloca o bem e o mal dentro de fronteiras bem definidas e em territórios opostos. Consequentemente tende a dividir eticamente a realidade entre bons e maus, situando os puros de um lado e os impuros do outro. Ou se está no clube dos que são santos e verdadeiros cristãos que respeitam os preceitos de uma moral clara, muito bem regulada, que não dá margem para erros porque objetivamente se cumpre ou não se cumpre, ou se está fora e o peso da exclusão, da incapacidade para se alcançar a santidade, do beco sem saída, torna-se atroz. Não se condena só o mal, mas o malfeitor, o que o pratica. Para o que cumpre o preceito à risca é fácil cair num olhar para os que estão fora com a sobranceria de quem se sente parte de uma elite, dos escolhidos, de quem pode julgar o mundo e os seus habitantes a partir da sua prática moral irrepreensível. A agravante desta conceção da realidade é que para os puros, os cumpridores, é uma questão de tempo para se dar um pequenino passo em falso e ir parar sem dó nem piedade ao saco dos pecadores impuros e sem salvação. Ou seja, a médio-longo prazo não se consegue suportar uma vida sob este prisma, quer se esteja num lado ou no outro, de forma saudável, mesmo com o sacramento da reconciliação à mão. Vive-se o permanente desgaste de uma salvação que se afasta cada vez mais, como se Jesus não nos tivesse já salvo, e o nosso papel não fosse antes aderir a essa salvação, não por mérito, mas por graça.

b) O bem até pode ser luminoso e claro e o mal sombrio e escuro, mas a realidade não é preto no branco. A realidade é feita de uma panóplia de cinzentos e até de uma infinita palete de outras cores. Por isso, saber qual e o que é o bem, assim taxativamente e em todas as situações, é difícil e complicado e talvez mesmo impossível à capacidade humana. O mal aparece quase sempre com aparência de bem. Aliás, se não fosse atrativo, se não trouxesse algo de bom (ainda que um bem menor ou muito menor), se não fosse elegante, sofisticado, ou prazeroso e confortável, ninguém optaria pelo mal. Se fosse tão fácil de identificar e de rejeitar seríamos todos santos. Mas mesmo que assim sucedesse, se conseguíssemos identificar e colocar o mal sempre de parte, a vida anima-se já imensamente, quando apenas queremos encontrar o maior bem. Só o mais, o maior bem, serve melhor a Deus, e a nós também. E já nos dá muito trabalho. Esse é o campo do discernimento, o lugar do encontro do eu, do nós, com Nosso Senhor, onde as vontades mais profundas convergem, a partir de uma liberdade, numa opção consolada e alegre para o presente, com consequências futuras.

c) Se calhar o maior problema desta conceção moral é que Jesus nunca fez nada disso. Jesus nunca se afastou do mal. Jesus nunca teve medo do mal. Pelo contrário, foi sempre ao seu encontro, não para se deixar dominar por ele, mas para aniquilá-lo e salvar quem dele estivesse refém. Jesus faz com o mal o que um pescador faz aos polvos: vira-lhe a cabeça para ficar sossegado. Jesus “vira a tripa” ao mal e ao pecado. Identifica-o, dá-lhe nome, confronta-o, dá-lhe a volta, torna-o inoperante, liberta e dá a vida. Jesus nunca se coibiu de ir ao encontro dos que sofrem, dos pagãos, das prostitutas, dos colocados de parte, dos abandonados, dos esquecidos, dos malfeitores, dos pecadores, dos impuros. No escuro, no pecado, fora do clube dos eleitos, onde parecia não estar Deus, aí está Jesus. Nos seus trajetos bem delineados, com destinos bem escolhidos, Jesus nunca deixou de responder àqueles que interrompiam os seus passos, que o desviavam do seu trajeto, que o impediam de continuar, para ir ao seu encontro e ao mal por que passavam, para os libertar e dar a vida. Chefes de sinagoga, hemorroísas, centuriões, cegos, leprosos, possessos, coxos, paralíticos, prostitutas, cobradores de impostos, famintos, sofredores, cananeus, samaritanas, sacerdotes e doutores da lei, ricos ou pobres, adúlteras, moribundos e mortos física ou espiritualmente, a nenhum foi recusada a presença de Jesus diante do mal que viviam.

No entanto – e aqui é que está a transferência milionária – isto tem um custo enorme. Em cada um destes encontros há uma espécie de transferência. Parece que Jesus dá o bem e recebe o mal. A cada passo, Jesus levanta o sofrimento de quem tem à frente e passa a carregá-lo sobre si. Não se nota logo. Mas na Sua Paixão isso torna-se evidente.

Na Paixão, na cruz, é Jesus que fica imobilizado como o paralítico; verte sangue como a hemorroísa; recebe o beijo pervertido da traição de Judas, é vendido por 30 moedas de prata e a sua carne é penetrada por cravos como a prostituta; torna-se impuro como os leprosos, deixa de ver pelas agressões a que é sujeito como os cegos; é visto como traidor como os cobradores de impostos, morre como a filha de Jairo ou como Lázaro. Torna-se maldição, torna-se pecado, por transferência, e é suspenso na cruz entre dois malfeitores.[1]

Jesus torna-se uma espécie de banco mau. Todos os maus ativos caem sobre Ele, para nós, todos nós, ficarmos com o banco bom, o banco da graça. E por isso mete tanto medo.

Se queremos ser como Jesus, se acreditamos nesse projeto de felicidade, se acreditamos no amor, sabemos que entramos neste jogo em que Jesus entrou sem medo. Todos sabemos que amar exige transferência. Que dar ao próximo aquilo de que ele precisa exige que eu dê de mim, e viva (mesmo que em parte) o que o outro vive. Exige que o peso do sofrimento, do pecado, da exclusão, da responsabilidade, que cai sobre o outro, caia também sobre mim. E isso é no mínimo desconfortável. E provavelmente doloroso.

Estamos à espera de Jesus que nasça de novo nas nossas vidas nas festas natalícias que se aproximam. Parecia que este gesto de Jesus, a transferência milionária, já estava concluída e paga. Mas não. Jesus continua a vir ao nosso encontro, nunca desistindo de transferir aquilo que nos pesa, a nossa humanidade, para sermos mais divinos como Ele.

[1] Gal 3, 13 – Cristo resgatou-nos da maldição da Lei, ao fazer-se maldição por nós, pois está escrito: Maldito seja todo aquele que é suspenso no madeiro.


Eu Sou Porque Nós Somos

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
A CHIPRE E À GRÉCIA
(2-6 DE DEZEMBRO DE 2021)

ENCONTRO COM O SANTO SÍNODO

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

Catedral Ortodoxa em Nicosia
Sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Beatitude, queridos Bispos do Santo Sínodo!

Sinto-me feliz por estar convosco e agradeço o vosso cordial acolhimento. Obrigado, querido Irmão, pelas suas palavras, a abertura do coração e o empenho na promoção do diálogo entre nós. Desejo estender a minha saudação a todos os sacerdotes, diáconos e fiéis da Igreja Ortodoxa de Chipre, com um pensamento especial aos monges e monjas que, com a sua oração, purificam e elevam a fé de todos.

A graça de estar aqui lembra-me que temos uma origem apostólica comum: Paulo passou por Chipre e, depois, chegou a Roma. Por isso descendemos do mesmo ardor apostólico e interliga-nos um único caminho: o do Evangelho. Por isso, me comprazo em ver-nos caminhar na mesma estrada, à procura duma fraternidade cada vez maior e da plena unidade. Nesta fímbria de Terra Santa que difunde a graça daqueles Lugares no Mediterrâneo, vêm naturalmente ao pensamento tantas páginas e figuras bíblicas. Dentre todas, gostaria de fazer ainda referência a São Barnabé, destacando alguns aspetos que nos podem orientar no caminho.

«José, a quem os Apóstolos chamaram Barnabé» (At 4, 36): assim é apresentado pelos Atos dos Apóstolos. Por conseguinte conhecemo-lo e veneramo-lo pelo apelido com que se designava a pessoa. Ora, a palavra Barnabé significa ao mesmo tempo «filho da consolação» e «filho da exortação». É interessante ver que se baseiam na sua figura ambas as caraterísticas, indispensáveis para o anúncio do Evangelho. Com efeito, toda a consolação autêntica não pode permanecer intimista, mas deve traduzir-se em exortação, orientar a liberdade para o bem. Ao mesmo tempo, toda a exortação na fé não pode deixar de se basear na presença consoladora de Deus e ser acompanhada pela caridade fraterna.

Assim Barnabé, filho da consolação, exorta-nos, a nós seus irmãos, a abraçar a mesma missão de levar o Evangelho aos homens, convidando-nos a compreender que o anúncio – como muitas vezes se fez – não se pode basear apenas em genéricas exortações, na repetição de preceitos e normas que se devem observar. O anúncio deve seguir o caminho do encontro pessoal, prestar atenção às questões das pessoas, às suas necessidades existenciais. Para ser filhos da consolação, antes de dizer algo, é preciso ouvir, deixar-se questionar, descobrir o outro, compartilhar. Pois o Evangelho transmite-se por comunhão. É isto que nós, como católicos, desejamos viver nos próximos anos, redescobrindo a dimensão sinodal, constitutiva do ser Igreja. E nisto sentimos a necessidade de caminhar mais intensamente convosco, queridos Irmãos, que podeis verdadeiramente ajudar-nos através da experiência da vossa sinodalidade. Obrigado pela vossa colaboração fraterna, que se manifesta inclusivamente na participação ativa na Comissão Mista Internacional para o Diálogo Teológico entre a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa.

Espero com todo o coração que aumentem as possibilidades de nos encontrar, conhecer-nos melhor, derrubar tantos preconceitos e colocar-nos docilmente à escuta das respetivas experiências de fé. Constituirá uma estimulante exortação para cada um fazer melhor, e dará a ambos um fruto espiritual de consolação. O apóstolo Paulo, de quem descendemos, fala muitas vezes de consolação e apraz-me imaginar que Barnabé, filho da consolação, tenha sido o inspirador de algumas das suas palavras, como estas, no início da segunda Carta aos Coríntios, quando recomenda que nos consolemos uns aos outros com a mesma consolação com que fomos consolados por Deus (cf. 2 Cor 1, 3-5). Neste sentido, queridos Irmãos, desejo assegurar-vos a oração e a solidariedade, minhas e da Igreja Católica, tanto nos problemas mais dolorosos que vos angustiam como nas esperanças mais belas e audazes que vos animam. As vossas tristezas e alegrias pertencem-nos, sentimo-las como nossas. E sentimos também que temos tanta necessidade da vossa oração.

Depois – e é o segundo aspeto –, os Atos dos Apóstolos apresentam São Barnabé como «um levita cipriota» (At 4, 36). O texto não acrescenta mais detalhes sobre a sua fisionomia nem sobre a sua pessoa, mas imediatamente faz-nos descobrir Barnabé através duma ação emblemática dele: «possuía uma terra; vendeu-a e trouxe a importância, que depositou aos pés dos Apóstolos» (4, 37). Este gesto magnífico sugere que também nós, para nos revitalizar na comunhão e na missão, precisamos da coragem de nos despojarmos daquilo – até mesmo precioso – que é terreno, para promover a plenitude da unidade. Certamente não me refiro ao que é sacro e ajuda a encontrar o Senhor, mas ao risco de absolutizar certos usos e costumes, que não são essenciais para viver a fé. Não nos deixemos paralisar pelo temor de nos abrir e realizar gestos audazes; não apoiemos aquela «incompatibilidade das diferenças» que não está prevista no Evangelho. Não permitamos que as tradições (no plural e com «t» minúsculo) tendam a prevalecer sobre a Tradição (no singular e com «T» maiúsculo). Esta exorta-nos a imitar Barnabé, deixando para trás tudo, até mesmo de bom, que possa comprometer a plenitude da comunhão, o primado da caridade e a necessidade da unidade.

Ao depositar aos pés dos Apóstolos aquilo que possuía, Barnabé ganhou um lugar nos seus corações. Também nós somos convidados pelo Senhor a descobrir-nos de novo como parte do mesmo Corpo, a inclinar-nos até aos pés dos irmãos. É certo que, no campo das nossas relações, se abriram entre nós grandes sulcos ao longo da história, mas o Espírito Santo deseja que voltemos, com humildade e respeito, a aproximar-nos. Ele convida-nos a não nos resignarmos com as divisões do passado e a cultivarmos juntos o campo do Reino, com paciência, diligência e ações concretas. Pois se deixarmos de lado teorias abstratas e trabalharmos juntos lado a lado, por exemplo, na caridade, na educação, na promoção da dignidade humana, redescobriremos o irmão, e a comunhão amadurecerá por si mesma para louvor de Deus. Cada um manterá seus modos próprios de ser e o seu próprio estilo, mas, com o tempo, o trabalho conjunto aumentará a concórdia e revelar-se-á fecundo. Como estas terras mediterrânicas foram embelezadas pelo respeitoso e paciente trabalho do homem, assim, com a ajuda de Deus e com humilde perseverança, cultivemos a nossa comunhão apostólica.

Um bom fruto, por exemplo, é o que está a acontecer aqui em Chipre na igreja da «Toda Santa da Cidade de Ouro». O templo dedicado à Panaghia Chrysopolitissa é hoje lugar de culto para várias Confissões cristãs, amado pela população e escolhido frequentemente para a celebração dos matrimónios. É, pois, um sinal de comunhão de fé e vida, sob o olhar da Santa Mãe de Deus, que reúne os seus filhos. Além disso, no interior do complexo, está guardada a coluna onde, segundo a tradição, São Paulo sofreu trinta e nove chicotadas por ter anunciado a fé em Pafos. A missão, tal como a comunhão, passa sempre através de sacrifícios e provas.

Foi precisamente uma prova – e é o terceiro aspeto, extraído da figura de Barnabé – que marcou a sua história e os primórdios da difusão do Evangelho nestas terras. No seu regresso a Chipre acompanhado por Paulo e Marcos, encontrou aqui Elimas, «um mago, falso profeta» (At 13, 6), que se lhes opôs com astúcia, procurando tornar tortuosos os retos caminhos do Senhor (cf. 13, 8.10). Também hoje não faltam falsidades e enganos que o passado coloca diante de nós e que atrapalham o caminho. Séculos de divisão e distanciamento fizeram-nos assimilar, mesmo involuntariamente, não poucos preconceitos hostis a respeito dos outros, preconceitos baseados muitas vezes sobre informações escassas e distorcidas, divulgadas por uma literatura agressiva e polémica. Mas tudo isto desvirtua o caminho de Deus, que tende para a concórdia e a unidade. Queridos irmãos, a santidade de Barnabé é eloquente também para nós. Quantas vezes, na história entre cristãos, a nossa preocupação foi a de nos opormos aos outros, em vez de acolhermos docilmente o caminho de Deus, que tende a harmonizar as divisões na caridade! Quantas vezes amplificamos e difundimos preconceitos sobre os outros, em vez de obedecer à exortação que o Senhor repetiu de forma especial no Evangelho escrito por Marcos, que esteve com Barnabé nesta ilha: fazer-se pequeno, colocar-se ao serviço uns dos outros (cf. Mc 9, 35; 10, 43-44).

Beatitude, fiquei comovido hoje, no nosso diálogo, quando falou da Igreja Mãe. A nossa Igreja é mãe, e uma mãe sempre reúne os seus filhos com ternura. Tenhamos confiança nesta Mãe Igreja, que a todos nos reúne e, com paciência, ternura e coragem, faz-nos avançar no caminho do Senhor. Mas, para sentir a maternidade da Igreja, todos devemos caminhar rumo ao ponto onde a Igreja é mãe: todos nós, com as nossas diferenças, mas todos filhos da Igreja Mãe. Obrigado por aquela reflexão que fez comigo hoje.

Imploremos do Senhor sabedoria e coragem para seguir, não os nossos caminhos, mas os d’Ele. Peçamo-lo por intercessão dos Santos. Leontios Machairas, cronista do século XV, definiu Chipre como «Ilha Santa» pela quantidade de Mártires e Bem-aventurados que estas terras conheceram ao longo dos séculos. Além dos mais conhecidos e venerados como Barnabé, Paulo e Marcos, Epifânio, Bárbara, Espiridião, há muitos outros: falanges inumeráveis de Santos que, unidos na única Igreja celeste – a Igreja Mãe –, nos impelem a navegar juntos rumo ao porto por que todos suspiramos. Lá de cima, convidam a fazer de Chipre, que já é ponte entre Oriente e Ocidente, uma ponte entre o Céu e a terra. Assim seja, para glória da Santíssima Trindade, para o nosso bem e para o bem de todos. Obrigado!


Eu Sou Porque Nós Somos

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO,
ASSINADA PELO SECRETÁRIO DE ESTADO PIETRO PAROLIN,
PARA AS "SEMAINES SOCIALES DE FRANCE"

Sra. Dominique Quinio,

No momento em que inaugura o encontro anual de 2021 das Semanas Sociais hoje, Sua Santidade o Papa Francisco tem o prazer de unir-se a si em pensamento e oração, bem como a todos aqueles que participarão das reflexões e debates que acontecerão nos próximos três dias .

Este ano foi escolhido o tema: «Ousamos sonhar com o futuro. Cuidar dos homens e da terra». Às vezes, os sonhadores são censurados por não abordarem a espessura da realidade, e é de fato um risco contra o qual nos devemos precaver.

Mas não devemos ter medo de sonhar, especialmente se esse sonho for compartilhado e nutrido juntos. Como Dom Hélder Câmara colocou tão bem, «quando você sonha sozinho, é apenas um sonho; mas quando muitos sonham, é o início de uma nova realidade». Permita-me, portanto, compartilhar convosco os sonhos que o Santo Padre expressou na sua exortação apostólica Querida Amazónia, e que se aplicam igualmente ao contexto da vossa reunião anual. Devemos sonhar com uma sociedade que “lute pelos direitos dos mais pobres... onde a sua voz seja ouvida e a sua dignidade seja promovida”; sonhar com uma sociedade “que defenda a riqueza cultural que a distingue, onde a beleza humana resplandeça de formas tão variadas”; sonhar com uma sociedade que “guarda zelosamente a irresistível beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e matas” (n. 7); finalmente sonhando com uma sociedade que acolha a mensagem do Evangelho, isto é, "o anúncio de um Deus que ama infinitamente cada ser humano, que manifestou plenamente este amor em Cristo crucificado por nós e ressuscitado para nossa vida" (n. 64). Esses sonhos só podem tornar-se realidade se forem compartilhados. Por isso o Santo Padre se alegra com as trocas que experimentais nestes dias, porque fazem parte daquela "cultura do encontro" que ele sinceramente espera.

A pandemia de alguma forma acelerou a compreensão de que nosso estilo de vida deve mudar. É urgente pensar um futuro que convida, que faz viver a esperança. Como cristãos, é esta bela virtude da esperança que podemos oferecer ao mundo nestes tempos cruciais para o futuro. É "uma sede, uma aspiração, um anseio de plenitude, de uma vida plena, de medir-se com o que é grande, com o que enche o coração e eleva o espírito para as grandes coisas, como a verdade, o bem e a beleza, a justiça e amor. [...] A esperança é ousada, sabe olhar além do conforto pessoal, das pequenas seguranças e compensações que estreitam o horizonte, abrir-se a grandes ideais que tornam a vida mais bela e digna ”(Fratelli tutti , n. 55) .

O Santo Padre pede ao Senhor que abra os vossos corações, ilumine as vossas mentes e inspire as vossas trocas, para que possam formular os caminhos da esperança de que o mundo tanto necessita; que as vossas obras apoiem, defendam e promovam o cuidado da criação, das pessoas mais fragilizadas, e o desenvolvimento integral de cada uma, até na sua dimensão espiritual fundamental. O Papa Francisco confia a fecundidade do vosso encontro anual à intercessão da Virgem Maria e comunica-lhe, Senhora Presidente, bem como a todos os participantes, a sua Bênção e a certeza da sua oração.

Cardeal Pietro Parolin

Secretário de Estado de Sua Santidade

L'Osservatore Romano, ano CLXI n. 271, sábado , 27 de novembro de 2021, p. 12


Eu Sou Porque Nós Somos

ENCONTRO DE ORAÇÃO E TESTEMUNHOS POR OCASIÃO DO DIA MUNDIAL DOS POBRES EM ASSIS

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

Basílica de Santa Maria dos Anjos
Sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Agradeço-vos por terdes aceitado o meu convite — fui o convidado! — para celebrar aqui em Assis, cidade de São Francisco, o quinto Dia Mundial do Pobre, que se comemora depois de amanhã. Foi uma ideia que nasceu de vós, cresceu e já chegámos à quinta edição. Assis não é uma cidade como qualquer outra: Assis tem o rosto de São Francisco. Pensar que foi nestas ruas que ele viveu a sua juventude inquieta, que recebeu a chamada a viver o Evangelho à letra, é para nós uma lição fundamental. Claro que, de certa forma, a sua santidade faz-nos estremecer, porque parece impossível imitá-lo. Mas então, no momento em que recordamos certos períodos da sua vida, aqueles “fioretti” que foram recolhidos para mostrar a beleza da sua vocação, sentimo-nos atraídos por esta simplicidade de coração e simplicidade de vida: é a própria atração de Cristo, do Evangelho. Estes são factos da vida que valem mais do que os sermões.

Gosto de recordar um, que expressa bem a personalidade do Pobrezinho (cf. Fioretti , cap. 13: Fontes Franciscanas , 1841-1842). Ele e o irmão Masseo partiram para a França, mas não tinham levado provisões com eles. A um certo ponto, tiveram de começar a pedir a caridade. Francisco seguiu um caminho e o irmão Masseo outro. Mas, como nos narram os Fioretti, Francisco era pequeno de estatura e aqueles que não o conheciam consideravam-no um “mendigo”, enquanto o irmão Masseo “era um homem grande e bonito”. Foi assim que São Francisco mal conseguiu obter alguns pedaços de pão velho e duro, enquanto o irmão Masseo obtinha bons pedaços de pão.

Quando os dois se reencontraram, sentaram-se no chão e colocaram o que tinham recolhido sobre uma pedra. Ao ver os pedaços de pão recolhidos pelo frade, Francisco disse: “Irmão Masseo, nós não somos dignos deste grande tesouro”. O frade espantado respondeu: “Padre Francisco, como se pode falar de tesouro quando há tanta pobreza e até faltam até as coisas necessárias?”. Francisco respondeu: “É precisamente isto que considero um grande tesouro, pois não há nada, mas o que temos foi doado pela Providência que nos deu este pão”. Este é o ensinamento de São Francisco: saber contentar-se com o pouco que temos e partilhá-lo com os outros.

Estamos aqui na Porciúncula, uma das pequenas igrejas que São Francisco pensou em restaurar, depois de Jesus lhe ter pedido para “reparar a sua casa”. Naquela época, ele nunca teria pensado que o Senhor lhe pediria para dar a sua vida a fim de renovar não a igreja feita de pedras, mas de pessoas, de homens e mulheres que são as pedras vivas da Igreja. E se estamos aqui hoje é precisamente para aprender com o que São Francisco fez. Ele gostava de passar muito tempo nesta pequena igreja a rezar . Ele recolhia-se aqui em silêncio e escutava o Senhor, o que Deus queria dele. Também nós viemos aqui para isto: queremos pedir ao Senhor que ouça o nosso grito, que ouça o nosso grito, e que venha em nosso auxílio. Não esqueçamos que a primeira marginalização de que sofrem os pobres é a espiritual. Por exemplo, muitas pessoas e jovens encontram algum tempo para ajudar os pobres e levar-lhes comida e bebidas quentes. Isto é muito bom e agradeço a Deus pela sua generosidade. Mas sobretudo fico feliz quando ouço que estes voluntários param para falar com as pessoas, e por vezes rezam com elas... Assim, a nossa presença aqui, na Porciúncula, recorda-nos a companhia do Senhor, que Ele nunca nos deixa sozinhos, Ele acompanha-nos sempre em cada momento da nossa vida. O Senhor está hoje entre nós. Ele acompanha-nos, na escuta, na oração e nos testemunhos dados: é Ele, connosco.

Há outro facto importante: aqui na Porciúncula São Francisco acolheu Santa Clara, os primeiros frades, e muitos pobres que o procuravam. Com simplicidade recebeu-os como irmãos e irmãs, partilhando tudo com eles. Esta é a expressão mais evangélica que somos chamados a fazer nossa: o acolhimento . Acolher significa abrir a porta, a porta da casa e a porta do coração, e permitir que aqueles que batem à porta, entrem. E que se sinta à-vontade, não em sujeição, não, à-vontade, livre. Onde existe um verdadeiro sentido de fraternidade, existe também a experiência sincera de acolhimento. Onde, por outro lado, há medo do outro, desprezo pela sua vida, então nasce a rejeição ou, pior ainda, a indiferença: olhar para o outro lado. Acolher gera um sentido de comunidade; a rejeição, pelo contrário, fecha-se sobre o próprio egoísmo. Madre Teresa, que fez da sua vida um serviço ao acolhimento, gostava de dizer: “Qual é o melhor acolhimento? O sorriso”. O sorriso. Partilhar um sorriso com alguém em necessidade é bom para ambos, para mim e para o outro. Um sorriso é uma expressão de simpatia, de ternura. E então o sorriso envolve-te, e não te podes distanciar da pessoa a quem sorriste.

Agradeço-vos, porque viestes de tantos países para viver esta experiência de encontro e de fé. Gostaria de dar graças a Deus que inspirou esta ideia do Dia dos Pobres. Uma ideia nascida de uma forma bastante estranha, numa sacristia. Estava prestes a celebrar a Missa e um de vós — o seu nome é Étienne — conheceis? É um enfant terrible — Étienne deu-me a sugestão: “façamos o Dia dos Pobres”. Saí e senti que o Espírito Santo, dentro, me estava a dizer para o fazer. Foi assim que começou: pela coragem de um de vós de levar as coisas em frente. Agradeço-lhe pelo trabalho ao longo dos anos e pelo trabalho de tantos que o acompanham. E gostaria de agradecer ao Cardeal [Barbarin] a sua presença: ele está entre os pobres, também ele sofreu com dignidade a experiência da pobreza, do abandono, da desconfiança. E defendeu-se com o silêncio e a oração. Obrigado, Cardeal Barbarin, pelo seu testemunho que edifica a Igreja. Estava a dizer que viemos para nos encontrar: esta é a primeira coisa, irmos ao encontro um do outro de coração aberto e mão estendida. Sabemos que cada um de nós precisa do outro, e que até a fraqueza, se experimentada em conjunto, pode tornar-se uma força que melhora o mundo. Muitas vezes a presença dos pobres é vista com irritação e tolerada; outras, ouvimos dizer que são os pobres os responsáveis pela pobreza: mais um insulto! Para não fazer um exame de consciência sério sobre as próprias ações, sobre a injustiça de certas leis e medidas económicas, um exame de consciência sobre a hipocrisia daqueles que querem enriquecer sem medida, descarregam a culpa nos mais fracos.

É tempo de os pobres terem novamente uma palavra a dizer , porque durante demasiado tempo as suas exigências não foram ouvidas. É tempo de lhes abrir os olhos e ver o estado de desigualdade em que vivem tantas famílias. É tempo de arregaçar as mangas para restituir a dignidade através da criação de empregos . É tempo de se voltar a escandalizar com a realidade de crianças famintas, escravizadas, náufragas, vítimas inocentes de todo o tipo de violência. É tempo de cessar a violência contra as mulheres e de as mulheres serem respeitadas e não tratadas como mercadoria. É tempo de quebrar o círculo da indiferença e descobrir a beleza do encontro e do diálogo. Chegou a hora de nos encontrarmos. É o momento do encontro. Se a humanidade, se nós, homens e mulheres, não aprendermos a encontrar-nos, estamos a caminhar para um fim muito triste.

Ouvi atentamente os vossos testemunhos, e agradeço-vos tudo o que demonstrastes com coragem e sinceridade. Coragem, porque quisestes partilhá-los com todos nós, mesmo que façam parte da vossa vida pessoal; sinceridade, porque vos mostrastes como sois e abristes os vossos corações com o desejo de serdes compreendidos. Há algumas coisas que me agradaram particularmente e que gostaria de retomar de alguma forma, para as tornar ainda mais minhas e deixá-las assentar no meu coração. Antes de mais, recebi um grande sentido de esperança. A vida nem sempre foi amável convosco, de facto, mostrou-vos muitas vezes uma cara cruel. A marginalização, o sofrimento da doença e da solidão, a falta de muitos meios necessários não vos impediu de olhar com os olhos cheios de gratidão para as pequenas coisas que vos permitiram resistir.

Resistir. Esta é a segunda impressão que recebi e vem precisamente da esperança. O que significa resistir? Ter a força para continuar apesar de tudo, para ir contra a corrente. A resistência não é uma ação passiva, pelo contrário, requer coragem para empreender um novo caminho sabendo que dará frutos. Resistência significa encontrar razões para não desistir perante as dificuldades, sabendo que não as vivemos sozinhos mas juntos, e que só juntos as podemos superar. Resistir a qualquer tentação de desistir e cair na solidão ou tristeza. Resistir, agarrando-se à pequena ou pouca riqueza que possamos ter. Penso na jovem do Afeganistão, com a sua frase lapidária: o meu corpo está aqui, a minha alma está lá. Resistir com a memória, hoje. Penso na mãe romena que falou no final: dor, esperança e nenhuma saída, mas grande esperança nos seus filhos que a acompanham e lhe devolveram a ternura que receberam dela.

Peçamos ao Senhor que nos ajude sempre a encontrar a serenidade e a alegria. Aqui na Porciúncula, São Francisco ensina-nos a alegria que provém de olharmos para aqueles que nos rodeiam como companheiros de viagem que nos compreendem e apoiam, tal como somos para ele ou ela. Que este encontro abra os corações de todos nós para nos colocarmos à disposição uns dos outros; abra os nossos corações para fazer das nossas fraquezas uma força que nos ajude a continuar no caminho da vida, para transformar a nossa pobreza numa riqueza a ser partilhada e assim melhorar o mundo.

O Dia dos Pobres. Obrigado aos pobres que abrem o coração para nos darem a sua riqueza e curarem o nosso coração ferido. Obrigado por esta coragem. Obrigado, Étienne, por teres sido dócil à inspiração do Espírito Santo. Obrigado por estes anos de trabalho; e também pela “teimosia” de trazer o Papa a Assis! Obrigado! Obrigado, Eminência, pelo apoio, pela ajuda a este movimento de Igreja — dizemos “movimento” porque se movem — e pelo testemunho. E obrigado a todos vós. Levo-vos no meu coração. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim, pois tenho as minhas pobrezas, e muitas! Obrigado!


Eu Sou Porque Nós Somos

Teólogo Piero Coda em entrevista:

O Sínodo é o acontecimento mais importante depois do Concílio

Em entrevista ao Vatican News, teólogo Piero Coda, membro da Comissão Teológica do Sínodo, e recentemente nomeado secretário-geral da Comissão Teológica Internacional, as palavras do Papa Francisco esclarecem como insistir na sinodalidade, na participação: “Não é uma escolha de democratização”, mas “uma questão de identidade profunda”.

Para o teólogo, professor do Instituto Universitário Sophia de Loppiano, o que foi inaugurado no Vaticano é “o acontecimento eclesial mais importante depois do Concílio Vaticano II”. “Pela primeira vez em dois mil anos de história da Igreja, um Sínodo é chamado a envolver todo o Povo de Deus” – disse em entrevista ao Vatican News que aqui recordamos.

Porque é que o Papa insiste tanto na distinção entre sínodo e parlamento?

Piero Coda: Existe o perigo de mal-entendidos. Corre-se o risco de pensar que fazer brilhar a sinodalidade na vida da Igreja significa abrir-se a uma espécie de democratização, onde o jogo da maioria e da minoria é quem decide. Mas não, não é assim. A Igreja é um evento do Espírito Santo e o verdadeiro protagonista do Sínodo é o Espírito Santo que – como sempre diz o Papa Francisco – harmoniza as diferenças, as reconcilia, converge-as na unidade que é o próprio Cristo, vivo e presente na sua Igreja. Portanto, colocar em ação um procedimento sinodal significa colocar em ação aquilo que para a Igreja é Igreja: um Povo de Deus a caminho, uma sinfonia de diversidades que convergem na unidade para servir ao mundo.

É por isso que o Papa insiste tanto na necessidade da oração de Adoração, na necessidade de ouvir o Espírito?

Piero Coda: Tanto na abertura dos trabalhos do processo sinodal como na Santa Missa inaugural, o Papa disse que a oração de Adoração deve ser incentivada. É uma circunstância que me impressionou. Creio que Francisco quer-nos lembrar que a vida em Cristo é essencialmente e antes de tudo abrir o coração e a mente de cada um à escuta da voz do Espírito, à adoração do rosto de Cristo que nos abre ao mistério insondável do amor do Pai. E isso significa “adoração”, ou seja, estar abertos, ser gratos, cientes de que recebemos tudo do amor do Pai, que ele nos ama primeiro e que, consequentemente, somos chamados a ouvir os outros e retribuir o seu amor aos outros. Esta é a raiz da vida eclesial e também a raiz do processo sinodal.

Porquê um Sínodo sobre a Igreja sinodal?

Piero Coda: Penso, e não quero entusiasmar-me, que este é o evento eclesial mais importante e estratégico depois do Concílio Vaticano II. O Concílio fez-nos redescobrir a Igreja como ela é: unidade em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, comunhão e missão. Hoje, depois de um caminho no qual encontramos novas energias e ganhamos experiência, estamos prontos para dar mais um passo. Hoje, podemos fazer com que se torne vida, em todas as expressões da comunhão e missão da Igreja, aquela participação no mistério de Cristo em que estamos inseridos na graça do Batismo. Portanto, fazer um Sínodo sobre a sinodalidade não significa fazê-lo sobre um tema como tantos outros, mas sobre a identidade mais profunda da Igreja como comunhão e missão que se torna concreta, historicamente incisiva quando participada por todos. A Igreja é tal somente quando é carregada nos ombros por todos e partilhada no seu coração por todos, ao serviço dos irmãos, começando pelos últimos, pelos abandonados e pelas periferias existenciais e espirituais do nosso tempo.

A propósito de participação, no seu discurso inaugural Francisco afirmou que esta é “uma exigência de fé e não de estilo”. Porquê esse esclarecimento?

Piero Coda: Na minha opinião, porque o Papa queria sublinhar que a participação não é simplesmente uma opção, isto é, não se trata de cosmética eclesial, para mostrar que somos “politicamente corretos”, capazes de um certo grau de partilha. Em vez disso, trata-se de uma questão de identidade profunda. Nós, de facto, participamos do único mistério de Cristo, somos co-herdeiros de Cristo – diz o Novo Testamento – do infinito dom de amor que o Pai nos dá no Espírito Santo. Portanto, ou colocamos em ação esta participação na vida da graça da fé e do amor, na esperança de Cristo, ou não somos completamente o que deveríamos ser pela graça do nosso Batismo. Portanto, é uma questão de identidade e não simplesmente de cosmética eclesial.

Por isso, o Sínodo nota que, até agora, nem todos os batizados participaram plenamente do desenvolvimento da Igreja?

Piero Coda: A situação é historicamente um facto. Na Igreja por longos séculos, no segundo milénio, desde a reforma Gregoriana até ao Concílio Vaticano II, por necessidade de crescimento histórico, de amadurecimento, também de missão da Igreja, num mundo difícil, prevaleceu principalmente uma visão piramidal, hierárquica. Isso muitas vezes impediu que todas as energias do Espírito presentes no Povo de Deus fossem valorizadas. Mesmo que houvesse grandes santos, grandes movimentos de renovação espiritual, eram expressões que não envolviam plenamente todos os membros do Povo de Cristo. Com o Vaticano II falamos da vocação universal à santidade, todos temos a mesma dignidade como Povo de Deus, portanto o momento histórico, os Kairòs, como diz Jesus no Novo Testamento, ou seja, o momento de Deus, é precisamente isto. Devemos procurar abrir-nos à ação do Espírito que torna todos corresponsáveis na primeira pessoa por este grande evento de graça que é o facto da Igreja estar no mundo para a salvação de todos.

Este é também o primeiro Sínodo que se realiza segundo um mecanismo em que a escuta do Povo de Deus se torna estrutural…

Piero Coda: Conforme definido pelo documento Episcopalis communio, promulgado pelo Papa Francisco para a renovação do Instituto do Sínodo dos Bispos, pretendido por Paulo VI depois do Vaticano II, este Sínodo desenvolve-se de uma forma certamente nova, que inclui três grandes fases. A fase do envolvimento de todo o Povo de Deus, que se articula na vida das Igrejas locais. Depois, a fase celebrativa do Sínodo dos Bispos propriamente dita, onde são recolhidos todos os pedidos, as propostas que surgem da escuta do Povo de Deus, e depois a fase de acolhimento com o regresso às Igrejas locais e o acolhimento e a interpretação criativa das linhas básicas que emergiram. Lembramos que não é só uma novidade para esta dinâmica processual do caminho, mas é a primeira vez em dois mil anos de história da Igreja que um evento deste tipo é chamado a envolver todo o Povo de Deus. Acredito que devemos agradecer a Deus, comprometer-nos com extrema responsabilidade, para que ninguém fique a olhar pela janela e para que não seja uma oportunidade perdida.

Rui Saraiva |in Voz Portucalense | com Vatican News


Eu Sou Porque Nós Somos

A cimeira de Glasgow e nós

António Marujo, Eduardo Jorge Madureira, Jorge Wemans e Manuel Pinto | 31 Out 21 | Editorial do Sete Margens

A cimeira mundial do clima começou este domingo em Glasgow num ambiente misto de incerteza e de esperança. O cenário traçado na última semana pelo mais recente relatório do UNEP (Programa Ambiental das Nações Unidas) mostra que a perspetiva do controlo do aquecimento global abaixo de 1,5 graus Celsius está cada vez mais longe de ser atingida. As medidas políticas concertadas entre as partes mostram-se cada vez mais urgentes e decisivas, mas há sinais consistentes de que interesses poderosos ligados às energias fósseis, à agropecuária, entre outros setores, inclusive junto de cientistas ligados às Nações Unidas, se movimentaram para travar as decisões que se impõem. É, por outro lado, provável que dirigentes de superpotências como a República Popular da China e da Rússia, países que representam, sozinhos, um terço do total de emissões mundiais de CO2, nem sequer se dignem comparecer em Glasgow.

Entre muitas outras organizações internacionais, numerosas confissões e líderes religiosos, com destaque para o Papa Francisco, desenvolveram, no último ano, múltiplas iniciativas regionais e transnacionais para pressionar os dirigentes com efetivo poder de decisão a assumirem as suas responsabilidades, tomando as medidas que se impõem e que estão amplamente identificadas.

Como alertava o relatório da UNEP, não é só no futuro que os problemas vão acontecer; eles estão a suceder já hoje – milhares de mortes causadas por ocorrências extraordinárias relacionadas com o clima e milhões de pessoas obrigadas a deslocar-se, a fugir e a migrar. Está, por outro lado, bem identificada a relação entre as mudanças climáticas e modelos económicos predatórios que esmagam a possibilidade de vida em vastas zonas onde comunidades humanas construíram as suas vidas desde há séculos.

A hora é, pois, de ação. Ponderada e atenta às complexidades dos problemas em jogo, certamente. Mas ação que requer coragem e celeridade.

Não podemos ficar simplesmente a olhar para o que se passará nas duas semanas da Cimeira de Glasgow. É decisivo o que lá acontecerá. Mas a responsabilidade é também de cada um de nós. E, para quem é crente, a oração é uma forma de deixar que o problema entre em cada um de nós e de gerar e alimentar correntes de consciência, capazes de produzir frutos. Mas, também nesta matéria, tem de ir a par com a mudança de vida, da vida de cada pessoa – de hábitos e práticas enraizadas, banalizadas no dia-a-dia. Para não ficarmos no “blá-blá-blá”, como denunciava recentemente a jovem ativista Greta Thunberg. Tem de traduzir-se, como aponta a encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, em ações coletivas, em políticas públicas, em projetos e planos de todas as organizações da sociedade civil, incluindo as religiosas.

Ora, neste domínio, aquilo que têm feito as confissões religiosas em Portugal, cada uma de per si e todas em conjunto, está ainda muito longe do patamar que seria desejável, como amplamente documentou um trabalho recente do 7MARGENS, feito em conjunto com a revista Família Cristã. Ainda que existam iniciativas neste terreno, elas são pouco expressivas quer em termos quantitativos quer qualitativos.

Falando da Igreja Católica, a confissão mais importante, ela tem espaços de culto, gere, direta ou indiretamente, muitos terrenos, espaços e edifícios, no âmbito escolar, socio-caritativo, associativo e outros, tem permanentemente agentes de pastoral seus a viajar para dentro e fora do país… E talvez mais do que outras instituições sociais pode formar agentes, despertar consciências, incentivar práticas novas (reciclagem, redução do uso de materiais dificilmente recicláveis, desinvestimento em atividades que contribuam para a emissão de gases com efeito de estufa, aposta em novas fontes de energia, investimentos financeiros, etc.).

Para isso, é necessário estudar a Laudato Si’ e os valores e orientações que a informam; definir modos de a concretizar; envolver pessoas e grupos, crentes ou não, abertos à ação em benefício do cuidado da casa comum.

Muitas são as instituições da Igreja Católica, desde a sua Universidade e outros organismos de formação superior até aos movimentos laicais, às ordens religiosas e às estruturas de pastoral, que podem dar corpo a planos e projetos voltados para “uma nova solidariedade fundada na justiça, no facto de partilharmos um destino comum e na consciência da unidade da família humana”, como diz o Papa Francisco.

Torna-se, porém, evidente que, se não houver um movimento de afirmação de vontade da parte dos bispos e da sua Conferência Episcopal, que defina uma estratégia, aponte metas, apele à articulação de esforços, envolva agentes e especialistas multidisciplinares da sociedade, não sairemos da cepa torta, pese embora algumas excelentes iniciativas que já existem no terreno, incluindo em conjunto com outras igrejas cristãs.

Neste âmbito, como noutros para que o magistério de Francisco reiteradamente apela, importa reconhecer que não temos tido uma resposta dos bispos à altura dos desafios que a Igreja e o mundo requerem, em termos de visão, coragem profética e capacidade de ação conjunta. Serão ao menos capazes de escutar quem na Igreja e na sociedade, na investigação científica, nas lutas da cidadania ou no ativismo ecológico, pode ajudar a examinar a situação e a abrir caminho para o que é urgente fazer? Mesmo que nem todos sejam sensíveis ou se sintam preparados, arriscarão os outros uma proposta de ação articulada nas respetivas dioceses?

É o direito à vida de tantas pessoas e povos de hoje e das gerações futuras, que está em causa. É o risco de deixarmos morrer o terreno que a “parábola do semeador” já não encontrará.

Enquanto os políticos, cientistas e ativistas discutem em Glasgow, chegou a hora de vermos com pragmatismo o que é que cada um(a) e todos nós podemos fazer. Aos bispos cabe uma responsabilidade especial nesta matéria que é, no seu alcance profundo, crucial para a salvação do planeta, a justiça social e a paz entre os povos.


Eu Sou Porque Nós Somos

A fé que se celebra: rito litúrgico e mediação do corpo

Comunga cada qual o seu pão inteiro ou comungamos todos de um só corpo partido?

O rito litúrgico será a linguagem mais rica que a Igreja tem, a mais completa. Na liturgia, a fé, que é essencialmente confissão da Páscoa do Senhor Jesus e ligação existencial à vida que daí jorra, celebra-se em comunidade, mediada pelo corpo. Pelo corpo, com as suas múltiplas linguagens, que cada ser humano é e com o qual se situa no espaço e no tempo e num campo amplo de interações e de relações; pelo corpo diferenciado e orgânico que cada comunidade forma. Aqui, a fé não se pensa apenas. Não se sente apenas. Não se cumpre apenas. Celebra-se. A liturgia é ação. É ação ritual, corpórea e comum que medeia tangível e sensivelmente a relação real da comunidade eclesial e de cada batizado com a Páscoa do Senhor. A sua linguagem é performativa. Por ser ato do ser humano, é inteligente, sensível, volitivo, claro. Mas, antes de tudo, é ato do corpo dotado de sentidos, de cinco, pelo menos, corpo concreto e situado, inquieto e incompleto, mais atraente ou mais incómodo, mais enérgico ou mais passivo, umas vezes doente, outras vezes em plena forma. Além disso e não menos relevante, a ação litúrgica é ato do corpo eclesial, diferenciado e uno. Não é ação de um só ou de uns poucos em benefício dos restantes, quais destinatários passivos, mas de toda a assembleia, a qual, tal como o presidente e como cada um dos fiéis, é, ela mesma, sujeito ativo.

Mas a relação que mantemos com o rito litúrgico – fiéis, ministros, comunidades – continua longe de colher toda a sua riqueza e de realizar todo o seu alcance. O registo individual, interior e subjetivo, de um lado, e aquele comunitário, exterior e objetivo, do outro, tendem a manter-se não suficientemente co-implicados na compreensão que temos da fé e na forma com praticamos o rito. Este alheamento, porém, é artificial. A realidade liga-os, ainda que disso não se tivesse imediata consciência. O conteúdo da fé e a forma ritual implicam-se mutuamente. A forma de celebrar diz sempre uma terminada compreensão da fé, tal como esta se exprime sempre numa determinada forma ritual.

Cabe-nos, ainda assim, reconhecer a tendência para subestimar a relação íntima entre conteúdo da fé e a sua forma ritual. Por exemplo, se atendermos às regras excecionais observadas na liturgia durante a pandemia, tal como já pude refletir noutro texto, podemos verificar como têm reforçado esse alheamento. Mas seria ingénuo pensar que, por exemplo, estar sozinho na Eucaristia ou estar com outros nada diz sobre a fé que professamos, ou que significa o mesmo o facto do ministro ordenado celebrar sozinho ou de presidir a uma assembleia que se compreende a celebrar como corpo uno e plural. Achar-se-á que estar quietos, mudos e intocáveis resultará o mesmo que deslocar-se, responder e cantar, tocar e ser tocado pelos outros membros da assembleia? Que a Palavra de Deus seja impressa numa folha para ser lida individualmente por cada fiel no seu lugar – com mais atenção, justifica-se – será a mesma coisa que proclamá-la numa assembleia, pela boca de alguém, para que seja escutada por ouvidos reais? Que o olfato seja requisitado ou seja sempre dispensado será irrelevante? Não será a fé também uma questão de odor e de apreço sensível? Será indiferente que o pão não pareça visualmente pão ou que cada partícula, tal como se usa habitualmente, de facto, não seja partícula, fragmento partido de um todo maior, mas tenha, à partida, a forma circular perfeita, como se fosse um “inteiro em miniatura”, como alguém lhe chamou? Comunga cada qual o seu pão inteiro ou comungamos todos de um só corpo partido? Que o pão e o vinho sejam apresentados por fiéis para a Eucaristia será igual a que já estejam desde o início em cima do altar, trazidos por ninguém? E será igual que o presidente se aproxime do altar como de Cristo, percorrendo o espaço físico da igreja, como qualquer outro fiel, ou que apareça saído diretamente da sacristia, como se o altar lhe pertencesse? E muitos outros exemplos poderiam ser dados. No rito, nenhuma expressão do corpo é insignificante. Queira-se ou não, aí, a fé é mais dita pelos gestos que se fazem ou que não se fazem, que se fazem bem ou que se fazem mal, do que pelas palavras que se pronunciam ou pelo significado nocional que se lhes dá. A palavra terá sempre o seu lugar – somos seres de palavra – mas importa que diga – que não contradiga – o que os gestos fazem.

Quer o rito litúrgico se viva no registo da obrigação, quer no registo da devoção, quer ainda no da relação sociológica ou cultural, uma forma bastante comum de o compreender e de participar nele poderá ser identificado à “bula explicativa”. Sobressai a explicação, a pedagogia, a compreensão. Porque já pouco se compreende, tudo deve ser explicado. Tudo tem ou tem que ter um significado nocional. É como se os símbolos não agissem por si. Simplesmente representam alguma coisa, que precisa de ser explicada para ser apreendida e valorizada. Caso contrário, diz-se, são inúteis. A Palavra de Deus, mais do que ser bem proclamada ou generosamente escutada, é explicada e compreendida. Importa que o “padre” fale bem, porque disso depende o proveito da celebração ou a falta dele. A qualidade dos gestos e dos movimentos, o cuidado dos silêncios e dos espaços tendem a ser marginais. Do Evangelho, resultam habitualmente três ideias que ensinam coisas e satisfazem a mente, nunca três sons que se escutam, três perfumes ou três sabores que se apreciam, três toques que tocam o corpo e que implicam os restantes sentidos. Portanto, a Palavra significa. Não tem timbre, não tem sabor nem perfume, não afaga a pele nem fere a carne, não move o corpo. Importa o conteúdo. A forma é só embrulho dispensável. O espaço, a luz e as sombras, o ritmo, os movimentos, os gestos litúrgicos não falam ou não são escutados por si mesmos. Muitas vezes, simplesmente, porque não se lhes dá nem espaço, nem tempo. A atuação de ministros e fiéis não lhes rende suficiente justiça. São mais instrumentos circunstâncias do que lugar efetivo de mediação da graça, sem o qual esta não se daria. As coisas não são usadas e os gestos não são feitos de modo a valerem por si, a ensinarem por si, a realizarem o que significam no ato de serem agidos.

Complicado? Talvez não tanto, dado ser tão elementar. Pensemos no beijo ou no abraço. Quem é que beijando outra pessoa sentirá necessidade de dizer o significado do que está a fazer? Será necessário explicar o que significa? Se houver verdade, não bastará beijar ou abraçar para que o gesto realize o que significa, envolvendo e transformando quem dá e quem recebe, precisamente pelo que acontece entre ambos? Por outro lado, o afeto ou a proximidade, não se esgotando naquele beijo ou naquele abraço, não se dariam sem esses atos corpóreos, que são indistintamente materiais e espirituais. Aprenderia a criança o afeto se nunca fosse beijada, acariciada, interpelada pelo sorriso ou por uma voz quente? “A realidade é superior à ideia”, diria o Papa Francisco. O Verbo encarna; a carne é capaz do Verbo, dizemos desde os primeiros tempos da Igreja. Ora, o rito litúrgico é linguagem desta ordem. De tão bem feito, não deveria precisar que se lhe explicasse o significado. Pelo menos enquanto se faz. Pode e deve explicar-se antes e depois, como forma necessária de iniciação ao rito, mas não enquanto se faz. No rito, é o ato de fazer que diz. Dirá bem e fará bem se for bem feito. Dirá mal e fará mal se for mal feito. No rito, a forma é realmente conteúdo. O conteúdo diz-se como forma. De novo, o Verbo diz-se fazendo-se carne.

Outro modo de relação comum com o ato litúrgico é do tipo “pirotécnico”. Procura-se ou oferece-se entretenimento emotivo. Sucedem-se os efeitos especiais que encham o olho, que excitem a pele, que deem prazer imediato ao ouvido. Requisita-se a sensibilidade mais imediata e superficial, a atenção menos implicada, as harmonias mais fáceis, no desejo mercantil de agradar, de justificar o tempo requisitado e, se possível, de voltar a ter o mesmo público num próximo espetáculo. Não nos surpreendamos que, de acordo com este registo, mais tarde ou mais cedo, a prática litúrgica se torne irrelevante e seja abandonada. Trata-se de um registo enganoso, destinado ao cansaço e ao fracasso, mais não fosse porque nunca poderia competir com os recursos e a sofisticação da indústria do entretenimento. Dura enquanto durar a criatividade para inventar coisas ou dinâmicas atrativas e emotivas e enquanto durar o interesse e o agrado. Na verdade, entretém sensivelmente, mas não inicia humana e espiritualmente. Consome-se como objeto. Não implica o sujeito.

Há também a liturgia “engenharia mecânica”, quando se absolutiza a forma, fazendo-se formalismo puro, culto do protocolo irrepreensível, da execução perfeita de todas as rúbricas, dos ministros impassíveis e intocáveis, hieráticos, separados. Também esta liturgia, ainda que pretensamente mais fiel, refinada e erudita – mais em contacto com o sagrado, dirão alguns –, se pode tornar espetáculo para os cultores da perfeição e da sacralidade separada. E há a liturgia “devocional, intimista, estática”, onde tudo é intimíssimo, profundíssimo, elevadíssimo. O Senhor recebe-se no coração, não no corpo, que é indigno. O rito não é prática comum. É culto do ministro, expressão do seu poder sacral. E é vivência interna, separada, sem relação e, por isso, sem comunhão de pessoas reais. É só alma, só espírito, só êxtase ou só ascese. Na realidade, tende a exprimir uma sensibilidade de sabor gnóstico. Quanto mais alto mais divino. Quanto menos corpóreo, mais espiritual. Quanto mais desencarnado, mais santo.

Reconheçamos que a versão da fé que mais se promove e mais se cultiva tende a ser ou intelectual, ou sentimental, ou moral. Pensa-se. Sente-se. Observa-se. Por isso, como doutrina, explica-se e compreende-se. Como espiritualidade, excita-se o sentimento e prova-se emoção. Como norma, apela-se à vontade e observa-se. Requisita a mente, suscita sentimento, move a vontade. Tudo em privado com o Senhor, para a “salvação da própria alma”. A forma ritual da fé, que é ação do corpo, tende a parecer, ou exterior e formal, talvez inautêntica e, por isso, dispensável, ou obrigação que se cumpre para beneficiar dos seus frutos espirituais, ou, então, objeto de devoção pessoal. A efetiva mediação corpórea da graça e a ação comum do Povo de Deus, corpo orgânico de muitos membros, parecem não ser particularmente relevantes nem centrais.

Não deixa, porém, de ser curiosa e até contraditória esta indiferença. Num tempo que tanto valoriza o corpo, os sentidos, as “performances”, a nossa atenção cristã insiste em concentrar-se sobretudo no conteúdo nocional, na moção sentimental ou na norma moral. E está bem, porque são dimensões incontornáveis da experiência crente. Porém, não são suficientes. Não estranhemos, por isso, que, para muitos, a liturgia acabe por ser um conjunto de formas sem força e que as forças que habitam cada um, os grupos e as sociedades – vitais, espirituais, eróticas, imaginativas, etc. – não encontrem aí lugar. Pode acontecer que estejamos a gerir formas que perderam a força, ao mesmo tempo que nos faltam formas que deem lugar às forças que tocam e que movem os homens e as mulheres do nosso tempo. Mas a ser verdadeira e justa, a ação litúrgica deveria ser capaz de fazer encontrar, de modo vital e operativo, formas e forças, sabendo que as primeiras sem as segundas são cascas ocas e que estas sem aquelas dispersam-se, quando não se tornam mesmo violentas e destrutivas.

A fase de desconfinamento e de maior liberdade de movimentos que estamos a viver, passados quase dois anos de restrições e de contenção corpórea, poderia ser particularmente propícia para valorizar e promover a inteligência da fé por meio de “ritos e preces”, segundo o espírito do Concílio Vaticano II (particularmente relevante é o n.48 de Sacrosanctum Concilium), tendo presente que “ritos e preces” não são instrumentos exteriores que remetem para um conteúdo interior, mas, sim, lugares visíveis e tangíveis, linguagens elementares e complexas pelas quais a graça efetivamente se realiza e os mistérios da fé realmente se dizem. A forma de os bem realizar dirá a força que neles se dá.

Por isso, só o exercício de nos irmos perguntando – tantos ministros, como fiéis – pelo lugar mais ativo que pode ser dado ao corpo, aos olhos que veem e aos ouvidos que ouvem, mas também ao olfato e ao gosto que apreciam, e, ainda mais, ao tato que põe em contacto espontâneo com a presença, umas vezes reconfortante, outras vezes inquietante, da beleza e da bondade, já seria um grande passo. Sim, convoque-se a inteligência, desperte-se afeto, implique-se a vontade, mas não à custa da negligência da mediação do corpo, com os seus sentidos, as suas múltiplas linguagens e dinâmicas, as suas fragilidades e energias. Tal como o ministro ordenado investe justamente na preparação da homilia, caber-lhe-ia dedicar não menos cuidado ao tom da voz, à autenticidade dos gestos, à leveza ou dramaticidade dos movimentos, à força espiritual dos espaços e das formas plásticas. Tal como o fiel espera por palavras bem ditas de comentário à Palavra de Deus que lhe iluminem a mente e aqueçam o coração, dê igual atenção aos gestos bem feitos que lhe toquem, firam e impliquem o corpo. Pode acontecer que participe com uma inteligência muito desperta, mas com um corpo muito indolente; que queira sentir, mas sem querer dar o corpo a esse manifesto. A ser assim, não estaria inteiramente presente. Porque a Palavra disse-se e continua a dizer-se como carne que se vê, se ouve, se aprecia, se toca, pela qual nos reconhecemos vistos, escutados, apreciados, tocados. Do mesmo modo, quando se tem presente que a ação ritual é estruturalmente comunitária, não se deixará de cuidar dos tempos e dos modos que melhor exprimam a participação ativa de cada membro vivo deste corpo orgânico e da assembleia como um todo. Cuidar do rito litúrgico como ação de mediação corpórea entre a Igreja e o Senhor, não deixará de promover a arte e o ofício de celebrar ativamente, que dizem respeito, não somente a cada ministro, mas igualmente a cada fiel e a cada comunidade.

Num tempo de palavras eventualmente excessivas e gastas, talvez de vertigem de experiências que consomem quem as consome, o rito litúrgico oferece-se como ato quotidiano e elementar de “resistência” humana, espiritual. Pelo envolvimento do corpo, com os seus sentidos e as suas múltiplas linguagens, recorrendo à palavra necessária e suficiente, diz a fé da Igreja na Páscoa do Senhor Jesus enquanto a realiza no tempo presente de indivíduos e de comunidades, como graça que salva a vida. Diferente das explicações, seduções ou manifestos, quem sabe se não irá mais justamente ao encontro de novas interrogações e buscas, sedes e disposições presentes em tantos e tantas que se revelam mais sensíveis ao toque do que à demonstração, mais atentos à impressão deixada pela forma como se faz do que pelo conteúdo daquilo que se diz. Dar um copo de água fresca a quem tenha sede não dirá mais do que explicar as virtudes da água?

P. José Frazão Correia sj | in Ponto SJ | 20 Outubro 2021


Eu Sou Porque Nós Somos

Monsenhor Piero Coda:

"O Sínodo não é cosmética eclesial, é o acontecimento mais importante depois do Concílio Vaticano II"

De acordo com o Monsenhor Piero Coda, membro da Comissão Teológica do Sínodo, as palavras do Santo Padre insistem na sinodalidade e participação: “Não é uma escolha de democratização, mas uma questão de identidade profunda”, disse, em entrevista ao Vatican News.

Durante a abertura do Sínodo, no Sábado, 9 de Outubro, o Papa Francisco afirmou que o processo sinodal “não é um parlamento, não é uma investigação sobre opiniões”, ideia reiterada no dia seguinte, quando explicou que o Sínodo também não é uma “convenção”, uma “conferência” ou um “congresso político”.

De acordo com o Monsenhor Piero Coda, membro da Comissão Teológica do Sínodo, as palavras do Santo Padre insistem na sinodalidade e participação: “Não é uma escolha de democratização, mas uma questão de identidade profunda”, disse, em entrevista ao Vatican News.

“Corre-se o risco de pensar que fazer brilhar a sinodalidade na vida da Igreja significa abrir-se a uma espécie de democratização, onde o jogo da maioria e da minoria é quem decide. Mas não, não é assim. A Igreja é um evento do Espírito Santo e o verdadeiro protagonista do Sínodo é o Espírito Santo que – como sempre diz o Papa Francisco – harmoniza as diferenças, as reconcilia, converge-as na unidade que é o próprio Cristo, vivo e presente na sua Igreja”, explicou o o Monsenhor, insistindo que um procedimento sinodal realiza-se com “um Povo de Deus a caminho, uma sinfonia de diversidades que convergem na unidade para servir ao mundo”.

Sobre o incentivo do Papa Francisco à oração de Adoração, Mons. Coda referiu que o Pontífice deseja lembrar a todos que “a vida em Cristo é abrir o coração e a mente de cada um à escuta da voz do Espírito, à adoração do rosto de Cristo”.

O responsável referiu ainda o Sínodo como “o evento eclesial mais importante e estratégico depois do Concílio Vaticano II”.

“Hoje, depois de um caminho no qual encontramos novas energias e ganhamos experiência, estamos prontos para dar mais um passo. Hoje, podemos fazer com que se torne vida, em todas as expressões da comunhão e missão da Igreja, aquela participação no mistério de Cristo em que estamos inseridos na graça do Baptismo. Portanto, fazer um Sínodo sobre a sinodalidade não significa fazê-lo sobre um tema como tantos outros, mas sobre a identidade mais profunda da Igreja como comunhão e missão que se torna concreta, historicamente incisiva quando participada por todos”, explicou, dizendo que é necessária atenção a todas as pessoas, sobretudo às abandonadas e às que se encontram nas actuais “periferias existenciais e espirituais”.

Sobre a participação, a que o tema do Sínodo alude desde logo, Monsenhor Coda explicou que o Papa Francisco deseja sublinhar que não se trata apenas de uma opção, mas antes de uma “questão de identidade profunda”.

“Nós, de facto, participamos do único mistério de Cristo, somos co-herdeiros de Cristo – diz o Novo Testamento – do infinito dom de amor que o Pai nos dá no Espírito Santo. Portanto, ou colocamos em acção esta participação na vida da graça da fé e do amor, na esperança de Cristo, ou não somos completamente o que deveríamos ser pela graça do nosso Baptismo. Portanto, é uma questão de identidade e não simplesmente de cosmética eclesial”, sublinhou.

O responsável não nega, no entanto, que nem todos os baptizados se tenham, até agora, envolvido na vida Igreja, ou visto as suas vocações valorizadas.

“Mesmo que houvesse grandes santos, grandes movimentos de renovação espiritual, eram expressões que não envolviam plenamente todos os membros do Povo de Cristo. Com o Vaticano II falamos da vocação universal à santidade, todos temos a mesma dignidade como Povo de Deus, portanto o momento histórico, os Kairòs, como diz Jesus no Novo Testamento, ou seja, o momento de Deus, é precisamente isto. Devemos procurar abrir-nos à acção do Espírito que torna todos corresponsáveis na primeira pessoa por este grande evento de graça que é o facto de a Igreja estar no mundo para a salvação de todos”, indicou.

O Monsenhor Coda elogiou ainda a nova “dinâmica processual do caminho”, sublinhando ser esta a primeira vez em dois mil anos de história da Igreja que um evento destes “é chamado a envolver todo o Povo de Deus”.

“Acredito que devemos agradecer a Deus, comprometer-nos com extrema responsabilidade, para que ninguém fique a olhar pela janela e para que não seja uma oportunidade perdida”, pediu.

DACS COM VATICAN NEWS | 12 OUT 2021


Eu Sou Porque Nós Somos

ENCONTRO «RELIGIÕES E EDUCAÇÃO:

PACTO EDUCATIVO GLOBAL»

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

Terça-feira, 5 de outubro de 2021

Queridos irmãos e irmãs!

Com alegria vos acolho nesta significativa ocasião para promover um Pacto Educativo Global. Hoje, no Dia Mundial dos Professores instituído pela UNESCO, queremos como Representantes das Religiões manifestar a nossa proximidade e gratidão a todos os professores e, ao mesmo tempo, a nossa solicitude pela educação.

Há dois anos – no dia 12 de setembro de 2019 –, dirigi um apelo a todos aqueles que intervêm, por variados títulos, no campo da educação para «dialogar sobre o modo como estamos a construir o futuro do planeta e sobre a necessidade de investir os talentos de todos», porque «toda a mudança precisa duma caminhada educativa para fazer amadurecer uma nova solidariedade universal e uma sociedade mais acolhedora» (Mensagem para o lançamento do Pacto Educativo).

Com esta finalidade, promovi a iniciativa dum Pacto Educativo Global, «para reavivar o compromisso em prol e com as novas gerações, renovando a paixão por uma educação mais aberta e inclusiva, capaz de escuta paciente, diálogo construtivo e mútua compreensão», convidando todos a «unir esforços numa ampla aliança educativa para formar pessoas maduras, capazes de superar fragmentações e contrastes e reconstruir o tecido das relações em ordem a uma humanidade mais fraterna».

Se queremos um mundo mais fraterno, devemos educar as novas gerações para «reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada um nasceu ou habita» (Carta enc. Fratelli tutti, 1). Este princípio fundamental – «conhece-te a ti mesmo» – orientou sempre a educação, mas é necessário não descurar outros princípios essenciais: «conhece o teu irmão», a fim de educar para o acolhimento do outro [cf. Carta enc. Fratelli tutti; Documento sobre A fraternidade humana (Abu Dhabi, 04/II/2019)]; «conhece a criação», a fim de educar para o cuidado da casa comum (cf. Carta enc. Laudato si'); e «conhece o Transcendente», a fim de educar para o grande mistério da vida. Temos a peito uma formação integral que se resume no conhecer-se a si mesmo, ao próprio irmão, à criação e ao Transcendente. Não podemos esconder às novas gerações as verdades que dão sentido à vida.

As religiões sempre tiveram uma relação estreita com a educação, acompanhando as atividades religiosas com as educativas, escolares e académicas. Como no passado, também hoje queremos, com a sabedoria e a humanidade das nossas tradições religiosas, ser estímulo para uma renovada ação educativa que possa fazer crescer no mundo a fraternidade universal.

Se no passado as diferenças nos puseram em contraposição, hoje vemos nelas a riqueza de caminhos diversos para chegar a Deus e educar as novas gerações para uma convivência pacífica no respeito mútuo. Por conseguinte a educação compromete-nos a não usar jamais o nome de Deus para justificar a violência e o ódio contra outras tradições religiosas, a condenar toda a forma de fanatismo e fundamentalismo, e a defender o direito de cada um escolher e agir segundo a própria consciência.

Se no passado, mesmo em nome da religião, se discriminaram as minorias étnicas, culturais, políticas e outras, hoje queremos ser defensores da identidade e dignidade de toda a pessoa e ensinar as novas gerações a acolherem a todos sem discriminações. Por conseguinte a educação compromete-nos a acolher o outro como ele é – não como eu quero que seja, mas como ele é - e sem julgar nem condenar ninguém.

Se no passado os direitos das mulheres, dos menores e dos mais frágeis nem sempre foram respeitados, hoje comprometemo-nos a defender com firmeza tais direitos e a ensinar às novas gerações a serem voz dos que não têm voz. Por conseguinte a educação insta-nos a rejeitar e denunciar toda a violação da integridade física e moral de cada um. E a educação deve levar-nos a compreender que, na dignidade, o homem e a mulher são iguais: não haverá discriminações.

Se no passado toleramos a exploração e o saque da nossa casa comum, hoje, mais conscientes do nosso papel de guardiões da criação que nos foi confiada por Deus, queremos ser voz da natureza que clama pela sua sobrevivência e formar as novas gerações para um estilo de vida mais sóbrio e ecossustentável. Ontem impressionou-me o testemunho de um dos cientistas que falou no nosso encontro, dizendo: «Se as coisas estão assim, a minha neta, recém-nascida, dentro de 50 anos terá que habitar num mundo inabitável». Por conseguinte a educação compromete-nos a amar a nossa mãe-terra e a evitar o desperdício de alimentos e recursos, bem como a partilhar mais os bens que Deus nos deu para a vida de todos. Vem-me ao pensamento aquilo que dizia um sábio, não católico: «Deus perdoa sempre. Nós perdoamos umas vezes sim, outras não. A natureza nunca perdoa».

Hoje queremos declarar que as nossas tradições religiosas, que sempre foram protagonistas da alfabetização até ao ensino superior, reforçam a sua missão de educar cada pessoa na sua integralidade, isto é, cabeça, mãos, coração e alma. Que se pense aquilo que se sente e se faz; que se sinta aquilo que se pensa e se faz; que se faça aquilo que se sente e se pensa. A harmonia da integridade humana, isto é, toda a sua beleza desta harmonia.

Queridos irmãos e irmãs, agradeço-vos pela vossa participação e agradeço também a todos aqueles que, devido à pandemia, não puderam estar aqui presentes hoje. E agora convido-vos a um breve momento de silêncio para pedir a Deus que ilumine as nossas mentes, a fim de que o nosso diálogo seja frutuoso e nos possa ajudar a seguir com coragem os caminhos de novos horizontes educativos.


Eu Sou Porque Nós Somos

CAMINHAR JUNTOS: COSMÉTICA OU REVOLUÇÃO?

P. António Ary, sj | in Ponto SJ | 14 Setembro 2021

A “revolução” de uma Igreja sinodal começa agora em cada diocese, paróquia, movimento, família, tendo como horizonte “aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos.

No passado dia 7 foram divulgados no Vaticano dois documentos que lançam o próximo Sínodo dos Bispos que terá como título: “Para uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”. Trata-se do Documento preparatório que apresenta as linhas gerais para o tratamento do tema, e de um Guia prático (Vademecum) para a realização da primeira etapa, de consulta a todo o povo de Deus.

Desde o início do seu pontificado, o Papa Francisco tem dado especial atenção a este instrumento, nascido no final do Concílio Vaticano II para prolongar a experiência de comunhão que os bispos de todo o mundo tinham feito ao reunirem-se para refletir acerca da Igreja e do seu lugar e papel no mundo. As assembleias sinodais convocadas pelo atual Pontífice, sobre a família (em 2014 e 2015), a juventude (2018) e a Igreja na Amazónia (2019) suscitaram grandes debates, envolvendo Pastores, responsáveis eclesiais aos mais diversos níveis, fiéis e até não crentes, não só por causa das questões tratadas, mas sobretudo pelo clima de abertura, escuta e participação que o próprio Papa promoveu, dentro e fora da Aula sinodal. Já em 2015, ao comemorar os 50 anos da instituição do Sínodo dos bispos, o Papa Francisco tinha deixado clara a sua convicção acerca da centralidade do próprio conceito de sínodo, que etimologicamente significa “caminhar juntos”, para a identidade e a missão da Igreja, resumida numa afirmação de S. João Crisóstomo: “Igreja e Sínodo são sinónimos”.

Em linha com esta preocupação, o Papa convocou agora um Sínodo cujo tema é precisamente a sinodalidade, entendida como modo de ser, de viver e de operar do Povo de Deus. A Igreja manifesta e realiza concretamente o seu “ser comunhão” no caminhar juntos, no reunir-se em assembleia e na participação ativa de todos os seus membros na sua missão evangelizadora. Não se trata, então, apenas da celebração de encontros eclesiais e assembleias de Bispos, ou de uma questão de simples administração interna da Igreja, mas de algo mais

O Documento preparatório (n. 27) identifica três níveis em que a sinodalidade se articula enquanto dimensão constitutiva da Igreja: o plano do estilo em que a Igreja normalmente vive e atua; o plano das estruturas e dos processos eclesiais em que a natureza sinodal da Igreja se manifesta de maneira institucional a nível local, regional e universal; o plano dos processos e eventos sinodais em que a Igreja é convocada pela autoridade competente, em conformidade com procedimentos específicos, determinados pela disciplina eclesiástica.

Coerentemente, o processo que agora é lançado pretende ser também ele um “caminhar juntos” que convida à participação de toda a Igreja. Nas palavras do Documento preparatório (n. 25), “o seu objeto – a sinodalidade – é também o seu método”. Pela primeira vez, o Sínodo será oficialmente inaugurado em simultâneo nas dioceses do mundo inteiro, no dia 17 de outubro de 2021, uma semana depois da cerimónia de abertura em Roma. A escuta do Povo de Deus que se seguirá não constitui, portanto, apenas uma fase preparatória, mas é já realização do Sínodo, que levará a sínteses nacionais e depois continentais, até ao momento da assembleia dos bispos em outubro de 2023. Ao longo destes meses todos somos chamados a refletir, em clima de discernimento, acerca de uma dupla interrogação: como é que este “caminhar juntos” se realiza hoje na nossa realidade particular? E ainda: que passos o Espírito nos convida a dar para crescermos no nosso “caminhar juntos”?

O desafio que é agora lançado a toda a Igreja de participar, refletindo ao mesmo tempo sobre essa mesma participação, concretiza de um modo especial o desejo de reforma que marca o pontificado de Francisco. O caminho de conversão que o Papa deseja empreender com toda a Igreja não pode resumir-se à remodelação da cúpula do governo, no Vaticano, mas tem de envolver toda a Igreja, num exercício humilde de escuta do Espírito que fala também através do “santo povo fiel de Deus” e no encontro com o mundo. No caminho sinodal agora iniciado, os obstáculos residem, portanto, principalmente numa “cultura impregnada de clericalismo, que a Igreja herdou da sua história, e de formas de exercício da autoridade nas quais se insinuam os vários tipos de abuso” (Documento preparatório, n. 6), mas igualmente “nas atitudes, assumidas também por muitos cristãos, que fomentam divisões e contraposições na Igreja” (Documento preparatório, n. 8).

Como dizia um slogan clássico, “estamos todos convocados!”, não apenas como adeptos a torcer pela vitória da nossa equipa, mas como verdadeiros protagonistas numa Igreja que caminha junta para escutar “aquilo que o Espírito diz às Igrejas” (Apocalipse 2, 7). Depende, por isso, de cada um de nós envolver-se (rezando, refletindo, escutando, contribuindo) e assim garantir que não se trata apenas de “ocupar espaços”, mas sim “iniciar processos” (cf. Evangelii Gaudium, n. 223). Para tal, convém manter presente que “a consulta do Povo de Deus não exige a assunção, no seio da Igreja, dos dinamismos da democracia centrados no princípio de maioria, uma vez que na base da participação em qualquer processo sinodal está a paixão partilhada pela missão comum de evangelização, e não a representação de interesses em conflito” (Documento preparatório, n. 14).

Depende também de nós sermos exigentes com os nossos Pastores, para que esta participação seja verdadeiramente vivida e acolhida, não como “operação cosmética”, mas como caminho de transformação real. A “revolução” de uma Igreja sinodal, na fidelidade à sua mais genuína tradição, começa agora em cada diocese, em cada paróquia ou movimento, em cada família, tendo como horizonte, não o de produzir documentos, mas de “aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos” (Documento preparatório, n. 32).


Eu Sou Porque Nós Somos

Manuel Pinto | Sete Margens | 25 Set 21

O Papa já começou a mobilizar a sua diocese para o próximo Sínodo católico. Num encontro-celebração realizado no passado dia 18, fez um discurso que é já considerado um texto de referência, nesta etapa preparatória da fase diocesana. É marcante o trabalho de alicerçar a ideia da sinodalidade indo para lá do Vaticano II, para se centrar no livro bíblico dos Atos dos Apóstolos, exemplificando dimensões essenciais do processo sinodal com casos e experiências relatados nesse livro. Dedica igualmente uma atenção especial ao sentido de caminhar na escuta do Espírito Santo.

A parte final é de um sentido concreto e de uma riqueza assinaláveis, em especial quanto à atitude de abertura e inclusão (de portas e janelas abertas) que é suposto pôr em prática no Sínodo… e depois dele. Pela sua importância, reproduzimos a seguir o documento, que pode ser visto como um guião para todos os que acreditam que o próximo Sínodo é um convite surpreendente a uma reforma da Igreja que nasce da base e com a participação de todos.

COMUNHÃO, PARTICIPAÇÃO, MISSÃO: TRÊS PILARES
(Discurso do Papa Francisco aos fiéis da diocese de Roma, no dia 18 de Setembro de 2021) I

Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

Como sabem – não há novidade nisso! –, está para começar um processo sinodal, um caminho em que toda a Igreja se encontra comprometida em torno do tema: “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação, missão”: três pilares. Estão previstas três fases, que se desenvolverão entre outubro de 2021 e outubro de 2023. Este itinerário foi pensado como um dinamismo de escuta recíproca. Quero sublinhar isto: um dinamismo de escuta recíproca, realizado em todos os níveis da Igreja, envolvendo todo o povo de Deus.

O cardeal vigário [que substitui o Papa à frente da diocese de Roma] e os bispos auxiliares devem escutar-se; os padres devem escutar-se; os religiosos devem escutar-se; os leigos devem escutar-se. E depois todos devem “inter-escutar-se”. Escutar-se, falar-se e escutar-se. Não, não se trata de coligir opiniões. Também não é um inquérito; trata-se antes de escutar o Espírito Santo, como encontramos no livro do Apocalipse: “Quem tem ouvidos escute o que o Espírito diz às Igrejas” (2,7). Ter ouvidos, escutar, é o primeiro compromisso. Trata-se de ouvir a voz de Deus, captar a sua presença, intercetar a sua passagem e o seu sopro de vida.

O profeta Elias descobriu que Deus é sempre um Deus das surpresas, até mesmo na forma como passa e se faz sentir: “Um vento forte e impetuoso fendia as montanhas e quebrava os rochedos […], mas o Senhor não estava no vento; depois do vento houve um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto; depois do terremoto, um fogo, mas o Senhor não estava no fogo; depois do fogo, o sussurro de uma leve brisa. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com o manto” (1Rs 19,11-13).

Eis como Deus nos fala. E é para essa “brisa suave” – que os exegetas também traduzem também como “voz subtil do silêncio” ou como “um fio de silêncio sonoro” – que devemos preparar os nossos ouvidos, para ouvir essa brisa de Deus.

O caminho da Palavra

A primeira etapa do processo (outubro de 2021 – abril de 2022) é aquela que diz respeito às Igrejas diocesanas individuais. E é por isso que eu estou aqui, como vosso bispo, para compartilhar, porque é muito importante que a Diocese de Roma se empenhe com convicção nesse caminho. Seria “o máximo” se a diocese do papa não se empenhasse nisso, não? Sê-lo-ia também para o Papa e para vocês.

O tema da sinodalidade não é o capítulo de um tratado de eclesiologia, muito menos uma moda, um slogan ou novo termo a ser usado ou instrumentalizado nos nossos encontros. Não! A sinodalidade exprime a natureza da Igreja, a sua forma, o seu estilo, a sua missão.

E, portanto, falamos de Igreja sinodal, evitando, porém, considerar que esse seja um título entre outros, um modo de pensá-la que preveja alternativas. Não digo isso com base numa opinião teológica, nem mesmo como um pensamento pessoal, mas seguindo aquele que podemos considerar como o primeiro e mais importante “manual” de eclesiologia, que é o livro dos Atos dos Apóstolos.

A palavra “sínodo” contém tudo aquilo de que precisamos para entender: “caminhar juntos”. O livro dos Atos é a história de um caminho que parte de Jerusalém e, atravessando a Samaria e a Judeia, prosseguindo nas regiões da Síria e da Ásia Menor e, depois, na Grécia, se conclui em Roma. Essa estrada narra a história em que caminham juntas a Palavra de Deus e as pessoas que voltam a atenção e a fé para e nessa Palavra.

A Palavra de Deus caminha connosco. Todos são protagonistas, ninguém pode ser considerado simples figurante. É preciso entender bem isto: todos são protagonistas. O papa, o cardeal vigário, os bispos auxiliares não são os protagonistas. Não: todos somos protagonistas e ninguém pode ser considerado simples figurante.

Os ministérios, naquela época, ainda eram considerados autênticos serviços. E a autoridade nascia da escuta da voz de Deus e das pessoas – nunca se deve separá-las – que mantinha “em baixo” aqueles que a recebiam. O “baixo” da vida, ao qual era preciso prestar o serviço da caridade e da fé.

Mas essa história não está em movimento apenas pelos lugares geográficos que atravessa. Ela exprime uma inquietação interior contínua: essa é uma palavra-chave, a inquietação interior. Se um cristão não sente essa inquietação interior, se não a vive, alguma coisa lhe falta; e essa inquietação interior nasce precisamente da fé e convida-nos a avaliar o que é melhor fazer, o que deve ser mantido ou mudado. Essa história ensina-nos que ficar parado não pode ser uma boa condição para a Igreja (cf. Evangelii gaudium, n. 23). E o movimento é consequência da docilidade ao Espírito Santo, que é o diretor dessa história em que todos são protagonistas inquietos e nunca parados.

Pedro e Paulo não são apenas duas pessoas cada qual com o seu carácter específico; são visões inseridas em horizontes maiores do que eles, capazes de se repensar em relação ao que acontece, testemunhas de um impulso que os põe em crise – outra expressão para lembrar sempre: pôr em crise –, que os leva a ousar, perguntar, mudar de opinião, errar e aprender com os erros; sobretudo a esperar, apesar das dificuldades.

São discípulos do Espírito Santo, que os faz descobrir a geografia da salvação divina, abrindo portas e janelas, derrubando muros, rompendo correntes, libertando fronteiras. Então, pode ser necessário partir, mudar de caminho, superar convicções que nos prendem e nos impedem de nos mover e de caminhar juntos.

(Continua em ‘Ninguém nasce cristão’)


Eu Sou Porque Nós Somos

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
A BUDAPESTE POR OCASIÃO DA SANTA MISSA CONCLUSIVA
DO 52° CONGRESSO EUCARÍSTICO INTERNACIONAL E À ESLOVÁQUIA
(12-15 DE SETEMBRO DE 2021)

DIVINA LITURGIA BIZANTINA DE SÃO JOÃO CRISÓSTOMO
PRESIDIDA PELO SANTO PADRE

Praça Mestská športová hala (Prešov)
Terça-feira, 14 de setembro de 2021

«Nós – declara São Paulo – pregamos Cristo crucificado (...), poder e sabedoria de Deus». Entretanto o Apóstolo não esconde que a cruz, aos olhos da sabedoria humana, aparece diversa: é «escândalo», «loucura» (1 Cor 1, 23-24). A cruz era instrumento de morte, e contudo dela veio a vida; era algo que ninguém queria contemplar, e todavia revelou-nos a beleza do amor de Deus. Por isso, o santo povo de Deus a venera; e a Liturgia celebra-a na festa de hoje. O Evangelho de São João toma-nos pela mão e ajuda-nos a entrar neste mistério. Na realidade, o evangelista encontrava-se lá junto da cruz. Contempla Jesus, já morto, suspenso no madeiro, e escreve: «Aquele que viu estas coisas é que dá testemunho delas» (Jo 19, 35). São João e dá testemunho.

Em primeiro lugar, temos o ver. Mas, junto da cruz, que viu João? Certamente aquilo que viram os outros: Jesus, inocente e bom, morre brutalmente entre dois malfeitores. Uma de tantas injustiças, um dos inúmeros sacrifícios cruentos que não mudam a história, mais uma prova de que o curso das vicissitudes no mundo não muda: os bons são eliminados, enquanto os malvados vencem e prosperam. Aos olhos do mundo, a cruz é um fracasso. E também nós corremos o risco de nos deter neste primeiro olhar superficial, de não aceitar a lógica da cruz; não aceitar que Deus nos salve, deixando que se desencadeie sobre Ele o mal do mundo. Não aceitar senão em palavras o Deus frágil e crucificado, para depois sonhar com um deus forte e triunfante. É uma grande tentação. Quantas vezes aspiramos a um cristianismo de vencedores, a um cristianismo triunfalista, que tenha relevância e importância, receba glória e honra. Mas um cristianismo sem cruz é mundano, e torna-se estéril.

Ao contrário, São João viu na cruz a obra de Deus. Reconheceu em Cristo crucificado a glória de Deus. Viu que Ele, apesar das aparências, não é um perdedor, mas é Deus que voluntariamente Se oferece por cada homem. Por que motivo o fez? Teria podido poupar a sua vida, teria podido manter-se à distância da nossa história mais miserável e crua. Em vez disso, quis entrar dentro dela, mergulhar nela. Para isso escolheu o caminho mais difícil: a cruz. Para que não houvesse na terra ninguém tão desesperado que não conseguisse encontrá-Lo, até mesmo na angústia, na escuridão, no abandono, no escândalo da sua miséria e dos próprios erros. Até mesmo onde se pensa que Deus não pode estar, Ele chegou. Para salvar quem está desesperado, quis experimentar o desespero, para assumir o nosso desconforto mais amargo, clamou na cruz: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Mt 27, 46; Sal 22, 2). Um grito que salva. Salva, porque Deus assumiu até mesmo o nosso abandono. E agora, com Ele, não mais estamos sozinhos, jamais.

Como podemos aprender a ver a glória na cruz? Alguns santos ensinaram que a cruz é como um livro que, para o conhecer, é preciso abri-lo e ler. Não basta comprar um livro, dar-lhe uma vista de olhos e expô-lo em casa. O mesmo vale para a cruz: está pintada ou esculpida em cada canto das nossas igrejas. Incontáveis são os crucifixos: ao pescoço, em casa, no carro, no bolso. Mas isso de nada nos aproveita, se não nos detivermos a olhar o Crucificado e não Lhe abrirmos o coração, se não nos deixarmos impressionar pelas suas chagas abertas por nós, se o coração não se comover e chorarmos diante de Deus ferido de amor por nós. Se não fizermos assim, a cruz permanece um livro não lido, cujo título e autor são bem conhecidos, mas que não influencia a vida. Não reduzamos a cruz a um objeto de devoção, e menos ainda a um símbolo político, a um sinal de relevância religiosa e social.

Da contemplação do Crucifixo, provém o segundo passo: dar testemunho. Se mergulharmos o olhar em Jesus, o seu rosto começa a refletir-se no nosso: os seus traços tornam-se os nossos, o amor de Cristo conquista-nos e transforma-nos. Penso nos mártires que deram testemunho do amor de Cristo nesta nação em tempos muito difíceis, quando tudo aconselhava a ficar calado, pôr-se a seguro, não professar a fé. Mas não podiam, não podiam deixar de testemunhar. Quantas pessoas generosas sofreram e morreram aqui, na Eslováquia, por causa do nome de Jesus! Um testemunho prestado por amor Àquele que tinham contemplado longamente, até ao ponto de se assemelharem a Ele, inclusive na morte.

Mas penso também nos nossos tempos, em que não faltam ocasiões para dar testemunho. Graças a Deus, aqui não há quem persiga os cristãos como em tantas outras partes do mundo. Mas o testemunho pode ser contaminado pelo mundanismo e a mediocridade; ao passo que a cruz exige um testemunho claro. Pois a cruz não quer ser uma bandeira elevada ao alto, mas a fonte pura duma maneira nova de viver. Qual? A do Evangelho, a das Bem-aventuranças. A testemunha que tem a cruz no coração, e não apenas ao pescoço, não vê ninguém como inimigo, mas vê a todos como irmãos e irmãs por quem Jesus deu a vida. A testemunha da cruz não recorda as injustiças do passado nem se lamenta do presente. A testemunha da cruz não usa as vias do engano e do poder mundano: não quer impor-se a si mesmo e os seus, mas dar a sua vida pelos outros. Não busca o próprio proveito, e logo se mostra piedoso: seria uma religião da duplicidade, não o testemunho do Deus crucificado. A testemunha da cruz segue uma única estratégia que é a do Mestre: o amor humilde. Não espera triunfos aqui na terra, porque sabe que o amor de Cristo é fecundo na vida quotidiana, fazendo novas todas as coisas a partir de dentro, como uma semente caída na terra, que morre e dá fruto.

Queridos irmãos e irmãs, vós vistes testemunhas. Conservai grata memória das pessoas que vos amamentaram e fizeram crescer na fé: pessoas humildes, simples, que deram a vida amando até ao fim. São os nossos heróis, os heróis da vida quotidiana; e são as suas vidas que mudam a história. As testemunhas geram outras testemunhas, porque são dadoras de vida. É assim que a fé se espalha: com a sabedoria da cruz e não com o poder do mundo; com o testemunho e não com as estruturas. E hoje, a partir do silêncio vibrante da cruz, o Senhor pergunta a todos nós, pergunta também a ti, a cada um de vós e a mim: «Queres ser minha testemunha?»

Com João, no Calvário, estava a Santa Mãe de Deus. Ninguém como Ela viu o livro da cruz aberto e o testemunhou como amor humilde. Por sua intercessão, peçamos a graça de converter o olhar do coração ao Crucificado. Então a nossa fé poderá florescer em plenitude, então amadurecerão os frutos do nosso testemunho.


Eu Sou Porque Nós Somos

VIAGEM APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO
A BUDAPESTE POR OCASIÃO DA SANTA MISSA CONCLUSIVA
DO 52° CONGRESSO EUCARÍSTICO INTERNACIONAL
E À ESLOVÁQUIA (12-15 DE SETEMBRO DE 2021)

ENCONTRO ECUMÊNICO

DISCURSO DO PAPA FRANCISCO

Domingo, 12 de setembro de 2021

Queridos membros do Conselho Ecuménico das Igrejas na República Eslovaca,

Saúdo-vos cordialmente e agradeço-vos terdes acolhido o convite para me vir encontrar: eu, peregrino na Eslováquia, vós, hóspedes bem-vindos na Nunciatura! Estou contente por o primeiro encontro ser convosco: constitui um sinal de que a fé cristã é – e quer ser – neste país semente de unidade e fermento de fraternidade. Obrigado, Beatitude, Irmão Rastislav, pela sua presença; obrigado, querido Bispo Ivan, Presidente do Conselho Ecuménico, pelas palavras que me dirigiu, nelas testemunhando o empenho em querer continuar a caminhar juntos para passar do conflito à comunhão.

O caminho das vossas comunidades pôde ser retomado após os anos da perseguição ateia em que a liberdade religiosa esteve impedida ou sujeita a dura prova. Depois, finalmente, aquela chegou. E agora tendes em comum uma parte do caminho, experimentando como é belo, mas ao mesmo tempo difícil, viver a fé em liberdade. De facto, existe a tentação de voltar a ser escravos, não certamente dum regime, mas duma escravidão ainda pior: a interior.

Para isto mesmo, advertia Dostoiévski numa célebre narrativa, O Grande Inquisidor. Jesus voltou à terra e foi preso. O inquisidor dirige-Lhe palavras mordazes: a acusação que Lhe faz é precisamente a de ter dado demasiada importância à liberdade dos homens. Diz-Lhe: «Queres ir pelo mundo e vais de mãos vazias, com uma promessa de liberdade que eles, na sua simplicidade e no seu natural desregramento, não podem sequer compreender e de que têm medo; porque é que nada foi nunca tão insuportável para o homem e para a sociedade humana como a liberdade?» (Os Irmãos Karamázov, Lisboa 2012, p. 258). E insiste, acrescentando que os homens estão dispostos a trocar, de boa vontade, a sua liberdade por uma escravidão mais cómoda – a de sujeitar-se a quem decida por eles –, contanto que tenham pão e segurança. Chega assim ao ponto de censurar Jesus por não ter querido tornar-Se César para dominar a consciência dos homens e estabelecer a paz pela força. Em vez disso, continuou a preferir a liberdade para o homem, enquanto a humanidade reivindica apenas «pão e pouco mais».

Queridos Irmãos, que isto não aconteça connosco! Ajudemo-nos a não cair na armadilha de nos contentarmos com pão e pouco mais. Pois este risco sobrevém quando a situação se normaliza, quando nos estabelecemos e acomodamos desejando levar uma vida tranquila. Assim, o objetivo em vista deixa de ser a liberdade «que temos em Cristo Jesus» (Gal 2, 4), a sua verdade que nos faz livres (cf. Jo 8, 32), e passa a ser a obtenção de espaços e privilégios, que, segundo o Evangelho, são «pão e pouco mais». Daqui, do coração da Europa, perguntemo-nos: Será que nós, cristãos, perdemos um pouco o ardor do anúncio e a profecia do testemunho? É a verdade do Evangelho que nos faz livres, ou então sentimo-nos livres quando alcançamos zonas de conforto que nos permitem gerir a vida e avançar tranquilos sem particulares contratempos? Mais ainda: contentando-nos com pão e segurança, será que não perdemos o ímpeto na busca da unidade que Jesus implorou, uma unidade que certamente requer a liberdade madura de opções fortes, renúncias e sacrifícios, mas é a premissa para que o mundo creia (cf. Jo 17, 21)? Não nos preocupemos apenas com o que possa ser útil às nossas próprias comunidades; a liberdade do irmão e da irmã é também a nossa liberdade, porque, sem a dele e a dela, não será plena a nossa liberdade.

Aqui, a evangelização nasceu de modo fraterno, trazendo impresso o selo dos santos irmãos de Tessalónica, Cirilo e Metódio. Que eles, testemunhas dum cristianismo ainda unido e inflamado pelo ardor do anúncio, nos ajudem a continuar o caminho, cultivando entre nós a comunhão fraterna no nome de Jesus. Caso contrário, como podemos desejar uma Europa que reencontre as suas raízes cristãs, se somos nós os primeiros desarraigados da plena comunhão? Como podemos sonhar com uma Europa livre de ideologias, se não temos a coragem de antepor a liberdade de Jesus às necessidades dos grupos particulares de crentes? É difícil exigir uma Europa mais fecundada pelo Evangelho sem se preocupar com o facto de ainda não estarmos plenamente unidos entre nós no continente e sem cuidarmos uns dos outros. Cálculos de conveniência, razões históricas e laços políticos não podem ser obstáculos irremovíveis no nosso caminho. Que os Santos Cirilo e Metódio, «precursores do ecumenismo» (São João Paulo II, Carta enc. Slavorum Apostoli, 14), nos ajudem a trabalhar pela reconciliação das diferenças no Espírito Santo; por uma unidade que, sem ser uniformidade, se revele sinal e testemunho da liberdade de Cristo, o Senhor que desata as amarras do passado e nos cura dos medos e da timidez.

No seu tempo, Cirilo e Metódio tornaram possível que a Palavra de Deus se encarnasse nestas terras (cf. Jo 1, 14). Gostaria de partilhar convosco duas sugestões nesta perspetiva, conselhos fraternos para a difusão do Evangelho da liberdade e da unidade no tempo atual. O primeiro conselho, a primeira sugestão diz respeito à contemplação. Um traço distintivo dos povos eslavos, que cabe a vós unidos conservar, é a dimensão contemplativa, que ultrapassa as conceptualizações filosóficas e mesmo teológicas a partir duma fé vivida que sabe acolher o mistério. Ajudai-vos mutuamente a cultivar esta tradição espiritual de que a Europa tanto necessita: particularmente tem sede dela o Ocidente eclesial para redescobrir a beleza da adoração de Deus e a importância de não conceber a comunidade de fé primariamente segundo uma eficiência programática e funcional.

O segundo conselho, por sua vez, diz respeito à ação. A unidade não se alcança tanto com os bons propósitos e a adesão a qualquer valor comum, como sobretudo fazendo algo em conjunto por aqueles que mais nos aproximam do Senhor. Quem são? Os pobres, porque neles está presente Jesus (cf. Mt 25, 40). A partilha da caridade abre horizontes mais amplos e ajuda a caminhar mais rápido, superando preconceitos e equívocos. Trata-se de um traço que encontra também genuína aceitação neste país, como demonstra esta estupenda passagem dum poema que se aprende de cor na escola: «Quando uma mão estrangeira bate à nossa porta com sincera confiança: seja quem for, venha de perto ou de longe, chegue de dia ou de noite, aguarda-o sobre a nossa mesa o dom de Deus» (Samo Chalupka, Mor ho!, 1864). Que o dom de Deus esteja presente sobre a mesa de todos, pois, embora ainda não possamos partilhar a mesma Mesa Eucarística, podemos hospedar juntos Jesus, servindo-O nos pobres. Será um sinal mais sugestivo do que muitas palavras, que ajudará a sociedade civil a compreender, especialmente neste período doloroso, que só estando do lado dos mais fracos poderemos sair verdadeiramente todos juntos da pandemia.

Queridos irmãos, agradeço-vos a vossa presença e o vosso caminho: o caráter sereno e acolhedor, típico do povo eslovaco, a tradicional convivência pacífica entre vós, e a vossa colaboração em prol do bem do país são elementos preciosos para o crescimento do Evangelho. Encorajo-vos a prosseguir no caminho ecuménico, tesouro irrenunciável e valioso. Asseguro a vossa recordação nas minhas orações e peço-vos, por favor, que rezeis por mim. Obrigado!


Eu Sou Porque Nós Somos

Pela sua pertinência e concretude, transcrevo aqui a homilia do último Domingo, do padre Amaro Gonçalo, pároco da Senhora da Hora, Matosinhos, e que eu próprio citei na homilia que fiz.

HOMILIA NO XXIII DOMINGO COMUM B 2021

1. Levaram a Jesus um surdo-mudo! Um homem aprisionado no silêncio, uma vida reduzida a metade. É apresentado a Jesus por uma pequena comunidade de pessoas que lhe querem bem. Elas pedem a Jesus para lhe impor a mão. Mas Jesus faz muito mais. Toma-o, provavelmente pela mão, e leva-o consigo, à parte, longe da multidão, exprimindo-lhe assim uma atenção especial; já não é um dos muitos marginalizados anónimos, agora é o preferido, e o Mestre é todo para ele, e começam a comunicar assim, com a atenção, olhos nos olhos, sem palavras. E seguem-se gestos muito corpóreos e ao mesmo tempo muito delicados. Jesus põe o dedo nos ouvidos do surdo: o toque dos dedos, as mãos que falam sem palavras. Jesus entra numa relação corpórea, não etérea ou afastada, mas como um médico capaz e humano, dirige-Se ao que é frágil, toca esses sofrimentos. Depois, com a saliva, toca a sua língua. Olhando para o céu, emana de Jesus um suspiro e diz-lhe «Efatá», isto é, «Abre-te»! E aquele homem, ouvido no seu clamor começou a escutar, silenciado pela sua mudez começou a falar. É todo um Evangelho de contactos, de odores, de sabores (cf. Ermes Ronchi, In Avvenire, 6.9.2018).

2. Esta prática libertadora de Jesus que acolhe os marginalizados e as pessoas com deficiência, esta ação inclusiva de Jesus que comunica de forma sensível, adaptando-se aos seus interlocutores e falando a sua linguagem, esta atitude pastoral de Jesus que promove a inclusão e a participação das pessoas com deficiência abre-nos algumas pistas de ação pastoral para este novo ano pastoral. Destacaremos apenas algumas:

2.1. De facto, não se chega a Jesus sem que alguém abra porta e caminho para Ele. Destaco, por isso, a importância do acolhimento, à porta da Igreja e dentro dela. Precisamos de aprender a não cativar o nosso lugar, mas a dar lugar aos outros, e sobretudo a tornarmo-nos um lugar para os outros. Nestes tempos de pandemia, a prática do acolhimento, à porta da Igreja, habituou-nos a não entrar de rompante, a não nos isolarmos ou apoderarmos rapidamente do nosso lugar na assembleia, a darmos a vez aos outros. É preciso que este acolhimento permaneça e se alargue, de modo que se torne atitude pessoal e pastoral de cada um dos fiéis. Assim, quem quer que atravesse o limiar da porta encontrará sempre um rosto sorridente, uma mão estendida, um guia solícito, um interlocutor atento, capaz de falar a mesma linguagem. Precisamos de pessoas disponíveis para este verdadeiro ministério do acolhimento. Quem terá ouvidos abertos, um sim feliz nos lábios, um coração disponível?

2.2. Este acolhimento precisa de se prolongar para além das celebrações e também ao longo da semana, mantendo abertas as portas das nossas igrejas. Temos constituído o grupo Porta Aberta, que garante a abertura e a vigilância da Igreja, todos os dias. Muitos idosos e reformados deixaram de exercer esse ministério por falta de saúde ou por se sentirem em risco, durante a pandemia. Peço aos reformados, aos idosos, às pessoas com alguma disponibilidade de tempo que integrem este grupo e prestem este serviço tão essencial. Quem poderá dar uma hora ou duas do seu rico tempo, para dar as boas-vindas a quem nos visita e procura?

2.3. Somos também chamados a promover uma prática pastoral inclusiva, que torne acessível a graça de Deus e a participação ativa na vida da comunidade cristã, de todas as pessoas com deficiência: dos surdos e dos mudos, dos mais pequeninos e dos idosos, enfim, de todas as pessoas frágeis. O objetivo não é apenas cuidar delas, mas acompanhá-las e ungi-las de dignidade, através de uma participação ativa na comunidade, para se tornarem sujeitos ativos da pastoral e não apenas destinatários. A este respeito, já criámos uma rampa de acesso à Igreja e aos serviços pastorais, para as pessoas com mobilidade reduzida. Já integrámos na Catequese e em alguns grupos pastorais pessoas com vários tipos de deficiência. Mas precisamos de convidar, de chamar, de integrar ainda mais pessoas com deficiência mental, por exemplo, no Movimento Fé e Luz. Precisamos de retomar o acompanhamento de uma Missa por mês com um tradutor de língua gestual. Precisamos de recorrer ainda mais e melhor às novas tecnologias para fazer chegar mais longe o anúncio do Evangelho e o testemunho da comunidade. Percebemos todos que as pessoas com deficiência revelam bem a nossa deficiência para com elas. Quem está disponível para as incluir, acolher, integrar, acompanhar, envolver e fazer participar na vida da nossa comunidade?

3. Irmãos e irmãs: muito mais haveria e haveremos de propor no âmbito desta ação pastoral de acolhimento, de inclusão e de participação, para que as pessoas com deficiência, os mais pobres, os sós e frágeis, sintam a Igreja como sua casa e se sintam na Igreja como em sua casa. Precisamos de lhes dar vez e voz, de modo que nesta comunidade não haja a divisão entre «eles» e «nós», entre os ricos e os pobres, entre os bem e os mal vestidos, mas haja apenas o «nós», pois a fé em Nosso Senhor Jesus Cristo não deve admitir aceção e distinção de pessoas. Teremos nós consciência da riqueza que representa para a Igreja e para a sociedade aqueles que consideramos os mais frágeis? Com quem contamos e a quem descontamos no serviço do Reino de Deus?

Fique-nos a arder na consciência esta pergunta final da Carta de São Tiago: “Não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que Ele prometeu àqueles que O amam?” (Tg 2,5).


Eu Sou Porque Nós Somos

DISCURSO DO SANTO PADRE FRANCISCO
AOS PARTICIPANTES DA REUNIÃO PROMOVIDA PELA
REDE DE LEGISLADORES CATÓLICOS INTERNACIONAIS

Sala Clementina | Sexta-feira, 27 de agosto de 2021

(Nota: A tradução que aparece no site do Vaticano tem – quase – sempre um som do Brasil, como é o caso, com algumas correções)

"Precisamos não apenas de cidadãos responsáveis, mas também de líderes preparados e animados pelo bem comum”.

Senhoras e senhores!

Estou feliz por me encontrar novamente convosco, parlamentares de diferentes países, neste momento crítico da história: um momento crítico da história. Agradeço ao Cardeal Schönborn e ao Sr. Alting von Geusau pelas suas palavras de saudação e introdução. E me regozijo na presença de Sua Santidade Inácio Aphrem II, Patriarca da Igreja Ortodoxa Síria.

Desde o início da Rede Internacional de Legisladores Católicos, em 2010, vocês têm acompanhado, apoiado e promovido a obra da Santa Sé como testemunha do Evangelho no serviço aos vossos países e à comunidade internacional como um todo. Agradeço o vosso amor à Igreja e a vossa colaboração com a sua missão.

O nosso encontro acontece hoje num momento muito difícil. A pandemia Covid-19 está em alta. Certamente fizemos um progresso significativo na criação e distribuição de vacinas eficazes, mas ainda temos muito trabalho a fazer. Já houve mais de duzentos milhões de casos confirmados e quatro milhões de mortes por esta terrível praga, que também causou tanta ruína económica e social.

O vosso papel como parlamentar é, portanto, mais importante do que nunca. Preparados para servir o bem comum, agora sois chamados a colaborar, com a vossa ação política, na renovação integral das vossas comunidades e da sociedade como um todo. Não só para vencer o vírus, nem para voltar ao status quo antes da pandemia, não, seria uma derrota, mas para enfrentar as raízes que a crise tem revelado e ampliado: pobreza, desigualdade social, desemprego generalizado e a carência de acesso à educação. Irmãos e irmãs, de uma crise não se sai igual: sairemos melhor ou pior. Ninguém pode sair de uma crise sozinho: sairemos juntos ou não conseguiremos sair dela.

Numa época de turbulência política e polarização, parlamentares e políticos em geral nem sempre são tidos em alta estima. Isso não é novo para vocês. No entanto, que vocação maior existe do que servir o bem comum e priorizar o bem-estar de todos, acima do ganho pessoal? Esta deve ser sempre a vossa meta, porque a boa política é indispensável para a fraternidade universal e a paz social (cf. Enc. Todos Irmãos, 176).

Na nossa época, em particular, um dos maiores desafios neste horizonte é a administração da tecnologia para o bem comum. As maravilhas da ciência e tecnologia modernas aumentaram a nossa qualidade de vida. “É justo regozijar-nos com estes avanços e entusiasmar-nos perante as amplas possibilidades que estas inovações contínuas nos abrem, porque a ciência e a tecnologia são um produto maravilhoso da criatividade humana que é uma dádiva de Deus” (Enc. Laudato si', 102). No entanto, deixadas a si mesmas e às forças do mercado sozinhas, sem as devidas orientações dadas pelas assembleias legislativas e outras autoridades públicas pautadas por um sentido de responsabilidade social, essas inovações podem ameaçar a dignidade do ser humano.

Não se trata de travar o progresso tecnológico. No entanto, as ferramentas da política e da regulamentação permitem que os parlamentares protejam a dignidade humana quando ela é ameaçada. Estou a pensar, por exemplo, no flagelo da pornografia infantil, na exploração de dados pessoais, nos ataques a infraestruturas críticas como hospitais, na propagação de falsidades nas redes sociais, e assim por diante. Uma legislação cuidadosa pode e deve orientar a evolução e a aplicação da tecnologia para o bem comum. Encorajo-vos, irmãos e irmãs, portanto, calorosamente a assumir a tarefa de uma reflexão moral séria e profunda sobre os riscos e oportunidades inerentes ao progresso científico e tecnológico, para que a legislação e as normas internacionais que os regem possam incidir sobre promoção do desenvolvimento humano integral e da paz, mais do que o progresso como um fim em si mesmo.

Os parlamentares refletem naturalmente as forças e as fraquezas daqueles que representam, cada um com especificidade para colocar ao serviço do bem de todos. O empenho dos cidadãos, nas várias áreas da participação social, civil e política, é essencial. Todos somos chamados a promover o espírito de solidariedade, partindo das necessidades dos mais fracos e desfavorecidos. No entanto, para curar o mundo, severamente testado pela pandemia, e para construir um futuro mais inclusivo e sustentável, no qual a tecnologia atenda às necessidades humanas e não nos isole uns dos outros, precisamos não apenas de cidadãos responsáveis, mas também de líderes preparados e animados pelo princípio do bem comum.

Caros amigos, o Senhor vos conceda ser fermento de uma regeneração da mente, do coração e do espírito, testemunhas do amor político pelos mais vulneráveis, para que, servindo-os, possais servi-lo em tudo o que fazeis.

Abençoo todos vós, abençoo as vossas famílias e abençoo o vosso trabalho. E você também vos peço: por favor, orem por mim. Obrigado.


Eu Sou Porque Nós Somos

A Fé não é um espetáculo e a missa não é para ouvir e ver!

Consta que um repórter questionou o famoso cineasta benfiquista português Artur Semedo, à entrada de um jogo de futebol, perguntando-lhe se «esperava ver um bom espetáculo». Com a inteligência e destreza de resposta que o caracterizava, o treinador respondeu: «Eu quero é que o Benfica ganhe. Quando quero ver um bom espetáculo vou à ópera!»

Podiam-me fazer a mesma pergunta à entrada de uma eucaristia. Ou de uma forma mais ortodoxa e decente podiam-me perguntar: – «Espera sair consolado, maravilhado, elevado, etc.?» E eu responderia: – «Eu quero sair é interpelado, confrontado, interrogado! Se eu quiser ficar consolado, elevado ou maravilhado vou ver um espetáculo, ou uma obra de arte (como, por exemplo, a Sagração da Primavera, interpretado por uma boa orquestra, ou fazer uma visita ao Louvre, ou ao Museu Britânico.

Basta perceber quantas vezes, ao sairmos do nosso país, estamos em assembleia eucarística e a única coisa que nos interpela e nos aproxima de Deus é um cântico, ou um ato penitencial, porque estamos a celebrar num país onde não percebemos nada da língua, como aconteceu comigo na República Checa. Aí é difícil o confronto da vida com a Palavra de Deus? É difícil fazer memorial do Sacrifício de Cristo na Cruz sem ter a perceção das palavras da Oração Eucarística? Confesso que estar numa eucaristia onde o importante são os gestos, olhando-os sem captar as palavras que os acompanham, sentir o ritmo da música acompanhado por vozes que pronunciam palavras impercetíveis, pode ser interessante uma vez, mas constantemente leva ao vazio espiritual, porque não há conteúdo vivencial no que é celebrado.

As eucaristias que mais me inquietaram e que me inquietam são as que celebrei e celebro em ambiente de exercícios espirituais. Despojadas de aparato litúrgico, resumem-se ao essencial.

As eucaristias que mais me inquietaram e que me inquietam são as que celebrei e celebro em ambiente de exercícios espirituais. Despojadas de aparato litúrgico, resumem-se ao essencial. É verdade que não podem, nem devem ser todas assim. Não é a perfeição do modelo que conta para este caso, mas é o estado de espírito de quem está na capela despojada, depois de um dia, não só de meditação e de contemplação, mas também de forte confronto, luta interior e interpelação por e com Aquele que nos criou para o Amor. Quantas vezes é a Palavra de Deus daquele dia que nos dá resposta? Quantas vezes é a Oração Eucarística IV que nos faz perceber que também fazemos parte da História da Salvação, ou a Oração Eucarística I que nos mostra que a Santidade está ao alcance dos pequenos e imperfeitos filhos de Deus?…

Tantas, tantas outras palavras ditas com simplicidade encontram eco num coração sedento de respostas e ajudas para o ordenar em direção a Deus. Se não celebrássemos em português, na língua em que rezamos intimamente no nosso coração, poderíamos até ter um ambiente quase de ceia de Jesus com apóstolos, numa igreja concebida por Le Corbusier, com decorações interiores de Marko Ivan Rupnik, que correríamos o risco e o perigo de passarmos a estar simplesmente a ver obras de arte belas, ouvir missa, mas nunca a deixar que Deus, através da sua Palavra, inquiete o nosso coração e nos faça participar conscientemente no partir do pão, fazendo memorial do sacrifico de Cristo na Cruz, junto de Sua Mãe e de São João.

P. Miguel Neto | in Ponto SJ | 11 Agosto 2021


Eu Sou Porque Nós Somos

Santificar a comunicação: Onde está o Evangelho nos ataques, murmurações e calúnias entre cristãos?

Um rio de palavras transborda da boca de cada um, para demonstrar que tem razão. Tantas vezes a instintividade ganha asas e, sem fundar as suas razões com o debate, cada qual luta para vencer e enterrar o outro.

Cada ocasião pode tornar-se num campo de batalha, sobretudo quando estamos convictos de que o outro está sempre errado. Somos muito corajosos, com efeito, a relevar os seus aspetos negativos e a ridicularizá-los, para julgar, criticar e condenar o interlocutor, descarregando sobre ele toda a responsabilidade pelos acontecimentos.

O campo neutro desaparece e emerge a vingança, a raiva que provém do ressentimento ou do desafio, para demonstrar que se é o melhor.

Deixámos de ser guardadores do silêncio, que permite a cada pessoa estar com tudo o que é juntamente com o outro sem preconceitos, em atitude de quem sabe que pode aprender uma dimensão desconhecida da narração, não necessariamente em contraposição às próprias ideias.

Já não cuidamos do silêncio que nos permite entrar em contacto com a profundidade de si animada pelo Espírito de Deus, para dele chegar ao mesmo comprimento de onda, para permanecer sempre em relação.

Deixámos de imergir no silêncio que educa para a busca, para aprender, aprender sempre, para não ficarmos bloqueados no que já se fez, antes descobrir novos horizontes que podem tornar possível a mudança.

Quando defendemos as nossas ideologias criamos um muro na comunicação e empobrecemos. A defesa a todo o transe do próprio pensamento impede-nos de nos colocarmos à escuta do outro em vista do bem comum, de fazermos a análise concreta e objetiva da situação e não ter uma visão global da realidade.

A ostentação daquilo que se faz, chegando ao ponto de atribuir a si próprio méritos infundados, e a denigração dos outros conduzem a um recontro contínuo.

Escreve o papa Francisco na “Alegria do Evangelho”: «O todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas. Portanto, não se deve viver demasiado obcecado por questões limitadas e particulares. É preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós» (n. 235).

Se a pessoa apresenta uma identidade esboroada, esta reflete-se na atitude, e portanto sobressai na expressão verbal, comportamentos, etc. Ela tenta desesperadamente unificar num puzzle os seus pensamentos e sentimentos, mas habitualmente exprime-se com uma comunicação que não se mostra linear, fundada, direta, respeitosa, espontânea, simples, coerente, íntima.

A unificação da pessoa, que parte do sentido da sua vida, permite a cada uma estar sempre em relação, ter o outro no coração, medir cada palavra dirigida ao tu frontal para que não fique ferido e com o qual se pode construir um mundo mais humano.

Cada um de nós é chamado a acolher o outro na diversidade, consciente de que desencadear a luta do muro contra o muro só conduz à destruição de ambos, ainda que aparentemente vencedores. Quando não somos guardiães da pessoa real, todos nós perdemos.

Se o sentido da nossa vida é Jesus e o seu Evangelho, terá a sua Palavra passado de moda? Onde colocamos o Evangelho nas nossas disputas, nos ataques frontais, nas murmurações, nas calúnias, nas construções de factos inexistentes que visam destruir o outro, em persistir, inclusive com agressividade, em ideologias pela defesa do indivíduo e não pelo bem real da pessoa?

O que falta para sermos constantemente iluminados pela Palavra do Senhor nos pensamentos, nos sentimentos, nas ações, para levarmos a todo o lado um pouco de ar fresco que fale de acolhimento, de respeito, de silêncio, de escuta, de partilha, de cuidado, de dom, de bem comum, de perdão e de misericórdia?

Provavelmente construímos um Deus à nossa imagem e semelhança que, no quotidiano da nossa vida, exumamos durante os ritos, e que, no dia-a-dia, deixamos na gaveta como um talismã. Talvez tenhamos perdido pelo caminho a relação com o Senhor, tornando a incarnação de Jesus Cristo evanescente: com os factos dizemos que não há tempo para Ele… nem para nós.

É urgente regressar ao contacto real connosco próprios, para cuidar da vida segundo o Espírito e testemunhar Cristo sempre e em todo o lado, com o olhar voltado para os homens e mulheres que encontramos.

Da opção diária de um outro modo de viver, verdadeiramente humano e divino, inicia a credibilidade da presença do Senhor ressuscitado na História, que se revela já na santificação da comunicação e das relações com cada pessoa.

Diana Papa | In SIR |Trad.: Rui Jorge Martins | in SNPC |

Publicado em 03.08.2021


Eu Sou Porque Nós Somos

“Este mistério é grande”:

O ícone de Rupnik para o Encontro Mundial das Famílias

O episódio das bodas de Caná da Galileia está no centro do ícone do 10.º Encontro Mundial das Famílias: ao centro as figuras de Jesus e de Maria, à esquerda o rosto velado dos esposos, enquanto o servo que derrama o vinho tem as feições de S. Paulo, segundo a antiga iconografia cristã; é ele que afasta com a mão o véu e a exclamar, falando do Matrimónio: «Este mistério é grande; digo-o em referência a Cristo e à Igreja» (Efésios 5, 32).

O ícone revela como o amor sacramental entre homem e mulher é um reflexo do amor e da unidade indissolúvel entre Cristo e a Igreja: Jesus derrama o seu sangue por ela. É a imagem-símbolo escolhida para o Encontro programado para Roma, daqui a menos de um ano, de 22 a 26 de junho.

Realizada com cores vinílicas sobre gesso aplicado sobre madeira, é obra do jesuíta Marko Ivan Rupnik, sacerdote artista e teólogo. Predominam os tons quentes, tem um formato de 80x80 cm e intitula-se precisamente “Este mistério é grande”.

«Em Caná – explica o autor –, na transformação da água em vinho, abrem-se os horizontes do sacramento, isto é, da passagem do vinho ao sangue de Cristo. Paulo, com efeito, está a derramar o mesmo sangue que a Esposa recolhe no cálice». Com a esperança – acrescenta - «de que através desta pequena imagem possamos compreender» como «para nós, cristãos, a família» é a expressão do sacramento nupcial; e «isto muda totalmente o seu significado, porque um sacramento implica sempre a transformação».

No Matrimónio cristão, efetivamente, o amor dos esposos torna-se «participante do amor que Cristo tem pela Igreja. Nesse sentido, o Matrimónio tem uma dimensão eclesial e é inseparável da Igreja», assinala, citando Nikolaj Berdjaev, que escreveu como nas tradições cristãs o Matrimónio ainda não foi explorado, porque «com demasiada velocidade coberto com a família, mas segundo a natureza».

Após a oração e o logótipo, o ícone é o terceiro símbolo que é publicado como instrumento pastoral para a preparação e o caminho das famílias rumo ao Encontro de 2022. Os vídeos com as catequeses e as explicações do P. Rupnik, legendados em cinco línguas, estão na página do YouTube da diocese de Roma.

«A interpretação que emerge da imagem inspira-se no grande padre da Igreja siríaca S. Tiago de Sarug, que fala do «véu de Moisés», explica o autor. «Também a família, que por si faz parte de uma existência segundo a natureza como característica dos seres vivos, dos pássaros, dos peixes, dos animais..., em Cristo é transfigurada, porque pelo Espírito Santo é-nos dada a participação no amor de Cristo pela sua Igreja».

De resto, sublinha Rupnik, na imagem «torna-se manifesto que a família se desvincula do sangue como único facto natural para ser transfigurada segundo a união no sangue de Cristo, através do sacramento do Matrimónio, que manifesta o núcleo constitutivo da própria Igreja, como era já evidenciado por João Crisóstomo». Em síntese, «a família é uma realidade eclesial enquanto participação na vida de Cristo, de quem, como diria Nicolau Cabásilas, somos verdadeiramente consanguíneos».

“O amor familiar: Vocação e caminho de santidade” é o tema do Encontro, que será realizado em duas modalidades: o Vaticano será a sede principal, na qual decorrerão o Festival das Famílias, o Congresso Teológico-Pastoral e a missa, com a participação de delegados das conferências episcopais e dos movimentos ligados à pastoral familiar; e nas dioceses, os bispos poderão programar iniciativas análogas, utilizando os símbolos preparados para o Encontro Mundial.

In L'Osservatore Romano |Trad.: Rui Jorge Martins in SNPC | Publicado em 29.07.2021
Imagem de topo: © Marko Ivan Rupnik | 2021


Eu Sou Porque Nós Somos

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
PARA O I DIA MUNDIAL DOS AVÓS E DOS IDOSOS

[4º domingo de julho – 25 de julho de 2021]

«Eu estou contigo todos os dias»

Queridos avôs, queridas avós!

«Eu estou contigo todos os dias» (cf. Mt 28, 20) é a promessa que o Senhor fez aos discípulos antes de subir ao Céu; e hoje repete-a também a ti, querido avô e querida avó. Sim, a ti! «Eu estou contigo todos os dias» são também as palavras que eu, Bispo de Roma e idoso como tu, gostaria de te dirigir por ocasião deste primeiro Dia Mundial dos Avós e dos Idosos: toda a Igreja está solidária contigo – ou melhor, connosco –, preocupa-se contigo, ama-te e não quer deixar-te abandonado.

Bem sei que esta mensagem te chega num tempo difícil: a pandemia foi uma tempestade inesperada e furiosa, uma dura provação que se abateu sobre a vida de cada um, mas, a nós idosos, reservou-nos um tratamento especial, um tratamento mais duro. Muitíssimos de nós adoeceram – e muitos partiram –, viram apagar-se a vida do seu cônjuge ou dos próprios entes queridos, e tantos – demasiados – viram-se forçados à solidão por um tempo muito longo, isolados.

O Senhor conhece cada uma das nossas tribulações deste tempo. Ele está junto de quantos vivem a dolorosa experiência de ter sido afastado; a nossa solidão – agravada pela pandemia – não O deixa indiferente. Segundo uma tradição, também São Joaquim, o avô de Jesus, foi afastado da sua comunidade, porque não tinha filhos; a sua vida – como a de Ana, sua esposa – era considerada inútil. Mas o Senhor enviou-lhe um anjo para o consolar. Estava ele, triste, fora das portas da cidade, quando lhe apareceu um Enviado do Senhor e lhe disse: «Joaquim, Joaquim! O Senhor atendeu a tua oração insistente». Giotto dá a impressão, num fresco famoso, de colocar a cena de noite, uma daquelas inúmeras noites de insónia a que muitos de nós se habituaram, povoadas por lembranças, inquietações e anseios.

Ora, mesmo quando tudo parece escuro, como nestes meses de pandemia, o Senhor continua a enviar anjos para consolar a nossa solidão repetindo-nos: «Eu estou contigo todos os dias». Di-lo a ti, di-lo a mim, a todos. Está aqui o sentido deste Dia Mundial que eu quis celebrado pela primeira vez precisamente neste ano, depois dum longo isolamento e com uma retomada ainda lenta da vida social: oxalá cada avô, cada idoso, cada avó, cada idosa – especialmente quem dentre vós está mais sozinho – receba a visita de um anjo!

Este anjo, algumas vezes, terá o rosto dos nossos netos; outras vezes, dos familiares, dos amigos de longa data ou conhecidos precisamente neste momento difícil. Neste período, aprendemos a entender como são importantes, para cada um de nós, os abraços e as visitas, e muito me entristece o facto de as mesmas não serem ainda possíveis em alguns lugares.

Mas o Senhor envia-nos os seus mensageiros também através da Palavra divina, que Ele nunca deixa faltar na nossa vida. Cada dia, leiamos uma página do Evangelho, rezemos com os Salmos, leiamos os Profetas! Ficaremos comovidos com a fidelidade do Senhor. A Sagrada Escritura ajudar-nos-á também a entender aquilo que o Senhor nos pede hoje na vida. De facto, Ele manda os operários para a sua vinha a todas as horas do dia (cf. Mt 20, 1-16), em cada estação da vida. Eu mesmo posso dar testemunho de que recebi a chamada para me tornar Bispo de Roma quando tinha chegado, por assim dizer, à idade da aposentação e imaginava que já não podia fazer muito de novo. O Senhor está sempre junto de nós – sempre – com novos convites, com novas palavras, com a sua consolação, mas está sempre junto de nós. Como sabeis, o Senhor é eterno e nunca vai para a reforma. Nunca.

No Evangelho de Mateus, Jesus diz aos Apóstolos: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (28, 19-20). Estas palavras são dirigidas também a nós, hoje, e ajudam-nos a entender melhor que a nossa vocação é salvaguardar as raízes, transmitir a fé aos jovens e cuidar dos pequeninos. Atenção! Qual é a nossa vocação hoje, na nossa idade? Salvaguardar as raízes, transmitir a fé aos jovens e cuidar dos pequeninos. Não vos esqueçais disto.

Não importa quantos anos tens, se ainda trabalhas ou não, se ficaste sozinho ou tens uma família, se te tornaste avó ou avô ainda relativamente jovem ou já avançado nos anos, se ainda és autónomo ou precisas de ser assistido, porque não existe uma idade para aposentar-se da tarefa de anunciar o Evangelho, da tarefa de transmitir as tradições aos netos. É preciso pôr-se a caminho e, sobretudo, sair de si mesmo para empreender algo de novo.

Portanto existe uma renovada vocação, também para ti, num momento crucial da história. Perguntar-te-ás: Mas, como é possível? As minhas energias vão-se exaurindo e não creio que possa ainda fazer muito. Como posso começar a comportar-me de maneira diferente, quando o hábito se tornou a regra da minha existência? Como posso dedicar-me a quem é mais pobre, se já tenho tantas preocupações com a minha família? Como posso alongar o meu olhar, se não me é permitido sequer sair da residência onde vivo? Não é um fardo já demasiado pesado a minha solidão? Quantos de vós se interrogam: Não é um fardo já demasiado pesado a minha solidão? O próprio Jesus ouviu Nicodemos dirigir-Lhe uma pergunta deste tipo: «Como pode um homem nascer, sendo velho?» (Jo 3, 4). Isso é possível – responde o Senhor –, abrindo o próprio coração à obra do Espírito Santo, que sopra onde quer. Com a liberdade que tem, o Espírito Santo move-Se por toda a parte e faz aquilo que quer.
(…)

(A Mensagem do papa Francisco continua na secção ‘Ninguém Nasce Cristão)


Eu Sou Porque Nós Somos

Catequese e transmissão da fé:

Ou se torna vida ou é como se não existisse

O crente credível transmite com a sua própria vida a fé, isto é, transmite a vida nova do Espírito que nele age. Mas também os pais transmitem aos filhos, com o seu exemplo, a sua bondade. Contudo, os pais informam também os filhos sobre conhecimentos úteis para viver e para enfrentar as diferentes atividades da existência. Os conhecimentos científicos, humanos, sociais são transmitidos aos filhos, no respeito pelo seu desenvolvimento evolutivo. Para as verdades da fé devia ser o mesmo… Mas não. Porque a vida de Cristo, ainda que possa ser narrada e explicada com as verdades teológicas e espirituais, só pode ser compreendida se é vivida, testemunhada. O Evangelho é a “narrativa” da vida de Cristo, vivo hoje, e torna-se contagioso. «A catequese é uma educação da fé das crianças, dos jovens e dos adultos, que compreende especialmente o ensino da doutrina cristã, ministrado em geral dum modo orgânico e sistemático, em ordem à iniciação na plenitude da vida cristã» (Catecismo da Igreja Católica, 5).

Esta transmissão acontece, portanto, quer mediante a narrativa das verdades da fé, encerradas na Bíblia e em particular na história de Jesus, quer, sobretudo, mediante o testemunho da “nova vida”. Então, como fazer? É o papa Francisco que nos aponta o caminho: «A fé tem necessidade de um âmbito onde se possa testemunhar e comunicar, e que o mesmo seja adequado e proporcionado ao que se comunica. Para transmitir um conteúdo meramente doutrinal, uma ideia, talvez bastasse um livro ou a repetição de uma mensagem oral; mas aquilo que se comunica na Igreja, o que se transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua mente, vontade e afetividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus e com os outros» ("Lumen fidei", 40). Por isso os pais, os educadores, os catequistas devem ter em conta três características: as atitudes pessoais; o conteúdo que se quer transmitir; as pessoas destinatárias (crianças, jovens, adultos) e os modos de transmissão.

As atitudes pessoais

O testemunho de fé em família e os encontros de catequese são vividos por pessoas que entram em relação entre elas. É importante que essa relação seja a mais bela possível, a mais motivadora, em síntese, que possa dar, sobretudo às crianças e aos jovens a sensação de que “é belo estarmos juntos a falar de Jesus”. Mas como é possível? É possível se os jovens se sentirem compreendidos, amados. Para realizar tudo isto, são importantes três atitudes da parte dos adultos e catequistas.

Em primeiro lugar, o descentramento. Acontece quando o educador realiza um verdadeiro descentramento de si para as crianças e os jovens, de maneira a poder compreender a sua personalidade. É preciso meter-se na pele do outro, de modo a poder ver as coisas como ele as vê. Este descentramento deve ser uma atitude constante, não só durante o momento em que se tem ocasião de falar de fé, ou durante o encontro da catequese, mas em todas as circunstâncias em que se vive em conjunto, mesmo quando ocorrem casualmente. Para este efeito, podem ajudar algumas subtilezas da parte do educador, como perguntar-se, quando observa as crianças e jovens: «Porque se comportam assim?». O descentramento ajudará o educador a compreender os tempos de atenção dos filhos ou do grupo de menores, a discernir as capacidades de cada um, e sobretudo a nunca julgar negativamente atitudes que podem parecer como tais. Graças ao descentramento, o encontro com a fé constrói-se em conjuntos, assim como um bom momento de catecismo, e conduz todos a ter paciência e respeito pelos tempos.

Depois, a simplificação. É a capacidade de tornar compreensível o que se diz. É bom ter em conta que nos grupos de crianças e jovens pode haver indivíduos que tenham dificuldades de aprendizagem ou de receção. A grande educadora Maria Montessori concretizou um método de ensino baseado na compreensão de quem manifestava mais dificuldade: partindo desta atenção, todos os outros compreendiam e eram estimulados à relação. Estejamos, todavia, atentos para não pretender que, sobretudo os mais pequenos, sejam capazes de compreender tudo. Isso não é um objetivo imediato, enquanto devemos considerar sempre que no íntimo das crianças e dos jovens está presente o Espírito Santo, que os iluminará sobre o significado da experiência que estão a viver. Os pais, os educadores ou os catequistas devem recordar às crianças e jovens que no seu coração está presente e voz de Jesus que fala.

A seguir, confiar-se a Jesus. Consiste em confiar tudo a Ele. Nunca se deve dar por adquirida a presença de Jesus e a sua ajuda. Porque se é verdade que Jesus deseja ajudar-nos em tudo, e guiar-nos, é igualmente verdade que é sempre necessária a nossa adesão ou o nosso pedido, precisamente por causa do respeito que Ele tem pela nossa liberdade. Esta dimensão é belíssima porque mantém viva a relação entre o educador e Jesus. Jesus quer a nossa santidade, e para que isso aconteça pode estar connosco se nós o convidarmos: «O que pedirdes em meu nome Eu o farei, de modo que, no Filho, se manifeste a glória do Pai» (João 14, 13).

O conteúdo que se quer transmitir

São múltiplos os catecismos publicados com lógicas que têm em consideração o programa litúrgico e o que narrar da vida e da história de Jesus. Podemos recomendar a leitura atenta destes textos (muitas vezes com linguagem, imagens e exemplos adequados à experiência e à capacidade de compreensão das crianças e jovens) também aos pais, que muitas vezes se limitam a comprá-los e a entregá-los ao filho e ao catequista. A sintonia entre as várias “vozes” envolvidas na educação para a fé é particularmente preciosa (sem esquecer que, por vezes, nós, adultos, não temos as ideias claras sobre muitos conteúdos e implicações da nossa própria fé…).

É preciso reconhecer que foram feitos muitos esforços, mediante a utilização das ciências psicopedagógicas, para adequar a linguagem e as imagens ao desenvolvimento das crianças e dos jovens, com enorme benefício em termos de clareza e simplificação. Todavia, é necessário recordar que tudo deve suscitar o desejo (já presente no coração dos jovens) de estar com Jesus, de viver no seu seguimento. É importante fazer a experiência de viver a Palavra do Evangelho, que é palavra de vida e dá sentido à existência.

A transmissão da fé aos filhos e a catequese ou se tornam vida ou não existem. A experiência com crianças até aos sete anos é diferente daquela com jovens e adultos, dado que é vivida, percecionada e realizada de maneira diferente, mas o resultado deve ser sempre o mesmo: a alegria de estar com Jesus.

Ezio Aceti, Psicólogo, especialista em crianças e adolescentes |In Avvenire |Trad.: Rui Jorge Martins | Publicado in SNPC em 13.07.2021


Eu Sou Porque Nós Somos

Planos pastorais há muitos, acertar na prioridade é que tem sido difícil

A mensagem não está isolada de quem a transmite e da sua maneira de viver. Como seria possível transmitir uma palavra que não é vivida por quem a pronuncia? Que autoridade teria uma palavra dita e pregada, mesmo com hábil arte oratória, se não encontrasse coerência de vida em quem a proclama? A autoridade de um profeta – reconhecida a Jesus desde os inícios da sua vida pública – depende da sua coerência entre aquilo que diz e aquilo que vive: só assim é confiável, caso contrário aquele que prega torna-se ele próprio uma pedra de tropeço, um escândalo para o ouvinte. Neste caso, seria melhor ficar calado e demitir-se da missão.

Por estas razões Jesus não se delonga no conteúdo da mensagem a pregar, mas entra sobretudo nos detalhes sobre “como” devem mostrar-se os enviados e os anunciadores. Pobreza, precariedade, mansidão e sobriedade devem ser o estilo do enviado, porque a missão não é conquistar almas, mas ser sinal eloquente do Reino de Deus que vem, entrando numa relação com aqueles que são os primeiros destinatários do Evangelho: pobres, necessitados, descartados, últimos, pecadores…

Para Jesus, o testemunho de vida é mais decisivo que o testemunho da palavra, ainda que não tenhamos ainda compreendido isto. Nos últimos trinta anos falámos e falámos de evangelização, de nova evangelização, de missão – não há encontro eclesial que não trate destes temas –, mas dedicámos pouca atenção ao “como” se vive aquilo que se prega. Estamos sempre empenhados em procurar como se prega, detendo-nos no estilo, na linguagem, em elementos de comunicação (quantos livros, artigos e revistas “pastorais” multiplicados inutilmente), sempre empenhados em procurar novos conteúdos da palavra, mas negligenciámos o testemunho da vida. Os resultados são legíveis, sob a marca da esterilidade.

Atenção, porém: Jesus não dá diretivas para que as reproduzamos tal e qual. Como se comprova pelo facto de que nos Evangelhos sinóticos essas diretivas mudam de acordo com o espaço geográfico, o clima e a cultura em que os missionários se inserem. Nenhum idealismo romântico, nenhum pauperismo lendário, já demasiado aplicado ao “semelhantíssimo a Cristo” Francisco de Assis, mas um estilo que permita olhar não tanto para o anunciador como modelo que deve desfilar e atrair a atenção, mas que aponte para o único Senhor, Jesus.

Trata-se de um estilo que deve exprimir, antes de tudo, descentramento: não dá testemunho do missionário, da sua vida, da sua ação, da sua comunidade, do seu movimento, mas testemunha a gratuidade do Evangelho, a glória de Cristo.

Um estilo que não se fia nos meios que possui, antes os reduz ao mínimo, para que estes, com a sua força, não obscureçam a força da palavra do “Evangelho, poder de Deus».

Um estilo que faz entrever a vontade de despojamento, de uma missão livre de pesos em excesso e bagagens inúteis, que vive da pobreza como capacidade de partilha daquilo que se tem e daquilo que é dado, de maneira que não apareça como acumulação, reserva previdente, segurança.

Um estilo que não confia na própria palavra sedutora, que atrai e causa maravilhamento mas não converte ninguém, porque satisfaz os ouvidos mas não penetra até ao coração.

Um estilo que aceita aquela que talvez seja a maior prova para o missionário: o fracasso. Tanto cansaço, tantos esforços, tanta dedicação, tanta convicção… e no fim, o fracasso. É o que Jesus experimentou na hora da paixão: só, abandonado, sem os discípulos e sem ninguém que cuidasse dele. E se a Palavra de Deus vinda ao mundo conheceu recusa, oposição e fracasso, a palavra do missionário pregador poderia ter um resultado diferente?

Precisamente por estar consciente disto, o enviado sabe que aqui e ali não será aceite, mas rejeitado, assim como noutros lugares poderá ter sucesso. Não há que temer; quando se é rejeitado, dirigimo-nos aos outros, vai-se para outros lugares e sacode-se a pó dos pés para dizer: «Vamos embora, mas não queremos levar sequer o pó que se colou aos nossos pés. Não queremos nada!». E assim se continua a pregar aqui e ali, até aos confins do mundo, fazendo que a Igreja nasça e renasça sempre. E isto acontece se os cristãos souberem viver, e não se sabem apenas anunciar o Evangelho com as palavras…

O que é determinante, hoje mais que nunca, não é um discurso, ainda que bem feito, sobre Deus; não é a construção de uma doutrina requintada e expressa racionalmente; não é um esforçar-se para tornar cristã a cultura, como muitos estão iludidos.
Não, aquilo que é determinante é viver, simplesmente viver com o estilo de Jesus, como Ele viveu: simplesmente ser pessoas como Jesus foi pessoa entre nós, dando confiança e instilando esperança, ajudando os homens e as mulheres a caminhar, a reerguer-se, a curarem os seus males, pedindo a todos que compreendam que só o amor salva e que a morte deixou de ser a última palavra.

Foi assim que Jesus tirava terreno ao demónio e fazia reinar Deus sobre homens e mulheres que, graças a Ele, conheciam a extraordinária força do recomeçar, do viver, do esperar, do amar…

O envio em missão da parte de Jesus não cria militantes nem propagandistas, mas forja testemunhas do Evangelho, homens e mulheres capazes de fazer reinar o Evangelho sobre eles próprios, ao ponto de serem presença e narração daquele que os enviou. Num escrito cristão das origens, a “Didaché”, lê-se: «O enviado do Senhor não é tanto aquele que diz palavras inspiradas, mas aquele que tem os modos do Senhor».

Nós, cristãos, deveríamos interrogar-nos sempre: vivemos o Evangelho ou proclamamo-lo com palavras sem nos darmos conta da nossa esquizofrenia entre palavra e vida? A vida cristã é uma vida humana conforme à vida de Jesus, não em primeiro lugar uma doutrina, uma ideia, uma espiritualidade terapêutica, uma religião que tem por objetivo o cuidado do próprio eu.

Enzo Bianchi| In Altrimenti |Trad.: Rui Jorge Martins | In SNPC | Publicado em 09.07.2021


Eu Sou Porque Nós Somos

SEXTA-FEIRA, 9 DE JULHO DE 2021 ÀS 21:30

Apresentação do Plano Pastoral 2021/2022

JUNTOS, SINODAIS E A CAMINHO.

Ao apresentar o novo Plano Pastoral iniciado em 2019/20, escrevia: “A nossa Diocese do Porto colocou as suas energias pastorais, ao longo de quatro anos, numa renovada proclamação da “alegria do Evangelho” aos «de fora» e a quantos não têm consciência da sua inserção em Cristo. […] Agora, sem jamais perder de vista essa dinâmica missionária, pareceu conveniente cuidarmos das próprias raízes da fé e da vida cristã dos «de dentro», pois, como refere o Papa Francisco, “o mandato missionário do Senhor inclui o apelo ao crescimento da fé [e] o primeiro anúncio deve desencadear um caminho de formação e de amadurecimento” (EG 160)”.

Formulou-se, então, um projeto trienal para ajudar os cristãos do Porto a redescobrirem os fundamentos da sua fé no mistério de um Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo e dos correspondentes sacramentos que estão na base da condição cristã: Batismo, Eucaristia e Confirmação. Não para estabelecer mais normas ou regulamentos a respeito de qualquer um deles. Mas para ajudar todos os batizados ou catecúmenos a descobrir “a grandeza da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de dar frutos na caridade para a vida do mundo”, como tão sabiamente refere o Concílio Vaticano II (Optatam totius, 16). Usámos uma alegoria bíblica: vivemos e alimentamo-nos da seiva fértil que é Jesus Cristo, “como os ramos na videira”.

Esse projeto e esse imaginário em nada se alteram. Porém, entretanto, surgiram novas realidades.

Eis as três que caracterizarão (positivamente) toda a vida pastoral nos tempos próximos: a necessidade de reconfigurar a comunidade eclesial, posta à prova pela pandemia; a urgência de envolver toda a Igreja, em família e com as famílias, na preparação da Jornada Mundial da Juventude (JMJ) Lisboa 2023, evento muito mais abrangente do que a simples faixa etária dos destinatários diretos; a valorização imprescindível da «sinodalidade», atitude ou forma de “ser Igreja” que há de caracterizar este terceiro milénio.

Ao inserir tudo isto no novo Plano, não se corta com o programado, não se rejeita nada do previsto. Apenas se dilata no tempo o que não «cabia» em três anos e se sublinham temáticas com cujo confronto mais se ressaltam os tais crescimento na fé, formação e amadurecimento, a que se referia o Papa. É que a iniciação cristã não consiste na formulação de um conjunto de «boas disposições» para a celebração dos sacramentos, mas no estilo de vida e atitudes que nascem deles. O que reclama um itinerário que valorize o caminho de cada pessoa e a sua pertença à comunidade cristã. Mesmo para os que já receberam esses sacramentos há muito tempo.

É quanto motiva e dá forma a este Plano. Creio-o bem fundamentado, bastante concreto e muito adaptado à graça e aos desafios deste tempo.

Reclama, porém, agentes pastorais disponíveis para se deixarem conduzir pelo sopro do Espírito, que nos pede olhos bem abertos para a observação da realidade do mundo e da Igreja, ouvidos sensíveis para a escuta dos apelos ou dos silêncios das pessoas, pernas para uma saída missionária em direção aos irmãos crentes ou deserdados da fé, braços abertos para o acolhimento sem classificações, enfim, coração jubiloso que sacie de alegria o daqueles que anseiam por um efetivo encontro amoroso com Jesus Cristo.

Foi precisamente isto que fez a Santíssima Virgem Maria, de acordo com o texto evangélico que vai acompanhar este Plano: viu o sonho de Deus, escutou o seu apelo/convite, levantou-se, partiu apressadamente, abriu os braços para saudar Isabel e gerou nela, em João e em Zacarias «saltos» de júbilo a partir das próprias entranhas.

A Ela, Padroeira da nossa Diocese, confio este Plano Pastoral.

Porto, 19 de junho de 2021

+ Manuel, Bispo do Porto


Eu Sou Porque Nós Somos

Igreja ou seita?

O teólogo e sociólogo Ernst Troeltsch (1865-1923) distingue sociologicamente “igreja” e “seita”. A primeira vive em harmonia com a sociedade que a acolhe e propõe-se, pelo menos tendencialmente, a acolhê-la no seu interior; para esse propósito é suficientemente elástica quanto a exigências e preceitos, conhece no seu interior um núcleo comprometido, em torno ao qual se colocam vários círculos concêntricos, com um nível decrescente de envolvimento.

A “seita”, pelo contrário, segundo a teoria do protestante alemão, que convive com outras definições do termo, apresenta-se em dialética com o ambiente social, exige dos seus membros uma opção consciente e um nível de compromisso suficientemente (ou muito) elevado. Neste contexto, a palavra “seita” não tem uma valência negativa, descreve simplesmente uma forma de agregação religiosa.

Pode acontecer, e é um caso historicamente frequente no protestantismo, que uma “seita”, nascida como contestação ao conformismo da “igreja”, adote, depois, por razões de estatística e dinâmicas sociais, o modelo que originariamente tinha criticado.

O catolicismo e o protestantismo (luterano e reformado) da Europa Central pensaram-se evidentemente como “igrejas” no sentido de Troeltsch e, enquanto tais, influenciaram profundamente as respetivas sociedades.

Nas últimas décadas, estas experimentam, todavia, uma aceleração dramática de um processo erosivo que tem origens longínquas, mas que chega hoje a ameaçar a própria existência das Igrejas: a diminuição dos membros surge, em algumas situações, como vertiginosa.

As razões fundamentais são duas: as filhas e os filhos de famílias cristãs distanciam-se cada vez com maior frequência da fé dos seus pais; muitos jovens adultos (especialmente entre os 25 e os 45 anos) abandonam a Igreja.

Os abandonos, segundo os inquéritos, não são habitualmente consequência de crises violentas ou inesperadas: trata-se de pessoas que pertencem às faixas mais externas e menos militantes das comunidades e que, a determinado ponto, decidem cortar um laço que até então era definido como formal.

O fenómeno é particularmente claro e facilmente mensurável nos países onde a pertença religiosa é formalizada também por motivos fiscais. Obviamente, a taxa de abandonos é tanto mais elevada quanto mais ampla é a faixa “periférica” dos membros. Utilizando as categorias de Troeltsch, poderíamos exprimir-nos assim: na atual sociedade contemporânea o modelo “igreja” está a diminuir cada vez mais; se, no passado, um baixo nível de participação na vida comunitária podia garantir à comunidade de fé um amplo consenso, hoje é o pressuposto para a sua erosão.

A consequência pastoral é simples: no futuro imediato, as Igrejas europeias só podem esperar sobreviver se se tornarem um pouco mais “sectárias”, ou sejam cultivando um núcleo de pessoas comprometidas o menos reduzido possível.

A “evangelização”, para usar um termo que nas Igreja mobiliza paixões tão vivas quanto inconclusivas, não diz respeito em primeiro lugar aos atuais “pagãos”, mas àqueles que no presente se colocam ainda na Igreja, dela compreendem pelo menos em parte os códices simbólicos e não os recusam como linha de princípio, ainda que se mantenham a uma distância prudente no núcleo central das comunidades e das suas práticas.

Este grupo, percentualmente amplo quer no catolicismo quer no protestantismo clássico, está exposto à possibilidade de afastar-se lentamente, mas inexoravelmente (por exemplo, reduzindo a presença no culto, o apoio financeiro à Igreja, a aptidão religiosa de base), até sair, de facto ou de direito, da comunidade; ou pode ser recuperado, através de uma pastoral específica.

A contração numérica das igrejas não cessará, mas a consolidação favorece a presença social da comunidade de fé na sociedade pós-cristã.

Há um pequeno pressuposto: as Igrejas cristãs tradicionais devem deixar de pensar-se como Igrejas de povo: em teoria, basta olhar para os números, mas as resistências psicológicas são fortíssimas. Existem até comunidades numericamente semelhantes a microsseitas que, no entanto, se compreendem como Igrejas de massa. O futuro do cristianismo depende também da capacidade de reconhecer a evidência.

Fulvio Ferrario | In SNPC | Trad.: Rui Jorge Martins | Publicado em 25.06.2021


Eu Sou Porque Nós Somos

«Amoris Laetitia»: A atenção especial às famílias «em crise conjugal ou outras dificuldades» é uma das conclusões do fórum internacional

Cardeal Kevin Farrell destacou importância de «olhar às crianças, aos deficientes, aos idosos»

Cidade do Vaticano, 15 jun 2021 (Ecclesia)

O responsável pelo Dicastério para os Leigos, Família e Vida (Santa Sé) apresentou as conclusões do Fórum ‘Amoris Laetitia’, que decorreu online, destacando a necessidade de “atenção especial” às famílias em crise conjugal e outras dificuldades.

“O cuidado pastoral com aqueles que estão separados, divorciados ou abandonados, com particular olhar às crianças, aos deficientes, aos idosos”, destacou o cardeal Kevin Farrell.

O membro da Cúria Romana explicou que deve ser dada “uma atenção especial” às famílias “em crise conjugal ou com outras dificuldades”.

Segundo o responsável católico, a formação de pessoas que vão acompanhar os casais na preparação para o matrimónio “deve ser uma prioridade”, e indicou também a “necessidade” de uma formação mais adequada para sacerdotes, diáconos, religiosos, catequistas e outros agentes pastorais e insistiu na presença de leigos nos cursos de formação.

O Dicastério para os Leigos, Família e Vida da Santa Sé dinamizou até sábado um fórum internacional online que debateu a aplicação da ‘Amoris Laetitia’, cinco anos após a publicação da exortação do Papa sobre a família, com responsáveis de 70 Conferências Episcopais e mais de 30 associações e movimentos internacionais.

Nas conclusões, divulgadas pelo portal ‘Vatican News’, D. Kevin Farrell assinalou também que é preciso chegar às famílias que “estão longe da Igreja”, a pastoral familiar deve ser fundamentalmente missionária, “para alcançar as pessoas onde elas estão”.

“A principal contribuição à pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que é a família das famílias, onde pequenas comunidades, movimentos eclesiais e associações vivem em harmonia”, salientou o cardeal norte-americano.

O Papa afirmou que a Igreja Católica precisa de investir mais no acompanhamento das famílias “feridas” e na preparação para o matrimónio, numa mensagem ao fórum internacional que contou com a participação de Francisco e Isabel Pombas, o casal responsável pelo Departamento Nacional da Pastoral Familiar (DNPF) da Conferência Episcopal Portuguesa.

No Fórum ‘Amoris Laetitia’, o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida incentivou também à preparação do I Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, que vai ser celebrado no próximo dia 25 de julho, e sugere uma Missa dedicada aos avós e aos idosos, que os bispos celebrem na catedral ou num lugar significativo e que cada paróquia dedique pelo menos uma das liturgias a esta data.

O responsável pelo departamento dos idosos deste organismo, Vittorio Scelzo, explicou que este dia quer ser “o encontro entre avós e netos e entre jovens e idosos”.

“Considerando que em várias áreas geográficas do mundo em julho a pandemia vai impedir a participação dos idosos, pedimos aos jovens para visitá-los ou realizar o encontro em modo social ou via internet”, acrescentou, informa o portal ‘Vatican News’.

A Igreja Católica está a celebrar o ‘Ano Amoris Laetitia’, que começou na solenidade de São José (19.03.2021) e decorre até à celebração do X Encontro Mundial das Famílias, em Roma (26.06.2022).

O ano especial foi convocado pelo Papa Francisco que publicou a 8 de abril de 2016 a sua exortação apostólica sobre a Família, ‘Amoris laetitia’ (A Alegria do Amor), uma reflexão que recolhe as propostas de duas assembleias do Sínodo dos Bispos (2014 e 2015) e dos inquéritos aos católicos de todo o mundo.

CB/OC


Eu Sou Porque Nós Somos

Nota: Este é um texto publicado pelo padre Amaro Gonçalo, pároco da Senhora da Hora, Matosinhos, a propósito das ‘músicas’ na celebração do sacramento do Matrimónio. Repito: Celebração do sacramento do Matrimónio. Não se trata de uma qualquer cerimónia, à medida dos noivos, mas da celebração da fé, em comunhão com a Igreja. Trata-se, sempre e em primeiro lugar, de cantar a Fé, a vocação ao amor e a missão confiada aos que ‘casam em Cristo’…

A praga dos reportórios musicais para casamentos!

Ainda mal começou «a temporada» dos casamentos e nem o vírus eliminou a praga das propostas musicais para casamento, que parecem um cocktail de serviço à la carte. Em vez da citação das obras musicais, temos os link's do Youtube, onde não faltam imagens vistosas de casamentos de notáveis em Igrejas famosas e a acostumada parolice sentimental.

Boas vozes, boa gente, boa vontade, mas quê... a Liturgia fica na gaveta!

Enquanto elemento litúrgico, a música deve corresponder ao sentido do mistério celebrado e conduzir os fiéis a participar nele, quer interior quer exteriormente.

Neste sentido, não são admissíveis aqueles cânticos que, pela música ou pelo texto, se afastam da linguagem própria da liturgia e desviem ou distraiam os fiéis do mistério celebrado.

O seu carácter sagrado e a sua adequação à Liturgia do Matrimónio são critérios fundamentais, acima dos gostos e das preferências dos noivos e/ou dos grupos que se apresentam para cantar ou tocar.

Enquanto elemento litúrgico, o canto deve integrar-se na forma própria da celebração; consequentemente, tudo – no texto, na melodia, na execução – deve corresponder ao sentido do mistério celebrado, às várias partes do rito e aos diferentes tempos litúrgicos.

Pois bem. É o que se sabe. Músicas de embalar, aleluias que demoram mais que o Evangelho, letras sofríveis, traduções péssimas.

De réplica em réplica, de cópia em cópia, de imitação em imitação, a coisa torna-se "viral" e a dada altura é o que está na moda. E não há volta a dar.

Ainda assim, cá estamos nós para procurar educar. Primeiro os noivos, que às vezes mandam de véspera o programa. Depois os coralistas e instrumentistas, se a presunção de alguns "artistas" não lhes desafinasse o ouvido para a aprendizagem de coisas básicas da música e da liturgia.

Mas enfim a temporada só agora está a começar. Ontem e hoje já gastei mais tempo a responder paciente e "pedagogicamente" aos emails do que o tempo da celebração serena do casamento.

Já adivinho as respostas, as reações e até o argumento de que o programa já foi executado em casamento oficiado por alta patente da hierarquia.

Pois é, todos engolimos sapos vivos. Até o estômago os repelir, por não poder mais.

Mas obviamente que ainda há, nesta área, quem perceba do assunto e dê um belo contributo à celebração.


Eu Sou Porque Nós Somos

O Cristianismo, a fé cristã, é a mais corporal das religiões. Em nenhuma outra Deus Se fez carne como Se fez em Cristo. Mas nós espiritualizamos e tornamos abstracta a nossa fé reduzindo-a tantas vezes a umas ideias ou opiniões mais do que vagas… Mas não devia ser assim. É importante que saibamos ‘tirar as consequências’ desse incrível mistério da Encarnação. Umas breves palavras retiradas de um texto mais longo.

“Deus fez-Se ‘carne’ para que todos nós sejamos um corpo.

Nesta linha, a novidade do cristianismo está na afirmação do ‘corpo de Cristo’. A união dos cristãos não é uma unidade espiritualista, feita só de pensamentos e orações, mas de tipo corporal. De acordo com isso, cada um de nós vivemos e somos nos outros. Não há cristianismo solitário. Uma carne que se fecha em si mesma e não se abre ao amor (em comunhão de vida) aos outros não é carne cristã, nem é princípio de ressurreição.

Sendo assim, a verdade do messianismo cristão expressa-se na ‘unidade corporal’ dos crentes, uma forma de unidade que se expressa e realiza, de modo especial, através da comida partilhada, através do pão que assim aparece como autêntico ‘corpo’ de Cristo, em todas as tradições eucarísticas (Mc 14,22; Mt 26,26; 1Cor 1,24 e Lc 22, 19). O sinal de Jesus é o pão partilhado, não o alimento das purificações e dos ázimos rituais (que os bons judeus comem separados), mas o pão de cada dia, que é o mesmo que Jesus comia com os pecadores e as pessoas do povo. Jesus não veio criar uma sociedade abstracta. Pelo contrário, Ele vem apresentar-Se como corpo, isto é, como vida aberta, sentida e partilhada. Por isso, o evangelho situa-nos no nível da corporalidade próxima que a mulher do vaso de alabastro (Mc 14, 3-9) tinha expressado na forma de perfume e que Jesus oferece como pão (comida). Sem comunhão pessoal (de corpo e sangue) não há eucaristia.”

(in El Blog de Xavier Pikaza)


Eu Sou Porque Nós Somos

Vale a pena deixar ecoar ainda nos corações a ‘terramoto’ do Pentecstes, conclusão do Tempo Pascal e ponto de partida para a Missão…

MENSAGEM EM VÍDEO DO PAPA FRANCISCO

Esta gravação é feita em Roma, mas será tornada pública da Igreja Anglicana de Cristo, Christ Church, em Jerusalém, onde estão reunidos crentes de diferentes tradições cristãs.
(…)
Esta é uma noite muito especial e desejo partilhar convosco o que está no meu coração, pensando em Jerusalém, a cidade santa para os filhos de Abraão. Penso no cenáculo, o upper room, onde o enviado do Pai, o Espírito Santo que Jesus promete após a sua ressurreição, desce com poder sobre Maria e os discípulos, transformando para sempre a vida deles e toda a história.
Penso na Igreja de São Tiago, a Igreja matriz, a primeira Igreja, a Igreja dos crentes em Jesus, o Messias, todos eles judeus. A Igreja de São Tiago, que nunca desapareceu da história, está viva hoje. Penso na manhã do dia seguinte. Os Atos dos Apóstolos dizem-nos que judeus piedosos de todas as nações debaixo do céu viviam em Jerusalém, e eles “ficaram assombrados” ao “ouvir aqueles galileus falar cada qual na própria língua”.
E, mais adiante, descreve a comunidade daqueles que acreditavam em Jesus: “ninguém passava necessidade pois punham tudo em comum”. E o povo dizia deles: vede como se amam. O amor fraterno identifica-os. E a presença do Espírito torna-os compreensíveis. Esta noite, mais do que nunca, ressoa em mim: “vede como se amam”. Como é triste quando se diz dos cristãos: “vede como discutem”.
Pode o mundo de hoje dizer dos cristãos: “vede como se amam” ou podem realmente dizer: “vede como se odeiam” ou “vede como lutam”? O que nos aconteceu? Pecámos contra Deus e contra os nossos irmãos. Estamos divididos, quebrámos em mil pedaços o que Deus fez com tanto amor, compaixão e ternura. Todos nós, todos nós, precisamos de pedir perdão, ao Pai de todos, e também precisamos de nos perdoar a nós mesmos.
Se a unidade cristã no amor recíproco foi sempre necessária, hoje é urgente como nunca. Vejamos o mundo: a peste, o efeito não só de um vírus mas também do egoísmo e da ganância que faz com que os pobres sejam cada vez mais pobres e os ricos, mais ricos. A natureza está a atingir o limite das suas possibilidades devido à ação predatória do homem. Sim, o homem a quem Deus confiou o cuidado e a fecundidade da terra.
Irmãos e irmãs, esta noite pode ser uma profecia, pode ser o início do testemunho que nós cristãos, juntos, temos de dar ao mundo: sermos testemunhas do amor de Deus, derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado. O amor a que nós, crentes em Jesus, fomos chamados. Pois esta noite milhares de cristãos juntos, de todas as partes da terra, elevamos a mesma oração: Vem, Espírito Santo! Vem, Espírito de amor, renova a face da terra e o meu coração!
Esta noite, exorto-vos a sair pelo mundo e a tornar real o testemunho da primeira comunidade cristã: “Vede como se amam”. Saí juntos para contagiar o mundo! Deixemo-nos renovar pelo Espírito Santo para que possamos renovar o mundo. Deus é fiel, Ele nunca falta às suas promessas, e por esta razão, porque Deus é fiel, gostaria de recordar hoje, de Jerusalém, aquela profecia do grande profeta de Israel: «No fim dos tempos acontecerá que o monte da casa do Senhor estará colocado à frente das montanhas, e dominará as colinas. Para lá acorrerão todas as gentes, e os povos virão em multidão: “Vinde” — dirão eles — “subamos à montanha do Senhor, à casa do Deus de Jacob: Ele ensinar-nos-á os seus caminhos, e nós trilharemos as suas veredas”. Porque de Sião deve sair a Lei, e de Jerusalém, a palavra do Senhor. Ele será o juiz das nações, o governador de muitos povos. Das suas espadas forjarão relhas de arados, e das suas lanças, foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se exercitarão mais para a guerra» (Is 2, 2-4). Que assim seja.


Eu Sou Porque Nós Somos

O Papa revoluciona o Sínodo dos Bispos, alargando a participação a todos os católicos

A primeira fase do Sínodo, que decorre em cada diocese do mundo, arranca já em 9 e 10 de outubro, sendo a sessão solene inaugural presidida pelo próprio Papa em Roma e por cada bispo na respetiva diocese.
O Papa decidiu operar uma reviravolta no modo de preparar o próximo Sínodo dos Bispos: subordinado ao tema “Por uma Igreja Sinodal: comunhão, participação e missão”, Francisco quer que o processo para chegar lá seja ele próprio sinodal, ouvindo todos os cristãos, nos diferentes níveis de responsabilidade.
O anúncio foi feito esta sexta-feira, 21, em comunicado do Vaticano, confirmando aquilo que o 7MARGENS noticiou estar a ser ponderado: adiar o próximo Sínodo para outubro de 2023, ainda sem datas precisas definidas. Ou seja, escassos dois meses depois de outro grande acontecimento, neste caso tendo por palco Portugal: as Jornadas Mundiais da Juventude.
A surpreendente reviravolta operada pelo Papa é, na verdade, simultaneamente uma antecipação e um adiamento, dado que ele começa já em outubro próximo e chega à fase final um ano depois do previsto. Isto para converter o Sínodo não apenas num evento, mas num processo em que todos os membros da Igreja serão chamados a participar.
Nas três fases em que o processo sinodal se desenvolverá, a primeira, que decorre em cada diocese do mundo, arranca já em 9 e 10 de outubro próximo, sendo a sessão solene inaugural presidida pelo próprio Papa em Roma e por cada bispo na respetiva diocese.
Segundo o Vaticano, neste primeiro nível, serão realizadas reuniões de consulta com os católicos locais e, em seguida, acontecerá um encontro diocesano “pré-sinodal” do qual deve sair um documento. A conferência episcopal de cada país, tendo em mãos os contributos diocesanos, deverá criar um espaço e um tempo “de discernimento” e elaborará, até abril de 2022, um documento próprio que será submetido ao secretariado do Vaticano para o Sínodo dos Bispos. É desses textos que nascerá, até setembro de 2022, o instrumentum laboris (documento de trabalho) do Sínodo. Ou seja, um documento que era habitualmente cozinhado em Roma para guiar a preparação nas igrejas locais passa, doravante, a nascer de um processo que vem da base.

Esta é a primeira vez que um Sínodo começa a partir da base
Comentando este primeiro movimento do processo, escreve o Vatican News: “Esta é a primeira vez, na história desta instituição querida por Paulo VI em resposta ao desejo dos padres conciliares de manter viva a experiência colegial do Concílio Vaticano II, que um Sínodo começa descentralizado”.
A segunda fase do novo processo desenrolar-se-á ao nível de cada continente. Pelo que se percebe do comunicado vaticano, apenas os bispos representantes dos respetivos países se encontrarão para elaborar documentos que farão chegar a Roma. Esses textos serão usados para criar uma segunda versão do instrumentum , o qual deverá circular a partir de junho de 2023.
Comentando esta fase, o National Catholic Reporter sublinha que “não ficou imediatamente claro como é que as assembleias continentais serão organizadas”, já que “enquanto muitos continentes, como Europa, Ásia e América Central e do Sul, já têm conferências ou federações de prelados católicos, outros, como a América do Norte, não têm”.
A terceira fase será a reunião de bispos e de outros líderes católicos em Roma, a qual terá, necessariamente, de assumir características diferenciadas do que tem sido a prática habitual, na medida em que o longo processo de participação e de discernimento já terá feito emergir preocupações, desafios e linhas de rumo que não poderão deixar de ter expressão nos trabalhos das sessões sinodais desta terceira etapa.
Este processo deixa um desafio de monta às igrejas locais, seja no interior de cada diocese, seja em cada país e continente. E outubro está já aí, ao dobrar da esquina.

“O que diz respeito a todos deve ser aprovado por todos”
“Devemos ouvir o povo de Deus, e isso significa ir às igrejas locais”, sublinhou o cardeal Mario Grech, secretário do Sínodo dos Bispos do Vaticano, no vídeo divulgado pelo Vatican News.
O cardeal Mario Grech, secretário do Sínodo dos Bispos do Vaticano, comentou ao Vatican News que este formato em três etapas foi escolhido porque “o tempo estava maduro para uma participação mais ampla do povo de Deus num processo de tomada de decisão que afeta toda a Igreja e todos na Igreja” .
“O Concílio Vaticano II ensina que o povo de Deus participa do ofício profético de Cristo”, disse Grech. “Portanto, devemos ouvir o povo de Deus, e isso significa ir às igrejas locais.” E continuou: “O princípio que governa esta consulta ao povo de Deus é que ‘aquilo que diz respeito a todos deve ser aprovado por todos'”.
“Não se trata de democracia, populismo ou qualquer coisa assim”, disse ele. “Em vez disso, é a igreja como povo de Deus, um povo que, em virtude do batismo, é um sujeito ativo na vida e na missão da igreja.”

Manuel Pinto | 22 Mai 21| in 7 Margens


Eu Sou Porque Nós Somos

Para não esquecer algumas das ideias fundamentais deixadas em Fátima, no dia 13 de Maio, aqui fica uma notícia da Agência Ecclesia.

13 de maio: D. José Tolentino Mendonça defende «novo começo» para a humanidade pós-pandemia

Fátima, 13 mai 2021 (Ecclesia) – O cardeal português D. José Tolentino Mendonça disse hoje em Fátima que o mundo precisa de um “novo começo”, no pós-pandemia, para transformar “a crise em oportunidade” e “a calamidade em esperança”.
“O amor é o mais verdadeiro, o mais profético, o mais necessário desconfinamento”, referiu o presidente da peregrinação internacional do 13 de maio, na homilia da Missa que reuniu 7500 peregrinos no recinto de oração da Cova da Iria.
Sublinhando as restrições ainda impostas pela pandemia, o cardeal Tolentino Mendonça referiu que a fé transforma a experiência da crise em “ocasião para relançar a vida”.
“Olhando para a cruz poderíamos pensar que Jesus estava brutalmente confinado. E estava. Mas o verdadeiro desconfinamento é aquele que o amor opera em nós”, indicou.
O colaborador do Papa evocou a experiência de sofrimento de Jesus, que “ensina a transformar as crises em laboratórios de esperança”.
D. José Tolentino Mendonça defendeu a necessidade de um “relançamento espiritual” para o pós-pandemia, que ultrapasse a “expressão material da vida”.
Sem dúvida que é urgente garantir o pão e esse trabalho exigente – fundamentalmente de reconstrução económica – deve unir e mobilizar as nossas sociedades. Mas as nossas sociedades precisam também de um relançamento espiritual. Sem o pão não vivemos, mas não vivemos só de pão”.
O cardeal e poeta português considerou que o mundo enfrenta “um imenso desafio a renascer”, por causa da crise provocada pela Covid-19.
“Não basta voltarmos exatamente ao que éramos antes: é preciso que nos tornemos melhores. É preciso um suplemento de alma. É preciso que desconfinemos o nosso coração”, sustentou.
O arquivista e bibliotecário da Santa Sé convidou todos a um “balanço interior” sobre estilos de vida e modelos de desenvolvimento, transformando-os para gerar “uma verdadeira e criativa hospitalidade da vida”.
“Não tenhamos dúvidas: a reconstrução pós-pandemia depende do modo como encararmos a fraternidade”, assinalou, citando o pensamento do Papa Francisco.
D. José Tolentino Mendonça falou em particular aos jovens portugueses que se preparam para acolher, no verão de 2023, a Jornada Mundial da Juventude, pedindo que “em vez de ter medo, tenham sonhos”.
“O mundo fatigado por esta travessia pandémica que ainda dura, e que pede a cada um de nós vigilância e responsabilidade, não tem apenas fome e sede de normalidade: precisa de novas visões, de outras gramáticas, precisa que arrisquemos ter sonhos”, declarou.
O cardeal apresentou como “peregrino” de Fátima e disse que é preciso ver para lá das “tantas lágrimas, demandas e promessas”.
“A Fátima, nós peregrinos, chegamos sempre de mãos vazias. Mas de Fátima levamos, acordado dentro de nós, um sonho. Fátima ensina, assim, como se ilumina um mundo que está às escuras. Seja o pequeno mundo do nosso coração, seja o coração do vasto mundo”, observou.
Obrigado, Senhora, por fazeres deste lugar uma alavanca da nossa humanidade. Um laboratório sem portas nem muros, sempre aberto para a esperança! Em ti, louvamos o Senhor que nos reergue de todas as fraquezas”.
OC


Eu Sou Porque Nós Somos

O valor do fracasso

No ar que hoje todos respiramos, surge várias vezes, logo afastado, o temor do fracasso. Com efeito, o objetivo que é proposto, e que ressoa como resultado determinante da felicidade e do êxito de uma vida, é o sucesso. E não só o sucesso é perseguido, como é considerado aquilo que salva uma existência. De outra maneira, a pessoa sente-se uma falhada, contada entre os descartados da sociedade.
Esta parece-me ser uma doença espiritual do nosso tempo, e muitos estão convictos de que o sucesso deve ser procurado como o desejo por excelência a inocular nas novas gerações. Não foi por acaso que Pier Paolo Pasolini escreveu: «Penso que é necessário educar as novas gerações para o valor da derrota. Para a sua gestão. Para a humanidade que dela brota. Para construir uma identidade capaz de percecionar uma comunhão de destino, onde se pode falhar e recomeçar sem que o valor e a dignidade sejam atacados. Para que não se tornem conquistadores sociais, para que não passem sobre o corpo dos outros para chegar primeiro».
Também os cristãos, arrastados e habituados a procurar a aprovação dos outros para os seus comportamentos bons, caritativos e conformes ao Evangelho, perseguem uma espécie de êxito, de sucesso no mundo, e portanto tornaram-se incapazes de entrever a possibilidade da fraqueza e do consequente fracasso.
O drama que vivem nesta reviravolta epocal nas sociedades ocidentais é precisamente determinado por um falhanço da evangelização, da pastoral, da incapacidade de contrapor uma presença de minoria significativa diante da humanidade de hoje. E os seus prantos, as suas lamentações não são diferentes das do profeta Jeremias na cidade santa de Jerusalém. No entanto, declaram-se discípulos de um profeta (este, pelo menos, era-o!) que conheceu como resultado da sua vida um impiedoso fracasso após alguns anos de pregação, de vida comunitária, de ação benéfica entre as pessoas. Traído e abandonado, foi considerado nocivo ao bem do seu povo e blasfemador da autoridade religiosa, e portanto condenado à morte pelo poder imperial romano. Que fim!
Por isso o fracasso deve ser inscrito no itinerário da existência cristã, assim como, bem o sabemos, no da existência humana. A queda e o fracasso não podem ser removidos porque estão inscritos na “infermitas” das vidas humanas, na fragilidade que nos conduz a falhar. Pode chegar a hora da queda e, como dizia um padre do deserto, «no fracasso vai-se ao fundo, toca-se o fundo, mas no fundo descobre-se o fundamental».
A queda e o fracasso que nos esmagam por vezes são legíveis e motiváveis, outras vezes permanecem na obscuridade e são enigmáticos, sobretudo as crises interiores, existenciais, quando caímos no “nada” e deixamos de ser capazes de reencontrar o sentido das coisas e da vida. Então reina a noite, a treva, e também Deus é percecionado como mudo e ausente pelo crente. Bernardo de Claraval, após uma vida repleta de sucessos, ao ponto de ter sido decisivo inspirador do papa, viveu uma crise terrível: deixou o mosteiro, retirou-se em solidão num bosque, e chegou a reconhecer «ter passado rente ao inferno, caindo e caindo». Mas depois daquela crise escreverá: «Ó desejável fraqueza!».
Não quero concluir estes pensamentos com a cereja da esperança, mas simplesmente despertar a consciência de que também o fracasso faz parte da vida e não deve ser afastado; seja então proclamado: «Feliz fraqueza»!

Enzo Bianchi
In Il blog di Enzo Bianchi
Trad.: Rui Jorge Martins
Publicado em 06.05.2021


Eu Sou Porque Nós Somos

A santidade é a forma mais alta do humanismo

A santidade é o objetivo da Igreja. Ou melhor, poderemos dizer que a santidade é o objetivo mais autêntico de todo o caminho humano. A santidade é a forma mais alta do humanismo. Porque o santo é o ser humano conseguido, o ser humano cujo projeto de vida coincide com o de Deus.
A Igreja, comunhão de fé, esperança e caridade, testemunha o amor de Deus pelo mundo e, no seu percurso, é para todos os povos sinal e instrumento de santificação. Os santos são aqueles que, de maneira límpida e constatável, tornam concreta essa perspetiva.
Eles são os gérmenes de novidade espalhados nos sulcos da história, pessoas que realizam em plenitude a perfeição do amor, e por isso são capazes de iluminar as mentes das mulheres e dos homens de cada tempo, reacender neles a fé, propor e sustentar generosos impulsos para superar a paralisadora mediocridade, renovar na verdade e na justiça as relações interpessoais, para que ninguém seja marginalizado e derrotado pelo desespero e pela dor.
Os santos são testemunhas fiéis, constantes e credíveis de um amor que transforma o mundo à luz do mistério pascal [morte e ressurreição de Jesus]. Nas suas existências refletem-se os mais altos valores interiores, os sentimentos, os ideais e as opções que inspiram e acompanham a sua vida e a sua obra. Acima de tudo, procuram em cada situação a glória de Deus e uma sincera caridade, rica de ternura, para com o próximo.
Profundamente incarnados no seu ambiente e na sua época, exprimem a índole e mais altas qualidades do seu povo, tornando-se quase o “cartão de cidadão”, ainda que o seu raio de influência supere amplamente os limites geográficos e cronológicos da sua existência terrena. São os maiores filhos de uma terra, figuras exemplares dos melhores talentos da sua gente.
Os povos de antiga tradição cristã poderão sempre beber da memória dos santos, como fecunda herança espiritual e cultural, para continuar a construir o seu futuro, respondendo a novas exigências e perspetivas no pensamento e nas ações. Mas também aqueles povos que recentemente foram envolvidos no benéfico fluxo da evangelização encontrarão neles uma “raiz”, uma experiência de ancoragem e desenvolvimento.
Anunciadores e concretizadores de valores universais, os santos propõem-se como mediadores na construção da paz, na dedicação a favor da solidariedade e da assistência às pessoas mais indigentes, na tutela da vida em todas as suas fases, na salvaguarda da criação, na defesa da consciência, na liberdade religiosa, critério e fundamento de todas as liberdades.
Os santos são apaixonados buscadores da verdade: este é, precisamente, o valor mais profundo da cultura, e os santos são os primeiros e mais credíveis “animadores culturais”. Ensinam-nos um estilo de obediência à verdade e um generoso compromisso ao serviço de uma visão da vida plenamente respeitosa da dignidade humana.
Extraordinários promotores de renovação na Igreja e na sociedade: muitos são os âmbitos nos quais eles, com o exemplo e o ensinamento, traçaram uma estrada que pode ser percorrida com renovado ímpeto.
Também hoje a Igreja, como sempre na sua história, é chamada a uma revisão para poder responder cada vez melhor às expetativas do Senhor. Ao voltar a percorrer os seus passos, a comunidade cristã e os crentes individualmente considerados serão capazes de se tornar felizes responsáveis por uma nova evangelização e trabalhar com renovado entusiasmo ao serviço do bem; os pastores da Igreja viverão o seu ministério com zelo e humildade, educando o povo de Deus para a santidade evangélica; os religiosos poderão crescer na fidelidade à sua vocação e, na senda dos conselhos evangélicos, afirmar a centralidade de Deus e o primado do sobrenatural na existência de cada ser humano; o diálogo entre as culturas poderá desenvolver-se em espírito de sincero acolhimento e estima recíproca, e produzir frutos abundantes e duradouros na busca da paz e da fraternidade entre os povos.
«Sentinela, a que ponto é a noite?», grita o profeta Isaías, o maior poeta de Israel (cf. 21,11). A noite passou? Muitos sinais no horizonte indicam-nos que a noite, felizmente, passou. Mas muitos outros sinais inquietantes avisam-nos de que o caminho da humanização do ser humano é ainda longo e está impregnado de lágrimas. A barbárie continua entre nós e, hoje como ontem reveste-se de hipocrisia e intolerância.
Continuamos a precisar de “sentinelas”. Mulheres e homens santos. Felizmente, mais uma vez o profeta encoraja-nos: «As tuas sentinelas levantam a voz», acrescenta Isaías (52,8), «durante todo o dia e toda a noite nunca se calarão» (62,6). É a reconfortante visão profética: nunca o Senhor fará faltar os santos à Igreja e ao mundo.

Card. Angelo Amato, Presidente emérito da Congregação para as Causas dos Santos, In L'Osservatore Romano
Traduzido por Rui Jorge Martins para o SNPC
Publicado em 29.04.2021


Eu Sou Porque Nós Somos

ANO DA FAMÍLIA AMORIS LAETITIA

No último Sábado, 24 de Abril, fizemos o primeiro Encontro deste Ano da Família Amoris laetitia, para começarmos a conhecer e deixar-nos interpelar por esta Exortação verdadeiramente fundamental. Algumas das palavras que foram ditas:

O que mais me fascina no papa Francisco é ele implicar-nos na reflexão. Sabe de onde vimos, sabe onde estamos, sabe para onde somos chamados a caminhar, mas não tem receitas nem caminhos já feitos. Convida-nos a iniciar processos e a caminhar juntos. A Verdade – de modo especial para cada pessoa e situação; não a verdade de cada um/a – há-de vir ao de cima. A pessoa, as pessoas, a família, encontrará a Verdade, que é Cristo, e deixar-se-á guiar por Ele, esteja em que situação estiver.
Cito palavras do cardeal D. António Marto, no prefácio a um livro que recolhe várias e diferentes leituras da Exortação (1):
“Após dois sínodos dos bispos dedicados à problemática da família no mundo contemporâneo, o Papa Francisco publicou a Exortação Apostólica Amoris laetitia sobre o amor na família. Desde a sua publicação suscitou, por um lado, uma onda de entusiasmo por ser um belíssimo hino ao amor matrimonial e familiar, como uma lufada de ar fresco que renova a linguagem, o olhar e a atitude face à vida concreta das famílias de hoje. Mas, por outro lado, suscitou uma reação de perplexidade e inquietação face à dificuldade de pôr em prática a metodologia exigente de acompanhar e integrar a fragilidade das famílias em crise. Outros ficaram desiludidos ou até tomados de pânico porque não oferece receitas simples e imediatas, prontas a aplicar.
Temos a impressão – e eu quero sublinhar este aspecto, porque creio que é esta uma das razões para a proposta deste Ano Família Amoris laetitia e também para as propostas que queremos desenvolver na paróquia pelo Projecto Nazaré – que mesmo na Igreja foi esmorecendo o primeiro entusiasmo e ainda não se explorou toda a riqueza que a Exortação oferece para a pastoral familiar”.

Escreve ainda o cardeal D. António Marto que “estamos diante de um grande texto de sabedoria, com um olhar de realismo e ternura sobre a família em todas as suas componentes, cheio de verdades práticas para a vida do casal e da família e de muitas e preciosas intuições, propostas, pistas e desafios pastorais”. Diz mesmo que a Amoris laetitia é a “Magna Carta da pastoral familiar para o próximo futuro”.

(1) Miguel Almeida, SJ (Coordenação), Alegria e Misericórdia – A teologia do papa Francisco para as famílias, Editora Frente e Verso, 2020


Eu Sou Porque Nós Somos

Algumas passagens da Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial de Oração Pelas Vocações, 25 de Abril de 2021.

«São José: o sonho da vocação»

Queridos irmãos e irmãs!

No dia 8 de dezembro passado, teve início o Ano especial dedicado a São José, por ocasião do 150º aniversário da declaração dele como Padroeiro da Igreja universal. Da parte minha, escrevi a carta apostólica Patris corde, com o objetivo de «aumentar o amor por este grande Santo». Trata-se realmente duma figura extraordinária e, ao mesmo tempo, «tão próxima da condição humana de cada um de nós». São José não sobressaía, não estava dotado de particulares carismas, não se apresentava especial aos olhos de quem se cruzava com ele. Não era famoso, nem se fazia notar: dele, os Evangelhos não transcrevem uma palavra sequer. Contudo, através da sua vida normal, realizou algo de extraordinário aos olhos de Deus. (…)

A vida de São José sugere-nos três palavras-chave para a vocação de cada um. A primeira é sonho. Todos sonham realizar-se na vida. E é justo nutrir aspirações grandes, expectativas altas, que objetivos efémeros como o sucesso, a riqueza e a diversão não conseguem satisfazer. Realmente, se pedíssemos às pessoas para traduzirem numa só palavra o sonho da sua vida, não seria difícil imaginar a resposta: «amor». É o amor que dá sentido à vida, porque revela o seu mistério. Pois só se tem a vida que se dá, só se possui de verdade a vida que se doa plenamente. A este propósito, muito nos tem a dizer São José, pois, através dos sonhos que Deus lhe inspirou, fez da sua existência um dom. (…)

Uma segunda palavra marca o itinerário de São José e da vocação: serviço. Dos Evangelhos, resulta como ele viveu em tudo para os outros e nunca para si mesmo. O Povo santo de Deus chama-lhe castíssimo esposo, desvendando assim a sua capacidade de amar sem nada reservar para si próprio. Libertando o amor de qualquer posse, abriu-se realmente a um serviço ainda mais fecundo: o seu cuidado amoroso atravessou as gerações, a sua custódia solícita tornou-o patrono da Igreja. (…)

Além do chamamento de Deus – que realiza os nossos sonhos maiores – e da nossa resposta – que se concretiza no serviço pronto e no cuidado carinhoso –, há um terceiro aspeto que atravessa a vida de São José e a vocação cristã, cadenciando o seu dia a dia: a fidelidade. José é o «homem justo» (Mt 1, 19) que, no trabalho silencioso de cada dia, persevera na adesão a Deus e aos seus desígnios. Num momento particularmente difícil, detém-se «a pensar» em tudo (cf. Mt 1, 20). Medita, pondera: não se deixa dominar pela pressa, não cede à tentação de tomar decisões precipitadas, não segue o instinto nem se cinge àquele instante. Tudo repassa com paciência. Sabe que a existência se constrói apenas sobre uma contínua adesão às grandes opções. Isto corresponde à laboriosidade calma e constante com que desempenhou a profissão humilde de carpinteiro (cf. Mt 13, 55), pela qual inspirou, não as crónicas da época, mas a vida quotidiana de cada pai, cada trabalhador, cada cristão ao longo dos séculos. Porque a vocação, como a vida, só amadurece através da fidelidade de cada dia. (…)

É a alegria que vos desejo a vós, irmãos e irmãs que generosamente fizestes de Deus o sonho da vida, para O servir nos irmãos e irmãs que vos estão confiados, através duma fidelidade que em si mesma já é testemunho, numa época marcada por escolhas passageiras e emoções que desaparecem sem gerar a alegria. São José, guardião das vocações, vos acompanhe com coração de pai!

Roma, São João de Latrão, 19 de março de 2021, Solenidade de São José


Eu Sou Porque Nós Somos

O que significa acreditar na ressurreição?

Estamos no Tempo da Páscoa: passagem da morte à vida. O que percebemos dos relatos das manifestações do Ressuscitado é que não há ressurreição sem haver morte. E também que a crucifixão e morte de Jesus não são apenas um acontecimento histórico do passado, mas também do presente. E que temos de aprofundar, cada Páscoa, o que é que esse Mistério significa para mim/para nós.

Algumas dimensões, a partir de um texto publicado no site Religión Digital, no passado dia 3 deste mês de Abril:

“Como crente, confesso que a ressurreição de Jesus abre a porta à esperança. A morte deixa de ser o fim da existência. Aos crucificados da história, escravos de todos os tempos, pobres, oprimidos, marginalizados, imigrantes e refugiados, afogados no Mediterrâneo ou na travessia nas Canárias, e a todos os que morreram sonhando e lutando por outro mundo mais justo e humano, é feita justiça. a ressurreição revela-nos que a última palavra sobre a história não é a dos poderes do mal nem o sistema que hoje domina o mundo, mas o Deus da Vida.

Crer na ressurreição não é uma evasão ou uma alienação mas um compromisso libertador no aqui e agora, tornando possível uma nova humanidade de justiça e equidade, onde os homens e as mulheres de todos os povos da terra possam sentar-se a partilhar a mesa da fraternidade. A ressurreição do ser humano no futuro vai acompanhada no presente por sinais libertadores, tanto na ordem pessoal como na ordem socioeconómica e política. Deus, ao ressuscitar Jesus, está a dizer-nos faz justiça aos que morrem vítimas da injustiça e da violência do sistema opressor.

Ressurreição significa reconstrução dos sonhos mortos, da utopia universal. Significa que é possível outro mundo alternativo; superar as relações de exploração, discriminação, marginalização e abuso de poder; que ninguém neste mundo passe fome; que se acabem os políticos corruptos e racistas que só beneficiam os poderosos da nação. Ressurreição significa que os povos se abram à fraternidade universal; que todos nos unamos para cuidar deste planeta formoso que é a Terra, do seu solo, dos seus bosques, das suas águas, do seu ar e de todos os seres vivos. A este sonho, Jesus, o Ressuscitado, chama Reino de Deus, porque Deus reina onde há fé, esperança e amor. Entre morte e ressurreição circula o amor, que é a única vida em plenitude.”

Fernando Bermúdez López


Eu Sou Porque Nós Somos

Encontrar Cristo significa descobrir a paz no coração

Nós não temos essa tradição (em muitas paróquias continuava o Compasso), mas noutros países é uma data assinalada. Na chamada ‘Segunda-feira do Anjo’ (por causa da passagem do Evangelho que é proclamada na Eucaristia), o Papa Francisco rezou o Regina Coeli (antífona própria do Tempo Pascal) e, na sua catequese, convidou a reagir diante da ressurreição de Cristo, não com o medo dos guardas que vigiavam o túmulo, mas com a alegria das mulheres.

Aqui ficam as suas palavras.

“Queridos irmãos e irmãs, bom dia!

A segunda-feira depois da Páscoa é também chamada de segunda-feira do anjo, porque recordamos o encontro do anjo com as mulheres que foram ao túmulo de Jesus (cf. Mt 28, 1-15). O anjo diz-lhes: «Sei que procurais Jesus, o crucificado. Não está aqui. Ele ressuscitou "(vv. 5-6). Esta expressão "Ele ressuscitou" está além da capacidade humana. Mesmo as mulheres que foram ao túmulo e o encontraram aberto e vazio, não podiam dizer: "Ele ressuscitou", mas apenas dizer que o túmulo estava vazio. Que Jesus ressuscitou só poderia ser dito por um anjo com poder de anunciador do céu, com poder dado por Deus para o dizer, assim como um anjo - só um anjo - poderia ter dito a Maria: «Tu conceberás um filho [...] e será chamado de Filho do Altíssimo"( Lc. 1,31). Por isso dizemos que é a segunda-feira do anjo, porque só um anjo com a força de Deus pode dizer: "Jesus ressuscitou".

O Evangelista Mateus narra que naquela madrugada de Páscoa “houve um grande terramoto. Com efeito, um anjo do Senhor desceu do céu, aproximou-se, rolou a pedra e sentou-se sobre ela»(cf. v. 2). Aquela grande pedra, que deveria ser o selo da vitória do mal e da morte, colocada sob os pés, torna-se o banco do anjo do Senhor. Todos os planos e defesas dos inimigos e perseguidores de Jesus foram em vão. Os selos todos caíram. A imagem do anjo sentado na pedra da tumba é a manifestação concreta e visual da vitória de Deus sobre o mal, a manifestação da vitória de Cristo sobre o príncipe deste mundo, a manifestação da vitória da luz sobre as trevas. O túmulo de Jesus não foi descoberto por um fenómeno físico, mas pela intervenção do Senhor. O aspecto do anjo, acrescenta Mateus, "era como o relâmpago e seu vestido branco como a neve" (v. 3). Esses detalhes são símbolos que afirmam a intervenção do próprio Deus, portador de uma nova era, dos últimos tempos da história, pois com a ressurreição de Jesus começa o último tempo da história que poderia durar mil anos, mas é o último.

Diante dessa intervenção de Deus, ocorre uma dupla reação. A dos guardas, que não conseguem enfrentar a força avassaladora de Deus e são abalados por um terramoto interior: ficaram atordoados (cf. v. 4). O poder da Ressurreição derruba aqueles que foram usados para assegurar a aparente vitória da morte. E o que deveriam fazer esses guardas? Ir até aqueles que lhe deram a ordem para guardar e dizer a verdade. Eles se depararam com uma opção: dizer a verdade ou ser persuadidos por aqueles que lhes deram o mandato de vigiar. E a única maneira de convencê-los era com dinheiro, e esses coitados, coitados, venderam a verdade e com o dinheiro no bolso foram dizer: “Não, vieram os discípulos e roubaram o corpo”. Também aqui, na ressurreição de Cristo, o dinheiro do "senhor", é capaz de ter poder, de negá-lo. A reação das mulheres é muito diferente, pois são expressamente convidadas pelo anjo do Senhor a não temer: "Não temais!" (v. 5) e a não buscar Jesus no túmulo.

Das palavras do anjo podemos recolher um ensinamento precioso: não nos cansemos de procurar Cristo ressuscitado, que dá vida em abundância a quem o encontra. Encontrar Cristo significa descobrir paz no coração. As mesmas mulheres do Evangelho, depois da perturbação inicial, naturalmente, sentem grande alegria em encontrar o Mestre vivo (cf. vv. 8-9). Neste tempo pascal, desejo que todos tenham a mesma experiência espiritual, acolhendo nos corações, nos lares e nas famílias as boas novas da Páscoa: «O Cristo ressuscitado já não morre, a morte já não tem poder sobre ele» (Antífona da Comunhão) . O anúncio da Páscoa é este: «Cristo está vivo, Cristo acompanha a minha vida, Cristo está ao meu lado». Cristo bate na porta do meu coração para deixá-lo entrar, Cristo está vivo.

Esta certeza leva-nos a rezar, hoje e durante todo o período pascal: " Regina Caeli, laetare - isto é, Rainha do Céu, alegra-te". O anjo Gabriel a saudou assim pela primeira vez: "Alegra-te, cheia de graça!" ( Lc 1:28). Agora a alegria de Maria é completa: Jesus vive, o amor venceu. Que seja também a nossa alegria!”


Eu Sou Porque Nós Somos

«Porque deixámos de saber espantar-nos diante de Jesus? Porquê?» Francisco abre as portas da Semana Santa

«Muitos admiram Jesus: falou bem, amou e perdoou, o seu exemplo mudou a História… e assim por diante. Admiram-no, mas a sua vida não muda»: a paralisia espiritual, a resistência à conversão, as expetativas inabaláveis, a incapacidade do espanto, que marcaram o acolhimento do Messias nas ruas de Jerusalém poucos dias antes da sua crucificação, subsistem hoje, inclusive entre os crentes, tornando-os impermeáveis à surpresa, à inovação, à desordem que Ele continua a trazer ao mundo.

O papa presidiu hoje, no Vaticano, à missa do Domingo de Ramos, que marca a entrada na “Semana Maior” dos cristãos, na qual se assinala com particular realce a morte de Jesus, na Sexta-feira Santa, e a sua passagem para a vida sem fim, evocada com especial relevo na Vigília Pascal e Domingo de Páscoa.

À entrada da “Cidade Santa”, Jesus parece ser recebido por uma multidão de cegos: olham-no, mas não o veem, divisam o seu rosto mas desconhecem o seu coração: «A sua gente espera para a Páscoa o libertador poderoso, mas Jesus vem para realizar a Páscoa com o seu sacrifício. A sua gente espera celebrar a vitória sobre os romanos com a espada, mas Jesus bem celebrar a vitória de Deus com a cruz», afirmou Francisco.

O que inquieta não é só este engano, que não obstante terem passado dois mil anos, continua a desdobrar-se em ilusórias expetativas dos cristãos sobre quem é Jesus, mas também a brusca mudança de opinião: «Que acontece àquela gente, que em poucos dias passou de dar hossanas a Jesus a gritar “crucifica-o”? O que aconteceu?».

«Aquelas pessoas seguiam mais uma imagem de Messias, que não o Messias. Admiravam Jesus, mas não estavam prontas a deixar-se espantar por Ele. O espanto é diferente da admiração. A admiração pode ser mundana, porque busca os próprios gostos e as próprias expetativas; o espanto, pelo contrário, permanece aberto ao outro, à sua novidade.»

Para que neste ano de 2021 a atitude dos cristãos seja outra, é preciso um coração novo: «Porque admirar Jesus não basta. É preciso segui-lo no seu caminho, deixar-se colocar em discussão por Ele: passar da admiração ao espanto».

Como é difícil que o assombro de Jesus expulse o entorpecimento e o marasmo, na vida pessoal e na vida da Igreja; e como ele é tão urgente: «A vida cristã, sem espanto, torna-se cinzenta. Como se pode testemunhar a alegria de se ter encontrado Jesus se não nos deixamos espantar a cada dia pelo seu amor surpreendente, que nos perdoa e faz recomeçar?».

«Se a fé perde o espanto, torna-se surda: deixa de sentir a maravilha da Graça, deixa de sentir o gosto do Pão da vida e da Palavra, deixa de perceber a beleza dos irmãos e o dom da criação. E não há outro caminho a não ser o de refugiar-se nos legalismos, nos clericalismos e em todas estas coisas que Jesus condena no capítulo 23 de Mateus.»

Será esta mais uma Semana Santa incapaz de sacudir a vida? Ou, com as palavras do papa, «conseguiremos ainda deixar-nos comover pelo amor de Deus? Porque deixámos de saber espantar-nos diante dele? Porquê?».

«Talvez porque a nossa fé tenha sido desgastada pela habituação. Talvez porque permaneçamos fechados nas nossas lamentações e nos deixemos paralisar pelas nossas insatisfações. Talvez porque tenhamos perdido a confiança em tudo e nos creiamos até errados. Mas por trás destes “talvez” há o facto de não estarmos abertos ao dom do Espírito, que é aquele que nos dá a graça do espanto.»

Francisco fala de espanto, e por isso é natural questionar sobre o que «mais espanta no Senhor e na sua Páscoa? O facto de Ele chegar à glória pela via da humilhação. Ele triunfa ao acolher a dor e a morte, que nós, escravos da admiração e do sucesso, evitamos».

Em que consistiu a humilhação que continua a desconfigurar o que muitos esperam de Deus? «Ver o Todo-poderoso reduzido a nada. Vê-lo, a Palavra que sabe tudo, ensinar-nos em silêncio na cátedra da cruz. Ver o rei dos reis que tem por trono um patíbulo. Ver o Deus do universo despojado de tudo. Vê-lo coroado de espinhos em vez de glória. Vê-lo, a bondade em pessoa, insultado e pisado.»

A interpelação é inevitável, então como hoje, e seguramente para sempre: «Porquê toda esta humilhação? Porquê, Senhor, deixaste que te fizessem tudo isto?». «Fê-lo por nós, para tocar até ao fundo a nossa realidade humana, para atravessar toda a nossa existência, todo o nosso mal. Para aproximar-se de nós e não nos deixar sós na dor e na morte. Para recuperar-nos, para salvar-nos.»

«Jesus sobre à cruz para descer ao nosso sofrimento. Prova os nossos piores estados de alma: o fracasso, a rejeição de todos, a traição de quem lhe quer bem e até o abandono de Deus. Experimenta na sua carne as nossas contradições mais lacerantes, e assim redime-as, transforma-os. O seu amor aproxima-se das nossas fragilidades, chega aonde nos mais envergonhamos.»

Por isso, quem acredita em Deus sabe que nunca está só: «Deus está connosco, em cada ferida, em cada medo; nenhum mal, nenhum pecado tem a última palavra. Deus vence, mas a palma da vitória passa pelo madeira da cruz. Porque as palmas e a cruz estão juntas».

É também «a graça do espanto» que permite compreender que amar Jesus passa por «acolher quem é descartado, aproximar-se de quem é humilhado pela vida», porque «Ele está nos últimos, nos rejeitados, naqueles que a nossa cultura farisaica condena» - e entre estes não se pode deixar de pensar nas pessoas atingidas pelas muitas “condenações” proclamadas pela Igreja, desde a sua origem aos nossos dias.

A reflexão de Francisco começou pela alusão às expetativas desajustadas dos crentes em relação a Jesus, e foi com elas que concluiu a homilia: a ideia «de um Deus a adorar e a temer enquanto poderoso e terrível» não tem cabimento no cristianismo e é imune aos mal-entendidos, porque Ele «desvelou-se e reina apenas com a força desarmada e desarmante do amor».

Rui Jorge Martins (in SNPC. Publicado em 28.03.2021)


Eu Sou Porque Nós Somos

BREVE DICIONÁRIO ESPIRITUAL DA MENSAGEM DO PAPA PARA A QUARESMA 2021.

É verdade que estamos já a chegar ao final da Quaresma. Rigorosamente, esta é a última semana da Quaresma. Chamamos à próxima semana a Semana Santa ou Semana maior, como dizem os nossos amigos espanhóis. Continuamos em tempo de conversão e de penitência, mas esta caminhada ganha tonalidades diferentes, a que faremos bem em estar atentos.
Aqui ficam as últimas ‘entradas’ do Dicionário espiritual. Vale sempre a pena saboreá-las.

Jejum
* É caminho da pobreza e da privação.
* Leva-nos a redescobrir o dom de Deus e a compreendermos a nossa condição de criaturas.
* Faz-nos pobres com os pobres.
* Acumula a riqueza do amor recebido e partilhado.
* Liberta a nossa existência de tudo o que a atravanca, inclusive da saturação de informações – verdadeiras ou falsas – e produtos de consumo.
* Abre as portas do nosso coração Àquele que vem a nós pobre de tudo, mas «cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14): o Filho de Deus Salvador.
* Ajuda-nos a amar a Deus e ao próximo.

Oração
* É diálogo filial com o Pai.
* Exige silêncio e recolhimento (cf. Mt 6, 6) para encontrar, no segredo, o Pai da ternura.
* É exercício de esperança: no recolhimento e oração silenciosa, a esperança é-nos dada como inspiração e luz interior, que ilumina desafios e opções da nossa missão.

Palavra de Deus
* É o próprio Cristo, que Se fez Homem e nos conduz à plenitude da vida.
* Não é reservada a poucos, mas a todos os que estão abertos à revelação do amor do Pai.
* É transmitida de geração em geração pela Igreja.
* É preciso deixar-se alcançar por ela.

Páscoa
* Sob a sua luz vivemos a Quaresma. É a meta da Quaresma.
* É o fundamento da nossa fé e da nossa esperança e do nosso amor.
* Tempo de renovar as promessas do nosso Batismo.
* Tempo para renascer como mulheres e homens novos por obra e graça do Espírito Santo.
* Anima os sentimentos, atitudes e opções de quem deseja seguir a Cristo.

Perdão
* Tem a sua fonte no Coração aberto de Jesus, do qual brota o perdão do Pai.
* É fonte de esperança no meio das nossas fraquezas: nem os nossos erros, nem as nossas violências e injustiças, nem o pecado que crucifica o Amor têm a última palavra na história;
* É recebido para ser dado.
* Faz-nos viver um diálogo solícito e confortar quem está ferido.
* Permite-nos viver uma Páscoa de fraternidade.

Quaresma
* Tempo de conversão, para renovar a fé, a esperança e a caridade:
* Tempo para acreditar, isto é, para acolher Deus na nossa vida, deixando-O «fazer morada» em nós (cf. Jo 14, 23).
* Tempo para dar razões da nossa esperança, em palavras e gestos de amabilidade e caridade.
* Tempo de cuidar de quem se encontra em condições de sofrimento, abandono ou angústia por causa da pandemia de Covid-19.
* Tempo para voltar a dirigir o nosso olhar para a paciência de Deus, que continua a cuidar da sua Criação, não obstante nós a maltratarmos com frequência.
* É um percurso de conversão, oração e partilha dos nossos bens.


Eu Sou Porque Nós Somos

Aquando da publicação da Mensagem do papa Francisco para a Quaresma que estamos a viver, o padre Amaro Gonçalo fez aquilo a que chamou

BREVE DICIONÁRIO ESPIRITUAL DA MENSAGEM DO PAPA PARA A QUARESMA 2021.

É uma boa maneira de ajudar a aprofundar as interpelantes palavras.

“Acabámos de receber a Mensagem do Papa para a Quaresma de 2021, com a convocatória «Vamos subir a Jerusalém» (Mt 20, 18) e a proposta de fazer da Quaresma “um tempo para renovar fé, a esperança e a caridade”. Procuro aqui, a partir da referida Mensagem, e colocando os temas por ordem alfabética, organizar um breve dicionário espiritual.

Caridade (Amor)
* Tem a sua fonte no coração misericordioso do Pai.
* É o impulso do coração que nos faz sair de nós mesmos gerando o vínculo da partilha e da comunhão.
* Não é um sentimento estéril, mas o modo melhor de alcançar vias eficazes de desenvolvimento para todos.
* Alegra-se ao ver o outro crescer.
* Sofre quando o encontra na angústia: sozinho, doente, sem abrigo, desprezado, necessitado.
* Sabe cuidar de quem se encontra em condições de sofrimento, abandono ou angústia por causa da pandemia de Covid-19.
* Alia a partilha concreta a uma palavra de confiança e de estímulo.
* Faz sentir ao outro que Deus o ama como um filho.
* Deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença.
* Faz-nos dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam, em vez de palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam.
* Transforma-nos em irmãos e irmãs em Cristo.

Esmola (Partilha)
* É feita de atenção e gestos de amor pelo homem ferido.
* Dá até o pouco com amor, de tal modo que esse pouco nunca acaba, mas transforma-se em reserva de vida e felicidade.
* Deve ser acompanhada por palavras de confiança e de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam, em vez de palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam.
* Faz sentir ao outro que Deus o ama como um filho.

Esperança
* Tem a sua razão em Cristo, que dá a sua vida na cruz e a quem Deus ressuscita ao terceiro dia.
* É animada pelo sopro do Espírito Santo.
* É água viva que nos permite continuar o caminho sem desfalecer.
* É sustentada pela oração.
* Volta o nosso olhar para a paciência de Deus, que continua a cuidar da sua Criação, não obstante nós a maltratarmos com frequência.
* Faz-nos corresponder ao apelo de São Paulo: «Reconciliai-vos com Deus» (2 Cor 5, 20).
* É-nos dada pela experiência e pela certeza do perdão de Deus.
* Traduz-se em amabilidade: para dar esperança, basta ser «uma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença».
* Faz-nos testemunhas do tempo novo em que Deus renova todas as coisas (cf. Ap 21, 1-6).
* Compromete-nos a dar a razão da [nossa] esperança a todo aquele que [no-la] peça» (1 Ped 3, 15).


* Faz-nos acolher a Verdade, que é Cristo vivo.
* Implica receber Deus na nossa vida e deixá-l'O «fazer morada» em nós (cf. Jo 14, 23).
* Faz-nos testemunhas diante de Deus e de todos.


Eu Sou Porque Nós Somos

O último ponto da Mensagem do papa Francisco para a Quaresma que estamos a viver e celebrar é sobre a ‘ultima’ das Virtudes Teologais (aquelas atitudes interiores que marcam a nossa vida de comunhão com Deus): Fé, Esperança e Caridade. De facto, costumamos indicar a Caridade no final, e bem, porque ela, como escreve São Paulo, é aquela que nunca passará. Passarão a Fé e a Esperança, porque no Céu, estaremos diante da face de Deus, estaremos diante do Mistério que sempre procuramos, já não precisamos de crer e já não precisamos de esperar, porque veremos a Deus tal como Ele é. Permanecerá eternamente a Caridade, a plena Comunhão com Deus e com os irmãos e irmãs. Essa Comunhão que somos chamados a viver e fazer crescer sempre mais nesta Casa Comum que habitamos.